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PARTE 11
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O "Padrão Moderador"
das ~e/ações entre Civis e Mi li-ta.,r~?:~\c'
Brasil, 1945-196411
Um aspecto fundamental do relacionamento civil-militar é a tensã;'~~;;~C~i~'I'~~~"" !'-'f:--··
se manifesta diante de uma dupla necessidade dos governantes políticos civis: de um
lado, man ter uma força armada co mo instru mento da política e da ordem interna e, de
outro, garantir que o poder militar não usurpe o poder político. Esta tensão tem sido
resolvida de modo diferente em diferentes países. Grande parte da literatura refe-
rente a estes problemas pode ser resumida em poucas palavras, apontando quatro
modelos distintos ou tipos ideais do relacionamento civil-militar. Podemos chamá-Ias
modelos aristocrático, comunista, liberal e profissional.' Para simplificar, digamos
que para cada um destes modelos diferentes as duas variáveis importantes são o valor
- congruência e/ou os mecanismos de controle.
O modelo aristocrático apresenta a solução mais simples da tensão potencial
entre o poder civil e o militar, e historicamente foi o que obteve maior êxito. Sua
essência reside no fato de que os valores sociais e os interesses materiais das elites
militares e políticas, numa sociedade aristocrática, são naturalmente congruentes. Os
oficiais do Exército provêm sobretudo da aristocracia e se definem como aristocra-
tas, e não como oficiais. Enquanto aristocratas, conservam seu prestigio e riqueza
mediante o apoio à forma aristocrática de governo. O militar tem um nível de diferen-
ciação interna baixo, de forma que pouco treinamento especial é necessário para
íaz ê-lo qualificar-se como oficial. Na ausência de um profissionalismo militar, falta
a tensão clássica entre a classe profissional de oficiais que visam sobretudo objetivos
militares e a elite política.
Este modelo começa a deteriorar-se quando a própria sociedade aristocrata entra
em decomposição. Com a industrialização, os aspectos técnicos da estratégia militar
acabam por requerer um quadro de oficiais mais especializado. Ampliando-se as
oportunidades educacionais, abre-se o caminho para a admissão ao oficialato de
elementos estranhos à aristocracia. Estes processos, por seu turno, criam uma fonte
de tensão potencial entre civis e militares, dado que os oficiais passam progressiva-
mente a se definir primeiro como militares profissionais e somente depois como
aristocratas. Em certo momento, podem emergir certos mecanismos autoconscientes
de controle, tais como a restrição ao ingresso dos aristocratas no quadro de oficiais,
numa tentativa artificial de manter o valor-congruência.?
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.~ I É claro que existem outros modelos. Apresento estes quatro, por responderem mais significati-
varnente à questão de como os governos civis podem controlar os militares, em vez de serem
controlados por estes.
2 Para uma análise séria de alguns componentes do modelo aristocrático, cf. Caetano Mosca, T/Je
RlJlJng Cless, trans. H.O. Kahn (New Yor k : McGraw-Hill Book Company, 1939). pp. 222-243. Uma
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"c-rto
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No modelo liberal do relacionamento civil-militar, as elites políticas têm bastante
consciência do conflito potencial existente entre elas e os militares e procuram
deliberadamente garantir que os militares não tenham legitimidade para agir na
esfera política. No plano ideal, o militar deve permanecer apolítico. Uma vez que
'o conflito de valores é reconhecido como uma ameaça potencial, dá-se grande
ênfase aos esquemas de neutralização. O exército permanente é mantido com efetivo
reduzido. Após uma guerra, é desmobilizado rapidamente. Criam-se forças militares
de compensação, na forma de milícias, como um freio ao exército regular. Podem-se
fazer algumas investidas contra o valor-congruêncía, convocando cidadãos para o
exército em vez de confiar em soldados profissionais de carreira e fornecendo múlti-
plas vias de acesso ao quadro de oficiais. Este padrão de relacionamento civil-militar
tem maior probabilidade de êxito numa sociedade que disponha de instituições
civis fortes e não sofra constantes ameaças externas à segurança. Os exemplos
clássicos são a Suíça e os Estados Unidos no século XIX.
Ao contrário dos modelos aristocrático e liberal, os modelos comunista e profissi-
onal atribuem alto valor à força militar e à especialização. Todavia, em ambos o
controle dos militares pelos civis é um elemento essencial. No modelo comunista,
repele-se o ideal liberal de um militar apolítico. Wiatr, o teórico comunista polonês,
escreve: "A rejeição do conceito de militar como expert politico torna-se, nos países
socialistas, um dos elementos de integração entre o exército e a sociedade"? Esta
integração se realiza mediante constante doutrinação política e procurando garantir
que a grande maioria dos oficiais de patente mais elevada sejam membros do partido
comunista. Assim, a integração dos valores que caracterizava o modelo aristocrático
de relacionamento civil-militar também faz parte do modelo comunista. No último
caso, consegue-se esta integração "através da politização do soldado profissional,
que não mais ê tratado apenas como um expert, mas age também como membro
do partido comunista e através deste participa das decisões políticas, não como
soldado, mas como cidadão politicamente ativo "." Os paises comunistas também
empregam largamente certos mecanismos de controle, tais como a presença de
comíssários políticos nas unidades militares, o serviço de informações políticas e
os expurgas ideológicos.
No modelo comunista de relações entre civis e militares, há duas áreas de
manifesta debilidade. No caso de grandes ameaças externas à segurança nacional, os
oficiais militares se esforçam por obter autonomia profissional, ou procu ram dominar
o partido comunista se ele se enfraquecer, como ocorreu na China durante a revolu-
ção cultural.>
análise geral, assim como uma interessante descrição de um aspecto do modelo - o sistema de
promoção por compra como meio de ligar a posição à riqueza -, encontra-se em Sarnuet
Huntington, The So/dier and lhe S/ale: The Theory and Politicsot Civil-Military Relations (New
York: Random House, 1964). pp, 19-30,470-473.
3 Jerzy Wiatr, "Expert and Politician - lhe Divergent Aspects 01 the Social Role 01 the Army Man",
Polish Sociologicet Review, n.? 1 (1964). p. 53.
, Ierzv Wiatr, "Military Professionalism and lransformations of Class Structure in Poland", in
Armed Forces and Society: Sociological Essays, ed. jacques van Doorn (Paris: Mouton, 1968). p.
238. O grifo é nosso. .
S O estudo mais completo das relações entre civis e militares na União Soviética é o de Roman
Kolkowicz em The Soviet Mi"tary and the Communist Party (Princeton: Princeton University Press,
1967); para uma descrição do mecanismo de controle militar do partido, cr. pp. 81-9B. Para o caso
da China, ct. Ellis [of e, Party and Army: Professionalism andPolttical Controt in Ctunese Officer
Corps, 7949-7964, Harvard EastAsian Monographs, ri.? 19 (Cambridge, Mass.: Harvard University
Pre ss, 1965). Parao dramático aumento do poder político do exército na China durante a revol ução
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O "Padrão Moderador"
das ~e/ações entre Civis e Mi li-ta.,r~?:~\c'
Brasil, 1945-196411
Um aspecto fundamental do relacionamento civil-militar é a tensã;'~~;;~C~i~'I'~~~"" !'-'f:--··
se manifesta diante de uma dupla necessidade dos governantes políticos civis: de um
lado, man ter uma força armada co mo instru mento da política e da ordem interna e, de
outro, garantir que o poder militar não usurpe o poder político. Esta tensão tem sido
resolvida de modo diferente em diferentes países. Grande parte da literatura refe-
rente a estes problemas pode ser resumida em poucas palavras, apontando quatro
modelos distintos ou tipos ideais do relacionamento civil-militar. Podemos chamá-Ias
modelos aristocrático, comunista, liberal e profissional.' Para simplificar, digamos
que para cada um destes modelos diferentes as duas variáveis importantes são o valor
- congruência e/ou os mecanismosde controle.
O modelo aristocrático apresenta a solução mais simples da tensão potencial
entre o poder civil e o militar, e historicamente foi o que obteve maior êxito. Sua
essência reside no fato de que os valores sociais e os interesses materiais das elites
militares e políticas, numa sociedade aristocrática, são naturalmente congruentes. Os
oficiais do Exército provêm sobretudo da aristocracia e se definem como aristocra-
tas, e não como oficiais. Enquanto aristocratas, conservam seu prestigio e riqueza
mediante o apoio à forma aristocrática de governo. O militar tem um nível de diferen-
ciação interna baixo, de forma que pouco treinamento especial é necessário para
íaz ê-lo qualificar-se como oficial. Na ausência de um profissionalismo militar, falta
a tensão clássica entre a classe profissional de oficiais que visam sobretudo objetivos
militares e a elite política.
Este modelo começa a deteriorar-se quando a própria sociedade aristocrata entra
em decomposição. Com a industrialização, os aspectos técnicos da estratégia militar
acabam por requerer um quadro de oficiais mais especializado. Ampliando-se as
oportunidades educacionais, abre-se o caminho para a admissão ao oficialato de
elementos estranhos à aristocracia. Estes processos, por seu turno, criam uma fonte
de tensão potencial entre civis e militares, dado que os oficiais passam progressiva-
mente a se definir primeiro como militares profissionais e somente depois como
aristocratas. Em certo momento, podem emergir certos mecanismos autoconscientes
de controle, tais como a restrição ao ingresso dos aristocratas no quadro de oficiais,
numa tentativa artificial de manter o valor-congruência.?
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.~ I É claro que existem outros modelos. Apresento estes quatro, por responderem mais significati-
varnente à questão de como os governos civis podem controlar os militares, em vez de serem
controlados por estes.
2 Para uma análise séria de alguns componentes do modelo aristocrático, cf. Caetano Mosca, T/Je
RlJlJng Cless, trans. H.O. Kahn (New Yor k : McGraw-Hill Book Company, 1939). pp. 222-243. Uma
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No modelo liberal do relacionamento civil-militar, as elites políticas têm bastante
consciência do conflito potencial existente entre elas e os militares e procuram
deliberadamente garantir que os militares não tenham legitimidade para agir na
esfera política. No plano ideal, o militar deve permanecer apolítico. Uma vez que
'o conflito de valores é reconhecido como uma ameaça potencial, dá-se grande
ênfase aos esquemas de neutralização. O exército permanente é mantido com efetivo
reduzido. Após uma guerra, é desmobilizado rapidamente. Criam-se forças militares
de compensação, na forma de milícias, como um freio ao exército regular. Podem-se
fazer algumas investidas contra o valor-congruêncía, convocando cidadãos para o
exército em vez de confiar em soldados profissionais de carreira e fornecendo múlti-
plas vias de acesso ao quadro de oficiais. Este padrão de relacionamento civil-militar
tem maior probabilidade de êxito numa sociedade que disponha de instituições
civis fortes e não sofra constantes ameaças externas à segurança. Os exemplos
clássicos são a Suíça e os Estados Unidos no século XIX.
Ao contrário dos modelos aristocrático e liberal, os modelos comunista e profissi-
onal atribuem alto valor à força militar e à especialização. Todavia, em ambos o
controle dos militares pelos civis é um elemento essencial. No modelo comunista,
repele-se o ideal liberal de um militar apolítico. Wiatr, o teórico comunista polonês,
escreve: "A rejeição do conceito de militar como expert politico torna-se, nos países
socialistas, um dos elementos de integração entre o exército e a sociedade"? Esta
integração se realiza mediante constante doutrinação política e procurando garantir
que a grande maioria dos oficiais de patente mais elevada sejam membros do partido
comunista. Assim, a integração dos valores que caracterizava o modelo aristocrático
de relacionamento civil-militar também faz parte do modelo comunista. No último
caso, consegue-se esta integração "através da politização do soldado profissional,
que não mais ê tratado apenas como um expert, mas age também como membro
do partido comunista e através deste participa das decisões políticas, não como
soldado, mas como cidadão politicamente ativo "." Os paises comunistas também
empregam largamente certos mecanismos de controle, tais como a presença de
comíssários políticos nas unidades militares, o serviço de informações políticas e
os expurgas ideológicos.
No modelo comunista de relações entre civis e militares, há duas áreas de
manifesta debilidade. No caso de grandes ameaças externas à segurança nacional, os
oficiais militares se esforçam por obter autonomia profissional, ou procu ram dominar
o partido comunista se ele se enfraquecer, como ocorreu na China durante a revolu-
ção cultural.>
análise geral, assim como uma interessante descrição de um aspecto do modelo - o sistema de
promoção por compra como meio de ligar a posição à riqueza -, encontra-se em Sarnuet
Huntington, The So/dier and lhe S/ale: The Theory and Politicsot Civil-Military Relations (New
York: Random House, 1964). pp, 19-30,470-473.
3 Jerzy Wiatr, "Expert and Politician - lhe Divergent Aspects 01 the Social Role 01 the Army Man",
Polish Sociologicet Review, n.? 1 (1964). p. 53.
, Ierzv Wiatr, "Military Professionalism and lransformations of Class Structure in Poland", in
Armed Forces and Society: Sociological Essays, ed. jacques van Doorn (Paris: Mouton, 1968). p.
238. O grifo é nosso. .
S O estudo mais completo das relações entre civis e militares na União Soviética é o de Roman
Kolkowicz em The Soviet Mi"tary and the Communist Party (Princeton: Princeton University Press,
1967); para uma descrição do mecanismo de controle militar do partido, cr. pp. 81-9B. Para o caso
da China, ct. Ellis [of e, Party and Army: Professionalism andPolttical Controt in Ctunese Officer
Corps, 7949-7964, Harvard EastAsian Monographs, ri.? 19 (Cambridge, Mass.: Harvard University
Pre ss, 1965). Parao dramático aumento do poder político do exército na China durante a revol ução
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No modelo profissional, como no comunista, o objetivo dos políticos ciyis é
manter uma força militar poderosa sob controle do governo civil. O principal teórico
deste modelo, Samuel Huntington, afirma que o controle civil é realizado, não através
do valor-congruência ou de extensos esquemas de controle, mas pela tolerância dos
civis para com o desenvolvimento autõnomo da influência militar dentro da esfera
militar. Sustenta Huntington que a busca de objetivos militares profissionais pelos
rnilitares tende, em si mesma, a restringir a energia militar à sU,%:esfera própria,
não-política. "A essência do controle objetivo civil é o reconhecimento do profissio-
nalismo militar autõnomo."6 Em sua opinião, consegue-se o controle civil "não
porque os grupos militares partilhem valores sociais e ideologias políticas da socis..
dade, mas porque são indiferentes a tais valores e a tais ideologias. Os líderes
militares obedecem ao governo não porque concordem com suas políticas, mas
simplesmente porque é sua obrigação obedecer". 7
São estes os quatro modelos clássicos das relações entre civis e militares empre-
gados para descrever a forma como o militar é controlado por políticos civis. Existem,
é claro, outros modelos, tais como o da ditadura militar ou o militar modernizador,
nos quais está ausente o controle civil e os militares controlam todo o sistema político.
A partir destas formulações suciritas, podemos colocar as seguintes questões: Até
que ponto as relações entre civis e militares na América latina se aproximam destes
modelos? As elites políticas civis se esforçam de modo coerente para atingir os
objetivos descritos em algum dos quatro modelos?
Pode-se dizer que, na América latina do século XX, nenhum país preenche as
condições do modelo aristocrático de relacionamento civil-militar. O quadro de
oficiais é formado, predominantemente,mais de indivíduos da classe média, na
composição social, do que da classe aristocrática ou da c/asse alta. Além disso,
enquanto a sociedade latino-americana tiver uma mobilidade apenas parcial, não
pode ser caracterizada como aristocrática em Sua organização global. Finalmente, na
maioria dos países, o quadro de oficiais é profissionalizado, pelo menos em parte,
havendo portanto um certo grau de tensão entre as elites militares e as civis.
A aplicabilidade do modelo comunista também é limitada: somente Cuba e, até
certo ponto, o México COm seu partido único dominante parecem adaptar-se a este
modelo. Isto nos deixa, então, os modelos liberal e profissional e conscientemente
ou não, a maioria dos autores que tratam das relações entre civis e militares manifesta-
ram a tendéncia a analisar a experiência latino-americana de acordo com um ou outro
desses dois modelos. Tal fato é compreensível, já que em muitos países latino-
americanos se encontram elementos superficiais destes dois padrões. Em muitos
países, Como O Peru e o Brasil; os militares são, até certo ponto, profissionalizados em
sua estrutura institucional, educação e· treinamento técnico. Alguns elementos do
modelo liberal podem ser descobertos na crença generalizada de que o governo
militar é ilegítimo:
No entanto, na maioria dos casos, tentar enquadrar-dentro destes dois modelos
as relações entre civis e militares na América latina violenta a sua realidade política.
Para que se possa atribuir a um determinado país o modelo liberal de relacionamento
cultural, ct. Stephen A. Sirns, "The New Role of the Military", Problems of Communísm
(November-December, 1969), pp. 2&-32, e Ralph l. Powell, "The Party, lhe Government and the
Cun", Asian Survey, X (June 1970), 441-471.
6 Samuel Huntington, The Soldier and lhe Stet e, p. 83. Huntington chama este modelo de"controle objetivo"
7 Samuel Huntington, "Civilia.n Control of the Military: A Theoretical Statement", in Politica!
Behavior: A Reeder in Theory and Reseercb, ed. Heinz Bulau, Samuel I. Eldersveld e Morris
lanowitz (Glencoe, 111.: The Free Press, 1956)" p. 361.
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civil-militar, são necessárias instituições civis sólidas e exige-se um esforço sistemá-
tico, por parte dos principais protagonistas políticos, a fim de manter os militares fora
da política. Todavia, como irei mostrar mais tarde, a própria ausência de instituições
politicas sólidas num país como o Brasil teve como resultado a tentativa dos principais
políticos de cooptar os militares como força sustentadora adicional, na busca de
objetivos políticos. Quanto ao modelo profissional, como Huntington reconheceu, o
seu sucesso depende de um sistema político suficientemente estável para impedir
que os políticos interfiram em assuntos militares puramente internos ou utilizem os
militares para propósitos políticos partidários. "A antítese do controle objetivo civil é
a participação do militar na política." O "controle objetivo" é impossível enquanto
grupos civis "relutarem simplesmente em aceitar um quadro de oficiais politicamente
neutro" e enquanto houver "grupos civis multifários ansiosos para maximizar seu
poder em assuntos militares"." Tais grupos civis, às vezes, são bastante numerosos
nos países latino-americanos.
Os quatro modelos descritos acima são necessariamente bastante abstratos, e
nenhum sistema político representa um tipo puro. Nos Estados Unidos do século XX,
por exemplo, encontramos uma combinação dos modelos liberal e profissional. A
Alemanha e a Áustria do final do século XIX combinavam os modelos aristocrático e
profissional. Contudo, a própria dificuldade de adequar satisfatoriamente os padrões
latino-americanos do relacionamento civil-militar a algum dos quatro modelos encon-
trados na literatura insinua a utilidade da formulação de outros modelos para com-
preender os padrões recorrentes das relações entre civis e militares. A Segunda Parte
deste estudo é dedicada à análise do modelo que classifiquei como "moderador".
O MODELO MODERADOR DAS RELAÇÕES
ENTRE CIVIS E MILITARES
Antes de descrever as características específicas do modelo, é conveniente deli-
near alguns traços básicos da cultura polítiça dentro da qual se desenvolve este
padrão. A maioria dos países latino-americanos combina características de serni-
elitistas, semimobilizados e semidesenvolvidos. Caracteristicamente, nenhum grupo
ou partido político utilizou efetivamente o poder político e econômico para satisfazer
as necessidades do desenvolvimento. As exigências políticas são elevadas, mas a
capacidade politica de convertê-Ias em resultados efetivos é pequena. A sociedade ê
"pretoriana", no sentido de que todas as instituições - a igreja, ° trabalho, os
estudantes - são altamente politizados. Ao mesmo tempo, porém, as instituições
políticas são fracas."
Nesse tipo de sociedade, os militares também são poJitizados e todos os grupos
tentam cooptá-Ios para aumentar sua força política. Esta cooptação constante, se-
gundo Huntington, exclui a profissionalização, mesmo que possam surgir indícios
formais de crescente profissionalismo. Assim, no caso do Peru, Brasil e Argentina, a
estrutura hierárquica, a diferenciação interna e os padrões de promoção indicam que
os militares são razoavelmente profissionalizados mas, ao mesmo tempo, são alta-
8 Huntington, The Soldier and the State, pp. 83-84.
9 Uma tentativa sistemática de definir a sociedade "pretoriana" encontra-se em David Rapoport,
"A Comparative Theory of Militar)' and Political Types", in Changing Patternsof MiJitary Poiitics,
ed. Samuel Huntington (New York: The FreePress,1963), pp. 71-101. Uma análise que seaproxima
da minha idéia é a de Samuel Huntington, Política I Order in Changlng Societies '(New Haven: Yale
University Press. 19&8). pp. 192-263.
