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Revista Appoa 36 - Clínca da Angústia

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ISSN 1516-9162
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
n. 36, jan./jun. 2009
CLÍNICA DA ANGÚSTIA
ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
Porto Alegre
R454
Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / Associação
Psicanalítica de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (1990). - Porto Alegre: APPOA, 1990, -
Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
Semestral
ISSN 1516-9162
1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre
CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de
Psicologia (http://www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em outubro 2009. Tiragem 500 exemplares.
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO
PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
EXPEDIENTE
Publicação Interna
n. 36, jan./jun. 2009
Título deste número:
CLÍNICA DA ANGÚSTIA
Editores:
Otávio Augusto W. Nunes e Beatriz Kauri dos Reis
Comissão Editorial:
Beatriz Kauri dos Reis, Deborah Pinho, Maria Ângela Bulhões, Otávio Augusto W. Nunes,
Sandra Djambolakdjan Torossian, Valéria Machado Rilho, Roséli Maria Olabarriaga Cabistani,
Simone Kasper, Aidê Ferreira Deconte, Clara Maria Von Hohendorff, Gardênia Medeiros, Larissa
Costa Scherer, Maria De Lourdes Duque-Estrada Scarparo e Ricardo Vianna Martins.
Colaboradores deste número:
Marta Pedó, Paulo Gleich e Maria Lúcia Stein
Editoração:
Jaqueline M. Nascente
Consultoria lingüística:
Dino del Pino
Capa:
Clóvis Borba
Sobre Pesadelo, de Fuselli
Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que
tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém
estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições
temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da
venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou
doação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.
ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICADE PORTO ALEGRE
Rua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – Porto Alegre / RS
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ISSN 1516-9162
CLÍNICA DA ANGÚSTIA
SUMÁRIO
 EDITORIAL............................ 07
 TEXTOS
Actualidade da angústia:
considerações sobre transferência e
desejo do analista .............................. 09
Actuality of anguish notes on transfer and the
desire of the analist
Robson de Freitas Pereira
Uma carta perdida ............................. 20
A lost letter
Maria Cristina Poli
Angústias contemporâneas ............... 28
Contemporary anxieties
Rosane Monteiro Ramalho
Do resto ao lixo: a corrosão
do desejo na era da
reprodutibilidade técnica .................. 38
From the residue to trash: the corrosion of
desire in the era of technical reproducibility
Jaime Betts
Angústia e a orientação do sujeito .. 60
Anxiety and the orientation of the subject
Isidoro Vegh
A angústia no princípio
da clínica psicanalítica ...................... 75
Anguish as a principle in psychoanalytical clinic
Lucy Linhares da Fontoura
A economia da angústia
na adolescência .................................. 85
The economy of anguish in adolescence
Roséli M. Olabarriaga Cabistani
A potência iconoclasta do objeto a:
psicanálise e utopia ........................... 93
The iconoclastic power of the object a:
 psychoanalysis and utopia
Edson Luiz André de Sousa
 RECORDAR, REPETIR,
 ELABORAR
Na transferência
e contratransferência ........................ 120
Alice Bálint e Michael Bálint
 ENTREVISTA
Mundo cão? Para uma teoria
da clínica das depressões ............... 128
Maria Rita Kehl
 VARIAÇÕES
Notas sobre a inibição... ................... 139
Ricardo Goldenberg
O homem sem
qualidades, mesmo ........................... 142
Elida Tessler
Esta velha angústia ........................... 102
This old anguish
Maria Ida Fontenelle
Vertigo A cartomante: vertigem
machadiana ....................................... 111
Vertigo A cartomante: machadian vertigo
Lucia Serrano Pereira
7
EDITORIAL
Durante dois anos, entre 2007 e 2008, a temática da angústia foi o eixo emtorno do qual se organizaram as atividades da Associação Psicanalítica de
Porto Alegre. Duas jornadas e um congresso, sustentados por intenso trabalho
de cartéis preparatórios, foram realizados. A leitura e discussão do Seminário
10 – A angústia –, de Jacques Lacan, foi desenvolvida no que convencionamos
chamar na APPOA de Cartelão, sem esquecer dos textos freudianos fundamen-
tais sobre a angústia.
