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HISTÓRIA MODERNA AULA 1 Profª Lorena Zomer 2 CONVERSA INICIAL Olá, vamos conversar? Nesta aula, abordaremos conteúdos relativos à Idade Moderna. Você sabe o que essa divisão temporal significa? Como ela é demarcada e balizada por acontecimentos históricos? Em busca dessas respostas, nesta aula analisaremos diversos temas, como o próprio conceito de Idade Moderna e como os acontecimentos que servem de parâmetros cronológicos desse período foram escolhidos posteriormente. Junto a isso, também discutiremos sobre noções de tempo e de temporalidade, visto que as organizações sociais têm as mais diversas formas de pensar o seu tempo, isto é: não se trata apenas de estudarmos tempos culturais diferentes em um mesmo calendário, mas de diversos calendários. Assim, cada sociedade concebe o seu tempo e também escolhe, (in)conscientemente, as suas demarcações. Não menos importantes são as mudanças econômicas e sociais ocorridas entre os séculos XIII e XV no Ocidente, mais precisamente na Europa, visto que essas transformações permitiram novos olhares e sociabilidades naquele continente, entre eles o desenvolvimento do pensamento humanista e do renascimento cultural, comercial e científico. TEMA 1 – MARCAÇÕES TEMPORAIS EM HISTÓRIA O que diferenciou o período moderno, na Europa, da época que lhe é anterior? Nesse primeiro momento, vamos problematizar como uma época é diferenciada das demais e de que formas são construídas essas diferenciações. É importante ressaltar que as temporalidades e espacialidades podem ser baseadas em acontecimentos naturais; porém, na maior parte dos casos, elas são históricas e escolhidas posteriormente à época a que se referem. A partir do momento que se tornam históricas, também podem ser arbitrárias, visto que são frutos de escolhas e podem não representar um olhar múltiplo dos acontecimentos históricos, representando objetivos e intenções de certos grupos. Assim, nós, historiadores, devemos buscar sempre compreender como os grupos sociais perceberam a si e ao seu tempo no âmbito dos acontecimentos que compõem a nossa historiografia, a fim de melhor entendermos o passado, o presente e o futuro. 3 1.1 Como são definidas as temporalidades e espacialidades no estudo histórico O historiador italiano Jacob Burckhardt (2009, p. 33), do século XIX, afirmava que a essência da história é a sua eterna mutabilidade. O historiador chama atenção para o caráter transitório da história, visto que esta é formada por acontecimentos que quem a descreve julga importantes e relacionados a determinado tempo. Portanto, é possível dizer que as temporalidades e divisões cronológicas são também históricas. Nesse contexto, outro historiador, o holandês Johan Huizinga (2021), preconizava que não é possível pensar em novos modelos culturais de arte ou beleza ou até nos modelos gregos clássicos se estando preso aos princípios do período medieval. Para Huizinga (2021), era preciso esquecer o período medieval naquilo que remetia à escuridão e destacar a arte que havia florescido nele. No entanto, para ele mesmo, diversas práticas sociais anteriores persistiam no mundo moderno, do mesmo modo como este não era sentido, como tal, por todos. Por isso, é importante a demarcação de macroacontecimentos para a organização da própria história. Historiadores entenderam que o que se intensificou com a Queda de Constantinopla, em 1453, foi a mudança de organização política que mais tarde seria entendida como a queda do antigo regime e a ascensão dos Estados absolutistas e, posteriormente, já mais para o fim do período moderno, da burguesia, cujo símbolo máximo é a Revolução Francesa, em 1789. O que entendemos até aqui é que os acontecimentos maiores são marcos de processos que começam antes deles e terminam depois da data escolhida, ou seja: podemos dizer que as decisões que levam à tomada de Constantinopla se iniciam antes dela, da mesma forma que a tomada corrobora para que outros fatos, 10 ou 50 anos depois, ocorram. Para organizar o tempo e os acontecimentos, optamos pela divisão temporal quadripartite, em relação aos períodos da historiografia, isto é: a divisão da história em antiga, medieval, moderna e contemporânea faz parte de uma escolha cronológica tradicional das escolas francesas metódica e dos Annales. Sua organização se deu entre o fim do século XIX