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E A questão criminal

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Prévia do material em texto

Eugenio Raúl Zaffaroni
A questão
criminal
Tradução
Sérgio Lamarão
Revisão da tradução
Antonio Almeida
Editora Revan
Copyright © 2013 by Editora Revan
Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios
mecânicos, eletrônicos ou via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
Revisão
Roberto Teixeira
Antonio Almeida
Capa
Sense Design & Comunicação
(Com ilustrações de Rep)
Impressão e acabamento
(Em papel off-set 75 g. após paginação eletrônica,
em tipos Garamond 11/13)
Divisão Gráfica da Editora Revan
Produção de ebook
S2 Books
CIP-BRASIL. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
Z22q
Zaffaroni, Eugenio Raúl, 1940-
A questão criminal / Eugenio Raúl Zaffaroni; tradução Sérgio Lamarão. – 1. ed. – Rio de Janeiro : Revan, 2013.
il.; 320p.; 23 cm
Tradução de: La cuestión criminal
ISBN 978-85-7106-504-8
1. Criminologia. 2. Direito penal - Brasil. 3. Crimes e criminosos. I. Título.
13-04452 CDU: 343.2
22/08/2013 26/08/2013
Ilustração 1
A tradução dos textos inseridos nas ilustrações está na página "Tradução de textos das ilustrações".
1. A academia, os meios de comunicação e os mortos[1]
Em qualquer lugar da superfície deste planeta fala-se da questão criminal. É quase a
única coisa de que se fala – em concorrência com o futebol, que é arte complexa –, embora
poucos pareçam se dar conta de que machucamos muito o planeta e podemos lhe provocar
um espirro que nos projete violentamente a quem sabe onde (para não usar alguma
expressão pouco acadêmica). Fala-se, diz-se, com esse “se” impessoal do palavrório. E o
mais curioso é que quase todos acreditam ter a solução ou, pelo menos, emitem opiniões.
Claro que se fala ao compasso de julgamentos assertivos em tom sentenciador, emitidos
pelos meios de comunicação de massa, estes às vezes nas mãos de grandes corporações
transnacionais, enredadas com outras que disputam o poder aos Estados, bastante
impotentes, do mundo globalizado.
É indispensável escutar o que se fala para não se ficar falando sozinho, como costuma
acontecer no mundo acadêmico. E em nosso país, e nos outros por onde às vezes me
desloco, fala-se da questão criminal como de um problema local. As soluções passam por
condenar um ou outro personagem ou instituição, mas sempre falando de um problema
local, nacional, estadual, às vezes quase municipal.
Poucos se dão conta de que se trata de uma questão mundial, na qual se está jogando o
âmago mais profundo da forma futura de convivência e talvez, inclusive, do próprio destino
da humanidade nos próximos anos, que pode não estar isento de erros fatais e irreversíveis.
Se ficamos no plano da análise local, perdemos o mais profundo da questão, porque
olhamos as peças sem compreender as jogadas do tabuleiro de um xadrez macabro, no qual
se joga, em definitivo, o destino de todos.
Quando nos limitamos a esses julgamentos, ficamos presos à Doña Rosa
http://es.wikipedia.org/wiki/Bernardo_Neustadt. É claro que se deve resolver o problema da
Doña Rosa, mas a armadilha do velho comunicador dos festivos anos 1990 consistia em nos
encerrar no problema de Doña Rosa. Devo esclarecer que sempre me ofendi com aquela
menção a Doña Rosa, por me lembrar de minha avó materna, que se chamava Rosa e vivia
em um bairro – como eu sempre fiz – e pensava muito mais e melhor do que o personagem
de ficção com o qual o artífice da comunicação dos anos irresponsáveis sintetizava sua
argumentação enganosa.
Quando se abriu a possibilidade de escrever esses suplementos, confesso que me senti
seriamente desafiado. Em todo o mundo acadêmico, os dedicados ao tema observam e
criticam o fenômeno da centralização da questão criminal, e o fazem, inclusive, com
diagnósticos muito bons. Nenhum dos conceitos expostos nesses suplementos foi concebido
no plano científico por minha exclusiva criatividade, longe disso.
Porém, se tudo fica no mundo acadêmico, parece que não temos capacidade de
comunicá-lo ou, melhor dizendo, parece que a comunicação é contaminante, que a pureza
científica deve ser mantida à margem da comunicação, que perdemos nível acadêmico
quando pretendemos explicar algo a isso que hoje chamam o público, sem que nos
apercebamos de que o público somos nós quando nos dói o fígado, ou quando saímos para
comprar pães.
É claro que o pensamento acadêmico, universitário, é importante, mas creio que chegou
a hora de comunicá-lo. As borlas doutorais, as togas e os punhos (esclareço que se assim se
denomina as extremidades ornadas das mangas das togas dos catedráticos) de pouco servem
quando se fala do que todos sabem, segundo o que lhes dizem as grandes corporações
midiáticas do mundo, incluindo muitos políticos – oportunistas alguns, propulsores
conscientes de um novo totalitarismo outros, amedrontados e tremendo diante das
corporações midiáticas os demais.
Não estamos diante de fenômenos apenas locais, nacionais, estaduais nem municipais,
mas sim diante de problemas que podemos resolver apenas em parte nesses níveis, e que
integram uma trama mundial. Insisto. Se não compreendemos essa trama, moveremos
sempre mal as peças, perderemos partida após partida. Devemos fazer o maior esforço para
impedir que isso aconteça, porque, no fundo, estamos diante de uma encruzilhada
civilizatória, uma opção de sobrevivência, de tolerância, de coexistência humana.
Vivemos um momento de poder planetário que é a globalização, que sucede ao
colonialismo e ao neocolonialismo. Cada momento, nesse contínuo do curso do poder
planetário, foi marcado por uma revolução: a mercantil do século XIV, a industrial do século
XVIII e, agora, a tecnológica do século XX, que se projeta para o século atual. Esta última
revolução, a tecnológica, é fundamentalmente comunicacional. Se não compreendermos isso
e nos deixarmos ficar em nossos guetos acadêmicos, o serviço que prestarmos será muito
pobre.
Há um mundo que as pessoas comuns não conhecem, que se desenvolve nas
universidades, nos institutos de pesquisa, nas associações internacionais regionais e
mundiais, nos foros e nas pós-graduações, com uma literatura imensa, que alcança
proporções siderais, de dimensão tamanha que ninguém pode dominar individualmente. É o
mundo dos criminólogos e dos penalistas. As corporações os ignoram e quando lhes cedem
algum espaço, os técnicos se expressam em seu próprio dialeto, incompreensível para o
resto dos humanos.
O desafío consiste em abrir esses conhecimentos, não para pontificarmos a partir da
ciência com a solução, nem para sermos os iluminados que, corrigindo o velho Platão,
pretendemos nos colocar como um criminólogo-rei, mas sim para mostrarmos o que se
pensa e o que se sabe até agora. E também para fazer a autocrítica do que dizemos, porque,
certamente, tampouco temos uma história e uma genealogia feitas somente de prestígio,
dado que, muitas vezes, nossos colegas legitimaram o ilegitimável até limites inacreditáveis.
Imaginemos o que aconteceria caso se procedesse com o mesmo critério em outros
âmbitos, como por exemplo, no da medicina. Se, numa mesa de bar, alguém defendesse a
teoria dos humores, é provável que os demais o olhassem com ironia. Porém, como a
liberdade é livre, é claro que qualquer um pode continuar defendendo a teoria dos humores
na mesa de bar; ninguém discute esse direito à expressão.
No entanto, seria grave se a teoria dos humores fosse divulgada como discurso único
pelos meios de comunicação, se se desprestigiasse ou menosprezasse a quem dissesse algo
diferente, se os pesquisadores médicos e biólogos ficassem isolados com seus discursos em
seus institutos, se a autoridade sanitária e os políticos que fazem as leis acreditassem na
opinião do bar e não na que os médicos poderiam dizer, ou, pior ainda, se os próprios
médicos fizessem calar a quem negasse a teoria dos humores porque isso lhes gera um
perigo político. É óbvio que o índice de mortalidade subiria de forma alarmante.
Pois bem, omesmo acontece com a questão criminal: aumentam os mortos no mundo.
Afirmam-se opiniões mais ou menos estranhas, equivalentes à teoria dos humores na
medicina; os políticos e as próprias autoridades difundem ou aceitam essas incoerências e,
lamentavelmente, também aumentam os índices de mortalidade.
Eu não estava em 1811 quando se suprimiram as togas no judiciário – nem sequer na
reforma universitária de 1918, pois não sou nenhum fenômeno da biologia –, mas sei que
não usamos togas nos tribunais nem nos recintos universitários nacionais desde muito antes
que me pusessem a primeira fralda. Contudo, as togas continuam nos pesando e isso não é
admissível na hora da comunicação. Se o campo de batalha é comunicacional, devemos
travar a luta também nesse terreno. Este é o grande desafio. Por isso, devemos arregaçar as
mangas e sair ao campo em que nos desafiam.
O cidadão comum deve saber que há um mundo acadêmico que fala disso, da questão
criminal, que, embora não tenha nenhum monopólio da verdade, pensou e discutiu umas
tantas coisas, que se equivocou muitíssimas vezes e muito feio, mas também aprendeu com
esses erros.
Os médicos também se equivocaram muitíssimas vezes, desde os tempos em que, para
curar as feridas, passavam unguentos sobre a arma que havia causado o dano, até os tempos
mais próximos, em que, para curar os doentes mentais, lhes enfiavam agulhas na cabeça,
mas nem por isso nos colocamos nas mãos dos curandeiros quando nosso apêndice fica
inflamado.
 