Esta Revista é o terceiro número sobre o tema e resulta da reunião dos
trabalhos apresentados no Congresso que a APPOA organizou, em novembro
de 2008, e elaborados no âmbito desse vivo espaço de produção.
A angústia é um afeto, não qualquer afeto, mas o único que interessa à
clínica psicanalítica. Afirmação curiosa; ainda mais quando vinda de alguém
que, como Lacan, dizia não se ocupar dos afetos. Índice da responsabilidade do
analista, a angústia o incita a questionar como está conduzindo seu trabalho e
sua posição na transferência. Nesse sentido, não cessamos nunca de interro-
gar e pensar seu manejo no campo da palavra.
Na letra de Lacan, a angústia revela-se fecunda. A propósito do tema,
desenvolve o conceito de objeto a, ponto nodal em torno do qual se articulam a
teoria e a clínica psicanalíticas.
A psicanálise kleiniana também tem a angústia como conceito central,
porém a aborda a partir da teoria das relações de objeto. A formulação lacaniana
sobre o objeto a se distingue de tais elaborações, que situam a dualidade da
relação analista/analisante.
8
EDITORIAL
Em Freud encontramos a concepção de objeto como objeto perdido; em
Lacan, como objeto faltante. Pensar que ele esteja à frente do desejo, como um
objeto desejado, é apoiar-se numa miragem de gozo; cena da fantasia de ser-
mos o que faltaria para realizar a demanda do Outro. Cena fantasmática que
organiza o cenário de nossa realidade e de nosso mundo. No entanto, o objeto
que anima nosso desejo está atrás, ele é causa; sua função, pois, é furtar-se à
captação.
Quando algo de nossa realidade muda, a cena também muda, e não
conseguimos mais definir a demanda do Outro. Ocasião de emergência da an-
gústia: no lugar da miragem de gozo, ao invés do objeto desejável, surge o
desejante, perante o qual o sujeito se pergunta “que objeto a eu sou para o
desejo do Outro?”. O sujeito não é senão signo do desejo do Outro, em posição
de objeto a para tal desejo. Na falta de significante que represente o sujeito para
o Outro, o Eu se desvanece. No lugar da unidade narcísica, há somente um
corpo tomado de sensações, reduto último de uma subjetividade em risco.
Ante a angústia, qual a direção da cura numa análise?
Se a angústia é sinal, isso significa que ela remete a algo que não é ela
mesma, ela não representa a si mesma, mas ela pode dar pistas à intervenção
analítica.
No que diz respeito à transferência, não cabe ao analista domesticar a
angústia, nem tampouco induzi-la, ensina Lacan no Seminário dos Quatro con-
ceitos fundamentais. O desejo do analista o colocará na via de suportar o lugar
de semblante de a, fazendo aparência do objeto que causa o desejo, para man-
ter a abertura à posição desejante do sujeito. Afinal, se a angústia surge no
ponto situado a meio caminho entre o desejo e o gozo, não seria o desejo o seu
melhor “remédio”?
TEXTOS
9
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 9-19, jan./jun. 2009
Resumo: O artigo contextualiza historicamente o Seminário da angústia, profe-
rido por Lacan nos anos 1962-63, desdobrando seus efeitos político-institucionais
e teórico-clínicos com relação à história da psicanálise, em especial os relacio-
nados à abordagem da transferênciae ao conceito de desejo do analista. Ao
final, introduz um comentário sobre a própria produção em ato do texto, a partir
dos efeitos das outras falas proferidas durante o Congresso.
Palavras-chave : Lacan, seminário da angústia, transferência, desejo do ana-
lista.