49
mente politíz ados.!e Este padrão das relações entre civis e militares, no qual todos 05
políticos Comumente procuram envolver os militares na política, distingue-se do
modelo liberal, cujo objetivo é um militar apolítico.
Não obstante, esta politização militar normalmente não é muito evidente, porque
as elites sociais e políticas da América latina se consideram parte integrante da cultura
da Europa Ocidental. E um dos traços desta sua herança é justamente encarar o
parlamentarismo como algo inerente a um governo desenvolvido e civilizado. Se-
gundo este ponto de vista, o governo militar é rejeitado como solução legítima para o
problema do desenvolvi mento. Tais aspirações coexistem com uma sociedade preto-
riana. Esta difícil coexisténcia é provavelmente o componente principal do modelo
moderador das relações entre civis e militares. Igualmente esclarece, de algum modo,
a natureza e os limites do papel dos militares em tal tipo de sociedade. ••
Tipicamente, os processos parlamentares tentados como a forma ideal de go-
verno fornecem um mecanismo ineficaz para resolver os conflitos políticos numa
sociedade pretoriana. Os partidos políticos, geralmente, são fragmentados. Conside-
rando o desejo das elites políticas de manter a ordem interna, de frear o executivo e de
controlar a mobilização política de novos grupos e tendo em vista também a ausência
de outras instituições para executar estas tarefas de modo eficaz, as elites políticas
geralmente julgam conveniente conceder aos militares um grau limitado de legitimi-
dade para desempenhar estas funções específicas sob certas condições. Contudo,
somente se confere um grau reduzido de legitimidade à idéia de um governo contro-
lado pelos próprios militares.
Em tal modelo das relações entre civis e militares, estes são chamados repetidas
vezes para agir como moderadores da atividade política, mas Ihes é negado sistemati-
camente o direito de tentar dirigir quaisquer mudanças dentro do sistema político.
longe de se constituírem nos "construtores da nação" ou nos "reformadores", como
são encarados em alguns países, no modelo moderador os militares têm uma tarefa
que consiste essencialmente na atividade conservadora de manutenção do sistema. O
papel dos militares, de modo geral, se restringeà deposição do chefe do executivo e à
transferência do poder político para grupos civis alternativos. A aceitação deste papel
pelos militares está condicionada à sua aceitação da legitimidade e da praticabilidade
das formas políticas parlamentares, bem como à constatação, porparte destes milita-
res, de que possuem, em comparação com os civis, uma capacidade relativamente
reduzida de governar.
A exemplo dos modelos aristocrático e profissional do relacionamento civil-
militar, o modelo moderador não se apóia sobre um conjunto de controles impostos
pelos civis, mas sobre uma série de normas que operam, a um tempo;dentro e fora da
instituição militar. Tais normas estimulam uma alta participação dos militares, cujos
atos políticos, no entanto, são limitados em certos aspectos. Nesse sentido, o modelo
admite um militar que seja controlado, mas, não obstante, altamente politizado; a
natureza deste controle é muito diversa da encontrada nos outros modelos.
Os principais componentes deste padrão de reJacionamento civil-militar podem
ser resumidos em alguns pontos básicos:
1. Todos os principais protagonistas políticos procuram cooptar os militares. A
norma é um militar politizado.
2. Os militares são politicamente heterogêneos, mas também procuram manter
um grau de unidade institucional.
10 Para uma critica do uso de indícios formais do desenvolvimento COmo medida do desenvolvi-
mento político por si sós, cI. meu artigo: "Polirical Development Theory: The Latin American
Experience", Joumal of International Affairs, XX, n.? 2 (1966). pp. 223-234.
50
·.:·T.···'[ }. Os políticos importantes garantem legitimidade aos militares, sob certas cir-cunstâncias, para agirem como moderadores do processo político, contro-
lando OIJ depondo o executivo, ou até mesmo evitando a ruptura do pr6prio
sistema, especialmente quando isto envolve urna mobilização maciça de no-
vos grupos anteriormente excluídos da participação no processo político.
4. A aprovação dada pelas elites civis aos militares politicamente heterogêneos
para depor o executivo facilita bastante a formação de uma coalizão golpista
vencedora. A negação, pelos civis, de que a deposição do executivo pelos
militares seja um ato legítimo, inversamente, impede a formação de uma
coalizão gol pista vitoriosa.
5. Existe urna crença firme entre as elites civis e os oficiais militares de que,
embora seja legítima para os militares a intervenção no processo político e no
exercício temporário do poder, é ilegítimo para eles assumir a direção do
sistema politico por longos períodos de tempo.
6. Tornado genericamente, este valor-congruência é ores ultado da socialização
civil e militar através da educação e da literatura. A doutrina militar do desen-
volvimento também é, de modo geral, congruente com a de grupos parlamen-
tares. A condescendência social e intelectual dos oficiais militares em relação
aos civis facilita a cooptação e a contínua liderança civil.
Dada a perspectiva deste padrão de relações entre civis e militares, muitas
características algo paradoxais da política latino-americana tornam-se menos obscu-
ras. Atendendo que a intervenção militar foi considerada, tradicionalmente, como
representativa da decomposição do sistema político, no modelo moderador ela pode
ser reputada como o método normal de composição na vida política. O que antes fora
julgado golpes de estado rápidos, secretos ou unilaterais, executados pelos mílitares
contra governos civis, agora é visto como um tipo de resposta desenvolvida lenta-
mente, clara e dual das elites civis e militares a críses políticas particulares, nas quais
tanto os civis como os militares procuram nas Forças Armadas a solução da crise. O
que foi chamado "intervencionismo patológico" no modelo liberal, torna-se o fun-
cionamento normal do sistema político no modelo moderador, por meio do qual os
civis confiam aos militares o desempenho de um papel moderador em determina-
dos momentos.
A Segunda Parte examina a política brasileira e as relações entre civis e militares
como um paradigma do padrão moderador. A análise abrange o período de 1945 a
1964, durante o qual este padrão de relacionamento entre civis e militares predomi-
nou até sua dissolução com a revolução de 1964. Incontestavelmente, no Brasil os
parâmetros do modelo foram estabelecidos com mais eficácia, as regras do jogo
foram compreendidas com maior amplitude e as comunicações tornaram-se mais
sofisticadas, em relação a outros países da América Latina. Todavia, acredito que uma
pesquisa detalhada revelaria que alguns padrões de comportamento e atitudes de
sustentação que caracterizaram o padrão moderador das relações entre civis e milita-
res no Brasil, de 1945 a 1964, também predominaram em várias épocas em muitos
outros países latino-americanos. \ 1
As questões colocadas pelo modelo e que procuro responder na Segunda Parte
são as seguintes: Quais os grupos civis que desejaram que os mili tares desempenhas-
sem um papel politico e por quê? Que tipo de influências as atitudes civis tiveram
11 Embora o modelo moderador se tenha desenvolvido no Brasil em 1964, no decurso deste livro
emprego freqüentemente o presente do indicativo para de scr evê-lo. a fim de acentuar suas
características gerais.
51
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I
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I sobre a propensão e a capacidade da instituição militar de desempenhar um ato
altamente político de deposição de um presidente? Que condições determinam o
fracasso dos golpes? O Capítulo 4 examina os motivos políticos, o desenvolvimento
histórico e a lógica interna deste padrão de relacionamento civil-militar. No Capitulo 5
são testadas algumas das principais hipóteses do modelo, comparando os movimen-
tos militares e as suas tentativas no Brasil em 1945, 1954, 1955, 1961 e 1964.
Nesta altura, podemos levantar dois pontos introdutórios: um diz respeito à
escolha da palavra "moderador" para descrever o modelo e o outro se refere à
definição da legitimidade militar. De acordo com o modelo descrito nos capítulos
seguintes, os militares no Brasil desfrutaram do poder de moderar o sistema pelítíco
em períodos de crise. O termo "poder moderador" tem um sentido específico para o
Brasil, onde, durante a monarquia, o imperador detinha a faculdade constitucional de
intervir no conflito político, em épocas de impasse institucional. Esta faculdade
chamou-se poder moderador. Muitos brasileiros observaram que, desde a queda da
monarquia, em 1889, os militares não só assumiram como também Ihes foi delegado o
tradicional "poder moderador", originariamente exercido pelo imperador.
Conservei a terminologia brasileira para este modelo de relacionamento civil-
militar, mas pretendo usá-Ia num sentido mais genérico, para combinar os significa-
dos dos termos "árbitro" e "moderador". Prefiro estes termos a "guardião", porque
não pretendo inferir que os mi li tares brasileiros sempre tenham exercido uma autori-
dade benevolente e paternal. O termo "juiz" implica regras mais formais do que
realmente existiram, e não fornece a necessária conotação de que o exercício da
função de árbitro-moderador requeria um grau de convite eaceitação para ser efetiva.
Entretanto, nenhuma analogia com a função moderadora é perfeita, e o sentido pleno
do termo somente emergirá em minha análise da dinâmica das relações_entre civis e
militares e dos movimentos militares ocorridos no Brasil entre 1945 e 1964.
O segundo ponto que quero expor refere-se à legitimidade do papel político para
os militares. Quando discutimos a legitimidade de um governo ou de um papel
político para os militares, queremos nos referir àquilo que os grupos políticos civis
participantes consideravam processos políticos adequados, dadas todas as circuns-
tâncias. Minha análise indica que a instituição militar, normalmente, foi encarada
como a única organização disponível para realizar certas funções que a elite partici-
pante achava que precisavam ser realizadas. O cumprimento destas funções, seja no
controle do executivo, seja na manutenção da ordem interna, recebe, assim, certograu de legitimidade, mesmo da parte de certos grupos que no campo cultural eram
antimilitaristas convictos.
Assim, quando demonstro, nos capítulos seguintes, que grupos civis "sanciona-
ram" a intervenção militar em determinados momentos, meu objetivo não é sustentar
que considero esta ação moralmente legitima, justa ou correta, mas antes ilustrar
quão profundamente enraizada estava tal atividade no próprio sistema político. Ten-
teidesenvolver sistematicamente a interessante abordagem de lohn J. Johnson,
segundo a qual o fenômeno que existe em muitos paises da América latina _ e que
precisa ser analisado - não é o "militarismo", mas o "militarismo civil".12
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1:
11 John J.Johnson, Tlve Military and Societv in Latin America (Stanford: Stanford University Press,1964), pp. 119.125.
52
Capítulo 4
Aspectos Civis do "Padrão Moderador"
INTRODUÇÃO
Historicamente, os civis que formam as camadas politicamente importantes da
sociedade brasileira sempre tentaram servir-se dos militares para atingi r seus próprios
objetivos políticos. Juntamente com a diversidade e a abertura da instituição militar
brasileira, denota este fato que 'os oficiais militares sempre foram altamente politiz a-
dos. Uma outra conseqüência das cisões internas das Forças Armadas e das tentativas
que fizeram os grupos civis para atraí-lcs à política é que os militares não estão unidos
em suas convicções políticas e ideologia, mas refletem normal mente, até certo ponto,
a ampla ílutuação da opinião pública.
Para compreender como tal situação surgiu no Brasil, podemos dividir os políti-
cos civis importantes em três grupos principais e examinar cada um deles. Estes
grupos de elite são:
1. O presidente e seus conselheiros, isto é, o governo.
2. Os civis anti-regime, que se opõem não só ao governo, mas também ao
próprio regime e pretendem alterar as leis básicas e a estrutura da autoridade.
3. Os civis pró-regime que, embora apoiando as leis básicas do regime, freqüen-
temente discordam do governo e desejam controlar o executivo 'através de
outros métodos que não o legislativo e os meios eleitorais.
Historicamente, os civis pró-regime formaram o grupo mais importante na fixa-
ção do papel dos militares no sistema político e no curso dos golpes militares no
Brasil. No entanto, os outros dois grupos também desempenharam papel relevante.
POLITIZAÇÃO DOS MILITARES: O EXECUTIVO
Por vários motivos, os presidentes do Brasil sempre tentaram usar os oficiais
militares como instrumentos pessoais de seu governo. No Brasil, como em muitos
outros países em desenvolvimento, a capacidade relativamente pequena do governo
para mobilizar recursos econômicos tem sua contrapartida na também pequena
capacidade de regular, extrair e distribuir esses recursos. O presidente, constante-
mente, vê seus propósitos de reforma barrados pelo Congresso, por elites poderosas,
fortemente entrincheiradas, ou por reivindicações conflitantes de seu eleitorado.
Nestas ci rcunstâncias, uma manobra clássica do chefe do governo tem sido tentar
ganhar o apoio dos militares, direta ou indiretamente, para suas proposições, como
um clube contra seus oponentes. Sendo ele que designa os três ministros militares e
os comandantes dos pri ncipais exércitos territoriais, pode usar e usou realmente estas
nomeações como meio de obter apoio militar.
Há exemplos de cooptação dos militares em quase todos os governos brasileiros,
no período que vai de 1937 a 1964, com exceção do de Kubitschek, envolvam presi-
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dentes fortes, sem i-autoritários como Getúlio Vargas, ou presidentes populistas,
fracos, como João Goulart.
Em 1937, por exemplo, um elemento-chave na vitoriosa instituição do Estado
Novo por Vargas foi o apoio ativo dos militares; o Estado Novo concedeu-lhe maiores
poderes que lhe permitiram introduzir muitas reformas sociais e econômicas e pro-
longar sua permanência no cargo .'
Da mesma forma, o presidente lânio Quadros tentou usar os mili~3r&,s como
elemento principal de sua estratégia para ganhar sustentação politica mais adequada
para seus programas. Jãnio Quadros renunciou em 1961, depois de permanecer na
presidência por menos de sete meses. Como ele próprio escreveu mais tarde, sua
renúncia fora uma manobra com intuito de aumentar seu poder político, mobilizando
apoio popular e militar.' Do ponto de vista do presidente, ele achou que as reformas
estruturais necessárias haviam sido barradas porum Congresso "pu Iverizado" por
diferenças regionais, estaduais, municipais e personalísticas.
lânio ali rma que os ministros mili tares também estavam convictos da necessidade
de mudar a estrutura política e participaram na procura de "fórmulas ou soluções,
tentando fortalecer a autoridade do governo, sem sacrificar os aspectos fundamentais
do processo democrático". Sua tentativa de modificar o sistema político segundo a
linha gaullista fracassou, devido à "hesitação dos militares", conforme o amargo
comentário de Iânio.>
Também João Goulart, quando presidente, póde usar com muita eficiência ele-
mentos militares em várias situações de crise. Embora eles tivessem oposto resistên-
cia considerável à sua posse na presidência em 1961 e apesar de ter sido deposto por
eles próprios em abril de 1964, Goulart em nenhum momento pretendeu que os
militares permanecessem fora da política. De fato, na maioria dos problemas que seu
governo teve de' enfrentar, Goulart usou ativamente os militares como um de seus
pri nci pai s instru mentos políticos.
Na crise de sucessão de 1961, Goulart somente assumiu a presidência depois de
haver firmado um compromisso com os militares, através do qual o cargo foi enfra-
quecido com a criação do primeiro-ministro. O compromisso estipulava a realização
de um plebiscito, em 1965, a fim de decidir se o Brasil deveria manter a forma
parlamentarista de governo, ou retornar aos plenos poderes presidenciais.
Naturalmente Goulart ficou bastante insatisfeito com este compromisso e deu
início a uma campanha para antecipar a realização do plebiscito. Declaraçóes e
manifestos de generais que ele nomeara para posições-chave tiveram parte vital na
campanha. A 10 de agosto de 1962, os ministros militares lançaram uma declaração
1 O esclarecimento de Vargas a um auditório militar, expondo as razóes da necessidade do Estado
Novo e seu elogio aos militares pelo apoio manifestado estão em seu livro A Nova Política (Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1938), V, 242-243. Para uma análise do Estado Novo em
inglês, d. o trabalho de John W.F. Dulles, Vàrgas of Brazil: a Political Biography (Austin: University
01 Texas Press, 1967), pp. 162-274.
1 De inicio, admitia-se em todos os meios que lânio Quadros havia renunciado porque lhe faltará
o apoio dos militares, ou porque ele pretendera evitar um golpe iminente. CI., e.g., Hélio
Jaguaribe, "A Renúncia do Presidente Quadros e a crise política brasileira", Revista Bresileirs: de
CiênCIas Sociais, I (novembro de 1961), 272-31L Todavia, não se descobriu qualquer evidência
sólida que comprovasse tal fato. Norris Lyle, em sua tese de doutoramento em história pela
Universidade da Califórnia, em Los Angeles, fez ampla pesquisa de campo sobre a carreira de
Jânio e afirma que, com base nos dados que obteve, os militares não pressionaram lâruo Quadros
a renunciar.
3 Jânio Quadros e Afonso Arinos de Mello Franco, "O Porquê da Renúncia", Realidade (no-
vembro de 1967), pp. 31-34. Tanto como político quanto como personalidade, lânio Quadros é tão
complexo e ambíguo que nem mesmo esta explicação pode ser tomada como a palavra definitiva
sobre a renúncia.
54
onde insistiam na realização imediata do plebiscito. O Congresso marcou a data de
abril de 1963. Goulart pressionou os parlamentares mais firmemente, para que fosse
realizado em outubro de 1962, juntamente com as eleições para governador dos
Estados e para o Congresso. Seu cunhado, Leonel Brizola, governador do Rio Grande
do Sul, ameaçou usar a força se o Congresso não concordassecom esta exigência.
Este, no entanto, hesitava e se esquivava.
O general Jair Dantas Ribeiro, comandante do I1I Exército, aquartelado no Rio
Grande do Sul, o maior do país, ameaçou então implicitamente o Congresso, envian-
do um telegrama ao Ministro da Guerra. Ao divulgá-Ia à imprensa, o general atribuiu-
lhe o caráter de manifesto ou ultimato:
Face à intransigência do Parlamento, .. e tendo ainda em vista as primeiras
manifestações de desagrado que se prenunciam nos territórios dos Estados
ocupados pelo 111 Exército, cumpre-me informar a V. exa., como responsável
pela garantia da lei, da ordem ... e da propriedade privada deste território
que me encontro sem condições para assu mir com segurança e êxito a responsa-
bilidade do cumprimento de tais missões, se o povo se insurgir pela círcunstân-
cia de o Congresso recusar o plebiscito para antes ou no máximo simultanea-
mente com as eleições de outubro próximo vindouro"
Na época, o presidente Goulart não condenou a óbvia ameaça política feita
pelo general. O plebiscito, que em larga medida foi o resultado destas pressóes,
foi marcado para janeiro de 1963. Em junho do mesmo ano, Goulart nomeou o
general Dantas Ribeiro, Ministro da Guerra, o posto mais elevado do Exército.
Um correspondente francês no país, escrevendo sobre a vitoriosa manobra
de Goulart, no caso do plebiscito, comentou que os generais nomeados pelo presi-
dente para comandar o I, o 11 e o 111 Exércitos eram para ele "os instrumentos
de pressão mais eficientes contra o Congresso na batalha para o retorno ao presiden-
ciallsrno"."
Outro exemplo da utilização dos militares por Goulart foi o pedido ao Congresso,
a 5 de outubro de 1963, para que decretasse o estado de sítio. Nos dois dias seguintes,
os principais governadores da esquerda, do centro e da direita, os sindicatos, os
representantes dos partidos políticos, todos protestaram. Goulart retirou o pedido
a 7 de outubro de 1963.6 Neste caso, foram provavelmente os aliados militares
de Goulart, os três ministros militares, que o instigaram a fazer o pedido inicial.
O importante, entretanto, é que João Goulart, com base na sua suposta retaguarda
militar, estabeleceu a principal abertura para alterar as regras do jogo político nacio-
nal, sem uma coordenação política anterior ou sem uma sondagem aos grupos
civis. Ele estava propenso a confiar nos militares e utilizá-Ios como o seu principal
instrumento político.
O Brasil não é o único país da América Latina cujo presidente exigiu das Forças
Armadas uma participação ativa, em vez de neutralidade profissional ou passividade.
No Chile, o principal período de ativismo militar na política, entre 1924 e 1931,
foi conseqüência, em grande parte, da tentativa deliberada do presidente Alessandri
4 Declaração publicada em O Estado de São Paulo, 13 de setembro de 1962.
-' J.j. Faust, A Revoluçso Devora seus Presidentes (RIO de janeiro: Editora Saga, 1965), p. 39.
6 Para uma descrição dos protestos, especialmente da esquerda, cf o relato do Ministro da
Justiça de Goulart, Abelardo [u re rna. Sexta-Feira 13: Os U/timos Dias do Governo JozJO Gou/art
(Rio de janeiro: Edições O Cruzeiro, 1964), pp. 129-131.