Ilustração 2
 
É bem verdade que há diferenças entre a medicina e a ciência penal e criminológica, que
consistem em que esta última trata sempre do poder, o que não é alheio à medicina, mas
pelo menos nesta a relação não é tão linear. Também é certo que inclusive o conceito de
ciência depende do poder que decide quem tem esse status. Por isso, quando se fala de
ciência penal ou de ciência criminológica, pode-se colocar em dúvida o status de ciência,
mas também se diz que a medicina não é uma ciência, e sim uma arte.
Como o mundo acadêmico também se equivoca, tampouco é seguro que o que nele se
fala seja a realidade. A questão da realidade, neste como em tantos outros âmbitos, é algo
muito problemático, em particular quando vivemos numa era midiática, em que tudo se
constrói.
Não vou me meter numa questão que se discute desde os albores da filosofia, porém o
certo é que, na nossa época, o problema da realidade chegou a um ponto tal que não faltou
quem afirmasse que tudo é construído, que não há onde se agarrar.
Mas Baudrillard escrevia na França, não sei se tomava algum aperitivo adocicado em
uma calçada de Paris, e fazia isso antes de Sarkozy e quando ninguém pensava na filha de
Le Pen à frente das pesquisas. Nós estamos aqui, no fundo do mapa ou na parte de cima,
depende de onde se olhe (o norte acima é uma mera convenção; os neozelandeses, certa
feita, fizeram um mapa com o sul acima), porém, por sorte, longe de latitudes hoje mais
perigosas, ainda que com todos os inconvenientes do subdesenvolvimento.
Nós nos achamos, por um lado, com a publicidade midiática das corporações mundiais e
seu discurso único de repressão indiscriminada para com os setores mais pobres ou
excluídos; por outro, com o discurso dos acadêmicos, isolados em seus guetos e falando em
dialeto.
Se, junto com o aperitivo, engolimos as batatinhas fritas e os amendoins e pensamos que
não há nada que possa nos dar um gostinho de realidade, estamos perdidos. Eu não
pretendo ser localista e afirmar que, quando digo nós, me refiro, agora, somente aos latino-
americanos, mas sim que em poucos anos se fez mais que evidente que se não há um
mínimo gostinho de realidade nessas questões, também os franceses estariam perdidos com
Sarkozy e a jovem Le Pen, para não falar dos estadunidenses e seu Tea Party (quando era
pequeno, me lembro que “party” era algo muito mais divertido).
Perón dizia que a única verdade era a realidade, mas as batatinhas fritas e os amendoins
de Baudrillard nos dizem pouco menos que a realidade não existe. Será que isso se aplica à
questão criminal? Não, pelo menos aqui – e não me meto nas outras coisas que dizem
respeito aos filósofos – isso não se aplica. Se eu tivesse perguntado qual é a realidade da
questão criminal à minha avó Rosa – que, insisto, raciocinava muito melhor do que o
comunicador que inventou o personagem –, ela me teria respondido, com toda sabedoria,
que a única realidade nisso tudo são os mortos.
E é isso mesmo, sem dúvida: a única verdade é a realidade, e a única realidade na
questão criminal são os mortos. Não qualquer morto, é claro, porque, de acordo com o que a
estatística demonstra, há quase um morto por pessoa. Como, todavia, alguns ainda não estão
mortos, há uma pequena diferença, o que levou o imortal poeta português Fernando Pessoa
a afirmar que o homem é um cadáver adiado. Evidentemente que não recomendo sua leitura
em casos de bipolaridade (me parece que antes se chamava de alterações ciclotímicas,
maníaco-depressivos melancólicos, agora é mais complicado, mas tampouco me meto em
questões diagnósticas).
Concretamente, o certo é que todos os vivos – isto é, os que vivem – somos adiados, mas
há alguns aos quais não se adia o suficiente, porque são mortos. Estes ficam mudos, porque
costuma se afirmar, peremptoriamente, que os mortos não falam, o que é verdade em
sentido físico, mas, sem dúvida, os cadáveres dizem muitas coisas que esta sonora afirmação
oculta. Vejamos: às vezes chegam a nos dizer até quem matou (pelas pistas que o autor
deixa no cadáver), mas o cadáver nos diz sempre que está morto. Esta é a mais óbvia
palavra dos mortos: dizer-nos que estão mortos. Por isso, quando se afirma que não há
pretexto algum para a realidade na questão criminal, o que na verdade fazemos é emudecer
os mortos, ignorar que nos dizem que estão mortos.
Na minha complicada vida, quando muito jovem, inspecionava hospitais municipais e
conheci algumas pessoas que falavam com os mortos nos necrotérios (com certeza elas
tinham alguns neurônios fora de lugar). Embora não duvide de minha saúde mental, não me
dedico a isso agora, mas a algo bem diferente: trata-se de perguntar que cadáveres
antecipados há nos necrotérios, nas fossas comuns, no mar ou quem sabe onde.
Por isso, o que vou explicar a vocês tem três etapas fundamentais: o que nos foi sendo
dito ao longo da história e o que nos diz hoje em dia a academia (as palavras dos
acadêmicos), o que nos dizem os meios de comunicação (as palavras dos meios de
comunicação) e o que nos dizem os mortos (a palavra dos mortos). Depois veremos se
podemos chegar a alguma conclusão que, da minha parte, adianto: o conjunto nos
recomenda antes de tudo prudência, cautela no uso do poder repressivo, muita cautela.
Este é o programa dessa exposição em sua síntese mais acabada: saber o que nos dizem
os acadêmicos, os meios de comunicação e os mortos. Como posso arregaçar as mangas da
toga, mas não ficar sem ela – porque cada um tem sua deformação profissional dificilmente
controlável, e nunca totalmente anulável –, começarei pelas palavras da academia.
Para entrar no tema, porém, devo explicar algumas questões prévias sem as quais não se
comprende quase nada dos dialetos acadêmicos, porque tampouco há um único dialeto na
questão criminal. Não só há vários dialetos acadêmicos, como também não costumam
entender-se entre si e, mais do que isso, não é raro que se detestem reciprocamente, embora
às vezes não o façam em voz alta. De toda forma, as imputações recíprocas são os temas
preferidos dos congressos e seminários, os matizam e lhes dão sabor.
Mais ainda: quando alguém passa de um para outro grupo e consegue dominar o outro
dialeto, é considerado um traidor ou um perdido, que deixou de ser cientista.
Às vezes a agressividade alcança níveis cômicos, mas que podem se tornar dramáticos,
como quando nos anos setenta do – por sorte – século passado, segundo a posição do dolo
na teoria do delito, que então pretendia descobrir subversivos. Vocês sabem qual é a posição
do dolo no delito? Podemficar tranquilos, viver os anos de Matusalém sem sabê-lo e sem que
sua existência se altere minimamente, mas o certo é que há quatro décadas a coisa podia
terminar muito mal.
Longe de constituir uma crítica negativa, esta é a pura descrição da realidade do mundo
acadêmico por dentro e, da minha parte, creio que é um dado positivo, apesar de seus
inconvenientes, porque demonstra o quanto o debate é vivo, a paixão que se coloca, a
intensidade das discussões.
Tampouco se trata de uma característica contemporânea, nada disso: foi sempre assim.
A história, a tradição oral, os relatos divertidos dos mais velhos e o que vivemos diretamente
nos confirmam. Quem participa desse mundo não se aborrece, posso lhes assegurar que
permite conhecer personalidades notáveis, gente com uma capacidade de trabalho e uma
sensibilidade e inteligência tais que, se se dedicassem a algo com maior rating, teriam se
sobressaído em qualquer âmbito.
Mas não se alarmem. Meu propósito é traduzir esses dialetos a uma linguagem
compreensível para os mortais. Espero ter êxito e que não me aconteça o que acontece a
alguns tradutores, que terminam escrevendo espanhol com a estrutura da língua original.
Devo confessar que me sinto muito mais seguro por ter o cartunista Rep a meu lado.
Dentro de pouco lhes explicarei a função da arte na criação de estereótipos, e creio que é
necessário combater no mesmo campo para desfazer essa construção. Por outra parte, estou
seguro de que os desenhos de Rep perdurarão muito mais do que aquilo que eu digo.
Quando há pouco li que Ferro havia falecido,[2] voltaram à minha memória Langostino,
Bólido, o fantasma Benito, Tara Service, o Livro de Ouro de Patoruzú. Eles estão vivos em
mim desde a infância, mas faz tempo que os que escreviam sobre a questão criminal
naqueles anos são só história.
2. Quem sabe disso?
Voltando, porém, ao programa das três palavras (da academia, dos meios de
comunicação e dos mortos), se queremos começar pelas da academia, a primeira coisa que
devemos saber é a quem perguntar. Quem se ocupa academicamente da questão criminal? O
primeiro movimento será olhar para a Faculdade de Direito. Ali estão e dali são os
penalistas. Sabem direito penal. Sem dúvida que é algo que tem a ver com a questão
criminal. Mas até que ponto?
A ideia de que o penalista é o mais autorizado para proporcionar os conhecimentos
científicos acerca da questão criminal é uma opinião popular, mas não científica. Nem de
longe basta saber direito penal para poder opinar com fundamento científico acerca da
questão criminal, ainda que, se o conhece bem, pode fazer muito para resolver numerosos
aspectos fundamentais na prática, mas isso é outra coisa.
É necessário distinguir dois âmbitos do conhecimento que são muito diferentes, embora
costumem ser confundidos: o do penalista e o do criminólogo, ou seja, o direito penal, por
um lado, e a criminologia, por outro.
Esclareço desde já que não se dão nada bem, mas não se podem separar, e ainda que
declarem estar divorciados, são como esses casais que se excitam discutindo e terminam
como todos nós sabemos. Nos casais é patológico, claro, mas no que concerne ao direito
penal e à criminologia talvez seja um pouco menos.
O que fazem os penalistas? Antes de tudo são juristas, advogados. O direito se divide em
ramos: civil, comercial, trabalhista, administrativo, constitucional etc., e cada dia se
especializa mais e mais. Hoje não há quem lide com todo o direito em profundidade, como
não há médico algum que domine todas as especialidades. O direito penal é um desses
ramos, que se ocupa de trabalhar a legislação penal, para projetar o que chamamos de
doutrina jurídico-penal, isto é, para projetar a forma em que os tribunais devem resolver os
casos de maneira ordenada, não contraditória.
De maneira mais sintética, eu diria que a ciência do direito penal que se ensina nas
cátedras universitárias de todo o mundo se ocupa de interpretar as leis penais de modo
harmônico para facilitar a tarefa dos juízes, promotores e defensores. Seu trabalho consiste
basicamente na interpretação de textos com um método bastante complexo, que se chama
dogmática jurídica, porque cada elemento em que a lei é decomposta deve ser respeitado
como um dogma, visto que, do contrário, não interpretariam a lei, mas sim a criariam ou a
modificariam.
A tarefa do penalista é fundamental para que os tribunais não resolvam arbitrariamente
o que lhes for conveniente, e sim conforme uma ordem mais ou menos racional, ou seja,
republicana e algo previsível. Não vou discutir agora se a dogmática jurídica do penalista
consegue ou não esses objetivos. Tampouco vem ao caso nem interessam muito a vocês os
detalhes dessas construções.
A fonte principal da ciência jurídico-penal de hoje, isto é, da dogmática jurídica aplicada
à lei penal, é a doutrina dos penalistas alemães. Os ingleses têm sua própria construção, que
pouco influi na nossa. Os franceses fizeram muito pouca dogmática jurídica, estão muito
próximos da velha interpretação literal da lei (o que se chamava exegese). Os italianos estão
bastante próximos aos alemães, ainda que com uma tradição penal muito sólida e antiga. Os
suíços e austríacos seguem diretamente as escolas alemãs. Os espanhóis também o seguem,
sem dúvida alguma, quase mais do que nós. Há muitos anos que as escolas alemãs são
acompanhadas de perto em toda a América Latina. O penalismo estadunidense é mais ou
menos compreensível, na medida em que segue o modelo inglês, mas quando se afasta deste
é bastante limitado.
Conforme os princípios da ciência jurídica alemã, os penalistas constroem um conceito
jurídico do delito que se chama teoria geral do delito. As discussões sobre essa teoria são
praticamente intermináveis, mas se trata, em geral, de uma ordem prioritária conceitual para
estabelecer frente a uma conduta se ela é ou não delitiva com vistas a uma sentença.
Para isso, diz-se que o delito é uma conduta típica, antijurídica e culpável. Ou seja, antes
de tudo deve ser uma ação humana, isto é, dotada de vontade. Em segundo lugar, deve estar
proibida pela lei, ou seja, cada tipo é a descrição que a lei faz de um delito: matar, apoderar-
se de uma coisa móvel alheia etc. Em terceiro lugar, não deve ser permitida, como acontece
no caso de legítima defesa ou de estado de necessidade. Por último, deve ser culpável, ou
seja, reprovável ao autor: não o é quando este não sabia o que fazia, estava louco
(inimputável) etc.
Essa é a estrutura básica sobre a qual se discute, respeitando certos princípios
constitucionais como, por exemplo, a legalidade, que impede que a pena seja imposta por
algo que não está estritamente descrito em uma lei anterior ao fato, ou a lesividade, que
requer que em todo delito haja um bem jurídico lesionado ou colocado em perigo.
Como se pode ver, o delito dos penalistas é uma abstração que se constrói com um
objetivo bem determinado, que é chegar a uma sentença racional ou pelo menos razoável.
Na realidade social, porém, esse delito não existe, porque no plano do real existem
violações, homicídios, fraudes, roubos etc., mas nunca o delito. Em outros tempos, os
penalistas também projetavam os códigos e as leis penais, porque lhes era dada muitíssima
importância e se considerava, com razão, que eram um apêndice da Constituição, porque
impunham limites à liberdade.
Em nosso país, para não irmos mais longe, os códigos penais foram projetados em 1866,
por Carlos Tejedor, que foi governador da província de Buenos Aires e não chegou a ser
presidente da República em lugar de Roca porque protagonizou a última guerra civil em
1880, e por Rodolfo Moreno (filho) em 1917, que também foi governador da província e pré-
candidato a presidente nas eleições de 1944, tendo sido derrotado no interior do Partido
Conservador por Patrón Costas, o que precipitou o golpe de 1943.
Nesse meio tempo houve vários projetos, e o mais importante foi o de 1891, obra dos
fundadores de nossa Faculdade de Filosofia e Letras, que eram os jovens brilhantes da
época: Rivarola, Piñero eMatienzo. Os três foram importantes personalidades públicas e um
deles, Matienzo, foi candidato à vice-presidência da República.
A trajetória jurídica, intelectual e política desses projetistas prova que levavam muito a
sério as leis penais, o que hoje mudou completamente, pois agora quem as elabora são os
assessores dos políticos, conforme a agenda que lhes marcam os meios de comunicação de
massa.
Por isso, hoje, tampouco os penalistas fazem as leis penais, ocupando-se quase
exclusivamente do que lhes conto, quer dizer, da sua interpretação, na forma em que
assinalei.
Logicamente, vocês se perguntarão o que é que esses senhores sabem acerca da
realidade do delito, do que se passa no mundo em que todos nós vivemos, do que fazem os
delinquentes, os policiais, os juízes, as vítimas, os empresários midiáticos, os jornalistas etc.
Simplesmente, o mesmo que qualquer vizinho que lê os jornais e assiste televisão, porque o
penalista se ocupa da lei, não da realidade.
Isso, que pode chamar a atenção de quem não se tenha inteirado antes deste mundo, é
sabido e inclusive teorizado. Desde jovem, quando se entra na Faculdade de Direito,
explicam que ali se estudam relações de normas, de dever ser e não de ser.
Há mesmo toda uma corrente que pretende um corte radical entre os estudos do dever
ser e do ser. São os neokantianos, que dividem os conhecimentos entre ciências da natureza
e da cultura. O direito seria uma ciência da cultura e o que acontece no mundo em que
vivemos todos os dias seria matéria das ciências da natureza. Isso lhes parece um pouco
esquizofrênico? É um pouco, com certeza.
A divisão foi tão taxativa que permitiu que a grande maioria dos penalistas dos tempos
do nazismo viesse tranquilamente desde o Império Alemão até o pós-guerra, passando por
cima da República de Weimar, dos crimes da ascensão do nazismo, dos massacres, do
genocídio, da guerra, sem inteirar-se dos milhões de cadáveres. Tudo isso pertencia às
ciências da natureza, que não lhes dizia respeito.
Para que vocês se tranquilizem, direi que hoje nem todo o direito penal segue este
caminho, embora não faltem nostálgicos que tentam se entrincheirar nas normas. De
qualquer maneira, isso é questão do direito penal, ou seja, do que não nos ocuparemos aqui
enquanto tal, mas sim precisamente do que pertence ao mundo do ser, no qual vivemos
todos os dias.
Disso se ocupa precisamente a criminologia, para onde convergem muitos dados que
provêm de diferentes fontes – da sociologia, da economia, da antropologia, das disciplinas
psi, da história etc. –, que tentam nos responder o que é e o que acontece com o poder
punitivo, com a violência produtora de cadáveres etc.
É bem verdade que esta palavra da academia também esteve carregada de palavras
obscenas (ou pelo menos são elas que temos vontade de dizer às vezes), e aconteceu em
diferentes etapas. Primeiro perguntou-se pelas causas do delito, o que se chamou de
criminologia etiológica, e os demonólogos, os juristas e filósofos, os médicos, os psicólogos e
os sociólogos trataram de responder. Muito mais recentemente deu-se conta de que o poder
punitivo também era causa do delito, e passou a ser analisado e questionado com diferente
intensidade crítica. São estas etapas que passaremos a percorrer depois de uma visão geral
sobre o poder punitivo e sua função real no marco do poder planetário.
 