ACTUALITY OF ANGUISH
NOTES ON TRANSFER AND THE DESIRE OF THE ANALIST
Abstract: This paper contextualizes the Seminaire of Anguish, of Jacques Lacan,
pronounced in the years 1962-63. This contextualization was done in terms of
their political, institutional, theoretical and clinical aspects, all of them vital to the
future of psychoanalisis. These subjects have influenced the work on transfer
and also the concept of desire of the analist. A comment on the conditions of
production in act, during a Congress with others psychoanalysts, is posted at
the end of the article.
Keywords: Lacan, the seminaire of anguish, transfer, desire of the analist.
ACTUALIDADE DA ANGÚSTIA
Considerações sobre
transferência e desejo do analista1
Robson de Freitas Pereira2
1 Trabalho apresentado no Congresso da APPOA: Angústia, realizado em Porto Alegre, em
novembro de 2008.
2 Psicanalista; Membro da APPOA; Organizador do livro Sargento Pimenta Forever (Porto
Alegre: Libretos, 2007); Coorganizador do livro Seminários espetaculares (Porto Alegre:
Corag, 2002). E-mail: rpereira@portoweb.com.br
1010
Robson de Freitas Pereira
Texto e contexto
A fim de situar o leitor e contextualizar o escrito que vem a seguir, optamospor advertir que a parte inicial aponta três aspectos importantes para a
psicanálise, que podem ser lidos a partir dos efeitos do Seminário proferido por
Lacan ([1962-63] 2005) nos anos 1962-1963. Anos em que, acompanhados pelo
tema da angústia, evidenciam-se as mudanças clínico-conceituais e o
direcionamento político institucional que viria marcar definitivamente os rumos
da psicanálise contemporânea. Para os analistas que acompanharam esses
acontecimentos direta ou indiretamente, isso talvez não seja novidade; mas,
passados quase cinquenta anos, achamos importante situá-los para as novas
gerações de psicanalistas, que se responsabilizam pelos efeitos dessas profun-
das modificações em sua formação. Na parte seguinte do texto, tecemos consi-
derações clínicas sobre a transferência e o desejo do analista. Trata-se de con-
ceito cuja determinação mais precisa Lacan inicia neste seminário da angústia,
e que segue sendo um legado a ser trabalhado por todo psicanalista que se
aproprie da experiência de análise.
O seminário A angústia, 1962-1963 – Observações
Político-institucionais – 1963 encerra “nossos mais belos anos”, no
dizer de Elisabeth Roudinesco (1988) em sua História da psicanálise na França,
vol. II. Depois de dez anos de seminários na SFP (Sociedade Francesa de
Psicanálise3 ) e negociações para o reconhecimento do novo grupo, termina o
longo processo de avaliações. As críticas à análise didática (e consequente
lugar dos didatas), às sessões de tempo variável e às mudanças conceituais
são inaceitáveis. A tentativa de impedir que Lacan continue com sua transmis-
são e “análises didáticas” provoca sua definitiva saída da IPA (International
Psycoanalytical Association) e subsequente fundação da EFP (Escola Freudiana
de Paris) em 1964.
Questões clínicas – Uma clínica propriamente lacaniana tem sua confir-
mação nesse momento. Analista não é sujeito (no senso comum) no decurso
do tratamento; ele está no lugar do objeto, faz aparência desse objeto que é
causa de desejo e resto simultaneamente. Por isso, interessa o corte que sus-
tenta a abertura do inconsciente. Há a colocação em causa da concepção de
contratransferência enquanto sustentação da identificação ao analista como ideal
3 A SFP consistia num grupo, liderado por Lacan, Dolto e Lagache, que rompeu com a Socie-
dade Psicanalítica de Paris, fundada por Marie Bonaparte.
Actualidade da angústia
11
de cura. A transferência implica uma imparidade4 suportada pelo analista e sua
escuta do significante. Essa escuta, essencial na condução do tratamento, recu-
sa a dualidade e reconhece a primazia do significante enquanto elemento funda-
mental no trato com a linguagem, em sua enunciação através das formações do
inconsciente. A ultrapassagem da angústia implica o desejo do analista.