55
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1"'i .. do, da Un;>O M;n" C.,,;, e ",o Crande do Sul.i. de politizar os militares, de modo a pressionarem o Congresso recalcitrante para mentos nos dois maiores Esta d d .deararn uma grande campanha para- . O rd olíticos destes Esta os esenca , .aprovar sua legislaçao reformlsta,7. s leres p. id d do Exército antes da revolta. Vários
Outro exemplo clássico da utilização dos militares pelos chefes de governo obter o apoio ou, ao menos, a passlvdl a e, cito foram informados de antemão,
. fi' I . , , , . ando postos superiores o exer "dconsiste em seu emprego como orça extra ega para reprimir oponentes políticos. generais ocuP. . . lução contra o regime estabelecia.
Uma das primeiras vezes em que o presidente Roca, da Argentina, usou o exército de que os CIVIS deflagrarram um; ;:~~ se estabelecer uma nova ordem política
federal, bastante forte na década de 1880, por exemplo, foi para diminui r o poder Argumentava-se que, dada a_nedcessl ~I't s era não resistir.'? Os oficiais e praças
d d . .. 8 P' . bi d . dever e obngaçao os ml I areos governa ores provrnciars , ostenormente, depois que su lU ao po er, em no pars. o id . t maticamente a estes e outros argumen-
1916, o primeiro governo radical de classe média, o novo presidente, HiRPlito Yri- do Rio Grande do Sul foram submedtl OSSIS de revolução no Estado.'?
. . ,. " " . . . ito antes de ter SI o IniCia a agoyen, tentou sistematicamente transformar o exercito profissional numa força polfti- tos regionais mu 964 d
ca pessoal para controlar as eleições provinciais." No Brasil, também, o Exército te- Novamente em 1945, quando o Estado Novo foi derrubado, .eem 1. elhant o
deral foi utilizado com freqüência no período da "República Velha" com propósitos se- i u a política competitiva e democrática, houve esforços slstematlcos seme fo: es ,
Ih M . ,. d . . . . ca I' político 14 Efetivamente as orçasme antes. ais recentemente, um exemplo trptco o uso do Exercito para eliminar da parte de civis e militares, para a terar o regime .' T ' r fissio-
um adversário político foi a tentativa do presidente Goulart de prender seu crítico contrárias ao regime não desejavam, mais do que os presidentes, um rru rtar p .stante
. f h d C I d d G b . d d t á ias ao regime empregaram cons -mais erren o, o governa or ar os lacer a, a uana ara, servrn o-se e uma nal e apolítico. Em vez disso, os grupos con r r . . T I destino
unidade de pãra-quedrstas.!« mente a retórica de que a responsabllrdade especial. d~s rru uares ~e ~ olítica.
Estes exemplos indicam que a utilização dos militares pelo presidente na política do Brasil requer que se tornem participantes ativos ~a cnaçao de nova or e ~ Ia um
ocorre muitas vezes no Brasil e na América latina, especialmente nos casos em que Um estudo de outros grupos anti-regime nos paises latlno-amerrca~os 'adie ai de
o presidente enfrenta dissensões entre grupos politicamente importantes. Nestas cir- processo semelhante em ação. Na Argentina, por exemplo, 10 parti o oder e~tre
cunstâncias, os presidentes tradicionalmente procuraram aumentar suas próprias fon- classe média tentou sistematicamente usar os militares para a cançar o po . Itas de
tes de poder, servindo-se das Forças Armadas como instrumento de poder político. 1890 e 1905. 'Essas tentativas desempenharam papel preponderante nas revo
1890,1893 e 190515
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POllTIZAÇAo DOS MILITARES: FORÇAS ANTl-REGIME
A mesma situação ocorre com os civis contrários ao regime no Brasil. Por civis
contrários ao regime refiro-me àqueles protagonistas políticos que procuram mudar
as regras básicas de todo o sistema político e alterar os princípios de autoridade
e legitimidade. Os grupos mais importantes que se enquadram nesta definição,
tradicionalmente, também empregaram as Forças Armadas como instrumento de
sua estratégia política e tentaram cooptá-las no plano ideológico.
Este processo teve início com o nascimento da República brasileira, quando
os republicanos, sistematicamente, recrutaram apoio militar para a derrubada da
monarquia." Do mesmo modo a "República Velha" chegou ao fim em 1930, não
tanto por causa dos esforços dos tenentes rebeldes do Exército, mas devido a movi-
1 Liisa North, Civil-Military Relations inArgenrina, Chile and Peru, Politics of Modernization
Series, n.? 2 (Berkeley: University of California, Institute of International Studies, 1966), pp.
26·31.
B Marvin Goldwerr , "The Rise of Modern Militarism in'Argentina", Hispanic American Historical
Review, XLVIII (May 1968), 189-191.
9 tbid., pp. 191-200; e Robert A. Potash, The Army and Poiitics in Argentina, 1928·7945 (Stanford:
Stanford University Press, 1969), pp. 29-54.
10 Cf. Fernando Pedreira, Março 37, Civis e Militares no Processo da Crise Brasileira (Rio de
Janeiro:José Álvaro, 1964), pp. 17-22; e Thomas Skidmore, Po/itics in Brazil (New York: Oxford
University Press, 1967), pp. 263-265. Um bom relato da discussão do incidente pelo Congresso
encontra-se no Jornal do Brasil, 23-25 de novembro de 1963. Muito mistério ainda cerca este
episódio e não se tem certeza sobre o que Goulart planejara fazer com Lacerda.
" Encontra-se documentação detalhada deste processo em June E. Hahner, Brazilian Civilian-
Military Re/ations, 1889·7898, Latin American Studies Program Disscrtation Series, n.> 2 uthaca.
New York: Cornell University, 1967), pp. 28-46. Um bom relato da tentativa do partido republi-
cano de explorar e exacerbar as tensões entre os militares e a monarquia e dos esforços para
atrair os militares para a causa da revolução, encontra-se no capítulo de George C.A. Boehrer;
"O Partido Republicano, o Exército e a Revolução de 1889", em sua obra Da Monarquia à Repu-
blica (Rio de Janeiro: Ministério da Educaçào e Cultura, 1954), pp. 275-286.
56
Embora não seja importante no Brasil até o momento, o único movimento
contrário ao regime na América latina que não dependeu da cooptação dos militares
foi o movimento de guerrilha castrista, que visava a destruição do exército regular
no processo de tomada do poder. Entretanto, mesmo este movimento precisou
de militares políticos; segundo o ponto de vista dos ideálogos guerrilheiros da
Venezuela e. Guatemala, seria mais fácil conseguir a vitória revolucionária sob um
regime militar do que sob um regime civil, porque um regime militar repressivo
força a esquerda a reconhecer a revolução como a única estratégia viável.
OS MILITARES E AS CAMADAS PRÓ-REGIME
O grupo elitista mais interessante dentro do sistema político brasileiro, quanto
à sua atitude para com os militares, é aquele que chamei de civis pró-regime. Este
grupo inclui elementos do Congresso, governadores, líderes políticos, editores de
jornais e eleitores que geralmente aceitam o quadro constitucíonal e apóiam o
regime existente, mas que podem ou não apoiar o governo em períodos específicos.
12 Cf., por exemplo, o relato que fez o general Tasso fragoso da solicitação que lhe foi feita
por Lindolfo Colar, importante líder civil do movimento revolucionário, em general Tristão
de Alencar Araripe, Tasso Fragoso: Um Pouco de História do Nosso Exercito (Rio de Janeiro'
Bibíiotece do Exército, 1960), pp. 541-548.
IJ O comandante-da região militar no Rio Grande do Sul dá detalhes desta campanha e de
seu efeito corrosivo sobre o desejo de resistência dos soldados; cf. general Gil de Almeida,
Homens e Factos de Uma RE'volução (Rio de Janeiro: Calvino Filho, 1934), pp. 179-221.
" Ambos os casos são discutidos detalhadamente no Capitulo 5. A estratégia dos outros dOIS
principais movimentos contra o regime da história brasileira, a intenlona comunista de 1935
e o levante fascista (integralista) de 1938, estavamapoiados, não tanto em bases civis populares
quanto em suportes militares que haviam sido enfaticamente instigados por suas lideranças.
IS Ricardo Caballero, Yrigoyen: La Conspiración Civil y Militar dei 4 de Febrero de 1905 (Bue nos
"ires: Editorial.Raigal, 1951) e North, Civil-Military Re/ations, pp. 26-30
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Foi este amplo grupo de pessoas que hisrortcarnenn, esperou que os militares
desempenhassem o papel político de controlador dos atos do executivo, Na maioria
dos sistemas políticos que se desenvolveram além do tribalismo, ou de ditaduras
primitivas de um único homem, um dos objetivos tradicionais destes civis foi o
controle do executivo dentro de uma esfera de ação aceita, Nos sistemas partidários
fortes, seja do tipo parlamentarismo britânico, seja do tipo comunista, é o próprio
partido que desempenha esta função, Nos Estados Unidos, onde o sistema partidário
é relativamente fraco, existem outras organizações poderosas, como por exemplo,
o legislativo, com condições de desempenhar as funções de veto ou, em casos
extremos, as de tmpeecbment . Também o judiciário pode impor restrições à autoridâ-
de do presidente, determinando aconstitucionalidade dos decretos' do executivo.
Além disso, e de maneira muito importante, as próprias eleições representam um
método relevante de limitação, já que periodicamente submete o mandato presiden-
cial à renovação.
No Brasil, contudo, como em muitos países em desenvolvimento, as instituições
políticas do legislativo e do judiciário às vezes estão sujeitas ao controle total do
executivo. As eleições se tornam incertas ou são controladas inteiramente pelo
governo. Por isso, vários membros da política nào tinham muita confiança na eficácia
destas instituições para controlar as atividades do executivo. De maneira formal
ou informal, os grupos de civis a favor do regime que se acham fora da esfera
do governo costumam atribuir esta tarefa aos militares.
Podemos perceber, claramente, o processo que leva a esta situaçào nos debates
do Congresso sobre o papel político dos militares na sociedade brasileira, na época
da elaboração de novas constituições. O Congresso é um barômetro importante
da opinião dos civis pró-regime no sistema federativo do Brasil, porque é ai que
muitos dos grupos mais poderosos dentro do sistema político expressam publicamen-
te suas reivindicações. O Parlamento brasileiro tem sido um dos mais fortes da
América Latina neste século, e os grupos socais e regionais têm recebido grande
parte de suas verbas através de legislação do Congresso. 16 Também aprova ou rejeita
reformas de base, como, por exemplo, o direito de voto aos analfabetos ou a reforma
agrária. Normalmente atua na carreira dos principais líderes políticos do país, que
muitas vezes passam da prefeitura de uma cidade grande para o Congresso, como
deputado, voltam ao Estado como governador e finalmente retornam ao Parlamento
como senador, ou chegam até a presidência.
Em 1892, 1934 e 1946, os civis pró-regime se reuniram para elaborar novas constitui-
ções para o pais. Nestas assembléias, exprimiram suas idéias e opiniões sobre o
que consideravam ser a função necessária e adequada dos militares no sistema
político brasileiro. Suas opiniões, tais como foram expressas nas assembléias consti-
tuintes, constituem um indicador da legitimidade de facto atribuída às Forças Arma-
das para desempenhar um papel político no controle dos poderes presidenciais e co-
mo tais, são extremamente importantes já que a legitimidade emerge de atitudes ex-
plícitas. Além disso, o produto final das assembléias constituintes, as constituições,
embora não fossem capazes de criar um poder que não existia, poderiam ratificar
um poder já existente e dotá-Ia da linguagem e da racionalização necessárias para
comunicar-se com os militares e com outros protagonistas políticos,
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16 O Congresso' chileno é talvez o mais forte. Quanto ao Congresso brasileiro, foi eclipsado
pelo executivo nos dois períodos de regime autoritário, de 1937 a 1945 e de 1964 até a época
atual (1970). No Capítulo 6, discuto a debilidade do Congresso Brasileiro no desempenho das
tunçoe s políticas.
58
As constrturçoes adotada, em 1891, 1934 e 1946 eram praticamente idênticas
nas duas principais conclusões sobre o papel do militar na politica br asileira. Este
papel foi estabelecido em duas cláusulas básicas. t7 A primeira afirmava que os milita-
res constituíam uma instituição nacional, permanente, encarregada especificamente
da tarefa de manter a lei e a ordem no país e garantir a continuidade do funcionamento
normal dos três poderes constitucionais: o executivo, o legislativo e o judiciário,
Na segu nda cláusula esti pulava a obediência dos militares ao executivo, mas afirman-
do, significativamente, que deveriam obedecer somente "dentro dos limites da
lei". Com efeito, isto autorizava-os a prestar uma obediência apenas discricionária
ao presidente, uma vez que ela dependia de sua decisão sobre a legalidade da
ordem presidencial.
A obrigação constitucional dos militaresde garantir o funcionamentu adequado
do executivo, legislativo e judiciário e o equilíbrio entre eles, significou que, em
qualquer atrito entre o presidente e o legislativo, os civis apelaram aos militares
para que cumprissem sua obrigação constitucional de defender as prerrogativas
do Congresso.
Estas disposições constitucionais seriam menos significativas se se pudesse mos-
trar que ou foram incluídas inconscientemente nas constituições como geralmente
o são, ou se o foram por imposição dos próprios militares. As evidências sugerem,
porém, que nem um caso nem outro é correto. Ao contrário, o papel que a constitui-
ção impõe aos militares, tal como vem expresso nas duas cláusulas mencionadas,
foi adotado conscientemente, apesar de certos membros das assembléias constituiu-
tes terem introduzido emendas específicas a fim de abolir as duas cláusulas, sob
a alegação de que conferiam demasiado poder aos militares dentro do sistema
político.t"
Esta concepção do papel dos militares é uma escolha consciente por parte
das camadaspoliticas participantes e não apenas habitual; demonstra-o o fato de
nenhuma das duas constituições centralizadoras, que foram elaboradas sem assem-
bléia constituinte - a Constituição Imperial de 1824, cuja duração se estendeu
até a queda do Império em 1889, e a Constituição autoritária do Estado Novo de
Vargas em 1937 - mencionar a cláusula que especifica o apoio militar ao presidente
"dentro dos limites da lei". 19 De fato, a Constituição do Estado Novo revela claramen-
te que um governo forte não aceitaria o controle implícito ao seu próprio poder,
conferido pela cláusula "dentro dos limites da lei"; ela declara simplesmente, sem
qualquer adjetivação, que 05 militares devem "obedecerà autoridade do Presiden-
te"; também não confere aos militares as missões de garantir os vários organismos
do governo e de manter a ordem interna.
Finalmente, embora as três assembléias constituintes se tenham reunido em
períodos que se seguiram a mudanças de regime, portanto em épocas de grande
ascensão do poderio militar, nada há que sustente a tese de que a cláusula "dentro
dos limites da lei" aparece nas constituições brasileiras por pressão dos militares.
17 Constituição de 1891, art. 14, Constituição de 1934, art. 162. Constituição de 1946, art. 176-178.
.s Para emendas contrárias e argumentos em 1891, ct. Câmara dos Deputados,.Annais da Constl'
tuinte de 789'/, I, 180-181, e 111, 33, Para 1946, os vános argumentos contra esta disposição
nas comissões especiais e na Càmara dos Deputados estão resumidos em José Duarte, A Consti-
tuição Brasileira de 7946: Exegese dos' Textos fi Luz dos Trabalhos da Assembléia Constitwnte
(Rio de Janeiro: Imprensa Nacional 1947), 111,292-303 .
19 Cf. Constituiç,~o Po/itica do Império ( 25 de março de 1814), art. 147. e Constiruição de
70 de novembro de '/937, art. 161.
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Deodoro da Fonseca, o general que destronou a monarquia e presidente do Brasil
durante a Assembléia Constituinte de 1891, era contrário a esta cláusula e lutou
vigorosa mente contra ela. Na sua opinião, ela seria prejudicial à disciplina militar.20
Segundo Ruy Barbosa, 6 autor da Constituição, muitos militares também se opuseram
a este artigo, por acharem que ele os dividiria e os envolveria na política, e viram a
cláusula com "profunda apreensão e decidida antipatia"."
Na época em que foi elaborada a Constituição de 1946, os militares tinham
ligações bem estreitas COm os membros da subcomissão de segurança nacional que
redigiu o projeto constitucional. Dos três membros, um fora oficial do Exército de
1904 a 1945 e outro, Silvestre Péricles de Goes Monteiro, era irmão do General Góes
Monteiro, um dos oficiais mais influentes no Brasil naquela época. Pode-se deduzir"
que, se os militares houvessem feito uma pressão mais forte, teria sido sobre a
subcomissão de segurança nacional através de dois dos seus três membros. No
entanto, foi esta mesma subcomissão que redigiu' a cláusula constitucional sobre a
obediéncia, estabelecendo, sem qualquer qualificação, que os militares .se achavam
"sob a suprema autoridade do Presidente da República",ll Foia comissão constitu-
cional que discutiu e restabeleceu a cláusula segundo a qual.a obediência militar seria
discricionária e dependente das ordens do presidente "dentro dos limites da lei".
Quais foram os argumentos apresentados e, após discussão, aprovados pela
maioria das camadas pró-regime de irnportâncta política, nos anos subseqüentes? Ruy
Barbosa, o autor e principal defensor da primeira Constituição da República, era
conhecido como o maior opositor a um papel demaSiado amplo dos militares na
sociedade. O tema de sua campanha à presidência em .1910 foi a necessidade de
conter a influência militar e assegurar o controle civil. Todavia, em 1892, ele afirmava e
reiterava mais tarde que a cláusula "dentro dos limites da lei" era necessária, porque
só poderia haver obediência real se o comandante supremo dos militares (isto é, o
presidente) obedeces'se à leL23 Assim, apesar de seuantimilitarismo, ele não estava
seguro da capacidade. do sistema político civil de criar e manter presidentes que
agissem "dentro da lei" sem nenhum controle militar.
Nos debates de 1946, evidenciou-se o desejo dos civis de dotar os militares de
fundamentos legítimos para que pudessem recusar-se a Obedecer a qualquer-presi-
dente que agisse fora doque considerassem a ordem legal estabelecida.Um repre-
sentante do partido trabalhtsta na comissão constitucional preconizava o controle
civil, mas não de forma absoluta: "Sou de parecer que devemos dar aos militares a
(orça moral necessária para poderem reagir a ordens contrárias ao interesse nacio-
nal".24Um congressista argumentava também que a cláusula "dentro dos limites da
lei" era necessária, porque "deve existir um controle sobre determinados governos
que obriguem os oficiais .. : a executar ordens que não estão dentro da lei". 25A maioria
dos comentários à constituição, embora retonhecessea ambigüidade da disposição
constitucional, não criticou O sentido geral.
co Ct. o discurso do deputado Ioào Mangabeira, a 19 de maio de 1923, na Cárnara dos Dep utado c,
reproduzido integralmente em O Tempo, ano 'li, numero XII' (15 de janeiro de 1924), p. 185-190.
Ct. também M. Seabra ~agundes, As torças Armadas na Constltuiçâo (Rio de Janeiro: Biblioteca
do Exército, 1955), pp. 2lJ-3B. -
" Ruy Barbosa, Comentários à Constituição Federal Brasileira (São Paulo: Saraiva, 1932), 1,403.
22 CI. Duarte, A Constituição Brasileira de 1946, pp. 293-296. Quanto aos membros da subcornis-
são e ao projeto, d. Diário da Assembléia Constituinte, 28,de março de 1946, pp. 642-643.
23 Ruy Barbosa, Comentários à Cpnstituição Federal. Bresiteu«; I, 400.
24 Diário da Assembléia Constituinte, 8 de maio de 1946, p. 1548.
1S tbid., pp. 1548, 1549.
60
E claro que muitos protagonistas da política brasileira mostraram inquietações
sobre a capacidade das instituições civis de controlar o chefe do executivo. Sentiram a
necessidade de um dispositivo de controle e, antes de ;964, manifestaram claramente
a crença de que os militares constituíam a instituição adequada para exercer este
papel. Em suas atitudes informais, deram legitimidade ao conceito de que os militares
fazem parteintegrante do sistema político e, na constituição, sancionaram o porito de
vista de que os militares, sob certas condições,' têm a obri gação de i ntervi r no
processo politico. Para certificar-se de que as Forças Arm-adas dispunham da autono-
mia necessária paracumprir a função, coerentemente fixaram a obediência militar ao
presidente de forma discricionária, mas não automática. Deste modo, a legitimidade
da atitude de facto foi amparada e rotinizada pela legitimidade constitucional de jure.