Ilustração 3
 
3. O poder punitivo e a verticalização social
O poder punitivo é como o bife à milanesa com batatas fritas, isto é, ninguém se
pergunta por que existe. Parece que sempre esteve ali. Mas não é assim.
Alguém comparou o tempo de nosso pequeno planeta com uma semana e advertiu que
aparecemos no último minuto antes da meia-noite do domingo. Não sei quando apareceu o
bife à milanesa, mas nesses segundos geológicos que levamos arranhando a superfície da
Terra, só carregamos com o poder punitivo por alguns décimos de segundo.
O humano é social, não sobrevive isolado, e em toda sociedade há poder e coerção.
Todo grupo humano conheceu sempre duas formas de coerção, cuja legitimidade quase não
se discute, embora se possa discutir como se exerce.
Uma é a coerção que detém um processo lesivo em curso ou iminente: quando uma
parede está prestes a cair ou quando alguém corre atrás de mim pela rua com uma faca na
mão, há um poder social que demole a parede embora o dono se oponha, ou que desarme
aquele que quer me enfiar a faca. Isso se chama hoje coerção direta, em outra época poder
de polícia, e no Estado está regulada pelo direito administrativo.
Outra é a coerção que se pratica para reparar ou restituir quando alguém causou um
dano. Esta é hoje própria do direito civil e de outros ramos do direito.
Mas o poder punitivo é diferente, não existiu em todos os grupos humanos, e surgiu
muito mais tarde. Por que? O que o diferencia dessas outras coerções?
As duas formas de coerção antes referidas resolvem os conflitos: uma, porque evita o
dano, outra, porque o repara. Porém, quando na coerção reparadora alguém que manda diz
que o lesado sou eu e afasta quem realmente sofreu a lesão, é ali que surge o poder
punitivo, ou seja, quando o cacique, rei, senhor, autoridade ou quem quer que seja substitui
a vítima, a confisca.
Comprovamos isso em qualquer caso: se uma pessoa agride a outra e quebra-lhe um
osso, o Estado leva o agressor, o penaliza, alegando que o faz para dissuadir terceiros de
romper ossos ou para ensinar-lhe a não fazê-lo de novo ou para o que quer que seja, e o
que sofre com o osso quebrado deve recorrer à Justiça civil, na qual pode não obter nada,
caso o agressor não possuir bens.
O poder punitivo reduziu a pessoa com o osso partido a um mero dado, porque não
toma parte na decisão punitiva do conflito. Mais ainda: deve mostrar seu osso partido e se
não o fizer o poder punitivo a ameaça como testemunha remisso e pode levá-la pela força a
mostrar o que o agressor lhe fez. A característica do poder punitivo é, pois, o confisco da
vítima, ou seja, é um modelo que não resolve o conflito, porque uma das partes (o lesado)
está, por definição, excluído da decisão. O punitivo não resolve o conflito, mas sim o
suspende, como uma peça de roupa que se retira da máquina de lavar e se estende no varal
até secar.
Detemos o agressor por um tempo e o soltamos quando o conflito acaba. É certo que
podemos matá-lo, mas nesse caso não faríamos outra coisa senão deixar o conflito suspenso
para sempre. Não repomos nada à vítima, não lhe pagamos o tratamento, o tempo de
trabalho perdido, nada. Nem sequer lhe damos um diploma de vítima para que o pendure
em um canto da casa. Não ocorreria a ninguém obrigar o agressor a trabalhar para reparar o
lesado, ameaçando-o com uns açoites em público, como fazem nossos povos nativos, porque
isso seria prático, mas consideramos incivilizado.
Ademais, frente a outros modelos de efetiva solução do conflito, o modelo punitivo se
comporta de modo excludente, porque não só não resolve o conflito como também impede
ou dificulta sua combinação com outros modelos que o resolvem. É óbvio que, quando
prendemos o marido agressor, a mulher e os filhos devem se virar como possam para viver,
porque a besta fera não pode trabalhar e, por conseguinte, não cobra.
Imaginemos que um menino quebre uma vidraça na escola com os pés. A direção pode
chamar o pai do pequeno energúmeno para que pague a vidraça, pode mandá-lo ao
psicopedagogo para ver o que está acontecendo com a criança, também pode sentar-se e
conversar com o pequeno para averiguar se alguma coisa lhe faz mal e o irrita. São três
formas de modelos não punitivos: reparador, terapêutico e conciliatório. Os três modelos
podem ser aplicados porque não se excluem. Em compensação, se o diretor decide que a
quebra da vidraça afeta sua autoridade e aplica o modelo punitivo expulsando o menino,
nenhum dos outros pode ser aplicado.
É claro que o diretor, ao expulsar o menino, reforça sua autoridade vertical sobre a
comunidade escolar. Isso quer dizer que o modelo punitivo não é um modelo de solução de
conflitos, massim de decisão vertical de poder. É por isso, justamente, que ele aparece nas
sociedades quando estas se verticalizam hierarquicamente.
O modelo reparador é de solução horizontal e o punitivo de decisão vertical. Este
aparece quando as sociedades vão ganhando a forma de exércitos com classes, castas,
hierarquias etc. Por isso surgiu em muitos lugares do planeta, sempre que uma sociedade
começou a verticalizar-se hierarquicamente. A arqueologia penal estuda isso em sociedades
distantes.
Houve uma sociedade que se verticalizou com muita força na Europa: a romana.
Quando Roma passou da república ao império seu poder punitivo se fez muito mais forte e
cruel. E o que pode fazer uma sociedade quando se verticaliza até assumir a forma de
exército? A resposta é óbvia: conquistar outras. Roma conquistou quase toda Europa. Como
conseguiu fazer isso? Porque tinha uma estrutura colonizante, ou seja, hierarquizada, em
forma de exército. Essa estrutura, montada mediante o poder punitivo, é a necessária para a
empresa de conquista e colonização.
No entanto, Roma caiu praticamente sem que ninguém a empurrasse; seus imperadores
eram generais que brincavam de golpe de Estado, passavam o tempo intrigando ou
neutralizando intrigas, e em seus momentos de ócio se divertiam com amantes e escravos
núbios. Os costumes se relaxaram, dizem os moralistas.
Porém, Roma não caiu por causa das amantes ou dos escravos, mas sim porque a
estrutura vertical que proporciona o poder colonizador, imperial, logo se solidificou até
imobilizar a sociedade, as classes tornam-se castas, o sistema perde flexibilidade para
adaptar-se às novas circunstâncias, torna-se vulnerável aos novos inimigos. Nesse momento,
decai e perde o poder. Chegaram os bárbaros com suas sociedades horizontais, que
ocuparam os territórios quase caminhando, e o poder punitivo desapareceu quase por
completo.
Os germânicos resolviam seus conflitos de outra maneira: quando um alemão dava um
golpe de garrote na cabeça do outro, corria para se refugiar na igreja, onde não podia ser
tocado (asilo eclesiástico). Com isso, evitava o primeiro impulso vingativo, mas,
imediatamente, os dois germânicos velhos, chefes de clãs, reuniam-se e um fazia notar ao
outro que tinha um germânico avariado e que isso tinha de ser resolvido de algum modo. Do
contrário, o choque ia se dar entre os clãs, como na guerra, porque assim o determinava a
vingança de sangue (Blutrache, diziam), o que não convinha a nenhum dos dois. E a coisa se
ajustava com uma reparação, entregavam-se animais, metais, coisas etc. (o que se chamava
Wertgeld).
Havia um único crime ao qual era aplicado o modelo punitivo: a traição. O traidor era
pendurado em uma árvore: proditores et transfugas arboribus suspendunt, recorda o velho
Tácito, ao relatar os costumes dos germânicos. As outras ofensas eram acertadas entre as
partes. No bairro, acontece a mesma coisa com o alcaguete, embora com menos violência.
 