Questões conceituais – O desejo do analista é o fio condutor do Semi-
nário desde as primeiras aulas. Como é de seu estilo, Lacan ([1962-63] 2005)
vai fazendo aproximações diversas para evidenciar esse conceito novo. Entre as
mais importantes, o questionamento da noção corrente (naquela época) de
contratransferência. Não para descartar os efeitos e vicissitudes do cotidiano da
clínica; mas justamente para reconhecer nela os efeitos da divisão subjetiva,
apontando assim outro eixo de abordagem aos trabalhos da época, que se
ocupavam do tema da contratransferência. Além disso, Lacan inova ao afirmar
que a angústia tem objeto (ela não é sem objeto); ele é o mesmo da estrutura do
fantasma e do desejo. Esse objeto não especularizável se mostra na operação
de corte, numa topologia que evidencia a divisão do sujeito e responde ao sinal
da angústia. Índice da responsabilidade do analista, que se vê questionado e
incitado a dizer como está conduzindo seu trabalho. Abertura de espaço para
que cada um possa dizer como está respondendo ao Che vuoi?5 desencadeado
por seu desejo.
Os três tópicos, citados resumidamente acima, articulam-se borromea-
namente no percurso do analista, seja nos espaços de formação, seja na clínica
cotidiana, ou mesmo nos debates públicos com outros discursos6. Pois, quan-
do falamos, descrevemos7 um Outro que se encarna: a) num discurso; b) num
4 No sentido de que não se trata de uma relação dual. É uma situação ímpar, não há paridade.
Ela é, no mínimo, ternária.
5 Referência à novela de Cazotte (1992), O diabo enamorado, e ao grafo do desejo, ainda em
construção, mostrado na primeira aula do Seminário.
6 A partir do final do Seminário de 1962-63, no qual Lacan fala da transferência e do desvane-
cimento da angústia, quando o Outro foi nomeado – pois só existe amor por um nome –,
podemos pensar a necessidade de articular o discurso psicanalítico com outros discursos
que se ocupam da angústia e de suas representações/manifestações. Com a literatura e suas
ficções, que têm valor de verdade. Com as artes plásticas, e sua função de apontar o furo e
o mal-estar em que ancoramos nossa angústia. Com a economia e suas respostas para o
universo das mercadorias. Com a música, produzindo esse efeito a partir do intervalo entre o
som e o silêncio. Com a medicina, principalmente a ciência psiquiátrica, que tenta organizar o
real nomeando as manifestações sintomáticas.
7 Esta é uma descrição muito particular; pois ela depende das condições enunciativas, ou seja,
inconscientes. Como afirmamos logo adiante, nomear também é uma maneira de performatizar o Outro.
1212
Robson de Freitas Pereira
semelhante. O que nos leva a cogitar que as diferentes formas de diálogo são
também formas diferentes de nomear o Outro, que, com sua demanda difusa,
não enquadrada, desencadeia o sinal de angústia. O sinal do Real. Real que
irrompe no campo do imaginário, provocando uma série de efeitos.
Isso difere a cada encontro, entrevista, a cada situação dada. E acres-
cente-se que, quando queremos transmitir algo, falamos como analisantes. Daí
que, apesar de nosso arsenal conceitual (nossas ferramentas, como considera-
va Freud, citado por Lacan no início do seminário da angústia), nosso linguajar
peculiar, nossos conceitos, não são suficientes para dar conta do que tentamos
abordar. Assim, tentamos construir, performatizar um assunto, um tema – a
angústia, em suas diversas abordagens.