O fato de estas atrtudes terem sido incorporadas às constituições brasileiras
significou a existência de uma fórmula política aceitável,bem como de uma lingua-
gem sutil masentendidaem vários meios, para liso dos políticos e do público em geral
quarido apelaram aos militares para queinterv'enham na política no sentido de
controlar ou mesmo depor um presidente. Como iremos ver, ela foi empregada
repetidas vezes no período de 1945-1964.26
Embora o Brasil seja o paradi gma deste "padrão moderador" de relacionamento
civil-militar, outros países latino-americanos também outorgaram legitimidade de
jure aos militares para desempenharem o papel de controle do executivo oude
garantes da constituição. A constituição de 1965 de Hondu ras, por exemplo, declara
que as "forças armadas são instituídas a fim de ... manter a paz, a ordem pública eas
leis desta constituição; e, acima de tudo, velar para que os princípios do sufrágio livre
e da não-continuidade da presidência da República não sejam violados" Y Outras
treze nações latino-americanas atribuiram, especificamente, aos militares o papel de
proteger ou garantir a constituiçào.?"
O quadro que emerge dos objetivos e das estratégias dos principais protagonistas
políticos no Brasil revela que os grupos de elite, em geral favoráveis ao regime,
conferem legltirnidade aos militares para exercerem aquilo que se poderia chamar de
"papel moderador" na sociedade política. Nenhum dos outros dois grupos políticos
-o executivo e seus partidários, e as forças anti-regirne '-expressa coerentemente o
sentimento de que os militares deveriam ser apoliticos. o resultado é que os militares
têm desempenhado um papel decisivo na política brasileira, considerando que todos
os grupos tentam cooptá-Ios em épocas de conflito político, e às golpes concretos
contra o executivo representam os esforços combinados de civis e militares.
" Ci.o Capftulo 5.
27 Artigo 319..
2. Estas cifras chamaram minha atenção pela primeira vez num manuscrito, ainda inédito, sobre
os militares e o desenvolvimento, da autoria de Luigi Einaudi. Após a eleição presidencial de 1970
no Chile, a maioria parlamentar contra Allende, previsivelmente, adotou o "modelo moderador",
quando outorgou implicitamente aos militares a missão de manter o starus quoconstitucional,
controlando assim o executivo.
Um interessante projeto de pesquisa futura seria construi r uma tipologia das.constituições da
América latina eEuropa Ocidental, de acordo com a posição que outorgam aos militares no
tocante à legalidade interna do Estado e verificar se diferentes cláusulas se retacionam com
diferentes percentagens ou estilos de golpe.
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,. ,: o PAD'Ao MO D"ADO R DAS 'ELAÇO'S ENTRE ma is passive i, de criar um consenso mili tar tempo'~"o c~ ntra o p residen I,. sob o
: CIVIS E MILITARES: DUAS HIP6TESES RELATIVAS pretexto de que estariam ameaçados como msuturçao. Alem diSSO, na ausencra de
I;, AOS GOLPES MILITARES cisões entre OScivis, os ativistas militares tendem a permanecer Isolados, sem aliados
r:,' civis poderosos. Isto também facilita ao presidente di sciplinar os elemen tos rninoritá-
I:, rios dentro da instituição militar que conspiram para derrubá-Io.
\, Um exame dos meios pelos q uais, no Brasil, os civis tentam atrair os militares para Esta análise das atividades políticas de civis e militares sob condições políticas
a polltlca_(e dos .Impedlmentos constitucionais que normalmente atuam contra a normais reforça a hipótese de que as tentativas de intervirem, no exercício de sua
mtrorrussao do .mllltar na política na forma de um golpe concreto contra o governo) função moderadora, estarão em proporção inversa ao grau de coesão entre as cama-
sugere a possibilidade de que as atitudes civis para com os militares podem ser tanto das pró-regime e o executivo.
ou mesmo mais rmportantes na determinação da dinâmica dos golpes do que a '
Ideologia dos militares ou seus propósitos. Isto, por sua vez, sugere duas hipóteses
das relaçóes entre civis e militares, nas quais se inverte o quadro normal da interven-
ção unilateral e o militar se torna mais uma variável dependente do que indepen-
dente.
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A primeira hipótese relaciona a propensão dos militares a intervir com a coesão
das camadas políticas importantes, e afirma que esta propensão é elevada quando a
coesão civil é baixa e reduzida quando a coesão civil é elevada. A segunda hipótese
liga o êxito dos golpes ao grau de legitimidade pública outorgada ao executivo e ao
militar. Os golpes militares tendem a ter sucesso quando, antes da tentativa de golpe,
a legitimidade do executivo é reduzida e a legitimidade conferida pelas camadas
políticas à intervenção dos militares é elevada. Segundo esta hipótese, os golpes
tendem a fracassar quando a legitimidade do executivo é elevada e a legitimidade
atribuída aos militares é reduzida.
Proponho-me examinar a primeira hipótese neste capítulo e a segunda no capí-
tulo seguinte. A primeira coloca o problema das condições que aumentam ou dimi-
nuem a tendência dos mili tares a intervir no processo político. O que sugeri mosé que
a tendência dos militares a intervir em acontecimentos políticos centrais aumenta
quando o executivo e as camadas pró-regime estão profundamente divididos quanto
aos objetivos políticos. Nestes períodos, o presidente muitas vezes procura aumentar
suas próprias fontes de poder, servindo-se dos militares como instrumento, Inversa-
mente, elementos significativos dos grupos civis pró-regime passam a fazer oposição
ao governo e apelam aos militares para que exerçam o papel moderador de controle
do executivo. Quanto mais forte é a rejeição do presidente pelos civis pró-regime,
maior é a possibilidade da formação de uma coalizão poderosa de civis para estimu lar
os militares a exercerem sua tradicional função moderadora. Do mesmo modo, os
grupos anti-regime tornam-se mais efetivos quando a eles se unem grupos importan-
tes que anteriormente compunham a força pró-regime. Até que alguns grupos pró-
regime se unam ao grupo anti-regime, este permanece relativamente isolado e não
pode recorrer de forma convincente aos militares rio sentido de depor o executivo.
Sugere esta análise que, mesmo admitindo (como o faço) que em todos os
períodos sempre existem alguns oficiais ansiosos para derrubar o governo por ;noti-
vos pessoais. interesseiros ou ideológicos, as atitudes dos civis pró-regime tendem a
ser determinantes. Minha discussão anterior das normas burocráticas de obediência e
comando, e das diferenças internas sobre política que normalmente existem entre os
militares, sugere que é difícil para estes estabelecerem uma coalizão vitoriosa com
objetivo de golpe, a não ser que haja uma cisão maior entre o executivo e as camadas
pró-regime e estas COmecem a exprimir a crença' de que, nestas circunstâncias, eles
deveriam cumprir a função moderadora.
A ausência de uma tal cisão significa que o presidente inclina-se menos a: correr o
risco de interferir na promoção ou na estrutura disciplinar dos militares, os dois atos
62
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Para avaliar esta hipótese, podemos examinar todo o periodo que vai da
consolidação da "República Velha" em 1898, até sua queda em 1930. Nestes trinta e
dois anos, os militares como instituição estiveram envolvidos três vezes na solução de
questões políticas ou em tentativas de golpe. O primeiro envolvimento se deu
durante e após a eleição de 1910 quando, em seguida a uma divergência entre os
políticos, a principal facção civil se opôs ao presidente Afonso Pena e "começou o
assédio ao Ministro da Guerra para que ele permitisse a apresentação do próprio
nome" como candidato à pr es idência.t? Tiveram êxito na sua tentativa de cooptá-Io (e
a muitos outros oficiais), e o ativismo político-militar, que nunca fora tão profundo,
aumentou consideravelmente durante este período de árduo conflito politico.'?
No segundo caso, em 1922, houve novamente uma divisão acentuada entre as
camadas políticas participantes. A facção minoritária envolveu os militares numa crise
que girava em torno de sua honra institucional. Para facilitar este envolvimento dos
mili tares pela facçãominoritária contribuiu a animosidade militar advinda da designa-
ção de um civil para o Ministério da Guerra e do veto do Presidente Epitácio Pessoa ao
orçamento militar. Tais fatos, juntamente com a ampla insatisfação dos oficiais jovens,
deu lugar à revolta de tenentes, que durou até a posse do novo presidente, mais
aceito pelos grupos civis onvolvidos.>'
O terceiro caso de envolvimento dos militares ocorreu em 1930. Neste ano,
dois dos três grandes Estados da União, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, recusaram-
se a reconhecer a escolha, pelo presidente, do candidato à sua sucessão. Após
o pleito eleitoral, do qual saiu vencedor o candidato do governo, estourou uma
guerra civil. Os militares eventualmente intervieram e puseram fim à guerra, depondo
"/",
29 José Maria Bello, História da República, 1889-1964 (São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1C,3tll, p . 2U3.
'0 1':0 entanlo, neste mesmo penedo. um caudilho civil, Pinheiro Machado, era talvez mais
poderoso do que os militares.
,li A revolta em si foi quase exclusivamente militar na origem P., precisamente por ser tão
isolada dos civis, fracassou. (Entrevista com O antigo tenente, Marechal Oswaldo Cordeiro de
Farias, Rio de Janeiro, "11de setembro de 1968,)
Muitos relatos acentuam as origens militares do te aernismo. Todavia, o aumento do auvisrno
politico-militar em 1921-1922 estava intimamente relacionado com a profunda divisão da elite
governante no tocante à campanha presidencial de1922, entre o candidato oficial, Arthur Be rnar-
des, e o candidato da" "reação republicana", Nilo Peçanha. Por volta de 1921, como observou
Jose Maria Bello, "perturbara-se ... a paz política .. , Mais uma vez, o pequeno grupo de homens
que, através dos governos dos grandes Estados, dominavam o Brasil, cindia-se A campanha
partidária, explorada pelos mais hábeis manobradores da demagogia, agitava os próprios
meios militares" (História da República, p. 248). Uma boa discussão que relaciona a crise política
com a crise militar encontra-se em Nelson Werneck Sodré, História Militar do Brasil (Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1965), pp. 198·214. Os documentos relativos à revolta
de 1922 e a carta forjada que o candidato presidencial Bernardes supostamente escrevera, fazendo
críticas aos militares, estão em Hélio Silva, 1922.' Sangue na Areia de Copacabana (Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 1964).
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o presidente em exercício e entregando o poder a Getúlio Vargas, o candidato
derrotado."
Os três casos de intervenção militar para a solução de crises politicas giraram
em torno 'das eleições. Em cada um deles ocorreram profundas cisões entre os
civis.' ' Em 1910, os militares foram atraídos; em 1922, não conseguiram êxito; e
em 1930, saíram vitoriosos. Estes três casos tendem, pois, a confirmar a hipótese
segundo a qual o envolvimento militar é elevado quando é reduzida a coesão entre
as elites políticas importantes. A. hipótese seria reforçada se pudéssemos demonstrar
o inverso, isto é, que nos casos em que é reduzido o envolvimento político dos
militares, a coesão da elite é de fato elevada. Este aspecto da hipótese tem uma
sustentação razoavelmente forte no exame dos resultados eleitorais do mesmo perío-
do. Entre 1898 e 1930, o Brasil foi governado por oligarquias estaduais descentraliza-
das, que cooperavam ao nível nacional num partido único, o Partido Republicano.
Foi um período de mobílização política baixa e estática, como se pode ver pela
percentagem da população que participou das eleições nacionais. Nas quatro elei-
ções de 1894 a 1906, por exemplo, apenas 2,45% da população votaram e, nas quatro .~
eleições entre 1918 e 1926, apenas 2,04%.34
. Num sistema partidário de baixa mobilidade, a percentagem de votos para os
candidatos vitoriosos é um bom indicador da coesão entre as camadas políticas civis
mais importantes, urna vez que um candidato da oposição somente concorria à
eleição se as elites políticas discordassem da indicação de um candidato único.
Podemos, pois, testar a hipótese que relaciona a ação militar e a coesão da elite
verificando os resultados eleitorais neste período.
Nas três eleições em que os oficiais- militares estiveram envolvidos no processo
eleitoral, como em 1910, 1922 e '1930, os candidatos vitoriosos receberam apenas
57,7%,56,03% e 57% dos votos, respectivamente. Nas eleições em que não houve um
ativismo militar importante, a média percentual de votos dos vencedores foi de 91,6%.
Os números, portanto, fundamentam a hipótese de que o reduzido ativismo
político-militar é função da elevada coesão dás elites Civis (cí. Tabela 4.1).
A segunda hipótese do modelo moderador relaciona o êxito e o fracasso da inter-
venção militar na política com o grau de legitimidade (antes de serem tentados os gol-
pes) que os civis atribuem ao executivo no exercício de seu cargo e aos militares no
cumprimento de seu tradicional papel moderador. De 1945 a 1964, período a que se
aplica particularmente este modelo do relacionamento civil-militar, cada mudança
do poder presidencial, de fato, levantou questões fundamentais, entre os principais
grupos civis, sobre a legitimidade do novo presidente, exceção feita à eleição de
" A bibliografia da revolução de 1930 é vasta, mas não existe nenhum relato definitivo. Thomas
Skidmore. Potitics in Brazi/, pp. 332-336, fornece uma breve resenha da literatura em suas valiosas
notas de rodapé
Minha análise dos conflitos de 19'10,1922 e 1930 é certamente muito esquernática e abstrata.
Num nivel mais detalhado, cada caso é distinto e extremamente complexo. O livro recém-editado
de Ronald M. Schneider dá um tratamento aprofundado a cada uma destas crises entre civis
e militares. Cf. The Political System of Brezi! (New York: Columbia University Press, 1971).
" Alguns argumentariam que se deveria incluir a participação dos cadetes da academia militar
no tumulto e na rebeliâo contra a vacinação compulsória em novembro de 1904. Não a incluo
porque envolveu apenas uma pequena parte do Exército e foi abafada por ele mesmo. De
.qualquer forma. a revolta dos cadetes começou somente depois que '05 civis fizeram ampla
agitação e a insurreição civil continuou depois que seus aliados militares capitular arn. Cf. Bello.
Históna da República, pp. 179-182. Os dois breves motins que ocorreram na Marinha em 1910
também não foram incluidos, devido ao seu caráter breve e isolado.
J4 Para um bom resumo das estatísticas das eleições presidenciais, cf. Alberto Guerrei ro Ramos, A
Crise do Poder no Brasil (Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1961), p. 32.
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TABELA 4.1
PERCENTAGEM DE VOTOS DOS CANDIDATOS PRESIDENCIAIS
VITORIOSOS E ATIVISMO MN..ITAR: 1898-1930'
Ano da
Eleição
Percentagem do Total de
Votos Recebidos pelo
Candidato Vitorioso
F.nvolvimento
Militar como
tnstituição antes e
depois da Eleiçeo
1898
1902
1906
1910
1914
1918
1919
1922
1926
1930
90,93
91,71
97,92
57,07
91,59
99,06
71,00
56,03
97,99
57,74
Não
Não
Não
Sim
Não
Não
Não
Sim
Não
Sim
• FONTE: Para as cifras das eleições, d. nota 34 deste capítulo.
1960. Seria de se esperar que a tendência ao ativisrnó militar fosse elevada no decur-
so do período e. por certo, em cada caso, salvo o de 1960, os militares tentaram de-
sempenhar um papel importante na ratificação ou na atribuição do poder político.
O capítulo seguinte expõe as condições sistêmicas que constituem a base deste
envolvimento militar e a natureza precisa das correlações entre a intervenção militar
vitoriosa ou fracassada e a legitimidade presidencial e militar .
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Capítulo 5
o Funcionamento do "Padrão Moderador"
Uma Análise Comparativa de Cinco
Movimentos, 1945-1964
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:: INTRODUçAo"li
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J, Embora o Brasil, por volta de 1964, ainda seja politicamente semi-elitista,todo o
período que vai de 1945 a 1964 (especialmente de 1961 a 1964) se caracterizou por uma
rápida mobilização. O número de eleitores dobrou. Ocorreu um grande, embora
esporádir o. crescimento econômico, acompanhado por deslocamentos maciços de
população e de uma inflação crônica, que se tornou agurla em 1963.
O ativismo militar também cresceu neste período. Houve movimentos militares
em 1945, 1954, 1964, uma tentativa frustrada em 1961 e um outro movimento em
1955, que precipitou um contramovimento em defesa das autoridades constitucio-
nais. Os anos de 1945 a 1964 assinalam o período da primeira experiência do Brasil
com uma política competitiva, democrática e aberta. O papel dos militares de árbitro
ou moderador do sistema político cresceu à medida que aumentava o conflito políti-
co. No capítulo anterior, sugerimos algumas razões para este fato. Vimos que todos
os principais protagonistas políticos usaram os militares para favorecer suas próprias
metas políticas. Vimos, também, que os movimentos não podem ser considerados
Simples resposta unilateral de uma instituição militar arbitrária e independente,
que age em favor de suas próprias necessidades institucionais e ideológicas, mas
sim uma dupla resposta de militares e civis a cisões políticas na sociedade.
Este capítulo pretende examinar a dinem«:« destes movimentos militares no
Brasil, entre 1945 e 1964, e analisar as regras do jogo no padrão moderador das re-
lações entre civis e militares.' Proponho-me também testar algu mas hi póteses que
relacionam o sucesso e o fracasso dos movimentos militares com o grau de sanção
civil prévia ao cumprimento militar da função rnoder adora.?
1 Não será ieita qualquer tentativa de fornecer uma narrativa completa de cada movimento.
Podemos encontrar um resumo util de todos os movimentos em Glauco Carneiro, Histon« das
Revoluções Brasileiras, II (Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1965). 459·666. Thornas Skidmore,
rohtics in Brazil, 1930·1964: An Experiment in Democracy (New York: Oxtord University Press,
1967), constitui um excel ent e guia para a I iteratura sobre os movimentos. O trabalho de Ronald
M. Schneider, The Political Sysrem of Brazil (New York: Columbia University Press, 1971),que
estuda os militares brasileiros desde o século XIX, discute cada movimento detalhadamente.
Cf. também lohn W.F. Dulles, Unrest in Brazil: Polnícel-Militerv Crises 1955-1964 (Austin: Uni-
versity of Texas Press, 1970).
, Por movimentos vitoriosos refiro-me aos movimentos de 1945, 1954 e 1964, onde se atingiu
o principal objetivo dos militares, a deposição do chefe do executivo. No movimento fracas-
sado de 1961, os militares falharam no propósito declarado de impedir que o vice-presidente
assumisse a presidência. O caso de 1955 é mais complexo porque envolveu um movimento
civil-militar frustrado para impedir a posse do presidente e vice-presidente eleitos, respecti-
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LEGITIMIDADE DO EXECUTIVO E O SUCESSO OU FRACASSO DOS GOLPES
A característica mais marcante dos cinco movimentos militares e suas tentativas,
no período de 1945 a 1964, está em que, com uma única exceção, ocorreram lodos
somente depois de um longo periodo durante o qual fora expressa abertamente,
pelas elites politicas, a duvida com relação ao direito ou à legitimidade do executivo
de manter ou assumir o p ode r.?
Este fato - a sobrevinda dos movimentos militares quando as elites políticas se
achavam profundamente cindidas - coincide com o argumento, proposto anterior-
mente, de que a propensão para o envolvimento militar na política aumenta em
proporção direta com as dúvidas existentes entre a elite política sobre a questão de
quem deveria governar o país.
No período posterior a 1945, estas dúvidas em cada caso foram expressas em
caráter público e privado. Exceção feíta a 1961, o debate foi longo, demorando
freqüentemente vários meses. Foi durante este debate que se formou a opinião
militar, usualmente tão dividida quanto a opinião do governo em geral. Os militares
procuraram aliados civis e foram procurados por eles. O debate constituiu uma eta-
pa preliminar necessária em qualquer movimento vitorioso. Sempre que esteve au-
"ente, um debate razoavelmente amplo, os movimentos conspirados ou tramados
pelos militares tenderam a fracassar.
Um exame dos movimentos de 1945 a 1964 ilustra este ponto. Em 1945, O Esta-
do Novo de Vargas chegava ao fim, através de um golpe militar que depôs o pr esr-
dente, O poder executivo foi entregue ao presidente do Supremo Tribunal Fede-
ral, que supervisionou as eleições para a presidência no mês seguinte. O regime
serniíascista que vargas instalou com o apoio de militares em 1937, originanarnente,
obtivera grande parte de sua sustentação do fato de, na época, os regimes autoritários
parecerem prognosticar o padrão de governo no futuro. Entretanto, no final de 1944,
não só estava cada vez mais claro que os governos autoritários da Alemanha e da Itália
perderiam a guerra, mas também muitos brasileiros começaram a duvidar da adequa-
ção ou da eficiência do autoritarismo. Especialmente importantes foram as reações
dos oficiais da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que lutaram na Itália ao lado dos
Aliados contra as forças de Hitler e os reacionários fascistas de Mussolini. Estes oficiais
voltaram impressionados com a capacidade de organização dos Estados Unidos, em
comparação com a fraqueza da Itália fascista,'
Complementaram as opiniões dos oficiais da FEB as crescentes dúvidas dos civis
quanto ao governo de Vargas. Ele mesmo percebeu a necessidade de mudança.