Ilustração 4
 
Mas por que há que se dar tanta importância a Roma, se estamos tão longe, aqui
estavam nossos nativos e nunca um romano colocou um pé na América? Precisamente
porque a história segue, o poder punitivo desapareceu quase por completo (salvo uns tantos
traidores pendurados nas árvores), até que um dia ocorreu aos senhores que era um bom
negócio confiscar a vítima e que isso também servia para reforçar seu poder, e voltaram ao
mau costume, fazendo renascer o poder punitivo nos séculos XII e XIII europeus. E aqui isso
começa a nos interessar, porque não desaparece já há quase mil anos, verticalizou as
sociedades europeias, deu-lhes estrutura corporativa, sob a forma de exército, e elas se
lançaram à colonização de todo o planeta.
O poder punitivo foi o instrumento de verticalização social que permitiu à Europa nos
colonizar. A Península Ibérica assumiu a liderança porque adquiriu caráter vertical para
conquistar os muçulmanos do sul, ainda que até hoje digam que os reconquistaram, o que é
duvidoso depois de 700 anos de permanência deles ali e de uma civilização que era
brilhante. Quando terminaram de convertê-los ao cristianismo aos golpes, os Reis (muito)
Católicos fizeram o que faz todo exército: homogeneizaram o discurso religioso e para isso
obrigaram os judeus a converterem-se como marranos ou a irem embora, e assim a frente
interna passou a rezar ao mesmo Deus, na versão dos reis.
Para dizer a verdade, a verticalização europeia havia começado um pouco antes dos
séculos XII e XIII, ou seja, por volta do ano 1000, quando todas as leis locais que iam
surgindo timidamente regularam as relações familiares e sexuais de maneira detalhadíssima,
mais do que a propriedade. Isso se explica porque todo exército necessita de cabos e
sargentos, sob cujo comando caem as pequenas unidades de tropa. A verticalização começou
por baixo, como devia ser, porque é sabido que uma revolução triunfa quando as tropas se
sublevam; por conseguinte, a primeira coisa que quem quer reforçar o poder vertical deve
fazer é se assegurar de que tem os comandos inferiores sob controle.
O cabo deste exército social foi o pater, sob cujo comando ficaram todos os seres
inferiores: mulheres, crianças, servos, escravos, animais domésticos etc. (havia poucos
velhos, porque as pessoas morriam muito jovens). O patriarcado não é mais do que o poder
dos cabos e sargentos da sociedade corporativa, fruto do primeiro passo da disciplina
vertical.
O próprio pater impunha os castigos aos seres inferiores, salvo casos de insubordinação,
como as mulheres desobedientes e os gays ou traidores, que não assumiam devidamente seu
papel de pater. Como ninguém podia permitir a insubordinação da tropa porque senão o
barco afundava, as lutas que se seguiram foram entre senhores, mas todos reafirmaram a
ordem sobre os inferiores.
O poder punitivo foi se estendendo, mas não havia leis suficientes e as que havia eram
caóticas. Dispunha-se menos ainda de um discurso legitimador desse poder renascente.
Nesse momento apareceram as universidades no norte da Itália e com elas os juristas, que,
como deviam fazer o discurso mas não tinham leis razoáveis, não tiveram ideia melhor do
que trazer o Digesto de Justiniano e começar a comentá-lo.
Assim nasceu a ciência jurídico-penal, com supostos comentários ao Digesto. E o que era
o famoso Digesto? Nada menos que uma coleção de antigas leis romanas, recolhidas por
determinação do imperador Justiniano, que nunca foi imperador em Roma e sim em
Constantinopla, quando o império do Ocidente – ou seja, Roma – já havia caído em poder
dos germânicos. As leis penais recolhidas no Digesto eram as piores e, além disso, com
alguns retoques deformantes do próprio Justiniano, que desde a romanização do cristianismo
(que costuma se chamar de cristianização de Roma) se considerava chefe religioso e
perseguia com singular furor e alegria os não cristãos, entre eles os que continuavam
adorando os deuses romanos. Essa injeção legal dos primeiros juristas foi denominada
recepção do direito romano.
A ciência jurídico-penal nasceu, portanto, com a importação de Constantinopla dos
chamados libris terribilis do Digesto. Os primeiros penalistas se chamaram glosadores porque
fingiam que comentavam essas leis; na verdade, sob o pretexto de comentá-las, diziam o que
bem entendiam, mas começaram a ensaiar alguma lógica interna em seu discurso.
É bem verdade que aqueles que deviam legitimar essas leis atrozes não podiam
confessar que o poder punitivo serve para verticalizar e colonizar, razão pela qual sempre se
buscou encontrar alguma justificativa para cada lei penal, baseada em uma necessidade
fundada em fatos do mundo real. Como se tratava de legitimações sobre argumentos fáticos,
os supostos comentários dos glosadores e pós-glosadores misturavam o direito penal com a
criminologia.
Assim começaram as palavras da academia nas universidades do norte italiano mil anos
atrás, mas o poder que em todos os tempos estas legitimaram não foi outro senão o
instrumento de verticalização social que possibilitou a colonização. Esse poder nãose
estendeu porque Henrique, o Navegador se lançou para a África ou porque Cristóvão
Colombo, com a história das jóias da rainha, tenha armado as caravelas, mas sim porque o
poder punitivo havia dado forma de exército a essas sociedades. Sem cair em fantasias não
verificáveis, o certo é que os nórdicos chegaram à América antes de Colombo, mas como não
dispunham de uma estrutura colonizadora morreram de frio no norte, não se animando a
seguir para o sul.
E a história reiterou o processo romano: a Espanha não conseguiu modificar sua
estrutura vertical quando o industrialismo amanheceu no século XVIII e terminou perdendo
seu império e sua hegemonia, que passou para as potências do centro e do norte da Europa.
O poder punitivo, contudo, não desapareceu, mas ficou limitado à sua função interior,
apontando para uma sociedade imóvel.
Como o punitivo é a chave do poder planetário, o que se diz a seu respeito não é
resultado de uma busca ingênua de conhecimentos, de curiosidade científica desinteressada
em âmbitos acadêmicos, mas sim que se defronta com o cerne da expansão colonial. Por
isso, tudo o que se diz em criminologia é político, porque sempre será funcional ou
disfuncional ao poder, o que não muda, ainda que quem o afirma o ignore ou o negue.
Por isso, não podemos evitar o passado, porque se o ignoramos não saberemos onde
fomos parar. O que interessa do passado não é se María Antonieta se deixou seduzir pelo
colar, se Catarina levou Miranda para a cama, se a rainha Isabel tomava banho ou se Ludwig
II fazia orgias com seus guardas enquanto sonhava com palácios de Disneilândia, e sim saber
onde estamos parados em uma continuidade de poder, que em seu fluxo nos trouxe a este
lugar. E a questão criminal é central nessa corrente que não para, como algo do presente,
que é pura projeção do passado. Se não comprendemos que a Idade Média não terminou,
não podemos entrever para onde vamos, ou pior, para onde podemos ir (o que me eximo
de dizer, até mesmo por motivos de boa educação).
Como a Idade Média não terminou, nada do passado está morto nem enterrado, mas
apenas oculto, e não por acaso. Não é um passado que volta, mas sim que nunca se foi,
porque ali está o poder punitivo, sua função verticalizante, suas tendências expansivas, seus
resultados letais.
Dessa perspectiva, o passado não evoca aborrecidas lições com datas e próceres
movidos pelo acaso ou pela genialidade, mas sim nos mostra um zoológico de fósseis vivos e
não em um museu paleontológico. Por isso, se quiserem me seguir, devo começar pelo
passado, para que um tiranossauro não nos coma.
Estamos habituados a que o locutor elegante comunique a notícia sangrenta com voz
cavernosa, preludiando a exortação à reforma do Código Penal e de imediato vai ao tribunal
para anunciar produtos íntimos. Mas também estamos acostumados a que isso gere um mar
de opiniões díspares e em todos os tons: há que matar a todos; deixar a polícia atuar e
baixar o sarrafo; aplicar o talião; ter boas prisões para ressocializar; atender aos fatores
sociais; não atendê-los porque nem todos os pobres delinquem; nem só os pobres
delinquem, um longuíssimo etcétera.
Creio que muitas pessoas ficariam surpresas se lhes disséssemos que os Estados
absolutos matavam há centenas de anos, que desde a Inquisição recorrem à violência, que o
talião foi apoiado por Kant no século XVIII, que a ressocialização – que vem do positivismo
do século XIX, dos fatores sociais – é coisa de muitos e em especial de Bonger há um século,
que a negação dos fatores sociais era de Garofalo no final dos Oitocentos, que os delitos de
colarinho branco foram teorizados por Sutherland há sessenta anos etc. Nada disso morreu e
se na criminologia acadêmica não se sustentam determinadas teses é porque já não são
politicamente corretas, continuam sendo afirmadas com escassa dissimulação na criminologia
midiática.
Porém, o que quero dizer com que a Idade Média não terminou? Por um lado, que somos
hoje um produto daquele poder punitivo que renasceu na Idade Média e permitiu aos
colonizadores europeus ocupar a América, a África e a Oceania, escravizar, dizimar e até
extinguir os povos nativos, transportar milhões de africanos, avançar sobre o mundo com
massacres e depredação colonialista e neocolonialista.
No entanto, por outro lado, quero dizer que os discursos legitimadores do poder
punitivo da Idade Média estão plenamente vigentes, até o ponto de que a criminologia