e o início do XX, visto que foi nesse período que a história foi reconhecida como ciência e, portanto, disciplina de conhecimento. Para que isso ocorresse, era preciso que a história tivesse métodos, objetos de análise, problemáticas e teorias próprias. Esse 4 reconhecimento, como se sabe, ocorreu nas próprias instituições europeias e, assim, a divisão quadripartite, como é conhecida, tem na perspectiva de mundo ocidental o seu modelo. Sobre isso, Jean Chesneaux (1995, p. 94-95) afirma que essa escolha privilegia a Europa como referência, o que reduz o lugar dos povos não europeus nesse modelo de narrativa histórica. Portanto, nosso atual assunto, a Idade Moderna, diz respeito a um conceito historiográfico europeu. TEMA 2 – O CONCEITO DE IDADE MODERNA E DE MODERNIDADE O conteúdo da obra Historia universalis breviter ac perspicue exposita (Cellarius, 2011) estava relacionado ao contexto da Antiguidade, da Idade Média e a um novo período que, nesse caso, surgia em oposição ao medieval, caracterizado como uma época de trevas (Koselleck, 2006, p. 31). O conceito de Idade Moderna aparece, então, ainda em meados do século XVII, com Cellarius (2011), segundo o historiador alemão Reinhart Koselleck (2006). O objetivo primário de tal designação era romper qualquer relação estabelecida ou comparada com o período anterior, que para os intelectuais da época de Cellarius (2011) era uma Idade das Trevas ou, como a conhecemos, Idade Média. Para Koselleck (2006), as práticas políticas e humanistas do período já prometiam uma perspectiva de futuro que não era a cristã, prevista e relacionada à providência divina. Com esse apontamento ou expectativa é que Koselleck (2006) afirma que houve essa necessidade de tratar a Idade Média como um passado a ser esquecido. Junto a essas discussões, também é pertinente a crise do feudalismo, a qual é concomitante às mudanças capitalistas e à emergência de uma economia monetária, ao renascimento das cidades, aos novos olhares direcionados à natureza, a Deus e ao ser humano. Assim, é possível dizer que mundo moderno é diferente de modernidade, embora essas sejam ideias que se cruzam. Se, por um lado, o período moderno diz respeito ao tempo de transição entre o tempo medieval e o contemporâneo, marcado por dois acontecimentos, a Queda de Constantinopla, em 1453, e a Revolução Francesa, em 1789, ao mesmo tempo não é possível entender o período moderno sem a modernidade. Sobre isso, é importante ressaltar que há outras discussões pertinentes, acerca desses conceitos. Segundo Tzvetan Todorov (2019), esse período moderno – e sua modernidade – só foram possíveis pela ocupação da América, que alterou tanto o horizonte europeu como a própria concepção vigente até 5 então de mundo, para além do advento de uma ideia de modernização e de desenvolvimento tecnológico. Além disso, Enrique Dussel (1995) lembra que as categorias do que é ser moderno ou de modernidade são próprias de uma colonialidade do saber, que é europeia, em relação ao restante do mundo (incluindo a América), isto é: são termos regionais que foram apropriados de forma universal, a fim de sustentar um longo processo de dominação. Para Dussel (1995), a fim de pensar em outras possibilidades fora da Europa, é preciso pensar a categoria de transmodernidade, como um ato particular europeu, mas que transformou todo o mundo a partir da ocupação da América e da criação da própria ideia de Ocidente.De modo geral, o conceito de modernidade, no contexto moderno, para Dussel (1995) ou Todorov (2019), implica alterações materiais e subjetivas das relações de poder políticas, culturais, sociais e econômicas em todo o mundo, depois da ocupação da América. Essas transformações fizeram emergir outras noções de tempo e de sociabilidade no mundo ocidental. A fim de organizar essas mudanças é que historiadores, a partir dos séculos XIX e XX, demarcaram os acontecimentos supracitados. O mundo moderno – com sua modernidade – é um tempo de transição, cujas experiências culturais do renascimento estão intrinsecamente ligadas às mudanças econômicas e políticas e não, em menor intensidade, àquelas cristãs relacionadas a quase todas as instituições. Não é possível falar em moderno e modernidade, porém, sem considerar o renascimento e o capitalismo. As pessoas podem perceber que os novos produtos, culturas e sociabilidades são diferentes, mas entendê-los como partes de uma nova política e economia só começa a se tornar mais perceptível para os intelectuais com a discussão e divulgação das ideias iluministas e das mudanças decorrentes da Revolução Industrial. Esta configura a consolidação de um novo sistema econômico, que utilizava forças de produção, formas diferentes de se perceber e pagar pelo tempo, bem como se vinculava a uma nova ideia, de economia de mercado com vasta circulação de mercadorias. Nesse mesmo mundo convivem a escravidão e a servidão, ao menos até o fim da Revolução Francesa (na Europa), as práticas de encomienda e de assalariamento. 