Propôs uma eleição para presidente, a primeira desde 1930. No entanto, muitos civis e
militares continuaram a duvidar de sua since ndada. Enquanto seu apoio popular
entre as massas realmente crescia entre 1944 e 1945, fruto principalmente da sua
legislação trabalhista favorável, aumentavam os ataques de importantes políticos
civis, ataques que se refletiam nos jornais e na própria atividade politica dos civis. Nos
meados de 1944, formou-se um grupo de oposição, que ameaçava agir em todos os
sentidos se Vargas não realizasse as eleições, conforme prometera. Neste grupo
vamente Kubitschek e Goulart. Embora não tenha sido tentado um movimento efetivo, pode
ser chamado de movimento fracassado. Como havia o temor de que uma minoria pudesse te n-
lar este movimento, a maioria dos oticiais do Exército executar arn uma vitoriosa ação constituo
cional preventiva para assegurar a posse dos eleitos.
, A exceçào residiu na tentativa de 1961, quando o pr eside nte Iá nio Quadros renunciou ines.
peradamente, após menos de sete meses de governo. Este fato desencadeou uma tentativa
da parte dos ministros militares, antecipando-se ao que eles incorretamente julgaram ser apoio
publico ou pelo menos aqure scéncia, em relação à atitude do presidente. .
, Ct. o Capítulo 12 para lima discussão da experiência da FEBe sua contribuição para a formação
da opinião dos oficiais.
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estavam incluidos alguns líderes civis de grande importância na revolução de 1930,
Juntamente com vários oficiais militares.'
As dúvidas acerca da legitimidade do governo de Vargas alcançaram o nível dos
editoriais da imprensa, alguns meseS antes do golpe de 1945. O Jornal do Brasil
comentava simplesmente: "Enquanto o Senhor Vargas estiver no Catete, o país não
terá confiança nem tranqüilidade".6 Depois que Vargas adiou 'as eleições, escreveu o
Diário Carioca: .
A ditadura do Senhor Getúlio Vargas perpetrou mais um golpe repressivo e
. traidor contra o povo brasileiro ... O povo brasileiro agora não confia em seu
governo ... O governo não pode presidir honestamente a eleição.
7
Especialmente importantes foram as atitudes dos partidários .do governo. Em
sua análise da queda de regimes democráticos, juan l.inz discute a relação deste
grupo com a estabilidade governamental: 4-
A crença na legitimidade e na autoridade é decisiva em situações de crise,
particularmentepara aqueles que partici pam da estrutura de autoridade e mais
ainda para aqueles que foram chamados a usar a força a fim de executar as
decisões dos que detêm o poder. Em última análise, a legitimidade está envol-
vida nas decisões sobre o estado de emergência e naquelas que podem impli-
car a perda da vida dos que desafiam ou defendem a autoridade.
8
No caso do golpe de 1945, o debate sobre a legititnidade do presidente suscitou
dúvidas dentro do grupo central dos partidários civis e militares de Vargas. Do lado
civil, uma perda importante para Vargas foi a de seu Ministro do Exterior, Oswaldo
Aranha, que durante muito tempo fora um dos seus aliados mais poderosos e que,
mais tarde, renunciou e uniu-se à oposição. O dec1ínio da viabilidade da ideologia
autoritária no período de 1944-1945, entre os poderosos políticos civis, tambêm foi
medido pelo fato de que, em novembro de 1944, o autor da constituição do Estado
Novo, Francisco Campos, exigiu, em caráter privado, que o presidente esposasse a
causa do governo democrático. Mais tarde, ele rompeu publicamente com o governo
de Var gas.?
Na crise de 1954, ocorreu o mesmo debate sobre a autoridade do presidente em
niveis privado e público, envolvendo protagonistas civis e militares. Neste caso
especifico, a legitimidade presidencial foi questionada no plano moral.
Vargas foi eleito presidente numa atmosfera de franco conflito em 1950, cinco
anos depois que um golpe militar pusera fim ao Estado Novo. No início de 1954, seu
governo enfrentou uma série .de problemas que incluía o deficit na balança de
pagamentos, di ficuldades na sol ução de conflitos entre as reivindicações salariais dos
5 A melhor fonte que fornece detalhes da mudança de disposição no país e seu impacto sobre os
militares é a autobiografia informativa do general Goes Monteiro, tal como foi contada a Lourival
Coutinho, O Ceneral Coes Depõe (Rio de Janeiro: Livraria Editora Coelho Branco, 1955), pp.
395-469.Goes Monteiro foi proyavelmente o generalmais influente da era de Vargas, de 1930 a 1945, e
foi o Ministro da Guerra que .liderou a deposição do presidente em 1945. Uma revisão dos
acontecimentos que levaram à derrubada de Vargas encontra-se em john W. F. Dulles, Vargas of
Brazil: A Politice! Biography (Austin: University of Texas Press, 1967), pp. 251-274.
6 11 de outubro de 1945. .
, 13 de outubro de 1945.
8 "The Breakdown of Oemocratic Regimes", trabalho preparado para o Sétimo Congresso Mun-
dial de Sociologia, Varna, Bulgária, setembro de 1970.
9 Os detalhes deste progressivo abandono de Vargas por muitos dos membros importantes de
seu governo podem ser encontrados em Dulles, Vargas of Brazil, pp. 251-274.
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sindicatos e dos oficiais do Exército, acusações de colaboração secreta com Perón, e
aparentemente um declínio de seu vigor físico. No entanto, seu governo ainda
permanecia suficientemente legítimo para derrotar uma tentativa de impeachmenl. 10
Entretanto, a pressão contra seu governo rapidamente atingiu proporções de
crise, quando um major da Aeronáutica foi morto numa tentativa de assassinato
contra o ferrenho critico de Vargas, Carlos Lace rda. Segui u-se u ma investigação
sensacional. A responsabilidade pela tentativa de assassinato recaiu sobre a guarda
pessoal do presidente e, então, vieram à tona inúmeros casos de corrupção, envol-
vendo os partidários mais próximos de Vargas. Embora ele próprio nunca houvesse
sido implicado, a legitimidade de sua permanência no cargo e como comandante
supremo das Forças Armadas foi seriamente questionada."
A legitimidade implica mais do que a quantidade de pessoas em favor de uma
instituição ou de um homem. Em situações de crise, muitas vezes é decisiva a
qualidade e intensidade da força de sustentação ou da oposição. Na crise de 1954,
a tentativa de assassinato e as subseqüentes revelações do escândalo financeiro
desmoralizaram e imobilizaram muitos dos partidários de Vargas. O apoio ativo
e agressivo dado ao presidente em seu próprio círculo declinou. De fato, logo
nos primórdios da crise, o Ministro da Fazenda e o Ministro da Viação discutiram
a praticabilidade do afastamento temporário de Vargas. 12 Quando indagaram ao
líder da Cãmara dos Deputados, um partidário de vargas, sobre a sua capacidade
de reunir apoio do Congresso para o presidente sitiado, a resposta do deputado
demonstrou que estava diminuindO a intensidade do apoio entre os auxiliares mais
próximos do presidente: "Não tenho força parlamentar para uma contra-ofensiva
política. A aversão Ià resistência] é total. A campanha da oposição no Congresso,
na imprensa falada e escrita enfraqueceu-o demais". 13
Algumas semanas antes que os militares agissem finalmente para depô-to, a
24 de agosto, os editoriais de muitos órgãos da imprensa foram dedicados aos
pedidos de renúncia de Vargas. O Correio da Manhã, jornal prestigioso e normalmen-
te progressista, afirmava, a 10 de agosto, que o presidente carecia da força de
governo edo princípio de autoridade e conc1uia que a única solução para ele seria
a renúncia. Dois dias depois, doze dias antes que os militares exigissem de Vargas
a renúncia, O Diário Carioca igualmente insistia: "Não restam mais dúvidas de que
a continuação das instituições democráticas no Brasil depende da deposição do
Sr. Getúlio Vargas do poder.">'
O problema da legitimidade do executivo desempenha papel fundamental na
determinação da forma como os ativistas de golpe formulam argumentos endereça-
dos aos partidários ainda leais ao presidente, sejam civis ou militares. Um tema
recorrente nos golpes militares brasileiros é a necessidade de evitar derramamento
10 Para uma visão geraldas tensões políticas e econõmicas do governo de Vargas neste período,
cf. Skidmore, Potiucs in Brazil, pp. 100-142. Para relatos da depressão ocasional de Vargas e boatos
de renúncia antes mesmo da crise decorrente da tentativa de assassinato de lacerda, d. a narração
de sua filha no Capítulo 11 de "A Vida de Getúlio Contada por sua Filha, Alzira Vargas, ao Jornal; sta
Rauf Giudicelli", em Fatos & Fotos, 21 de setembro de 1963. Francisco Campos fornece um relato
semelhante; cf. Dulles, Vargas of Brazil, p. 314.
11 Para uma boa descrição da intensa atmosfera emocional que envolveu estas investigações e seu
efeito corrosivo sobre os partidários de Vargas, d. J.V.D. Saunders, "A Revolution of Agreement
Among Friends: The End of the Vargas Era", Hispanic American Historical Review, XLIV (ivlay 1964),
197-213.
"Cf. a autobiografia do então vice-presidente, que assumiu a presidência com a morte de
Vargas, Café Filho, Do Sindicato ao Carere. Memórias Políticas c Confissões Humanas, t (Rio
de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1966), 301-303.
13Ibid., p. 319.
" Editorial", 12 de agosto de '1954.
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de sangue e desunião entre os militares. A afirmação mais freqüente dos ativistas
e que, estando seriamente questionada a legitimidade do presidente por grande
número de civis poderosos na política, eles são forçados a agir contra o presidente
a fim de evitar o caos ou a anarquia. Deste modo, sua própria ameaça de agir
contra ele é expressa usualmente mais como um movimento defensivo do que
ofensivo. Assim, a responsabilidade por qualquer perda de vida possível ou por
derramamento de sangue é sutilmente desviada dos ativistas para os partidários
militares do presidente. A implicação é que o sentimento público e militar contra
o presidente é tão intenso que, somente se os militares como um todo deixarem
de apoiá-to. será possível evitar o derramamento de sangue.
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Por exemplo, no movimento de 1954 contra Vargas, o Ministro da Guerra fora
um partidário apaixonado do presidente. Tão logo foi anunciada a decisão do golpe,
os ativistas alegaram aos partidários do presidente que haviam sido forçados a agir
pela opinião pública e queagora não podiam voltar atrás, e sua única escolha
era depor o chefe do Executivo. O ônus de evitar uma cisão militar e uma possível
guerra civil realmente paral isou o Ministro da Guerra. A intensidade de seu apoio
declinou. Um membro do gabinete descreveu o desanimado ministro, dizendo que
"se ele recebesse ordens, prenderia os generais e colocaria as tropas na rua, mas
_ não se cansou de repetir - haveria derramamento de sangue" .16
O movimento vitorioso de 1964 envolveu acontecimentos muito mais comple-
xos do que os de 1945 ou de 1954. Em 1964, os militares não se limitaram a depor o
presidente, mas realmente assumiram o poder pela primeira vez no século XX. To-
davia, neste movimento, como nos anteriores, a legitimidade do presidente estava
sendo submetida a ampla discussão muito antes da intervenção militar.
Um problema importante com relação à legitimidade de Goulart nos fins de
1963 e início de 1964 se relacionava com a sucessão: o presidente obedeceria a
Constituiçào democrática de 1946 quanto ao seu direito de sucessão, ou tentaria
alterar as limitaçóes constitucionais e governar à maneira peronista, ou com apoio
comunista. O centro e a direita estavam mais temerosos, porém mesmo a esquerda
demonstrou algumas apr e ensóe s.!"
Por exemplo quando em setembro de 1963, Goulart pediu ao Congresso poderes
extraordinários para governar, sob estado de sítio, seus atos foram acolhidos com
grande surpresa. Abelardo [urema, então Ministro da Justiça do Preso João Goulart,
escrevia mais tarde: "Dos proprietários à união dos trabalhadores a resposta era
sempre a mesma - de protesto contra a medida." Dos estudantes a05 intelectuais,
a imprensa e o rádio, ninguém compreendia a situação e nem aceitava que o Presi-
dente governasse por decreto."
Magalhães Pinto, então governador de Minas Gerais, apoiou Goulart na luta
de 1961, que se travara contra seu acesso ao poder; porém nos idos de novembro
de 1963, preocupado com a possibilidade da "Revolução das Massas" ele tentou
um acordo com o ex-Ministro do Exterior Afonso Arinos,a fim de que o Estado
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I, Esta estratégia de barganha é, em essência, o que Thomas Schelling chamou de "ameaça".
"o caráter distintivo de uma ameaça é que alguêm afirma que fará, numa contingência, aquilo
que ele manifestamente preferiria não fazer ... sendo a contingência determinada pelo comporta-
mento do segundo partido. Tal qual o cometimento comum, a ameaça é uma renúncia de
escolha, uma renúncia de alternativas." Cf. o capitulo "Enforcement, Communication and Strate-
gic Moves", em seu The Strategy of Conflict (New York: Oxford University Press, 1963). p.
123.
16José Américo de Almeida, Ocasos de Sangue (Rio de [an eir o : José Olympio Editora, 1954),
p. 30.
17Isto será discutido com maiores detalhes na Parte 111.
IB Abelardo [urerna, Sexta-Feira, 13. Os Últimos Dias do Governo toso Gou/art (Rio de janeiro:
Ediçoes O Cruzeiro,1964l, p. 130.
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de Minas tentasse resistir a qualquer golpe impetrado por Goulart, pelo fechamento
de todos os pontos estratégicos de penetração no Estado, e conseguisse a adesao
dos demais Estados da Uniào, para a causa da Opusição a Coulart."?
As duas tentativas malogradas de movimentos de 1955 e de 1961 foram, sob
diversos aspectos, muito diferentes dos movimentos vitoriosos de 1945, 1954, 1964.
Em ambos os movimentos, 1955 e 1961, os movimentos não se dirigiam diretamente
contra um presidente em exercício, e sim contra homens que estavam por assurn..
o poder. Por conseguinte, em ambos os casos, os planos estavam presos a possíveis
delitos, ao invés de estarem aos atos inconstitucionais já praticados. Nestas circuns-
tãncias, os militares que se achavam por trás dos planos de movimentos se viram
incapazes de conseguir apoio, seja entre os grupos civis importantes, seja entre
seus colegas oficiais.
Na verdade, na crise de 1955, alguns dos mais importantes e infl uentes oposi tores
do presidente eleito se recusaram a apoiar a exigência de seu próprio partido no
sentido de anular as eleições. Os candidatos à presidência e vice-presidéncia derrota-
dos fizeram declarações nas quais rejeitavam o emprego da força armada para a
solução da crise.
20
Além disso, no conjunto, a opinião militar permaneceu ao lado
dos civis. O marechal juarez Távo ra o candidato à presldéncia derrotado, avaliou
mais tarde o sentimento militar sobre a legitimidade do movimento de 1955 nos
seguintes termos: "Penso que a maioria dos oficiais do Exército sentiu que Kubitschek
faria um mau governo, e permitiria a expansão do comunismo. Mas não se acharam
no direito de impedir sua posse pela violência".21° golpe de 1961 foi semelhante, no que diz respeito ao forte apoio dado pelos
civis às pretensões do presidente ao cargo. Quando Jânio Quadros renUnciou inespe-
radamente, os trés ministros militares, unilateralmente, anunciaram a intenção de
impedir a sucessão constitucional de Goulart. Numa nota conjunta divulgada ao
público, declararam sua decisão de exercer o que consideravam seu papel modera-
dor, de direito e constitucional» Certamente, a resistência firme do Rio Grande
do Sul, Estado natal de Goulart, foi decisiva. Mas o apoio às suas reivindicações
ao cargo também foi grande em muitas outras áreas do país, mesmo entre alguns
governadores udenistas, membros do partido tradicionalmente inimigo tanto de
Vargas quanto de Goulart. Juracy Magalhâes, governador udenista da Bahia, por
exemplo, ao tomar conhecimento da renúncia de lânio , disse abertamente: "João
Goulart é o presidente".23
19Afonso Arinos teria dito, "Eu seria o Ministro do Exterior com a incumbência de obter o
reconhecimento de Um estado de beligerância, que facilitaria a aquisição de armas, a procura
de ajuda e o reconhecimento internacional de nossa posição", disse Pedro Gomes em "Minas:
Do Diálogo ao 'Fronr ", em Os Idos de Março: e a Queda em Abril, Alberto Dines et el,
(Rio de janeiro: José Álvaro, 1964), pp. 73-74.
'o Para Suas declarações e o impacto que tiveram sobre a negação de legitimidade a qualquer
tentativa armada de impedir a posse, ci . vária, relatos no [orne! do Brasil, 8 de novembrode 1955.
" Entrevista com o autor, Rio de janeiro, 8 de outubro de 1968.
n Seu manifesto fo i reproduzido na maioria dos principais Jornais do Rio a 30 e 31 de agosto
de 1961. Encontra-se também em Gileno dé Carli, 1(2, Brasilia e a Grande Crise (Rio de janeiro:
Irmâos Pongetti Editores, 1961), pp. 61-63.
2J Ultima Hora, Rio de Janeiro, 26 de agosto de 1961. Para uma declaração do direito de Goulart
a assumir a presidência, da parte de Cid Sampaio, governador udenista de Pernambuco, cf.
A Tarde (Salvador), 28 de agosto de 1961.
Neste período, o Brasil elegia presidentes e vice-presidentes separadamente. Nas eleiçó es
de 1960, o vice-presidente vencedor, João Goulart, concorria por uma chapa oposta à do presiden-
te vencedor, [ánio Quadros. Quando este renunciou, algumas pessoas argumentaram que Gou-
lart não era um sucessor aceitável para Quadros. legalmente, no entanto, a questáo estava
bastante clara: o vice-presidente era o sucessor constitucional do presidente.
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No Rio de Janeiro, o centro nervoso da política do país, um levantamento
de opinião pública, realizado um dia depois que os ministros militares tentaram
vetar a posse de Goulart, mostrou que 91% dos entrevistados queriam que Goulart
assumisse a presidência. H Como em 1955, os líderes do movimento não dispunham
de autoridade para anular a legitimidade advinda de uma eleição. Em ambos os
casos, a legitimidade do presidente era suficientemente sólida para reunir em torno
de si grande número de civis.
SANÇÃO CIVIL PÀRA INTERVENÇÃO MILITAR
Em geral, a opinião civil é suficientemente fragmentada e a legitimidade do
presidente suficientemente forte para impedir a formação de uma coalizão golpistacivil-militar. Somente em períodos de tensão e de crise relativas à legitimidade
do executivo é que diferentes grupos políticos procu ram aliados entre outros civis
com quem normalmente não se associam, e buscam renovar contatos com oficiais
militares a fim de organizar uma força de resistência contra o executivo. A decisão
efetiva dos militares de dar início a um golpe e assumir o ato corajoso de depor
um presidente é conseqüência de um duplo processo: solicitação dos civis e constru- e
ção efetiva de uma coalizão de golpe civil-militar. No padrão moderador, estes
dois processos estão bastante próximos nos golpes vitoriosos. De que maneira esta
opinião civil é transmitida, que efeito tem sobre o sucesso e o fracasso dos golpes
e, especificamente, que papel ela representa no processo militar interno de formação
de uma coalizão golpista?
A comunicação, pelos civis, do desejo de intervenção militar na política e a
avaliação, pelos militares, da receptividade ou oposição civil a um possível golpe
são facilitadas pelos inúmeros meios de comunicação que existem entre os civis
e os oficiais militares.25 Um veículo extremamente importante é fornecido pela
estrutura e função das bases militares. Os comandantes de bases regionais normal,
mente detêm posições de mando mais elevadas do que muitas autoridades civis.
A tarefa de manter a ordem interna rotineiramente põe os oficiais militares em
contato com as autoridades civis. Muitos oficiais comandantes, por exemplo, passam
grande parte de seu tempo recebendo grupos de civis nas bases do Exército, ou
freqüentando reuniões civis. O diário de comando de Castello Branco, escrito quan-
do comandava o IV Exército no Recife, faz referências quase que diárias ao seu
!4 Cf. O jornal, 2 de setembro de 1961.