nasceu como saber autônomo no final do período medieval e fixou uma estrutura que
permanece quase inalterada e reaparece cada vez que o poder punitivo quer se libertar de
todo e qualquer limite e desembocar em um massacre.
Quando o poder punitivo renasceu, o bispo de Roma – o Papa – estava desejoso de
conter a todos os que pretendiam se comunicar diretamente com Deus, à margem de sua
mediação ou da de seus dependentes. Para reforçar esse monopólio telefônico, e também
para concentrar poder econômico, estabeleceu-se uma jurisdição, ou seja, um corpo de juízes
próprios encarregados de perseguir os revoltosos, chamados hereges. Esse foi o tribunal do
Santo Ofício ou Inquisição romana.
O reaparecimento do poder punitivo e o surgimento da Inquisição mudaram tudo. Até
esse momento, nos processos entre as partes, a verdade se estabelecia pelos ordálios ou
pelas provas de Deus. Os juízes anteriores à volta do Digesto e aos inquisidores eram, na
realidade, árbitros desportivos, pois o ordálio mais frequente era o duelo. O que vencia era
quem tinha razão, porque se invocava a Deus e este baixava magicamente convocado e se
expressava no duelo, permitindo ganhar só àquele que tinha razão. Os juízes não julgavam e
sim cuidavam que não houvesse fraude. Quem decidia era Deus. Pode-se imaginar que esses
juízes tinham uma absoluta tranquilidade de consciência.
Com as leis romanas imperiais injetadas pelos juristas, a verdade passou a ser
estabelecida por interrogação, por inquisitio. O imputado devia ser interrogado, e se não
queria responder a verdade lhe era extraída pela violência, pela tortura. Para isso haviam
sequestrado Deus e o ordálio se havia tornado desnecessário, pois Deus já estava sempre do
lado de quem exercia a violência. O poder tinha atado Deus, porque sempre fazia o bem.
Segundo Foucault, todo saber adotou o método do interrogatório violento. Parece haver
algo disso se comparamos a inquisição com a vivissecção, mas voltemos ao nosso. A
Inquisição romana exercia o poder de julgar em toda Europa porque não havia Estados
nacionais e os senhores feudais não podiam impedi-lo, embora isso lhes incomodasse. Na
Espanha, onde a sociedade já tinha a forma de exército, o poder da Inquisição não foi papal,
e, diferentemente do resto de Europa, encontrava-se a serviço do rei. Por isso, a Inquisição
espanhola tem uma história separada da romana.
Com esse instrumento, o Papa massacrou rapidamente uns tantos hereges (os albigenses,
os cátaros etc.). Também se juntou aos franceses para fritar os templários e repartir suas
riquezas, imputando-lhes que eram gays e que tinham um ritual de iniciação de submissão
sexual, meio leather style. Logo, porém, a Inquisição ficou sem trabalho e sem inimigo,
porque havia matado todos eles. Para justificar seu brutal poder punitivo necessitava de um
inimigo que tivesse mais vigor, que fosse de melhor qualidade. Assim, acabou apelando para
um inimigo de muito bom estofo, que durou vários séculos: Satã, que em hebraico significa
justamente inimigo.
Como era difícil explicar semelhante poder sanguinário no marco de uma religião cujo
Deus não era guerreiro, e sim uma vítima executada em um instrumento de tortura próprio
do poder punitivo do Império Romano (equivalente à cadeira elétrica do século XX), era
necessário inventar-lhe um inimigo guerreiro, e assim Satã terminou sendo o comandante em
chefe de um exército composto por legiões de diabos.
Para isso lhe caiu muito bem a cosmovisão que Santo Agostinho havia imaginado quase
dez séculos antes. Ele – que havia vivido no norte de África no século IV e depois departicipar de quantas festas pôde, quando lhe baixaram os hormônios, e como antes havia
combinado suas andanças com o maniqueísmo – imaginou que havia dois mundos
enfrentados na forma de espelho: um de Deus e outro de Satã, a cidade de Deus e a do
diabo.
As duas cidades tinham equipes rivais: a do diabo dedicava-se ao esporte de tentar a de
Deus, porque os partidários deste podiam salvar-se, ao passo que eles, como anjos caídos,
estavam irremediavelmente condenados a ser destruídos no juízo final e, portanto, tentavam
adiá-lo e baixar o número de salváveis. Não ficava claro por que não os destruíram antes e
era necessário esperar o julgamento, mas isso não importa.
O certo é que nesse mundo maciço, mas perfeitamente dividido, não havia possibilidade
de neutralidade: ou se estava com Deus ou com Satã. Tudo o que estava fora da cidade de
Deus era domínio satânico, incluindo os deuses pagãos (e depois seriam as religiões dos
nossos povos nativos).
Cabe esclarecer que o pobre Santo Agostinho não matou ninguém. Ele apenas armou
esse discurso e, como havia morrido há quase mil anos antes da Inquisição, se livrou da
pena de ver o que se fazia com apoio nele. Houve outros ideólogos que tiveram menos sorte
e a vida lhes deu a oportunidade de queixar-se e arrepender-se, vendo como usavam suas
ideias. Agostinho teve inclusive vislumbres muito inteligentes, como o de enunciar a primeira
política de redução de danos em matéria de aborto.
Todavia, quando o Papa se valeu do invento agostiniano para perseguir tudo o que não
se submetia a seu poder e consagrou a Inquisição à luta contra Satã, como este não aparecia
em lugar nenhum, teve de se agarrar a ela com alguns humanos, e já não lhe restavam
hereges. Por conseguinte, empreendeu-a contra a metade da espécie humana, contra as
mulheres. Para isso foi inventada a teoria do pacto satânico. Satã não podia atuar sozinho,
necessitava da cumplicidade de humanos (não me perguntem o porquê, porque não sei).
Para isso havia humanos que celebravam um pacto com o inimigo, com Satã. Era um
contrato de compra e venda proibido, mas que por sua natureza só podia ser celebrado por
humanos inferiores, que eram as mulheres. Por que? Por razões genéticas, biológicas: tinham
um defeito de fábrica por provir de uma costela curva do peito do homem, o que
contrastava com a retidão deste (não sei tampouco onde o homem é reto, mas prossigamos).
Por isso, elas têm menos inteligência e, por conseguinte, menos fé. E ratificavam essa
afirmação, inventando que femina provém de fé e minus, ou seja, menos fé (é mentira, pois
femina vem do sânscrito, do verbo que significa amamentar).
Foi assim que a Inquisição se dedicou a controlar as mulheres desobedientes e levou à
combustão milhares delas, como bruxas, em quase toda Europa.
Na verdade, o poder de Satã e seus rapazes foi muito estudado e teorizado pelos
encarregados da Inquisição, que foram os dominicanos, ordem fundada por São Domingos
de Gusmão, mas também conhecidos como cães do Senhor (canes do Dominus). Na
condição de estudiosos da etiologia, ou da origem do mal, eles foram os primeiros
criminólogos. É claro que não foram chamados de criminólogos e sim de demonólogos.
Quase nenhum criminólogo aceita essa origem, porque não é uma boa certidão de
nascimento; preferem considerar-se herdeiros do Iluminismo ou mesmo do século XIX e
esquecer o nome dos velhos demonólogos, aos quais ninguém menciona. Mas o certo é que
ninguém tem a culpa de seus antepassados.
A demonologia, porém, não deixou de criar contradições porque os juristas – glosadores
e pós-glosadores – haviam tratado de sistematizar suas especulações conforme uma certa
lógica, que tomavam da ética tradicional. Isso se deve a que, na medida em que se queira
dotar de alguma lógica interna o discurso legitimador do poder punitivo, surge um mínimo
de limites, porque a necessidade não é infinita. Justamente para eliminar esses limites
criando uma necessidade quase infinita e absoluta, foi que se autonomizou a criminologia
com o nome de demonologia.
Os juristas pretendiam que a pena fazia pagar a dívida do delito. Se o crime resultava de
uma escolha livre, havia que retribuir o mal com o mal. A ideia de culpa dominava suas
elucubrações. Lembro a vocês que culpa e dívida são sinônimos. O velho Padre Nosso dizia
perdoai as nossas dívidas e não eram os “pagareis” que firmávamos, e sim nossas culpas. Em
alemão Schuld tem também esse duplo significado. Isso impunha um pequeno limite à pena,
exigia certa proporção com a censura da culpa.
E como a mulher era inferior, era menos inteligente que o homem, devia ser menos
culpável e, por conseguinte, merecer pena menor. Os juristas as consideravam como
meninas, em permanente estado de imaturidade. No entanto, os inquisidores não se atinham
à culpa, e sim ao grau de perigo que as bruxas e Satã representavam, que colocava em risco
a humanidade. Para os demonólogos havia uma emergência gravíssima e nada devia
obstaculizar a repressão preventiva. Aqui surgiu uma questão que até hoje não foi
solucionada: a pena se fixa pela culpa ou pela periculosidade? Os penalistas continuam
discutindo a incoerência com paliativos, enquanto os juízes decidem o que lhes parece.
Como vemos, a Idade Média está presente. Em seu tempo, isso se resolveu
argumentando que o pacto satânico era um crime mais grave que o pecado original, porque
neste Adão e Eva haviam sido enganados, mas o pacto com Satã se celebrava com vontade
plena, com consciência do mal e, ademais, era uma traição, para com, nada menos, a cidade
de Deus, com o qual havia que seguir a tradição germânica. Cabe fazer notar que os
germânicos eram mais ecológicos, porque não danificavam as árvores, enquanto os
inquisidores queimavam sua madeira. O certo, porém, é que este modelo marcou a estrutura
de todos os discursos posteriores legitimadores de massacres. Por isso, será necessário deter-
se na análise dessa estrutura.
 