6 2.1 A consciência do próprio tempo Num tempo em que temos consciência sobre as diferenças entre os apresentados quatro períodos da história, não é possível dizermos – e nem deveríamos – que aqueles que viviam no período medieval o criticavam por ser medieval; afinal, como nos lembra Marc Bloch (2002), somos todos filhos do nosso tempo. Koselleck (2006, p. 31) afirma que é ainda no período humanista que os conceitos de Idade Média, Antiguidade e Idade Moderna começam a ser forjados; no entanto, tais conceitos são com mais força disseminados a partir do século XVII, segundo o historiador, quando as sociedades passaram a viver, no que entendemos como modernidade, conscientes, ao menos em parte, desse processo. Essa consciência não pode ser vista da mesma forma como entendemos a consciência que historiadores dos séculos XX/XXI têm sobre aquele tempo, mas como o modo como se percebiam sujeitos e percebiam as mudanças que vivenciavam os indivíduos daquele tempo, mesmo que continuidades também sejam comuns. Logo, o período moderno deu ao sujeito social uma noção de indivíduo para além do coletivo ou da providência divina, fazendo-o estabelecer uma outra relação para consigo mesmo e com o mundo em que vivia ou, como afirma Burckhardt (2013, p. 140), um ser espiritual de seu tempo, o qual estava em crise, em transição. 2.2 Da crise do feudalismo ao conceito de Idade Moderna Para Falcon e Rodrigues (2000), o período moderno também tem sua marca na transição do feudalismo para o capitalismo, considerando-se ainda as adaptações absolutistas e burguesas operadas a partir dos séculos XVI e XVII. Entre as mudanças ocorridas – que não são homogêneas e concomitantes – estão o aumento do fluxo das navegações, que geraram inovações como aparelhos auxiliares de navegação como a bússola, o desenvolvimento da cartografia, de novos produtos e culturas. Ressaltamos a participação, nas navegações, de diversos países, como a Holanda, a Espanha, a França e a Itália. Entre diversos acontecimentos que marcaram essa transição, podemos citar a peste negra. A necessidade de se buscar uma solução para a epidemia ocasionou uma maior busca por pesquisas e conhecimento sobre o corpo humano, o que aumentou o espaço de atuação e o debate sobre a ciência. É 7 importante destacar que essas mudanças se tornam maiores quando somadas a outras acontecimentos, como o advento do comércio ultramarino, a colonização da América, o renascimento e a Revolução Industrial, que deram juntos um sentido à modernidade e ao período moderno europeu. TEMA 3 – RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO Nesse contexto, é importante considerarmos o renascimento comercial e o urbano que ocorreram no Ocidente Europeu a partir dos séculos XIII e XIV. Além de se estudar em quais condições emergiram, é preciso considerar suas implicações sociais, especialmente pelo poder e destaque ocupado pela burguesia, logo posteriormente. Pouco antes do renascimento, muitas dessas cidades europeias, portuárias ou não, já sentiam que estava em curso um processo de urbanização e de criação de novas formas de comércio (Burckhardt, 2013, p. 221). Isso ocorreu depois de séculos em que essa região havia sido dominada em parte ou ameaçada pelo Império Turco-Otomano, que disputava forças com o Império Romano do Oriente, e das consequências da peste negra. Nesse sentido, uma maioria da população era camponesa, iletrada e não tinha acesso à cultura artística mais tradicional. Com o aumento dos burgos, aqueles centros de comércio que existiam dentro ou entre os territórios feudais, a necessidade de cunhagem de moedas se intensificou, bem como a criação de vilas em torno desses burgos. Isso estava aliado ao comércio baseado em trocas, no crédito e em