',i Uma Importante área de comunicação entre civis e militares dentro do governo é o Conselho
de Segurança Nacional, que freqüentemente é composto metade por civis e metade por militares
e ocupa-se quase exclusivamente da política interna, Os membros da Casa Militar da presidéncia
são 'essencialmente elementos de ligação politica entre o chefe do executivo e os militares
e os políticos. As centenas de militares que servem em postos-chave em certas instituiçóes
governamentais, como a Companhia Siderúrgica Nacional, agem como um duplo meio de comu-
nicação entre os militares e a burocracia. Um import'ante elo com os governadores é dado
pela pratica tradicional destes de designar um oficial da ativa do Exército para secretário de
Segurança do governo estadual. -
A Escola Superior de Guerra tem um programa de nove .meses de duração destinado ao
desenvolvimento nacional e à segurança interna e muitos dos estudantes e do quadro de chefia
sào civis. Este retacionamento é mantido provavelmente pela maioria de associaçóes de ex-alunos
no Brasil. _
Os jornais, como vimos, constantemente enviam mensagens aos militares, mas ao dar
ampla cobertura aos debates do Clube Militar, manifestos e reclamaçóes politicas "confidenciais"
de oiiciais importantes, também fornecem um forum nacional para a expressão das opiniões
militares e políticas. Todos os principais jornais têm um redator em periodo integral cuja única
função é cobrir a politica militar.
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envolvimento em acontecimentos políticos e Sociais locaiS.'6 Em geral, o acesso
de grupos sócio-econômicos dominantes aos comandantes de guarnições é maior
do que para grande parte dos el,ementos dessas classes baixas: no curso de viagens
e prestações de serviço pelo interior, entretanto, os oficiais do Exército também
tomam consciência da pobreza do Brasil ruraL Estes contínuos contatos contrastam
agudamente com a descrição de Janowitz do relativo isolamento Social e político
do comandante de uma base militar nos Estados UnidosY
Estas vias normais de comunicação são particularmente importantes em tempos
de aguda crise política. Em 1945, 1954 e 1964, datas de movimentos vitoriosos Contra
o presidente do pais, a pressão civil. no sentido de intervenção militar no prOCesso
político cresceu e foi comunicada aos militares através de contatos pessoais, manifes-
tos públicos e editoriais da imprensa. Os apelos civis para intervenção militar eram
expressos em termos da ilegitimidade do presidente e das obrigações constitucionais
que tinham os militares de garantir o funcionamento efetivo dos três poderes tradicio-
nais do governo e a ordem interna. Normalmente, os pedidos de intervenção afirma-
vam que o presidente estava agindo de maneira ilegal e que, em face destas condi-
ções, a cfáusula de "obediência dentro dos limites da lei" os dispensava do dever
de obedecer ao chefe do executivo,
Em meados de 1945, por exemplo, o Ministro da Guerra, general Coes Monteiro,
observava que era "procurado incessantemente" por políticos, bem como por milita-
res, que tentavam cOnvencê-lo a tomar uma posição.2ã A oposição civil, especifica-
mente, levou Coes Monteiro a garantir que o Exército aSseguraria eleições livres,
como prometera Vergas. e a esta garantia foi dada ampla pub/icidade.29 Em julho
de 1945, a questão da intervenção militar foi levantada em alguns periódicos, corno
o Jornal do Brasil. A tarefa especificada para os militares era aquilo em torno da
qual já haviam concordado civis e militares, ou seja, a garantia de eleições livres.
Na crise de 1954, algumas semanas antes de os ~ilitares exigirem a renúncia
de Vargas, a maioria dos jornais havia instigado abertamente os militares a fazê-Io.
Do mesmo modo, em 1964, governadores, grupos de mulheres e homens de negócios
pressionaram sistematicamente os militares para que agissem Contra o presidenteGoulart.
Em contraste com os movimentos vitoriosos de 1945, 1954 e 1964, o movimento
fracassado de 1955 e a frustrada tentativa de 1961 Ocorreram em períodos em que os
civis exigiam corn menor intensidade a intervenção dos militares no processo po-lítico.
Em 1955, os apelos feitos para a intervenção militar provinham de um único
partido político, sem o acompanhamento de qualquer movimento civil mais amplo
Contra o presidente eleito. Os apelos eram, pois, estritamente partidários e não
puderam criar a coalizão vitoriosa de civis e de oficiais militares necessária parao golpe.
" Esse diário de comando ro: escrito por seu ajudante-de-ordens e encontra-se nos arquIvos
de Castcllo Branco, na Biblioteca da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME).
no Rio de Janeiro. Minhas visitas e discussóes Com outros comandantes confirmam que isto
é um padrao rotineiro de interaçao entre civis e militares. CI. bibliografia para dIscussão doArquivo do Marechal H. A. (as/ello Branco.
"Cf. Morris Janowitz, The Professional Soktier, a Social and Polítical PortraJt(Clencoe, Illinois:The Free Press 01 Clencoe, 1960), pp. 204~207.
" Coutinho, O General Goes Depóe, pp. 404-409.
l4 Cf. a biografta de um dos principais civis atuantes na campanha Contra Vargas, da autoria
de Carolina Nabuco, A Vida de Virgilio de Meio Franco (Rio de Janeiro: Livraria José Olympio,
1962), p. 180. A própria obra de Virgilio de Meio Franco, A Campanha da UDN (Rio de Janeiro:
Livraria Editora Zélia Valverde, 1964), Contém rico m'aterial sobre os apelos dos politicos paraobter ajuda mildar contra Vargas.
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No caso da tentativa de golpe de 1961, quando os ministros militares reagiram
apressada e unilateralmente à inesperada renúncia do presidente Iânio Quadros,
anunciando sua intenção de impedir que o vice-presidente Coulart assumisse o
poder, nào houve tempo para o desenvolvimentodo tipo de debate público a
longo prazo que caracterizou os golpes vitoriosos, nem para a sondagem informal
das atitudes civis com relação a este movimento. Logo em seguida à decisão de
tentar um veto político, ficou claro que os ministros militares tinham errado no
julgamento da amplitude do apoio civil, e que Coulart, de fato, gozava de um
alto grau de legitimidade. Em face da forte oposição civil e da recusa do 111 Exército
de apoiar a decisão de obstar Coular t, os ministros militares tiveram de retroceder.
Entrevistas com ativistas de golpe entre os militares brasileiros sublinham o
papel decisivo que a sanção civil anterior desempenha no processo militar interno
de construir uma coalizão de golpe vitoriosa. O general Colbery do Couto e Silva,
protagonista importante nos movimento de 1961 e 1964, fez um interessante cornen-
tãrio:
Os ativistas militares pró ou contra o governo constituem sempre uma minoria.
Se um grupo militar deseja derrubar o governo, precisa convencer a grande maioria
de oficiais que são ou legalistas estritos ou simplesmente nào-ativistas . Os ativist~
não querem arriscar derramamento de sangue ou cisões militares, de forma que
esperam até que se tenha conseguido um consenso. Deste modo, 05 movimentos
que visam depor um presidente precisam da opinião publica para ajudar a convencer
os próprios militares. Assim, ocorreu em 1945, 7954 e 1964. Em 1961, os chefes
militares agiram contra a opinião pública e tiveram de retroceder. 30
Um general do Exército fez uma declaração semelhante a respeito do movimen-
to de 1964:
Muitos ativistas militares estavam prontos a depor Coulart em 1963, mas espera-
ram até que a opinião pública os empurrasse para a frente e ganhasse unidade,
de modo a eliminar o risco de guerra civil. Nos últimos dias de março, os jor-
nais estavam pedindo aos militares que solucionassem o problema, Este e ou-
tros acontecimentos, como a marcha de São Paulo em favor da legaíidade>'.
levaram os militares a agir. A unidade militar é extremamente importante, So-
mente se os militares estiverem divididos pode haver guerra civil. O melhor
é quando temos unidade e estamos no caminho certo, Mas o principal é per-
man~cermos unidos.P .
O marechal Cordeiro de Farias, que desempenhou papel essencial nas revoltas
de 1922, 1924 e 1930 e nos movimentos de 1945, 1954, 1961 e 1964, e pode, pois, ser
considerado o arquétipo do ativi sta mili tar. apresentou uma argu mentação semelhan·
te no que diz respeito ao papel das atitudes e opiniões civis:
."'s únicas revoltas puramente militares ioram a tenentista de '1922 e a de
1924, e fracassamos. Os movimentos vitoriosos de 1930, 1945, 1954 e 1964
foram altamente políticos e civis na formacão e na execução.>'
EnlrC\iSla. Brasilia, 18 de setembro de 196i O g"lo e nosso \'iliredo Pareto da eruase
semelhante ao papel central que a maioria. normalmente passiva, desempenha na solução
de conflitos. entre o pequeno grupo de firmes partidários do governo e o pequeno grupo
de ativistas Interessados em derrubar o governo. CL seu The Mlnd and Societv, ed. Arthur
Llvingston, 4 vols. (New York: Harcourt, Brace & World, 1935), IV: 1453-1454 (number 2096).
.1. O general referia-se a uma passeata, realizada em São Paulo, de aproximadamente duzentas
e cinqüenta mil pessoas, fazendo manifestações contra a politica de Goulart.
." Entrevista no Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1968, com um general do Exército que pediu
para não citar seu nome.
.1.1 Entrevista, Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1968.
74
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Ele comparou especificamente o mOVimento fracassado de 1961 COm o mOvimento
vitorioso de 1964 em termos de apoio civil a este último.
Significativamente, um general, forte partidário de Coulart, e que se opós ao
mOvimento e mais tarde foi expulso por isso, explicou a incapacidade dos partidários
mil itares de Cou/art para reunir apoio em função da vontade civil de que o mOvimen_to tivesse êxito,
A opinião pública do país (ora perSuadida pela propaganda de que o Brasil
marchava para o caos e para o comunismo, assim. o povo estava a tavor
do mOvimento e nós nào tínhamos força para resistir,J4
Não quero com isso deduzir que a ação dos militares pOssa Ser explicada unica-
mente em termos de apoio civil e de instigação. Em todos os casos de intervenção
examinados, estava implícito um elemento de interesse próprio da instituição e em
alguns casos mesmo o interesse pessoal dos líderes do movimento, De fato, muitas
vezes a ameaça ao interesse próprio da institUição ou à sobrevivênCia é o lator.cha\'e
para finalmente criar um Consenso entre os oficiais, pois sempre que as áreas tradiCIO-
nais da autoridade institucional militar são transtornadas, tais COmo sua estrutura
hierárqUica e disciplinar, até os não-ativlstas e os legaJistas dentro do quadro de
oficiais são induzidos a agir,35 Entretanto, continua válido o fato de que, antes
de os militares intervirem realmente Com êxito em 1945, 1954 e 1964, havia em
cada caso uma Congruência geral entre a opinião das elites civis e militares. Obvia-
mente, existe a Possibilidade lógica de que esta congruência seja o resultado de
saberem os civis que os militares iriam agir e portanto eles simplesmente deveriam
aderir. Todavia, empiricamente, a análise das crises civil-militares leais sublinhou
o toto d, qu" 'mbo," poss, ter i",d"ido umefeitod, 'd",o ern ",um "".io;
da crise, em Outros a opinião civil da elite estava empurrando, e não seguindo.os militares.
MOVIMENTOS VITORIOSOS VERSUS MOVIMENTOS FRUSTRADOS:
ANALISE COr\1PARADA DOS EDITORIAJS
A partir da anãlise dos mOVImentos de 1945, 1954, 1955, 1961 e 1964, é evidente
que os militares brasileiros, historicamente, nâo se consideraram isolados do sistema
político, mas antes ligados indissoluvelmente à política e muitas vezes sensíveis
à opi,,,o "'iI, 'mbo" "o d'P,"d,",,, "du'i"m,,,, d",. A'''dido"" im'.,m
que os militares tém de si próprios Como o povo fardado estã de acordo comseu papel altamente político.
Na tentativa de dar maior precisão ao argumento geral de que o atlvlsmo militar
é genericamente COngruente COm as atitudes da elite política civil, formulei duas
hipó,,,,, , t''',i ''''Iã-'" 'i",m"i" e qU'"tit'ti"m,"". Fstashipót"" "o
um resultado lógico do padrão das relações entre civis e militares já descrito. Ei-Ias
.'" Entrevista com o general luiz Tavares da Cunha Mello, Rio de Janeiro, 10 de Outubro de1968.
,.; Este ponto foi atingido na crise de 1964, por exemplo, quando o presidente Goulart tolerou
Um motim naval no final de março de 1964 e não deu permissão aos militares para punirem
05 revoltosos. Isso foi decisivo para muitos oficiais e converteu muitos deles, pela pnmelra
vez. em adeptos ativos da conspiração para depor Goulart. Edw.n Lieuwen. em seu Cenerals
lS Pres'(/ents tNel\' York Frederick A. Praeger. '19(>-11. pp 107"'09. acentua que o inlere"",
da própria corporação é um Componente fundamental dos movimentos .
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Os movimentos militares vitoriosos contra o executivo se relacionam com um
baixo grau de legitimidade prévia atribuída ao executivo pelas elites políticas
civis participantes e um alto grau de legitimidade prévia concedida por estes
mesmoS civis aos militares, para desempenhar seu papel moderador através
da deposição do presidente,
Desta hipótese deriva a inversa: as tentativas militares frustradas de depor
o executivo se relacionam com um alto grau de legitim(dade prévia atribuída
pelas elites políticas civis ao executivo e um baixo grau de legitimidade prévia
concedida aos militares, para desempenhar seu papel moderador de deposição
do presidente.
A fim de avaliar estas hipóteses, recorri aos editoriais dos principais jornais
brasileirosdos d ias anteriores aos movimentos, de 1945 a 1964, para estabelecer uma
medida de legitimidade atribuída tanto ao executivo quanto aos militares. Se as
hrpóteses estiverem corretas, uma análise da opinião da imprensa deveria mostrar
que, antes dos movimentos vitoriosos de 1945, 1954 e 1964, a maioria dos jornais ex-
primiam abertamente suas dúvidas sobre a legitimidade do presidente e a opinião
de que, nestas circunstâncias, seria conveniente a intervenção dos militares no sis-
tema político, cumprindo seu dever tradicional e constitucional de garantir a consti-
tuição e de controlar o execu tivo. A opinião editorial sobre os movimentos frustrados
de 1955 e de 1961 deveria exprimir o inverso.
O material disponível para a análise de editoriais no Brasil possibilita a realização
de um trabalho significativo.36 O jornalismo brasileiro destaca-se como um dos
principais em comparação com o dos outros países em desenvolvimento; o do
Rio de Janeiro, como Paris, possui uma linha de jornais politicamente importantes
muito mais ampla que qualquer cidade dos Estados Unidos, A maioria dos grandes
jornais é de propriedade familiar e sua história remonta ao século XIX. A tradíção
de independência revela-se bastante (orte?". e minha análise, fundamentada nos
editoriais, indica que, nos meses que antecederam os cinco movimentos analis'ados,
os jornais não foram censurados nem pressionados realmente, com exceção de
O Estado de São Paulo, em 1945,38 Os jornais constituem, pois, um índice relativamen-
te útil da opinião da classe média e da classe alta.
SeleCionamos nove jornais como 05 mais importantes, no plano ideológico,
para as elites participantes39 Entre eles, classifiquei cinco como jornais relativamente
16 Quase todas as edlçoes dos principais jornais (desde os finais do século XIX) se encontram
no arquivo da Biblioteca Nacíonaldo Rio de Janeiro. Na maioria dos casos. também as redaçbes
dos jornais contam com um fichário completo.
J7 Os dois principais períodos em que houve censura no Brasil no século XX vão do inicio
do Estado Novo, em novembro de 1937, até fevereiro de 1945, e de 13 de dezembro de 1963
(o Ato Institucional n.? 5) até a época deste estudo. Houve censura esporádica, por curto
período, depois dos golpes de 1955 e de 1954 e durante a tentativa de golpe de 1961. Assim,
para OS propósitos de nossa análise, a imprensa nunca fOI realmente censurada no periodo
em exame, principalmente antes dos movimentos ou tentativas de movimentos de 1945, 1954,
1955,1961 e 1964., :\enhum dos redatores-chetes ou editorlallstas que entrevistei acusaram censlIra antes dos
movimentos. Discuti este ponto com Oswa1do Peralva (um critico resoluto do governo de pós-
1964), com um diretor do Correio da Manhã, Odylo Costa Filho, que trabalhava no Diário
de Noticias durante os movimentos de 1945 e 1954, com Alberto Dines. redator-chefe do jornal
do Brasil- {esteve preso durante algum tempo por atacar os militares, em dezembro de 19681.
e com Wilson Figueiredo, que, entre 1945 e 1964, trabalhou no Estado de Minas, Folha de
Minas, Diáno Carioca e Jornal do Brasil. Estas dlscus,sôes se realizaram no Rio, entre setembro
e outubro de 1969.Em minha seleção original, inclui os grandes lornals regionais, Estado de Ivlulas (Belo Horizon-
tel, Correio do Povo (Porto Alegre), A Tarde (Salvador) e jornal do Comercio (Recife). Com
relação à opinião editorial final, eles não diferiam dos grandeS jornais nar-ioria!s . Todavia, não
to ram incluidos nesta análise, pois em quase todos os casos eles ceguiam claramente astendências
não-ideológicos: Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Diário Canoca, O jornal e
Diário de Notícias. É claro que todos os jornais têm algum tipo de ideologia. Entretan-
to, estes cinco periódicos são partidários menos evidentes, e a Sua posição em
qualquer crise particular é menos previsível do que os outros jornais da amostra.
Quatro foram classificados Como ideológicos: O Estado de São Paulo, Tribuna de
Imprensa e O Clobo representam, no conju nto, os conservadores e a direita, enquan-
to que a Ultima Hora reflete a opinião da esquerda,40 A principal ressalva que pode-
mos fazer à análise é que a esquerda está mal representada, ao passo que a opinião
da classe média e da classe alta consegue maior destaque. De fato, Ultima Hora
era o único jornal de tendência coerentemente esquerdista no Brasil. Embora reco-
nhecendo estas limitações, a análise destes jornais revela muita coisa acerca dos
papéis que os civis de alta posição esperam dos militares no sistema político.
Os edítoriais foram explorados detalhada mente, não só para testar as hipóteses
que relacionam a legitimidade do executivo com a intervenção militar, mas também
porque -ilustrarn sobejamente a complexidade e a sutileza do modelo moderador
do relacionamento civil-militar em períodos de crise e de preparação de movimentos
no Brasil. Vale a pena ressaltar vários pontos interessantes.4] Primeiro, o deb,l.te
alcançou o nível de preocupação dos editoriais várias semanas, ou mesmo meses,
antes do movimento militar concreto. No Brasil, os movimentos anteriores a 1964
foram em ampla medida aSSuntos públicos, anunciados através da imprensa e, portan-
to, não foram unilaterais ou inesperados. Segundo, todos os jornais examinados
estiveram envolvidos ..Terceiro, empregou-se sempre uma linguagem altamente coe-
rente e simbólica de legalidade, constitucionalidade e obrigação militar para com
o país, no intuito de instigar os militares a tomar medidas políticas. Finalmente,
conquanto sancionassem a intervenção, raramente os civis outorgaram aos militares
carta branca para decidirem, por si sós, que caminho tomar. As solicitações eram
muitas vezes bastante específicas quanto aos limites e aos propósitos de intervenção
na política. A tarefa dos militares em período de crise variou desde informar o
p'residente de que não estavam preparados para exec~tar uma decisão presidencíal
particular, até depor efetivamente o executivo.
Comecemos pelo golpe de 1945. A contrança geral, que Vinha expressa nos
editoriais, tão logo surgiram indícios de que Vargas iria alterar as leis eleitorars
e adiar as eleiçóes presidenciais, era que os militares tinham a obrigação de fazer
tudo o que fosse necessário para garantir eleiçóes livres. A 10 de agosto de 1945
duas semanas e meia antes do movimento militar que deporia Vargas, O Jornal
escrevia em seu editorial:
que se manifestavam primeirarnente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Constituiram excecoe-,
o CorreiO do Povo, O qual, devido ao regionalismo gaúcho e ao explosi,o nw\'imenlo em
ravor de Goulart que se centraliZOU em Porto-\Iegre. rOI lIlll dos ma" torte, cleren,ores cio
direito de seu filho nativo à presidência em 1961, e c t ornsl do Comércio que, dados os temores
da elite nordestina blasileira. se voltou fortemente contra COlllart eIll196~. Ourro motivo para
a sua não-inclusão nesta análise é de ordem metodologlca;. sua opinião, normalrl1ente, era
expressa numa linguagem mUito mais obscura, e portanto teria Sido rnuto mais d,fIC,Jclasslllca-Iosrigorosamente.