Ilustração 5
 
4. A estrutura inquisitorial
Os demonólogos elaboraram um discurso muito bem armado para liberar seu poder
punitivo de todo e qualquer limite, em função de uma emergência desencadeada por Satã e
seus seguidores, em combinação com as moças terrenas. Por certo que se alguém
sustentasse, hoje em dia, esta tese seria inevitavelmente psiquiatrizado. Não podemos,
porém, ficar na anedota, porque, embora pareça mentira, a estrutura demonológica mantém-
se até o presente. Os discursos têm uma estrutura e um conteúdo. Trata-se, digamos, de algo
parecido a um programa de computação alimentado com os livros de uma biblioteca.
Podemos carregar o programa com livros esotéricos e teremos uma biblioteca dessa
natureza, mas também podemos esvaziar seu conteúdo e recarregá-lo com outros livros e
teremos bibliotecas de medicina, física, química, história, ou o que quer que seja. Pois bem: o
que permanece do discurso inquisitorial ou demonológico não é o conteúdo, e sim
justamente o programa, a estrutura.
Ao longo dos séculos o mesmo programa foi esvaziado e voltou a ser alimentado com
outras informações, com dados de novas emergências, críveis segundo as pautas culturais de
cada momento: deixou-se de se acreditar em Satã e suas meninas, mas passou- se a acreditar
em outras coisas, que, hoje, tampouco são críveis, ainda que se continue alimentando o
programa com dados que hoje são críveis e amanhã serão não tão críveis quanto Satã, suas
legiões de diabos e suas mulheres.
Desde a Inquisição até hoje os discursos foram se sucedendo com idêntica estrutura:
alega-se uma emergência, como uma ameaça extraordinária que coloca em risco a
humanidade, quase toda a humanidade, a nação, o mundo ocidental etc., e o medo da
emergência é usado para eliminar qualquer obstáculo ao poder punitivo que se apresenta
como a única solução para neutralizá-lo. Tudo o que se quer opor ou objetar a esse poder é
também um inimigo, um cúmplice ou um idiota útil. Por conseguinte, vende-se como
necessária não somente a eliminação da ameaça, mas também a de todos os que objetam ou
obstaculizam o poderpunitivo, em sua pretensa tarefa salvadora.
É evidente que o poder punitivo não se dedica a eliminar o perigo da emergência, e sim
a verticalizar mais ainda o poder social; a emergência é apenas o elemento discursivo
legitimador de sua falta de contenção.
Isso se verifica ao longo de cerca de 800 anos de sucessivas emergências, algumas das
quais implicavam certo perigo real, mas o poder punitivo nunca eliminou nenhum desses
perigos. Satã está um pouco cabisbaixo, com seu tridente sem ponta e sua cauda quebrada;
o alcoolismo continua fazendo estragos; as drogas se expandem cada dia mais; a sífilis foi
resolvida com a penicilina; a tuberculose com a estreptomicina; os hereges fizeram suas
igrejas nacionais; a degeneração da espécie e o perigo das raças inferiores passaram a ser
uma grande mentira; as bruxas continuam cozinhando seus cozidos esquisitos e no máximo
criam algum problema bromatológico. Os perigos foram inventados ou mesmo quando eram
reais desapareceram por outros meios ou permanecem, e até se ampliam, mas, ao longo de
800 anos, o poder punitivo jamais eliminou um risco real.
Diriam no meu bairro que o discurso inquisitorial sempre foi, e continua sendo, um
modo de colocar a corda no pescoço. Mais academicamente, diríamos que é um imenso
engano, uma tremenda fraude e que o poder punitivo, ao projetar-se na opinião das pessoas
como o remédio para tudo, não é mais do que o delito máximo da propaganda desleal da
nossa civilização.
Trata-se do instrumento discursivo que proporciona a base para criar um estado de
paranoia coletiva que serve para aquele que opera o poder punitivo o exerça sem nenhum
limite e contra quem lhe incomoda.
Por desgraça, porém, quando aparece um discurso com estrutura inquisitorial e ninguém
detém sua instalação, a consequência última é um massacre. Assim aconteceu com as
mulheres queimadas, com as vítimas das máfias e da corrupção produzidas pela proibição
do álcool e das drogas; com os inimigos do Ocidente cristão massacrados pela segurança
nacional ou pelo franquismo; com os doentes e incapacitados esterilizados ou assassinados
pela eugenia; com a eliminação nos campos de concentração nazistas, e com muitos milhões
de pessoas, mas já estou me metendo com a palavra dos mortos, que é questão que deixo
para mais adiante.
Vejamos agora como os demonólogos instalaram essa estrutura discursiva originária que
permanece intocável até o presente. O certo é que esses pioneiros foram muitos e
escreveram uma quantidade de livros muito sofisticados. A criminologia não registra os
nomes de seus fundadores, porque os nega, como esses antepassados piratas,
contrabandistas ou escravistas a quem todos ocultam e ninguém reconhece.
Não vale a pena resgatar todos eles, porque de qualquer modo não creio que nenhum
instituto de criminologia de nossos dias queira ostentar algum desses nomes. Para quem se
interessa pelo tema, vale a pena dizer que há uma antologia bem feita. Para nossos efeitos, é
melhor centrarmos na obra tardia, porém sintética, que consagra a autonomia da
criminologia em relação ao direito penal, expondo pela primeira vez, de forma orgânica,
uma completa teoria sobre a origem do crime, ou seja, uma exposição da chamada etiologia
criminal. Trata-se do Malleus maleficarum ou Martelo das bruxas, de 1484.
 