moedas, decorrentes das muitas mercadorias que chegavam à Europa pelas novas rotas do Mediterrâneo. Tanto o comércio ambulante se tornou comum, fazendo com que surgisse uma nova classe, a burguesia; quanto as feiras livres se tornaram espaços e estilos próprios de fazer comércio. É importante ressaltar que isso ocorria em vários países da Europa, como nas cidades da região de Flandres ou da França, embora na Itália houvesse muita força no poder comercial de Veneza, Florença, Gênova, justamente por estarem no curso do circuito comercial marítimo do Mediterrâneo. Portanto, circulação de mercadorias, novas transações financeiras e novas associações de produção também surgiam. Além disso, após a crise do feudalismo, houve necessidade de renovação do ensino jurídico, naquele contexto, de mudanças nas feiras e nas cidades para atender a públicos maiores, dos viajantes até aqueles que se mudavam para as novas cidades. Regulações 8 de pesos e medidas do sistema comercial foram criados ou inovados, até pela procura por artigos diferentes (muitos de luxo), de especiarias, para os quais não havia padrão de consumo, anteriormente. A Itália, naquele período, era um conjunto de reinos independentes como os de Milão, Veneza, entre outros; e os chamados Estados papais, os quais reconheciam Roma como sua capital. Esses últimos permaneceram nessa configuração até o fim do século XIX, quando ocorreu a unificação da Itália, restando apenas o Estado do Vaticano como algo para além do Estado italiano. 3.1 Atividade mercantil no Mar Mediterrâneo A proximidade com o Mediterrâneo permitiu que a Itália fosse preponderante no comércio local e regional envolvendo de especiarias (temperos) a artigos de luxo, como perfumes, sedas e porcelanas. Isso intensificou, ali, a regulamentação de pesos, de medidas, a unificação e a cunhagem de moedas, bem como as práticas de usura, da busca pelo lucro, de empréstimo, de penhor e de câmbio. Boa parte dessas ações ocorriam nos núcleos populares novos das recentes institucionalizadas cidades, como nas feiras italianas. A partir dos séculos XV e XVI, avanços tecnológicos como a invenção da caravela, que navegava de forma mais rápida e segura, permitiu maior distanciamento do comércio das margens do Mediterrâneo, o que propiciou que italianos estendessem ainda mais o domínio e o número de interlocutores de suas práticas comerciais. A Rota da Seda, para o Oriente, despertou a atenção de navegantes profissionais e aventureiros. Da mesma forma, navegadoresde outras regiões orientais tornaram limitadas as formas de passagem do Oriente para o Ocidente, a fim de receberem mais impostos ou lucrarem mais com a venda dos produtos orientais. No entanto, outros países do Ocidente também se interessaram por essas rotas. Isso se deve à Tomada de Ceuta, em 1415, quando portugueses fundaram uma colônia que passou a servir de entreposto para si e para o seu comércio com outros países. Para tanto, portugueses instalaram no local um sistema de abastecimento de comida, de armas, de correio etc. Novas rotas, novas formações políticas e esse tipo de comércio e de dominação colonial incentivaram uma disputa entre os países europeus, num tempo em que o mercantilismo começava a se estruturar. 9 O comércio ultramarino ampliou a própria noção de comércio e, com as matérias-primas e os metais disponíveis em abundância nas colônias, países europeus, em especial a Inglaterra, puderam implementar a primeira fase da Revolução Industrial. Essas condições permitiram que o capitalismo se tornasse um sistema econômico e político muito diverso do que havia no mundo feudal. Nos séculos seguintes, o período moderno configurou-se como um novo tempo, em que todos os aspectos da vida social foram alterados, chegando ao que hoje chamamos de modernidade. TEMA 4 – HUMANISMO 4.1 O que é o humanismo? As transformações econômicas e políticas decorrentes do capitalismo comercial somente ocorreram porque houve também transformações no pensamento cultural no Ocidente Europeu. E um dos principais condicionantes dessas transformações foi o humanismo, o qual podemos definir brevemente como um sistema teórico gestado nas discussões universitárias europeias ainda na Baixa Idade Média, especialmente nos cursos de direito. Nesse contexto, o humanismo é entendido como todo conhecimento relacionado aos seres humanos e seus comportamentos e