A partir daqui, podemos perguntar: essas “diversas abordagens” não se-
rão, elas mesmas, maneiras diversas de dar conta do sinal do Real, que é a
angústia? Por que, ao reconhecer que a conceitualização psicanalítica não é a
única, temos que admitir que há outras formas de dar conta desse afeto primor-
dial, outras formas de nomear8o Outro, o outro lugar onde se situa o objeto da
angústia, que é o mesmo objeto do desejo e que estrutura o fantasma (fantasia)
primordial. Nomear o Outro implica outra questão: quem é o Outro a quem nos
dirigimos?
Quando se trata da psicanálise, da condução de uma análise, estamos
referidos a um trabalho que responsabiliza cada analista e se realiza a cada
vez que o psicanalista contribui com algo de seu estilo, dizendo como está
fazendo, como está lidando com essa dimensão que irrompe no campo do
imaginário (parafraseando uma das conceituações da angústia: o real que
irrompe no campo do imaginário). Daqui podemos passar a algumas considera-
ções sobre a clínica.
Considerações clínicas a respeito da transferência e do desejo do
analista
“Certamente convém que o analista seja aquele que, minimamente, não
importa por qual vertente, por qual borda, tenha feito seu desejo entrar suficien-
8 A psicanálise nos faz reconhecer esta especificidade no trato com o Nome. Lacan ([1961-62]
2003) trabalhou bastante esse tema no Seminário 9, A identificação, imediatamente anterior
ao da Angústia. Mas neste caso podemos nos referir também ao trabalho vindo de outros
campos, vide T. Todorov (1991), em seu livro A conquista da América – a questão do outro.
Aqui nos interessa reafirmar a contribuição forte da psicanálise à cultura e, simultaneamente,
a influência dessa cultura sobre o trabalho dos psicanalistas e sua elaboração.
Actualidade da angústia
13
temente nesse a irredutível para oferecer à questão do conceito da angústia
uma garantia real” (Lacan, [1962-63] 2005, p. 366)9.
Ao longo de seu percurso clínico, muitos analistas certamente já se sen-
tiram “enganados” pelos ditos do analisante. Inúmeros são os exemplos que
poderiam ser trazidos, mas gostaríamos de preservar a singularidade de cada
um; por isso, vamos nos referir apenas a esse traço que remete ao momento em
que se realiza um reconhecimento do equívoco. Quando as pessoas falam que
estão em análise10 por algum motivo e quando esse motivo ameaça tornar-se
realidade, que está acontecendo ou dá grande indícios de que pode acontecer,
sobrevém uma intensa angústia, um desamparo que faz o analista pensar: “Mas
o que eu estava escutando até agora? Como pude deixar me enganar assim?”
Momento de angústia em questões eminentemente transferenciais.
Quando escutamos, estamos imersos na transferência. Talvez por isso
Lacan alertasse que a escuta do significante não nos livra do imaginário, não
fornece garantias antecipadas. Mas essa é a condição de qualquer análise;
deixar-se levar pelo equívoco. Deixar-se levar pelo engano amoroso que permiti-
rá, no melhor dos casos/caos, produzir um saber que possibilita ao sujeito deci-
frar-se. Lembremo-nos de que o inconsciente é nosso patrimônio de saber. Um
saber insabido, que não se confunde com o patrimônio em seu sentido de pro-
dução de signos e ícones históricos. Mas que está referido ao patronímico e aos
detalhes que conformam a justa medida, a boa/plena palavra, ao bem dizer.
Ao longo do seminário de 62/63, o trato com o conceito de desejo do
analista está em pauta, às vezes explicitamente, outras vezes implícito na dis-
cussão do que sustenta a análise – vide a discussão dos autores da época. São
vários casos analisados e sua trajetória11.
Em determinado momento, Lacan situa a angústia como o termo médio
entre o gozo e o desejo. Ultrapassar o momento de angústia é uma forma de ir
ao encontro do exercício do desejo e não ficar preso ao gozo que precede a
9 “Assurément, Il convient que l’analyste soit celui qui ait pu, si peu que ce soit, par quelque
biais, par quelque bord, assez faire rentrer son désir dans ce a irréductible pour offrir à la
question du concept de l’angoisse une garantie réelle” (Lacan, [1962-63], leçon du 03/07/63,
p.385 ).