'o Fizemos esta seleção depOIS de discutir Com ativlstas polítiCOS civrs e militares acerca dos
jornais mais importantes e Infjuentes. Os nove Jornais da análise são dirigidos J, pelo menos,
um setor da opinrão pública, portanto, são todos relevantes no plano politico Nenhum delesé, claramente, O mais importante.
41 No total, foram lidos mais de míl editoriaiS. As generallzaçóes que se seguem se baselanl
na leitura de todos os editoriais de quatorze jornais para cada um dos periodos Imedlatan\enteanteriOres à críse.
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As Forças Armadas brasileiras têm profunda consciência de suas responsabili-
dades na atual situação política ... Cabe a elas resguardar os poderes constituci-
onais e as leis da República.
Nada é mais certo e legítimo que os partidos políticos solicitem ao Exército, à
Marinha e à Aeronáutica que intervenham no sentido de garantir as leis elei-
torais já estabelecidas e impedir que sejam alteradas.
O Diário Carioca, outro jornal não-ideológico, publicava em editorial:
É absolutamente lógico ... que o papel decisivo nesta hora de transição recaia
sobre as Forças Armadas.
Oque cabe a nós fazer?
Cruzar os braçoS e esperar?Ou apelar às Forças Armadas num país onde o governo é flagrantemente ile-
gal e não se baseia no menor resquício de legalidade. Ao Exército cabe a res-
ponsabilidade de respeitar os conceitos simples de ordem jurídica sem os
quais é impossível nossa vida em sociedade. Apelamos às Forças Armadas
porque são a única força organizada capaz de impor a ordem ao caos instala-
do pelo próprio govern042
Antes do golpe de 1954, após a tentativa de assassínio de Lacerda e a subseqüente
descoberta do "mar de lama" de corrupção e escãndalos financeiros, vários civis
que representavam a elite política participante sentiram que era chegado o momento
de Vargas renunciar. A mensagem transmitida aos leitores civis e militares dos jornais
era que as circunstâncias autorizavam o exercício militar do papel moderador, a
fim de supervisionar a transferência do poder do presidente Vargas ao vice-presidente
Café Filho. A 20 de agosto de 1954, quatro dias antes do movimento, o Diário
de Notícias declarava em termos simples: "As Forças Armadas estão convidadas
a servirem de mediadoras, como sentinelas da lei e guardiãs da Constituição, da
tranqüilidade e do progresso do país". Oito dias antes, a 12 de agosto, o mesmo
jornal havia indicado precisamente qual a tarefa que esperavam das Forças Armadas:
"Da conduta dos dirigentes supremos e líderes das forças de terra, mar e ar deve
resultar claramente o caminho a seguir, dentro dos limites de uma solução estritamen-
te constitucional. Isto é, a transferência do governo ao vice-presidente da República".
Os Jornais de ideologia conservadora, na época, nâo exigiram apenas a interven-
ção militar, mas condenaram em altos brados os militares por permitirem a permanên-
cia do presidente no poder e por demonstrarem relutância ou hesitação diante
do exercício de suas obrigações constitucionais. O Estado de São Paulo, um tradicio-
nal e poderoso inimigo de Vargas, comentou:
Continua em São Paulo, no Rio e em outros lugares, um movimento civil
para que as Forças Armadas convençam o chefe da Nação de que deve abando-
nar o cargo. Nas Forças Armadas, porém, infelizmente não há unanimidade
a esse respeito. Se as Forças Armadas acreditam que é servir ao Brasil e
respeitar a Constituição manter, nas funções presidenciais, um cidadão com-
pletamente desmoralizado, com a força moral destruída, carta branca lhe
dará para novas imoralidades ou, mesmo, para noVOS crimes.
43
42 13 de agosto de 1945. Nessa época, não existia iornal de tendência esquerdista. FOI a mobiliza·
ção politica, de 1949 em diante, que criou iornais ideológicos como Ultima Hora e Tribuna
da Imprensa. O jornal militantemente contrario a \largas, o Estado de Silo Paulo, que teria
apoiado a opinião dos jornais mencionados, esteve sol) o controle do governo até a queda
de \largas e, portanto, não publicava editoriais durante todo este periodo.
" 24 de agosto de 1954.
Num editorial de 13 de agosto, duas semanas antes do golpe, a Tribuna da
Imprensa concordou com estes termos:
Acreditam os chefes militares que a crise de autoridade no país possa du rar
mais do que os quinze minutos que se gasta para levar de carro o Ministro
da Guerra ao Catete, a fim de transmitir ° apelo dos chefes das Forças Armadas?
Os militares juraram defender o país, garantir suas instituições e é este jura-
mento que se deve cumprir,
O único jornal de esquerda, Ultima Hora, tomou uma posição co ntr á sia, comen-
tando, um dia antes do movimento:
Vargas resiste a uma onda de provocação e subversão que visa envolve.lo,
e já declarou, incisiva e categoricamente, que não cede e não cederá à irnpo si-
ção de violência ou a qualquer movimento ou solução extralegal.
Na crise de 1964, o presidente Goulart procurara mobilizar apoio a fim de forçar
o Congresso a aprovar uma série de reformas. As elites civis temiam que ele fechasse
o legislativo e governasse por decreto. Nestas circunstâncias, muitos participantes
do sistema político argumentavam que seria ilegal os milHares continuarem prestando
obediência ao presidente. Ressalvavam o dever que cabia às Forças Armadas de
resguardar os três poderes constitucionais, de manter a ordem interna e de obedecer
ao presidente somente se ele agisse legalmente. A 23 de março, cerca de uma
semana antes do movimento, o Diário de Notícias publicava em seu editorial:
Se o mais alto mandatário da nação se opõe à Constituição, condena o regime
e nâo age de acordo com as leis, ele perde automaticamente o direito a ser
obedecido . ., .As Forças Armadas estão encarregadas, pelo artigo 177 da Consti-
tuição, de defender o país e de garantir os poderes constitucionais, a lei e
a ordem .
o Globo, de 18 de março, faz referências à tentativa presidencial de usar seus
principais oficiais militares para pressionar o Parlamento e incitar os militares a
recusar qualquer cooperação com Goulart:
As Forças Armadas, que alguns insinuantemente procuram associar à tentativa
de intimidar o Congresso, não faltarão [ao país]. Sob a suprema autoridade
do presidente, mas dentro dos limites da lei (artigo 176 da Constituição), elas
defenderão os poderes constitucionais, a lei e a ordem (artigo 177). Portanto,
não permitirão que grupos sectários ou subversivos sejam íntimos ou não
do chefe do governo, se pronunciem contra o Congresso ou tentem agir contra
' ele, porque as Forças Armadas não podem endossar atos e processos ilegais
contra a CQnstituição.
Dois dos mais respeitados jornais, o Correio da Manhã e o jornal do Brasil,
que em 1961, após a renúncia de Iânio Quadros, defenderam firmemente o direito
de Goulart a assumir a presidência, incitaram o Exército a controlá-Io. Argumentavam
que os atos do presidente estavam destruindo a própria disciplina militar. Esta declara-
ção se encontra no editorial de 31 de março do Correio da Manhã, poucos dias
depois da eclosão de um motim naval no Rio de Janeiro tolerado pelo presidente:
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.".~."..--",,=_ ...':
Basta de farsa! Basta desta guerra psicológica desencadeada pelo governo com
o objetivo de convulsionar o país e promover sua política continuista, ", Até
que ponto ele pretende dividir as Forças Armadas pela indisciplina, que a
cada dia se torna mais incontrolável? O Legislativo, O Judiciário, as Forças
Armadas, as forças democráticas devem permanecer alertas e vigilantes, prontas
a combater todos aqueles que tentam a derrocada do regime,
O Brasil já tolerou demais o atual governo, Basta!
Do mesmo modo, o Jornal do Brasil referiu-se ao motim e à ameaça à disciplina
militar, área tradicionalmente de grande sensibilidade entre as forças Armadas:
O estado de direito soçobrou no Brasil. _"Somente aqueles que detêm o poder
de agir para restabelecer o estado de direito permanecem efetivamente legíti-
moS",As Forças Armadas foram todas - repetimos, todas - feridas naquilo que
Ihes é mais essencial, os fundamentos de autoridade, hierarquia e disciplina,,-
Não é hora de indiferença, especialmente da parte do Exército, que tem o
poder de impedir males maiores",É chegado para todos o momento de resistir.
44
O tom da opiniáo expressa nos editoriais foi bastante diferente nos movimentos
frustrados de 1955 e 1961.
Em 1955, o movimento que visava impedir a posse do presidente eleito, Kubits-
chek, foi liderado por um civil, Carlos Lacerda, editor da mordaz Tribuna da Impren-
sa. 45 Muitos oficiais militares concordavam com a crítica moralista que Lacerda
dirigia contra Kubitschek e com o ataque anticomunista contra o vice-presidente
Coulart, Entretanto. durante t090 o período de crise,~~evaicja eleiç~q~e9u!ubro
a 11 de novembro de 1955, o apoio geral a uma ação militar era muito menos
intensO do que nos casos examinados anteriormente. Somente a Tribuna da Imprensa
e O Estado de São Paulo, ambos ligados à ideologia de direita, preconizaram aberta-
mente a intervenção mtlítar." comparados aos da Tribuna da Imprensa (que às
vezes escreveu como se estivesse iminente um movimento militar, embora naquele
momento não existisse nO Exército tal consenso para O movimento), os editoriais
do prestigioso Correio da Manhã, que em geral havia apoiado os movimentos de
1945,195'1 e 1964, defenderam intensamente a posse de Kubitschek e falaram apenas
do dever dos militares de evítarem um golpe:
A consciência militar que iluminou o nascimento da República não enterrará
o regime, "Soldados e líderes militares da estirpe de um general lott, cu]a
fidelidade à democracia é símbolo do pensamento que predomina de alto
a baixo, não agirão como centuriôes de um golpe.
47
"29 de março de 1964,"' Lacerda era um demagogo de direita. extremamente eficiente, que mais tarde foi governador
da Guanabara e um dos críticos mais violentos do governo militar, de 1966 a 1968_
_Oó ATribuna da Imprensa publicou em editorial: "A posse destes dois aventureiros irresponsaveis
só pode ser evitada por um ato de força, A hora da açào depende das Forças Armadas, O
povo agora conta com apenas trés armas - elas se chamam Exército, Marinha e Aeronáutica,
"A opção está entre uma ditadura 'legal' que corrompe e degrada a todos e um reg,me
de emergéncia que levará à conquista efetiva da democracia" (4 de novembro de 1955), Cinco
dias mais tarde, seu tom era ainda mais exaltado: "Kubilschek e Goulart.-- não podem assumir
o poder, não devem assumir o poder, não as;umirão o poder" (9 de novembro de 1955)_
.7 5 de novembro de 1955,
o Jornal, periódico nào-ideológico, concordava com o Correio da Manhá em
que as circunstâncias nào requeriam a intervenção militar e o exercício da tradicional
função moderadora:
Estamos certos de que em nenhuma circunstância o Exército, a Aeronâutica
ou a Marinha concordariam em servir de instrumentos de ambiçóes que não
radiquem no voto político popular.w
Em 1961, a situaçâo foi a mesma, Quando os ministros militares decidiram,
unilateralmente, impedir a posse de Goulart como sucessor de lânio Quadros, rnes-
mo o Dierio de Noticias, um jornal tradicionalmente pró-militar, deixou de apoiá-Io s,
afirmando, ao contrário, que a sua pretensão a exercer a função moderadora era
ilegítima:
Em nome da preservação da ordem, propóe-se perpetrar um ataque fatal à
Constituição, ferindo mortalmente o regime. ",A decisão dos chefes militares,
sob o pretexto de impedir a desordem, poderia, ao contrário, precipitar o
país no caos, na guerra civil armada, na bancarrota econômica e financeira,
na total subversão da ordem social, política e mesmo ideológica, ... Os perigos
que supo starnenis poderiam resultar para as instituições da presença do Sr.
Coulart na presidência seriam, em qualquer hipótese, incomparavelmente me-
nores do que os que emanam do repúdio do sistema representatívo.ss
O Correio da Manhã, que nos últimos dias de março de 1964 atacou duramente
Coulart, em 1961 defendera firmemente seu direito à presidência. Os editoriais
il ustram claramente como se estabeleceu uma acentuada distinção entre o sentirnen-
to de incerteza sobre a capacidade de um presidente e a crença em seu direito
a governar: "Nós sempre exprimimos algumas reservas ao caráter pessoal do novo
presidente, mas o fato é que ele é o novo presidente e que o Sr. João Coulart
deve ser empossado tão logo regresse ao país" .50 Quatro dias mais tarde, depois
que os ministros militares divulgararn um manifesto onde declararam sua intenção
de impedir que Coulart retornasse ao país, no interesse da segurança nacional,
o jornal novamente negou sua aprovação: '
Lemos o manifesto dos ministros militares. É um golpe que abole o regime
republicano no Brasil. É ditadura militar51
Depois que o Rio Grande do Sul e sua polícia militar resistiram ao golpe, os
ministros militares tiveram de capitular. O general Colbery, um dos oficiais mais
importantes entre os implicados na tentativa de golpe de 1961, 'q'ue mais tarde
deixou a ativa para organizar a opinião civil-militar contra Coulart, observou: "1961
foi um desastre para o Exército. Nós decidimos (em 1964) que só tentaríamos derrubar
Coulart quando a opinião pública estivesse claramente ~ nosso favor".52
Numa tentativa de avaliar as hipóteses que relacionam o sucesso de movimentos
militares com o grau de legitimidade atribuída ao executivo e aos militares, procurei
construir uma medida genérica da legitimidade. Para tanto, formulei cinco categorias
"5 de novembro de 1955,
49 27 de agos to de 196-1.
'°27 de agosto de 1961_
s : 31 de agosto de 1961,
"Entrevista, Brasilia, 18 de setembro de 1967,
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amplas, indicando o grau até onde os editoriais apoiaram o executivo para permane-
cer no posto, e outra indicando o grau de apoio para a intervenção militar. A última
posição firme que um Jornal assumiu no período de duas a seis semanas antes
das crises de 1945,1954,1961 e 1964 é colocada numa das cinco categorias."
A classificação vai da primeira categoria, que representa elevada legitimidade
ao presidente, à categoria mais baixa, que indica nenhum apoio a ele. Do mesmo
modo, no tocante ao grau de legitimidade atribuída aos militares, a primeira categoria
indica um grau elevado de legitimidade à intervenção militar e a última revela ausência
de apoio, as outras categorias entre os dois extremos. Os resultados desta classifica-
ção estão apresentados nas Tabelas 5.1. e 5.2.
Embora reconhecendo um elemento irredutivelmente subjetivo e qualitativo
na seleção original e na classificação subseqüente dos editoriais, usamos a distribui-
ção dos [or nais nas Tabelas 5.1. e 5.2. para dar peso quantitatiVO ao grau de apoio
concedido ao presidente e aos militares em cada movimento. Atribuindo a cada ca-
tegoria valores que vão de + 2 para a primeira e - 2 para a última, dei um peso
quantitativo à série total de apoios ao presidente e aos militares e relacionei estes
apoios com o sucesso ou fracasso dos movimentos.
Com base nestes pesos, fica evidente, a partir da Tabela 5.3, que a hipótese ge-
ral confirma, no modelo moderador, estar a execução vitoriosa de um movimento
pelos militares relacionada grandemente com a legitimidade dada aos militares pela
opinião da el ite civil para a realização da tarefa. Inversamente, no caso da legitimidade
do presidente, a Tabela 5.4 revela que os movimentos vitoriosos foram precedidos
por um reduzido grau de legitimidade atribuída por este segmento da opinião pú-
blica ao presidente, enquanto que os movimentos frustrados ocorreram em perío-
dos em que a legitimidade presidencial era elevada.
Finalmente, o material é apresentado de forma visual na Figura 5.1, onde as
correlaçóes são mais acentuadas. Aqui se evidencia que as hipóteses que relacionam
movimentos vitoriosos e frustrados com o grau de legitimidade do presidente e dos
militares tem fundamento sólido.
AS LlMITAÇOES AOS MOVIMENTOS
MILITARES ANTES DE 1964
Embora os militares brasileiros tenham intervindo repetidas vezesna política,
durante o século XX, e às vezes tenham deposto o presidente, em momento algum,
antes de 19&4, eles assumiram o poder. Também não receberam grande estímulo
da parte dos civis para que tomassem esta atitude. Na verdade, em comparação
com as repúblicas da América Latina, a dimensão do envolvimento militar no Brasil
sempre diferiu o suficiente para caracterizar os militares brasilei ros como mais "cons-
titucionais" do que os de outras nações latino-americanas. Os militares brasileiros,
geralmente, se consideraram de acordo com esse conceito.
Em cada um dos golpes anteriores a 1964, um elemento decisivo do próprio
golpe, da criação de coalizão entre civis e militares e do consenso entre os oficiais,
foi a percepção de que existia permanentemente um limite ao grau de intervenção
militar na política. Esta restrição, característica central do modelo moderador, efetiva-
.'3 Num projeto dedicado apenas a uma análise de conteúdo, seria usado um enfoq ue Q (qualitati-
vo) mais rigoroso com múltiplos codificadores. Um trabalho Interessante seria construir os
pesos comparativos de legitimidade para cada dia durante a crise. Infelizmente, dada a ausência
de meios de reprodução na Biblioteca Nacional e a relativa dificuldade de ter acesso a todos
os editoriais, isto estava além da disponibilidade de tempo e dos recursos financeiros do autor,
que naquelas circunstâncias era o único codiflcador.
mente opós um limite à intervenção militar para a deposição do chefe do executivu,
excluindo qualquer possibilidade de usurpação do governo pelos militares envol-
vidos.
Esta percepção tinha dois componentes: atitudes civis em relação ao papel
dos militares na política; atitudes militares para com sua legitimidade e capacidade
de formar um governo.
A distinção e!1tre a legitimidade da intervenção militar e a ilegitimidade do
governo militar pode parecer demasiado sutil para ser comunicada. Contudo, na
realidade, esta distinção foi estabelecida claramente e compreendida por todos
os principais políticos brasileiros. Por exemplo, nas semanas que antecederam os
movimentos de 1945,1954 ou 1964, ou as tentativas de golpe de 1955 e 1961, nenhum
editorial exigia explicitamente dos militares que assumissem o pode r.>" embora
muitos deles pedissem que interviessem para depor ou controlar o presidente.
Do ponto de vista civil, um argumento bastante usado neste período era que se
poderia confiar na ação militar contra o presidente, exatamente porque os militares
conheciam e respeitavam as tradicionais limitações da intervenção, que os impediam
de assumir os poderes do governo.
No editorial típico transcrito adiante, o jornal conservador O C/obo 'tentava
afastar quaisquer dúvidas dos civis quanto à conseqüência que poderia advir se
os militares forçassem a renúncia de Vargas em 1954. Argumentando que, no passado,
os militares haviam evitado assumir o poder, ele prometia que, também neste caso,
eles continuariam a garantir um Estado de direito e constitucional. O Globo, portanto,
sancionava a intervenção rnititar para depor o presidente, mas sublinhava, em seu
editorial, que as regras do jogo proibiam os militares de assumir o poder político:
O grande teste de maturidade política que alcançaram nossas classes militares
foi a deposição de Vargas, a 29 de outubro de 1945, quando deram ao mundo
um raro exemplo de respeito às instituições políticas e civis e de falta de
interesse egoístico ao entregar o poder aos órgãos judiciários. Hoje, podemos
estar certos de que não seria possível o aparecimento de um condottiere militar.
... Se amanhã o presidente da República tivesse de deixar o palácio presidencial
por sua livre vontade, como muitos brasileiros prefeririam, ou tivesse de deixá-
10 através de coerção, como de fato pode acontecer, o Brasil continuaria a
desfrutar de um Estado judiciário e constitucionals5
Outra característica dos golpes vitoriosos deste período foi o consenso consegui-
do entre os militares, em cada caso, não só acerca da necessidade de intervenção
armada, como também acerca do grupo de civis que deveria receber o poder político
após a deposição do chefe do executivo.
Em 1945 e 1954, este entendimento foi desenvolvido pelos princípais líderes mi-
litares do movimento em conjunto com grupos civis. Em 1945, antes de depor Vargas,
o Ministro da Guerra, Goes Monteiro, conversou com os candidatos presidenciaiS
dos dois principais partidos, que concordaram em que o presidente deveria ser
deposto e o poder transferido temporariamente ao Judiciário, que se encarregaria
de supervisionar as eleições, de tal modo que os candidatos vitoriosos pudessem
54 O pedido de Carlos Lacerda, em 1955, na Trtbune da Imprensa, para que se estabelecesse
"um regime de exceçáo", fOI o que mais se aproximou deste tipo de solicitação. Todavia,
poderia ter sido um regime dirigido por civis e apoiado por militares. Em 1964, o proprietano
do Estado de São Paulo queria que um regime militar assumisse o poder, mais isto nunca
fOI declarado num editorial.