organizações: temas ligados à literatura, à filosofia, à medicina, à história, à matemática ou qualquer área de conhecimento tem, em alguma medida, como objeto compreender o ser humano. Importa ressaltar que apenas a historiografia do século XIX nomeia o humanismo como tal. A historiografia também faz observações sobre o humanismo, em uma perspectiva de aproximação com o mundo medieval, mesmo que quisesse dele se distanciar. Para Peter Burke (1999), a filosofia escolástica medieval permanece em certas observações depreciativas dos humanistas, bem como aponta que Lorenzo d’Médici pede a Giovanni Bentivoglio, então governante de Bolonha, uma cópia dos comentários de Jean Buridan à Ética de Aristóteles e a Leonardo da Vinci a obra de Alberto da Saxônia. Para Burke (1999), o que ocorre são inovações permeadas por influências medievais. A expansão do humanismo para a literatura e a arte se deu nos séculos XIV e XV, inicialmente na Itália e no meio universitário, e é apontada como uma das principais matrizes do renascimento, que se desenvolveu nos cursos de 10 direito e filosofia como uma doutrina de valorização do homem e do que é humano e tinha como características o enaltecimento do trabalho manual, da cultura greco-romana e da sua concepção de homem, a exaltação da natureza, da racionalidade e de uma arte, além de racional, também naturalista. Além disso, outra mudança é vinda dos comerciantes e banqueiros italianos, que começaram a financiar atividades relacionadas à arquitetura, tanto de construção quanto de restauração, que passaram a ser vistas como investimentos financeiros. Nesse espaço, objetos pictóricos, esculturais, arquitetônicos, teórico-filosóficos e literários típicos da cultura greco-romana vieram à tona e inspiraram artistas e escritores italianos, não só pelo seu valor monetário, mas por representarem um novo modelo de vida. Na literatura, os humanistas escritores tinham seus temas relacionados à Antiguidade como o tempo inspirador ideal. Entretanto, diversos também se aproximavam de perspectivas teológicas, afinal o humanismo não tinha por objetivo negar o cristianismo, mas dar centralidade ao conhecimento sobre o ser humano. Conforme Phélippeau (2013) Thomas Morus, teólogo anglicano inglês, criou a ideia de utopia e baseava-se também no conhecimento grego. Para ele, era possível um mundo com menos diferenças e com mais distribuição de renda. Morus defendia o conhecimento geral mais amplo para todos, incluindo o ensino de línguas, exceto o de latim, por considerá-lo medieval. No entanto, Morus (citado por Phélippeau, 2013) não negava a providência divina nem os dogmas da Igreja em que congregava. Assim, tal como Burke (1999) aponta a permanência de costumes medievais na modernidade, é possível dizer que, para Morus (citado por Phélippeau, 2013), há novas possibilidades de se pensar o mundo, a sociedade e o indivíduo em uma perspectiva humanista, mas com continuidades do mundo medieval. Como historiadores, devemos considerar que não é possível que homens de seu tempo, herdeiros de práticas e de tradições medievais, sejam totalmente inovadores. O que Burke (1999) afirma é que, entre continuidades, sempre há rupturas. É importante considerar ainda a influência bizantina – e também da cultura grega, devido aos conflitos italianos com otomanos – no território italiano. Não menos importante para o processo renascentista foi a invenção da imprensa na Europa – a revolução provocada por Gutenberg, que permitiu a divulgação de escritos e ideias do movimento humanista. Houve, nesse período, uma mudança curricular na maior parte das faculdades de direito, entre elas a de Bolonha, na 11 Itália, com base no que chamamos de studia humanitatis, cujo objetivo central era a valorização do ser humano, do trabalho manual e da cultura greco-romana clássica, bem como a definição do que é um ser humano, de qual é a natureza dessa humanidade. 