Ilustração 6
 
A esse respeito – e entre parênteses – é bom recordar que a inquisição romana teve seu
esplendor nos tempos feudais, mas, quando os Estados nacionais se organizaram como
monarquias fortes, estas reclamaram para si seus poderes punitivos e os foram retirando do
Papa, de modo que a tarefa de queimar mulheres passou a ser desempenhada por juízes
estatais, dependentes dos monarcas e príncipes, alguns dos quais não reduziram seu
entusiasmo pela combustão. Continuaram queimando mulheres até o século XVIII, porém
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pelos Estados, em um momento em que o Papa não se ocupava mais das mulheres mas sim
dos luteranos e reformados. Desde o século XV, ou seja, com a chamada Contra-Reforma, a
inquisição romana se dedicava a estes últimos e não conferia nenhuma ênfase às mulheres.
De qualquer maneira, os juízes estatais da Europa central continuaram usando como
manual o Martelo das bruxas, que se encontrava no guia oficial dos queimadores de mulheres
desde 5 de setembro de 1494, quando o tenebroso Papa Inocêncio VIII o consagrou como
tal, mediante a bula Summis desiderantes affectibus.
O Martelo foi escrito por dois inquisidores muito particulares: o alsaciano Heinrich
Krämer e o suíço-alemão Jakob Sprenger. Este último era um sujeito de vida monacal, que
fazia aparições e tinha fama de beato. Já Krämer – também conhecido como Institoris (que,
em latim, significa quitandeiro, o mesmo que Krämer em alemão) – era mais problemático,
pois o bispo o suspendeu de suas funções porque, em seu afã incendiário, estava deixando a
diocese sem mulheres e, além disso, segundo as más línguas, se havia envolvido com
dinheiro de indulgências. Embora seja discutível, também parece que falsificou a
recomendação do pequeno manual por parte da Universidade de Colônia, para atribuir-lhe
maior base acadêmica.
O certo é que esses dois personagens produziram essa obra singular, que foi um best-
seller durante duzentos anos, tempo no qual foi o livro mais publicado depois da Bíblia.
Como dado curioso, devo advertir que, se alguém hoje quiser lê-lo em espanhol ou
português, deve buscá-lo nas seções de livros esotéricos das livrarias.
Sua leitura é, às vezes, entediante, mas não podemos deixar de pensar que se trata de
dois delirantes com fixações sexuais insólitas. A verdade é que para ter uma ideia completa
do universo cultural da Idade Média não se pode prescindir, evidentemente, de Dante, mas
tampouco do Malleus maleficarum. Uma mesma época produziu um poeta sublime como
Alighieri e dois delirantes alucinados, como Sprenger e Krämer. Talvez hoje aconteça a
mesma coisa.
O delírio está muito bem sistematizado e é a primeira vez na história que se construiu
uma obra que integrou, em um único sistema harmônico, a criminologia (origem do mal)
com o direito penal (manifestações do mal), com o processo penal (como se investiga o mal)
e com a criminalística (dados para descobrir na prática o mal). A elaboração é, por
conseguinte, bastante sofisticada. Como o conteúdo com o qual preencheram a estrutura que
lhes dava fundamento é para nós tão disparatado, tem a vantagem de, em razão dessa
tremenda distância temporal e cultural, nos permitir ver com maior clareza os principais
núcleos estruturais que permanecem até a atualidade desde a própria origem da
criminologia. Por isso, repassá-los não é um mero divertimento, mas sim uma constatação de
sua permanência através dos séculos. Passo a assinalar vinte destes núcleos, embora advirta
que há mais, mas não quero aborrecer vocês.
 
O crime que provoca a emergência é o mais grave de todos. Como vimos, os inquisidores
afirmavam que era mais grave que o pecado original. Outros se sucederam no tempo:
subversão, terrorismo, uso de tóxicos etc. A gravidade do crime é exaltada ao máximo
porque dela depende o grau de perigo da emergência e do poder correspondente do
repressor.
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A emergência só pode ser combatida mediante uma guerra, ou seja, a linguagem não
pode ser senão bélica. Os autores pretendem saber como estavam organizadas as hostes
de Satã – porque, supomos, haviam conseguido infiltrar algum agente disfarçado no
inferno. Bush e Obama sempre disseram o mesmo, e sem dar margem a dúvidas o
primeiro usou o mesmo procedimento para descobrir as armas químicas no Iraque, que
Satã logo fez desaparecer.
Sua frequência é alarmante. Diziam que a Alemanha estava cheia de bruxas, mais do que
qualquer outro país. É o mesmo que nos dizem pela televisão, todos os dias e todas as
horas: em nosso país há mais crimes que em qualquer outro (nosso país pode ser
qualquer um em que houver uma televisão).
O pior criminoso é quem duvida da emergência. Quando alguém pede números e duvida
da gravidade e da frequência corre sérios riscos,porque se erige em inimigo, não da
sociedade nem da humanidade, mas sim daquele que exerce o poder punitivo. Embora
hoje “pegue” mal que ele seja queimado, como Sprenger e Krämer postulavam, não
duvido que muitos lamentem que os tempos tenham mudado.
Qualquer fonte de autoridade que diga o contrário deve ser neutralizada. Nos tempos
dos inquisidores havia um cânone – isto é, uma lei muito antiga –, o Canon episcopi, que
se referia a uma seita de mulheres (as filhas de Diana) que existira muitos anos antes e
que não lhes atribuía nenhum poder maléfico e negava que pudessem voar. É claro que
um texto venerável dessa natureza é um obstáculo para o discurso, como também o
pode ser uma verificação científica ou fundada com seriedade.
Quando se produz esse fenômeno há três soluções discursivas: a fonte é falsa (por
exemplo: o planeta não está aquecendo, os cientistas que afirmam o contrário não sabem
nada ou falseiam a realidade), mas é verdadeira se se refere a outra coisa (as filhas de
Diana não eram como as bruxas alemãs; os ladrões de antes eram bons e cavalheirescos,
não como os de agora; os anarquistas não eram como os subversivos etc.) ou a interpreta
mal (o Canon não diz exatamente isso, o que os técnicos dizem é outra coisa, há que
fazer distinções etc.).
Para Sprenger e Krämer, as bruxas voavam mesmo, e se não tivessem voado e só
provocavam uma ilusão, elas deveriam ser queimadas da mesma maneira porque
compactuavam com Satã e pronto.
A valoração dos fatos se inverte por completo. É o que muitos anos depois Merton
chamará de alquimia moral. Se a bruxa não confessava, a despeito de ser brutalmente
torturada, era porque Satã lhe dava forças; se, desesperada, enforcava-se, era porque
Satã a havia levado para que não confesasse e se salvasse no mais além (porque, ainda
que confessasse, seria morta de qualquer forma). Se ela enlouquecia com a tortura e ria,
era porque Satã fazia pouco dos inquisidores. Nada muda: se os presos estudam é para
delinquir melhor, se se arrependem são dissimulados, se matam uns aos outros é porque
são criminosos, se alguém pede uma trégua está simulando para contra-atacar.
O delírio serve de pretexto para encobrir muitos delitos. Se um padre estava observando
o pênis de um penitente, era porque tentava convencê-lo de que não o havia perdido
por obra de um encantamento; se outro aparece nu dentro de um celeiro, contará que
Satã o levou a um banquete e, como não quis jurar-lhe fidelidade, o lançou ali; se um
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homem santo é encontrado debaixo da cama de uma mulher, será porque Satã se
apoderou de seu corpo para se esconder. Quando um investigador é surpreendido num
lugar suspeito, até hoje costuma se dizer que ele estava se infiltrando; o terrorismo
também é útil para eliminar aos maridos incômodos das amantes etc.
As imagens dirigentes são imaculadas: isso os levava ao extremo de sustentar que os
anjos e Jesus não completavam o processo alimentício, isto é, não defecavam, e sim
dissolviam o alimento no estômago. A pureza dos líderes em toda emergência é algo que
se cuida com singular esmero, em especial sua correção sexual. Para os inquisidores, os
diabos nem sequer tinham orgasmos (porque, no final, também eram anjos), ou seja, eles
copulavam com as bruxas só para fazer o mal; eram uma espécie de sadomasoquistas
inorgásmicos.
Os inimigos são inferiores. A misoginia do Malleus é extrema: a mulher é biológica e
geneticamente inferior, o que era comprovado com alentadas citações em que
misturavam indistintamente pagãos e padres da Igreja. Quase todas as emergências são
promovidas por inferiores na história posterior: mestiços, mulatos, raças colonizadas ou
degeneradas, defeituosos, incapazes, doentes, degenerados etc. Como não podiam
eliminar todas as mulheres, contentam-se em queimar somente as desobedientes.
A inferioridade pode estender-se: as filhas das bruxas tinham predisposição à bruxaria. E
isso pode acontecer por causações genéticas, pois os diabos sabiam de quem retirar o
sêmen e onde colocá-lo para produzir esse efeito; seria o contrário da eugenia e se
chamaria disgenesia, ainda que, como para os diabos era bom, trata-ser-ia de uma
eugenia diabólica. Mas não nos atrapalhemos mais. Também podia haver transmissão
por caracteres adquiridos a partir da bruxaria da mãe.
Os filhos do bruxo-chefe não eram filhos de diabos, porque estes são anjos e não têm
sêmen, só adotam a forma humana, mas na realidade são de ar concentrado, como uma
espécie de bonecos infláveis de sex-shop, se bem que conhecem a engenharia genética.
Aqui os inquisidores, com séculos de antecipação, combinam Darwin com Lamarck, a
exemplo de emergências posteriores: há que matá-los se são geneticamente inferiores,
como faziam os nazistas; há que criá-los com uma família sadia se a inferioridade provém
da educação, como Franco ou os ditadores na Argentina fizeram.
As vítimas não devem ser colocadas em situação de vulnerabilidade, porque os vícios
favorecem a ação de Satã. Aqueles que têm amantes antes de se casar provocam-nas a
que, sentindo-se despeitadas, façam sortilégios para matar suas esposas. É necessário
viver na ordem para cuidar do inimigo; toda desordem pode ser aproveitada por ele.
Aquele que exerce o poder punitivo quer moralizar, na verdade para facilitar-lhe a tarefa.
É uma regra inveterada que o poder punitivo descontrolado quer um mundo regular e
cinza, monótono, que possa controlar sem problemas: tudo aquilo que sai do costumeiro
é suspeito. A alegria conspira contra o controle e baixa o nível de paranoia, porque a
festa faz pensar em outra coisa, as pessoas se distraem. Os inquisidores advertem contra
o perigo das festas populares: são sempre os dark da época.
Os inquisidores negam os danos colaterais, afirmando que não há terceiros inocentes, e
sim que o castigo é sempre merecido, ainda que se baseiem num dogma: por alguma
coisa será. Em muitos massacres se afirma que não há inocentes, que todos são culpados,
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embora não tenham feito nada.
Os inquisidores são infalíveis e, mais do que isso, são puros: São Macário, porque era
puro, era o único que via uma mulher quando os demais, por efeito de bruxaria, viam
uma égua, até que Macário a desencantou e os demais puderam ver a mulher. A pureza
garante a perfeita percepção dos fatos. É o que passa com os grandes empresários dos
massacres: são os únicos puros que veem com clareza; por isso devem ser seguidos sem
discussão.
Os inquisidores não admitem erros, quem é condenado é culpado e a condenação é
prova suficiente; nunca houve um erro e todas as mulheres queimadas eram bruxas. É
óbvio que as cinzas não apelam. A única razão que davam para negar algum erro era
que Deus não podia permitir isso, porque, como sabemos, estava sequestrado por eles.
Os sucessivos empresários de emergências massacradoras não puderam dizer o mesmo,
porque Deus já havia escapado deles. Por isso, apelaram à tese de que é inevitável, em
toda guerra, que alguns inocentes sejam sacrificados.
Os inquisidores se eximem de toda ética frente ao infrator: podem prometer de tudo e
depois não cumpri-lo. A inferioridade da bruxa lhes autoriza a fazer isso. O mesmo
acontece em qualquer emergência, os empresários massacradores não têm códigos,
porque não vale a pena frente aos terroristas, subversivos, criminosos, degenerados,
estrangeiros inimigos, doentes etc.
Os inquisidores são imunes ao mal que combatem: Satã não pode enganá-los, porque
Deus não o permitiria. Posteriormente, será sua ciência ou conhecimento especial que os
tornará imunes. O cobrador de impostos não colaborará com a evasão fiscal, o
funcionário que combate o tráfico não ajudará a traficar etc. Todo poder punitivo garante
que seus agentes são imunes ao mal e, quanto mais fora do controle, maior é a garantia
de imunidade e menor a possibilidade de eles serem desmascarados.
O mal tende a prolongar-se. As parteiras eliminavam as crianças não batizadas para que
não se completasse o número de eleitos e o juízo final fosse adiado. Assim, elas
sobreviveriammais tempo. O mal sempre se prolonga e o raciocínio, por isso, faz com
que seja exigida sua erradicação total e absoluta: o massacre deve ser radical e definitivo.
A crença no poder das bruxas era um preconceito da época. O Malleus o reforça ao
extremo, com a garantia do saber acadêmico de seu tempo. Não foi à toa que Krämer fez
algo não totalmente claro para obter o apoio da Universidade de Colônia. Todas as
emergências posteriores exploraram e aprofundaram os preconceitos; é o que se chama
de uma política völkisch ou popularista (não populista, que é outra coisa muito diferente).
O Malleus garante a reprodução da clientela: a mulher não era torturada para que
confessasse, mas para que revelasse os nomes de seus cúmplices e a mera menção de
um nome sob tortura autorizava que a pessoa nomeada também fosse torturada. Toda
emergência cuida para que a clientela não termine, porque se se esgota seu poder
punitivo perde sentido, como havia acontecido ao Papa depois dos massacres dos
cátaros e outros hereges.
 