S5 23 de agosto de 1954.
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TABELA 5,1
CLASSIFICA(ÁO DA OPINIÀO DA IMPRENSA COM RESPEITO À LEGITIMIDADE DO I'RESIDfNH
ANTES DE.MOVIMENTOS OU TENTATIVAS DE MOVIMENTOS: 1945.1954.1955.1961.1964
+ 2 + 1 o - 1
- 2
Presidente, presidente Presidente, presidente
eleito, ou vice-presi- eleito, ou vice-pre si-
dente com presidência dente com presidência
vaga deve ser apoiado vaga é legal
intensamente. Seu im-
pedimento ou remo-
ção seria ilegítimo.
Ambíguo ou neutro
com relação à questão
de legitimidade de pre-
sidente, presidente
eleito, ou "ice-presi-
dente. com presidênc1a
vaga.
Presidente. presidente
eleito. ou vicewpresi.
dente com presidência
vaga está agindo ile-
galmente, ou presi-
dente eleito foi esco-
lhido ilegalmente ou
vrce-prestdente com
presidência vaga não
tem autoridade para
ocupar a presidência.
Presidente, presidente
eleito. ou vice-presi-
dente com presidência
vaga nã.o deve ocupar
a presidência. Deve
renunciar, ser impedi-
do, não ernp os sado ,
ou deposto do cargo.
Movimentos vitoriosos
Correio da Manhã
Jornal do Brasil
Diário Carioca
Diário de Notícias
O Jornal
Movimento de 1945+
Movimento de 1954 Ultima Hora
Jornal do Brasil
O Globo
O Jornal
Correio da Manhã
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Diário de Notícias
O Estado de S. Paulo
Tribuna da Imprensa
M ..i?49.ES-'S';' ~.
Movimento de 1964 Última Hora Diário Carioca Correio da Manhã
jornal do Brasil
O Globo
Diário de Notícias
O Jornal
O Estado de S. Paulo
Tribuna da Imprensa
Movi mentos de golpe~
(rustrado.,>
Movimento de 1955 Diário Carioca
O jornal
Correio da Manhã
Última Hora O Globo
jornal do Brasil
o Estado de 5. Paulo
Diáno de Notícias
Tribuna da Imprensa
Movimento de 1961 Correio da Manhâ
Jornal do Brasil
Diário Carioca
Diário de Notícias
O Globo
Última Hora
O Jornal Tribuna da Imprensa
O Estado de S. Paulo
Em 1945, somente estão incluídos cinco dos nove jornais examinados para outros movimentos. O Estado de São Paulo estava sob intervenção do go-
verno. O Globo não publicou editoriais, e Última Hora e Tribuna da Imprensa ainda não haviam sido fundados.
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TABELA 5.2
CLASSIFICAÇAO DA OPINIÍlO DA IMPRENSA COM RESPEITO A LEGITIMIDADE DO EXERCiClO PElOS MILITARES
DO PODER MODERADOR ANTES DE GOLPES OU TENTATIVAS DE GOLPE; 1945, 1954, 1955, 1961, 1964
Militar tem obrigação Militar deve desempe-
de remover presidente nhar papel principal
ou impedir que presi- na solução de crise e
dente eleito ou vice- não deve obedecer a
presidente com presi- presidente se ele está
dência vaga assuma o agindo ilegalmente. O
cargo. militar não deve ajudar
a pôr no poder um pre-
sidente eleito ou vice-presidente que consti·
tui ameaça à segurança
e à ordem do país.
Ambíguo ou neutro Militar deve apoiar o
com retacao ao papel presidente, presidente
de apoio militar ao pre- eleito, ou vice-presi-
sidente, presidente dente quando a prest-
eleito, ou vice-pres+ dência está vaga.
dente quando a presi-
dência está vaga.
Militar não tem qual-
quer direito de remo-
ver presidente ou im-
pedir o presidente elei-
to ou vice-presidente
com- presidência vaga.
O executivo precisa
do apoto agressivo do
militar.
Movimentos vitoriosos
O Jornal
Diário de Noticias
Correio da Manhã·
jornal do Brasil
Diário Carioca
Movimento de 1945+
Ultima Hora
Movimento de 1954 Diário Carioca
Diário de Noticias
O Estado de S. Paulo
Tribuna da Imprens;t
Correio da Manhã
Jornal do Brasil
O Globo
O Jornal
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Movimento de 1964 Correio da Man hã
Jornal do Brasil
O Globo
Diário de Notícias
O Jornal
O Estado de S. Paulo
Tribuna da Imprensa
Diário Carioca Ultima Hora
Movimentos de golpes
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Movimento de 1955 Tribuna da Imprensa o Estado de S. Paulo Jornal do Brasil
O Globo
Diário de Notícias
O Jornal Correio da Manhã
Diár io Carioca
Ultima Hora
Movimento de 1961 Estado de São Paulo
Tribuna da Imprensa
O Globo
O Jornal
Jornal do Bras,J
Última Hora
Correio da Manhã
Diário Carioca
Diário de Noticias
Em 1945 estão incluídos apenas cinco dos nove jornais examinados para outros golpes. O Escado de São Paulo
O Globo não publicava editoriais, e Ó/lIma Hora e Tribuna da Imprensa ainda não haviam sido fundados.
estava sob inte rve nçáo do governo.
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TABELA 5.3
ESCORES DE LEGITIMIDADE DOS MILITARES DO EXERCi CIO
DO PODER MODERADOR: ANÁLISE DA IMPRENSA
SOBRE MOVIMENTOS VITORIOSo-S E FRUSTRADOS
- _ .. - -- ,. .-
Média de Escore para Média de Escore
Movimentos jornais para
Vitoriosos Não-Ideológicos' Todos os Jornais--
1945 + 1,0 + 1,0
1954 + 1,2 + 1,0
1964 + 0,6 + 0,4-- --
Média + 0,93 + 0,8
Movimentos Frustrados
1955. - 1,0 - 0,4
1961 - 1,4 - 0,4-~ --
Média - 1,2 - 0,4
TABELA 5.4
ESCORES DE LEGITIMIDADE DO PRESIDENTE: ANÁLISE DA
IMPR'E NSA SÓBRE MOVIMENTOS vrroatosos TFRUSTRADOS
Média de Escore para Média de Escore
Movimentos jornais para
Vitoriosos Não-Ideológicos' Todos os jornais
1945 - 1,0 - 1,0
1954 - 1,6 - 1,2
1964 - 0,8 - 0,8
-- --
Média - 1,1 - 1,0
Movimentos Frustrados
1955 + 1,0 + 0,3
1961 + 0,8 + 0,2-- --
Média + 0,9 + 0,25
• Jornais que classifiquei como não-ideológicos; Correio da Manhã, jornal do Bra-
sil, Diário Carioca, O jornal e Diário de Noticie»,
88
.-'.~'....,..
+2
+1. 75
+1.5
+1.25
+1
+ .75
+ .5
+ .25
O
- .25
- .5
- .75
-1
-1. 25
-1.5
-1. 75
-2
Movimentos Bem Sucedidos Movimentos Mal Sucedidos
1945 1954 1964 1955 1961
- Legitimidade Militar
~
Legitimidade Presidencial
FIG. 5.1 Análise da Opinião de Jornais Não-Ideológicos: Relação entre legitimidade
do mil itar e legitimidade do presidente em movimentos vitoriosos e frustrados.
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assumir na data prevista.ê" As negociações finais. para a renúncia de Vargas foram
conduzidas pelo general Cordeiro de Farias e ilustra a preocupação dos militares
de que os meios de comunicação permanecessem abertos entre todos os protagonis-
tas. O general Cordeiro de Farias foi escolhido para esta tarefa porque fora um
dos membros do comando da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e mantinha boas
relações com as três principais figuras envolvidas na crise: o brigadeiro Eduardo
Gomes, candidato à presidência pelo partido da oposição; o general Outra, candidato
do governo; e o próprio Vargas. Como comentou Cordeiro de Farias:
Fui porque era extremamente íntimo de todos eles. Gomes era meu irmão
desde os dias da revolta tenentista de 1922, e Outra e eu havíamos colaborado
j untos no Exército nas décadas de 1930 e 1940. Quanto a Vargas, eu trabal hava
com ele desde a revolução de 1930. Gostava dele e respeitava-o e foi por
isso que aceitei o encargo.!?
Em 1954, novamente os parãmetros da ação militar foram claramente definidos
em conversas privadas e em declarações públicas, por exemplo, através dos editori-
ais. Estava claramente implícito que os militares deveriam supervisionar a transferên-
cia do poder do presidente Vargas ao vice-presidente Café Filho. Em violenta reunião
realizada no Clube Militar, no Rio de janeiro, a 14 de agosto, discutiu-se horas
a fio qual deveria ser a atitude dos militares na crise. Finalmente, foi aprovada
uma resolução emocional, apoiada amplamente pelos oficiais inferiores, na qual
se exigia a renúncia imediata do presidente. Num famoso discurso, juarez Távora,
vice-presidente do Clube Militar e comandante da Escola Superior de Guerra, derru-
bou esta resolução, argumentando que, primeiramente, deveriam ser tomadas todas
as medidas legais possíveis pelos militares, e que os oficiais inferiores deviam deixar
a direção da crise a seus superiores hierárquicos. Enfatizou ainda que os militares
somente deveriam agir com calma e com unanimidade. Reconhecendo que o presi-
dente ainda contava com alguns partidários poderosos entre os militares, Távora
alertou a compacta audiência que uma das coisas mais importantes era evitar que
"irmãos de armas se matassem entre si".58
Somente depois de mais oito dias de contínuas reuniões entre líderes militares
e civis, 27 generais importantes do Exército redigiram um manifesto formal, onde
explicavam as bases da crise e anunciavam sua intenção de tomar algumas medidas:
Os abaixo assinados ... conscientes de seus deveres e responsabilidades perante
a Nação ... declaram julgar, em consciência, como melhor carr-inho para tran-
q úilizar o povo e manter unidas as Forças Armadas, a ren úncia do atual Presi-
dente da República, processando-se a sua substituição de acordá com os pre-
ceitos constitucionais."?
Inúmeros observadores, procurando comparar o movimento de 1'.J54 contra
Vargascom o contramovimento constitucional de 1955, falaram dos diferentes grupos
de oficiais envolvidos em cada caso. Isto cria uma imagem de polarização que não
existia entre os oficiais. Em 1954, os militares agiram somente depois que havia
5ó Para detalhes deste acordo, cI. Coutinho, O General Coe s Dc p oc , pp. 441-469; José Cao.
Outra (Sào Paulo; Instituto Progresso Editorial, 1949), pp. 240-245; e Nabuco, A Vida de Vlrgí/lo
de Meio Franco. pp. 192-195.
57 Entrevista, Rio de janeiro, 14 de setembro de 1968.
56 Uma cópia do discurso encontra-se nos arquivos pessoais do marechal juarez Távora, e me
foi mostrada por ele durante entrevista realizada no Rio de janeiro, em 8 de outubro de 1968.
59 Uma fotocópia do manifesto com todas as assinaturas encontra-se em Bento Munhoz da
Rocha Neto, Radiografia de Novembro (Rio de Janeiro: Editora Civilizaçâo Brasileira, 1961),
pp.118-119.
90
passado o perigo de polarização. Na verdade, muitos membros dos grupos suposta
ou realmente contrários à deposição de Vargas assinaram, não obstante, o manifesto
que anunciava a intenção de depor o presidente a fim de preservar a unidade
militar. Assinaram o manifesto, embora mais tarde fossem considerados contrários
ao movimento que se seguiu, o general Lott, líder do contramovimento de 1955,
os generais José Machado Lopes e Pery Constant Bevilacqua, dois dos mais importan-
tes generais que apoiaram o direito de Goulart à presidência em 1961, e o general
Jair Oantas Ribeiro, Ministro da Guerra de Goulart em 1964.60 O constitucionalismo,
ou apolítica nacional, estavam tão profundamente arraigados nestes oficiais que,
sem dúvida, não teriam assinado o manifesto contra Vargas se não houvessem sido
reconhecido s limites especificos à ação militar, ou seja, a intervenção militar se
limitaria à transferência do poder político para o vice-presidente, segundo as normas
constitucionais.
O contragolpe de 1955, que visou a obstar quaisquer tentativas de impedir
a posse dos vencedores das eleições presidenciais, resultou também de um planeja-
mento cuidadoso. O plano militar fora elaborado cinco meses antes de ser posto
realmente em prática. O general Lott, Ministro da Guerra, e o general Odilio Denys,
comandante da Vila Militar, haviam organizado uma coalizão vitoriosa entre aqueles
oficiais que estavam convencidos da obrigação de executar um golpe preventivo
contra qualquer tentativa civil-militar de impedir a posse dos candidatos eleitos."!
Quando se decidiu executá-Ia, o contragolpe já contava com o apoio dos principais
comandantes de tropas do Rio de janeiro e de São Paulo.s- Imediatamente depois
que foram dados os passos iniciais do golpe, o general Lott demonstrou sua conscién-
cia da necessidade de um consenso sobre os limites da intervenção, quando convo-
cou os presidentes do Senado, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal
Federal e pediu-Ihes que "providenciassem a substituição legal do presidente Carlos
luz estritamente de conformidade com a Constituição, porque não estamos dispostos
a assumir o controle do poder civil. Não é este o nosso objetivo",63
A estrita limitação do papel moderador do Exército à deposição do presidente
e a rápida validação do ato pelo Congresso tornaram menos viável qualquer resistên-
cia por parte da Aeronáutica ou da Marinha. Assim, a aceitação desta limitação
foi decisiva, em 1955, tanto para a formaçâo de uma coalizão de golpe, quanto
para impedir qualquer resistência efetiva por parte dos oficiais da Marinha ou da
Aeronáutica,
Outra regra do jogo do padrão moderador era que os partidários do governo
depostójíão fossem expurgados das Forças Armadas. Após os golpes de 1945,1954
e 1955, os elementos contrários aos movimentos foram, em geral, transferidos para
postos distantes e sua promoção foi retardada. No entanto, por motivos que serâo
analisados na Quarta Parte, esta norma foi violada após o movimento de 1964. A au-
sência de expurgos tornava mais fácil a negociação dos movimentos. Os "partidá-
rios" podiam concordar em não resistir se soubessem que sua posição como oficiais
ou sua própria vida não correriam perigo por terem ficado do lado perdedor. A au-
6olbidem.
61 Uma descrição da forma como se organizou a coalizão e partes da ordem de operaçóes
encontrarn-se na biografia de Lott, pelo rnajor Joffre Gornes da Costa, Marechal Henrique Lott
(Rio de Janeiro: sern editor, 1960), pp. 279-313.
62 Podemos encontrar urna descrição da participação geral na decisão de executar o golpe
e urna lista de todos os cornandantes de unidade do Exército que participararn da decisão,
ern general Joaquirn Justino Alves Bastos, Encontro com o Tempo (Porto Alegre: Editora Globo,
1965), pp. 294-300.
63 Entrevista de Lott à revista Manchete, 19 de novembro de 1955, reproduzida em Joffre Gomes
da Costa, Marechal Henrique l.ott , p. 301.
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sência de tais regras na Nigéria e na Indonésia transformou os movimentos nesses
países em conflitos sangrentos, com o assassínio dos perdedores.
Um elemento extremamente importante que serviu para limitar o movimento à
deposição do governo, em todos os movimentos realizados no Brasil entre 1945 e an·
tes de 1964, fora a pouca convicção dos militares acerca de suas qualificações para
governar o país. Em essência, até a década de 1960, a instituição militar br asil ei ra
orgulhava.se de sua constitucionalidade. Esta crença nas formas constitucionais de
governo estava fundamentada na confiança militar de que as crises podiam ser
resolvidas efetivamente pelo retorno do governo ao controle cívil e pela escolha
de um novo presidente, e na convicção de que os militares, em comparação com
os civis, dispunham de baixo grau de legitimidade para assumir o poder.
Realmente, um dos motivos principais do fracasso do movimento para impedir
a posse de Kubitschek e Goulart, em 1955, foi que, do ato de recusa dos resultados
eleitorais, deveria emergir um governo rivil-rnilitar , e muitos oficiais punham em
dúvida a legitimidade de um regime de tal natureza. Um importante defensor deste
ponto de vista foi o general Castello Branco. Em 19 de setembro de 1955, num
discurso na Escola Superior de Guerra, ele questionava intensamente a capacidade
ou a legitimidade dos militares para constituírem um "regime de exceção":
Há quem argumente que a melhor maneira de os militares participarem da
recuperação do país é intervir e assumir as rédeas do governo. Os mais sinceros
afirmam que isto é necessário, tendo em vista a incapacidade das instituições
políticas de resolver os problemas do país.
Terão realmente as Forças Armadas capacidade política para assimilar as
soluções dos problemas políticos e administrativos da nação? ( ... ) As Forças
Armadas não podem, se pretendem ser fiéis à sua tradição, transformar o Bra-
sil em outra republiqueta sul-americana. Se adotarmos este regime, ele entrará
pela força, se manterá pela força e sairá pela forçaM
Nào obstante, em 1964, os militares haviam decidido, de fato, estabelecer um
"regime de exceção", o primeiro governo militar do Brasil no século XX. Por que
ocorreu esta inversão de tudo aquilo que o presidente Castello Branco afirmara
em 1955 e por que surgiu ele como líder do tipo de governo militar que criticara
tão violentamente?
Obviamente, para mudanças tão acentuadas no padrão das relações entre civis
e militares que perdurara entre 1945 e 1964, devem ter sido intensamente questiona-
das as crenças sobre as quais ele se baseava, tais como a capacidade dos civis
de encontrar soluções para os problemas políticos e a dúvida dos prõprios militares
quanto à sua capacidade de governar efetivamente.
'" A cópia do discurso, "Os Meios 1\~i1itaresna Recuperação Moral do País", encontra-se no
Arquivo do Marechal H. A. Castello Branco.
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PARTE 111
A Ruptura do "Padrão Moderador"
das Relações entre Civis e Militares
e a Emergência do Governo Militar
Nove dias depois da revolução de 31 de março de 1964, o Comando Supremo
da Revol ução, formado pelos comandantes-chefes das três Forças Armadas, emiti u,
unilateralmente, o Ato Institucional n.? 1. Nele se declarava claramente que o movi-
mento revolucionário "depusera o governo anterior e se investia de poderes para
formar um novo governo". Dizia ainda que a revolução não buscava legitimar-se
através do Congresso, pois ela "se legitima a si rnesrna".! Com a autoridade de
que se investira através desse Ato Institucional, o Comando Supremo da Revolução
cumpriu a primeira das muitas etapas do processo de expurgo do sistema político.
Em 10 de abril, publicava-se uma primeira lista, onde eram relacionados quarenta
pa'rlamentares que tinham seus mandatos cassados e cem homens públicos, líderes
sindicais, intelectuais e outros políticos, cujos direitos políticos eram suspensos
por dez anos." No dia seguinte, 122 oficiais militares eram retorrnado s."
Evidentemente, ao contrário dos golpes de 1930,1945,1954 e 1955, o movimento
militar de 1964 não se limitou a depor um chefe de executivo; ao mesmo tempo
os militares assumiram o poder político do país, indo além dos parãmetros do
padrão moderador das relações entre civis e militares que predominaram durante
todo o período anterior a 1945; o conjunto do sistema político sofrera uma "mudança
radical", qu~ mergulhava suas raízesem profunda alteração da ideologia: os militares
se dispunham a ser, não mais os moderadores, mas os dirigentes da política.
Qualquer análise do contexto político e militar que sofre uma alteração radical
como esta deve considerar tanto as forças internacionais quanto as nacionais. Dada
a grande controvérsia sobre o papel dos Estados Unidos na deposição de Goulart,
convém discutir o contexto internacional, antes de tentar qualquer análise dos outros
aspectos que atuaram nessa mudança radical. No tocante ao papel norte-americano,
dois pontos de vista sobressaem, diametralmente opostos. O primeiro afirma que
o grande país do Norte representou a principal força por trás do movimento, posição
resumida no titulo de um livro bastante lido no Brasil, O Golpe Começou em
Washington.4
I Excertos do Ato Institucional de 9 de abril de 1964, no Diário Oficial.
2 Cf. DIário Oficial, 10 de abril, para alista dos 100 cassados.
3 Diário OficIal, 11 de abril de 1964.
4 Edmar Morei, O Golpe Começou em wesbrngtos, (Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira,
1965)
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