4.2 O ambiente universitário e o desenvolvimento do humanismo Muitos cursos ou faculdades surgiram no período moderno, tais como de medicina, filosofia, teologia e letras, além de novas disciplinas como Poesia, História, Matemática, Eloquência, nesse processo de reforma curricular do studia humanitatis que culmina no início do humanismo. Os humanistas seriam os futuros docentes em escolas e universidades do período. Studia humanitatis é, portanto, uma das inovações do período humanista. Antes disso, no medieval, era comum que as disciplinas (ou conhecimentos) fossem organizados sob duas denominações: Trivium, que reunia disciplinas como Gramática, Retórica, Dialética; e Quadrivium, conjunto com Aritmética, Geometria, Astronomia e Música. Com a influência do humanismo, por volta do século XV essas disciplinas são reorganizadas com focos diferentes. Entre as novas disciplinas, a Poesia aborda elementos subjetivos e afetivos; a Filosofia Moral, os costumes e a formação moral; a História surge associada à oratória política. Essa reorganização não implica, por exemplo, simplesmente esquecer o latim, considerada a língua central eclesiástica do período medieval. Os humanistas entendiam, naquele período, que o latim como língua deveria ser reavivado como em sua origem, a fim de compreender os seus princípios e significados esquecidos ou escondidos pelos interesses católicos. Para além do que literalmente estava escrito (ao contrário da ideia do latim como língua morta, uma perspectiva medieval), para os humanistas a releitura do latim permitia entender as suas criações literárias e estéticas, os seus princípios humanos e, por fim, a experiência e a subjetividade presentes nos temas estudados e discutidos. Dessa forma, o humanismo se relaciona com o renascimento, porque é por essa reorganização e pela centralidade dos escritos em latim relidos pelos humanistas que o processo dará destaque à cultura grega clássica. Trata-se de uma possibilidade de fazer renascer os aspectos mais bonitos de uma épocapara aqueles que viviam o período moderno, além do latim ser uma língua antiga e partilhada por boa parte do que se entendia por humanidade nos séculos XIV e XV. 12 Outra área em que a Itália tem destaque é a do direito. A universidade mais antiga da Europa tem sede na cidade de Bolonha, no norte da Itália, datada de 1088. O direito civil e o canônico deram origem à faculdade, que era separada do que se entendia por teologia na época e não tinha um caráter nacionalista. Mais que isso, a faculdade de direito era especialista no direito romano, cujos fundamentos havia resgatado e passado a debater com base em direitos civis, individuais e comuns. Entre seus objetos de estudo estava o Código de Justiniano, do século VI, que foi sistematizado e se tornou justamente um modelo que se alastrou por boa parte da Europa, com base nas fontes geradas pela Universidade de Bolonha. Além desses aspectos, o ensino do direito na Universidade de Bolonha se dava de uma forma filosófica, ou seja, as palavras que compunham os decretos e normas não eram discursadas, mas analisadas em seus sentidos jurídicos. Esse tipo de docência diferia de uma prática hierárquica e engessada como a veiculada pela Igreja, e estimulou o que mais tarde viria a ser uma das máximas defendidas pelas universidades: a de liberdade de cátedra ou autonomia universitária. TEMA 5 – O CONCEITO DE RENASCIMENTO O termo renaissance foi utilizado pelo historiador francês Jules Michelet (1855) para representar um acontecimento ligado à França do fim do século XV, época em que o seu país invadiu os Estados italianos. Para Michelet (1855), o renascimento é o resultado de um esforço intelectual e artístico para harmonizar a arte e a razão, proporcionando a reconciliação do belo com o verdadeiro. O que o historiador está afirmando no século XIX é que o renascimento evidencia a existência de uma relação intrínseca entre o pensamento humanista e os novos comportamentos estéticos e sociais europeus, os quais, além de frisar a revalorização da arte em parte do continente, também formaram princípios filosóficos e literários próprios. Se Jules Michelet (1855) foi o primeiro a usar o termo para se referir à França do século XVI, quando o renascimento estava se expandindo para outros países europeus, Jacob Burckhardt (2009) afirma que o renascimento foi um processo em que a consciência humana reviu seus valores sobre a vida e o mundo a partir do momento que passou a buscar a beleza e a perfeição com base na razão, da Itália para outras regiões da Europa. Para ele, a Idade Média 13 tinha as duas faces da consciência, objetiva e subjetiva, cerradas por um véu, que mantinha a fé junto a preconceitos e ilusões que não permitiam que o homem compreendesse o mundo como ele naturalmente era. Nesse sentido, a Itália teria rasgado esse