Esta é, em sua maior síntese, a estrutura fundacional do poder punitivo ilimitado,
trabalhada durante duzentos anos e sintetizada tardiamente pelo Malleus em 1494, mas que
até hoje se manteve em todas as fabricações de emergências que foram feitas nos seis
séculos posteriores. O Malleus é uma obra tardia, porque no século seguinte ao seu
aparecimento consolidaram-se as monarquias e, com algumas delas, as igrejas nacionais. A
inquisição papal teve de fazer de tudo para evitar que os adeptos dessas igrejas nacionais
não se sublevassem na parte que ficava sob seu controle, razão pela qual deixou as
mulheres um pouco de lado e se ocupou de queimar reformados. Os reformados, por sua
vez, também praticavam a combustão com grande entusiasmo, como Calvino, que
encarregou Servet da tarefa, porque parece que não lhe agradava que o sangue circulasse. É
óbvio que o sangue continuou circulando, mas não o de Servet.
O poder dos inquisidores e de seus rapazes era cobiçado por outros e, entre estes, pelos
médicos, que aspiravam ficar com pelo menos parte deste poder. Teremos, mais adiante,
oportunidade de verificar que os médicos sempre tiveram vontade de deter o poder punitivo
e chegaram a dominar seu discurso legitimador com horríveis consequências massacradoras.
Porém, o primeiro avanço do poder médico sobre o campo punitivo foi tentado em 1563 por
um médico protestante dos Países Baixos, Johann Weyer (ou Weier ou Wier), que publicou,
em Basileia, um livro denominado As artimanhas do demônio, que rapidamente correu toda s
Europa, armando considerável reboliço.
Wier não negava a inferioridade da mulher nem a existência das bruxas e muito menos
sua periculosidade, pois continuava atuando dentro da mesma visão agostiniana do mundo,
configurada pelas cidades espelhadas de Deus e Satã. O que ele introduziu foi a novidade de
que as bruxas eram melancólicas e que, por isso, Satã se aproveitava delas, explorando sua
doença. Não é demais recordar desde já que a melancolia era o que, com Charcot, logo seria
chamado de histeria.
Ao mesmo tempo, como bom protestante, Wier aproveitava para dizer que os
verdadeiros bruxos eram os padres exorcistas, que praticavam sua magia diante de fetiches,
que eram os santos católicos. Cabe esclarecer que havia um agrupamento de exorcistas que
protestava toda vez que um padre que não pertencia ao agrupamento se lançava a exorcizar
alguém.
Mas voltando a Wier, devemos advertir que ele havia viajado a lugares distantes e
estudado várias plantas alucinógenas, razão pela qual também afirmava que muitas dessas
mulheres sofriam os efeitos de intoxicações pela atropina, pelo ópio e pelo hashish (a
maconha e a cocaína não haviam chegado).
A novidade introduzida por Wier é muito interessante, porque dá lugar àquilo que
subsiste ainda hoje, as chamadas medidas de segurança. O poder punitivo pode libertar-se de
limites argumentando de várias maneiras, e não há exagero nessa afirmação, pois o engenho
perverso que caracteriza seus discursos legitimadores é inusitadamente fértil. Um deles
consiste em ocultar ou dissimular seu próprio carácter punitivo, o que continua fazendo
mediante o expeditivo recurso de deixar de chamar penas às penas. Foi isso o que Wier
introduziu.
Com efeito, vimos que havia uma contradição entre, por um lado, a pena limitada pela
reprovação de culpabilidade fundada na escolha do infrator, na qual lhe é cobrada sua
culpa, própria dos juristas (glosadores e pós-glosadores), e, por outro, a periculosidade
afirmada pelos demonólogos, pois os primeiros não podiam justificar as penas máximas às
mulheres, porque eram menos inteligentes e, por conseguinte, deviam ser menos culpadas.
A solução transacional encontrada foi aumentar ao máximo a gravidade do delito das
bruxas e torná-lo superior até mesmo ao pecado original, com o qual, por qualquer das duas
vias, se habilitava a combustão, recurso que quatrocentos anos depois os penalistas do
nazismo voltariam a usar.
Wier propôs uma variante consistente na qual as bruxas eram retiradas do campo dos
juristas e dos inquisidores e deixadas nas mãos dos médicos, de modo que estes pudessem
colocá-las nos manicômios, que eram, em sua época, asilos infectos piores que as prisões,
onde não sobreviveriam por muito tempo. Desse modo, não se penalizava formalmente as
mulheres, mas as privava materialmente de liberdade até sua morte ou pouco menos, se bem
que suponhamos que as mulheres de classe alta poderiam ser atendidas a domicílio.
É interessante observar que até hoje no direito penal se discute se a pena é determinada
pela culpabilidade ou pela periculosidade, conquanto se dissimule a terminologia tratando
de combinar remendos contraditórios. Nessas combinações do não acumulável, o mais
frequente na legislação comparada é que se prevê fixar a pena segundo a culpabilidade, mas
os perigosos ou inimigos são deixados à mercê das medidas administrativas de segurança.
Desse modo, verificamos que não estamos falando de história no sentido mais usual do
termo, e sim do presente, ou seja, confirmamos, uma vez mais, que a Idade Média não
terminou.
De qualquer maneira, essa primeira tentativa de manipular o poder punitivo por parte
dos médicos não se fez graças à Igreja, nem tampouco aos reis e príncipes. O jesuíta Martín
do Río – belga como Wier, mas filho de pai espanhol – afirmou que Wier não só era um
herege, porque negava que as bruxas voassem, mas também um mago. Por conseguinte, se
Wier houvesse caído nas mãos católicas teria sido permitido que eles celebrassem um assado
a mais.
Todavia, como a queima de mulheres já não se praticava tanto por iniciativa da Igreja, e
sim pela dos juízes dos reis, a proposta de Wier alarmou os teóricos que estavam lançando
as bases do conceito de soberania, porque ele queria arrebatar um poder que estava
passando rapidamente para seus soberanos. Wier não só se havia imiscuído com o poder do
Papa, como também com o dos soberanos: tudo bem que o disputassem entre eles, mas não
que alguém pretendesse retirá-lo de ambos e deixar de queimar as mulheres para enfiá-las
em asilos.
Os dois teóricos mais fortes do conceito emergente de soberania, hoje tão
descaracterizado, foram, no século XVI, o inglês Thomas Hobbes e o francês Jean Bodin (ou
Bodino). Este último publicou um livro em resposta a Wier em 1580: De la démonomanie des
sorciers. De l’inquisition des sorciers. Bodin se dava conta de que a manipulação médica não
se limitava às bruxas, mas que ameaçava ir muito mais longe e, portanto, discorria que, com
o mesmo critério, todos os criminosos deveriam ser psiquiatrizados.
Porém, não foi somente Bodin quem percebeu a gravidade da ameaça médica ao poder
dos soberanos. O próprio filho de Maria Stuart, o rei Jaime I da Inglaterra e VI da Escócia –
perseguidor um tanto desanimado de católicos e puritanos, nos momentos de ócio que a
atenção de seus favoritos lhe permitia, uma vez que a rainha lhe dispensava muito pouca –
escreveu uma Demonologia em resposta a Wier.
Isso dá conta de que desde a primeira

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