véu para entender mais objetivamente como as coisas eram construídas, ao passo que o homem também se tornou um ser consciente e espiritual de seu tempo (Burckhardt, 2013, p. 140). Assim, quando Burckhardt (2013) afirma que o renascimento se trata também de uma revisão, é possível pensar em um exemplo: A criação de Adão, uma pintura de Michelangelo de 1511, traz Deus, envolto em uma nuvem cujo formato é de um cérebro, buscando tocar Adão (Figura 1). Figura 1 – A criação de Adão (1508-1515), de Michelangelo Crédito: Michelangelo/CC-PD. A pintura de Michelangelo faz parte de uma trilogia de pinturas e se encontra dentro da Capela Sistina, situada nos edifícios do Vaticano e pertencente ao papado. Assim, causa espanto a ideia de um cérebro estar relacionado a Deus, visto que o desenho é sinônimo de conhecimento. É possível se questionar se a razão emana de Deus? Ou os temas são bíblicos apenas por estarem dentro de uma igreja e serem uma encomenda do Vaticano? O que se pode entender é que o renascimento é uma arte inspirada pela razão e também pela fé, e que o mundo moderno não é aquele que deixa tudo para trás, mas que se posiciona e critica a hierarquia e, em especial, as consequências causadas pela falta de autonomia e liberdade do próprio conhecimento. 14 O renascimento pode ser analisado como um processo que fez renascer a arte grega clássica ou ainda rememorar as práticas e a cultura do período romano. Jacob Burckhardt (2013, p. 139-140) sugere que os povos que compunham a Península Itálica, quando formaram seus Estados modernos, viram em suas tradições antigas uma forma de dar sequência à sua história, porque vislumbravam nesse período uma fase grandiosa. Mas, mais importante que determinar a inspiração que italianos tiveram para liderar o acontecimento que foi o renascimento, é crucial entender que há nele uma renovação dos princípios humanistas em todas as suas possibilidades de análise e de formas estéticas. O renascimento e sua arte são mais que pintura, literatura etc.; são uma estratégia de representar subjetividades e perspectivas de disputas políticas e culturais europeias do período em que se estabelece. NA PRÁTICA São muitos os produtos que passaram a fazer parte da realidade de regiões da Europa com o crescimento e o incentivo às viagens comerciais pelo Mediterrâneo e pelo Oriente. Com essas viagens e produtos, também chegaram saberes e técnicas ao Ocidente, o qual vivenciou o renascimento comercial e urbano e se transformou, entre os séculos XIII e XV. Para conhecer mais sobre especiarias, rotas comerciais e transformações do período moderno, você pode pesquisar e encontrar alguns dos diversos produtos que chegaram à Europa Ocidental por meio das rotas do comércio marítimo e terrestre, caminhos comuns a partir do século XIII. Após fazer esse levantamento, elabore um mapa conceitual mostrando a origem desses produtos, os locais onde eram comercializados, como eles chegavam à Europa, quais eram seus destinos e como eram consumidos. Como exemplos, temos, entre esses produtos: algodão e especiarias da Índia (temperos e condimentos como cravo, canela, noz- moscada e pimenta); seda, ouro e porcelana da China; tapetes, seda, prata da Península Arábica, entre outros. Para essa pesquisa, indicamos o site: <http://www.diercke.com> (Dierche International Atlas, [S.d.]). FINALIZANDO Retome, agora, os principais tópicos abordados nesta aula: • Conceito de Idade Moderna 15 • Mudanças econômicas e sociais ocorridas entre os séculos XIII e XV no Ocidente Europeu • Desenvolvimento do pensamento humanista • Conceito de renascimento 16 REFERÊNCIAS BLOCH, M. Apologia da história: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. BURKE, P. O renascimento italiano: cultura e sociedade na Itália. São Paulo: Nova Alexandria, 1999. BURCKHARDT, J. A civilização do renascimento italiano. Lisboa: Editorial Presença, 2013. _____. A cultura do renascimento na Itália: um ensaio. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. CELLARIUS, C. Historia universalis breviter ac perspicue exposita. Charleston: Nabu Press, 2011. DIERCKE INTERNATIONAL ATLAS. Brunsvique, [S.d.]. Disponível em: <https://www.diercke.com/>. Acesso em: 27 ago. 2021. DUSSEL, E. The Invention of the Americas. Nova York: Continuum, 1995. FALCON, F. J. C.; RODRIGUES, A. E. M. 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