10 As queixas e o sofrimento que determinam a procura da análise são os mais variados, todos
eles da ordem do verdadeiro. Estamos nos referindo àqueles momentos em que o motivo da
procura – “quero me separar”, “não aguento mais a vida que estou levando”, “não suporto
mais este trabalho”, “não suporto a solidão” – encontra sua realização. O desejo manifesto se
realiza e, imediatamente, tudo parece desmoronar.
11 De um Outro ao outro, título de seminário de Lacan ([1968-69] 2004). Análise é fazer o trajeto
da castração imaginária ao objeto causa do desejo.
1414
Robson de Freitas Pereira
angústia12. Dessa forma, o momento de surpresa, de reconhecimento de que
estávamos enganados, junto com o outro a quem escutamos, é fundamental.
Tanto para ser ultrapassado (dando uma chance ao desejo), quanto para não
ficar preso na frustração, ou na crítica superegoica que atinge o narcisismo do
analista. Essa ultrapassagem da angústia dá-se pela realização de que nomear
o Outro é também sustentar o desejo de que a análise esteja em pauta, siga
seu curso, uma vez que, no trabalho com a angústia, aprendemos que o Outro
funciona como espelho.
O Outro como espelho, nas palavras de Lacan:
Há, no estágio oral, uma certa relação da demanda com o desejo
velado da mãe. No estágio anal, há para o desejo, a entrada em
jogo da demanda da mãe. No estágio da castração fálica, há o
menos-falo (menos fi), a entrada da negatividade quanto ao instru-
mento do desejo, no momento do surgimento do desejo sexual
como tal no campo do Outro. Mas, nessas três etapas, o proces-
so não se detém, uma vez que, em seu limite,deveremos encon-
trar a estrutura do a como separado.
Não foi à toa que hoje lhes falei de um espelho, não o do estádio
do espelho, da experiência narcísica, da imagem do corpo em
sua totalidade, mas o espelho como campo do Outro em que deve
aparecer pela primeira vez, se não o a, pelo menos seu lugar – em
suma, a mola radical que faz passar do nível da castração para a
miragem do objeto do desejo (Lacan, [1962-63] 2005, p. 251)13.
Assim, o objeto do desejo pode ser sustentado não somente como fruto
da relação especular, como simples jogo de espelhos côncavos, convexos, ou
12 Vide textos do Correio da APPOA – O seminário da angústia, n. 173, Porto Alegre, out. 2008.
13 “Il y a, au stade oral, um certain rapport de la demande au désir voilé de la mère; Il y a au
stade anal, l’entrée en jeu pour le désir de La demande de la mère; Il y a au stade de la
castration phallique, le moins-phallus –Φ, l’entrée de la négativité quant à l’instrument du
désir, au moment du surgissement du désir sexuel comme tel dans le champ de l’autre. Mais
là, à ces trois étapes, ne s’arrête pas pour nous la limite ou nous devons retrouver la
structure du a comme separe. Mais ce n’est pás pour rien qu’aujourd’hui jê vous ai parlé
d’un miroir, non pas du miroir au stade du miroir, de l’expérience narcisique, de l’image du
corps dans son tout, mais du miroir, em tant qu’il est ce champ de l’Autre ou doit apparaître
pour la première fois, sinon le α, δυ moins sa place, bref le ressort radical qui fait passer du
niveau de la castration au mirage de l’object du desir” (Lacan, [1962-63], leçon du 8/05/63, p.
264).
Actualidade da angústia
15
planos, em que a experiência especular conforma o narcisismo, ao antecipar a
completude corporal; mas também com uma relação com o campo do Outro,
com o campo das palavras, com o lugar das enunciações ainda por encontrar.
Isso pode relançar uma análise, além das expectativas de sucesso ou
fracasso pessoal do analista, ou mesmo ao atravessamento do malogro das
tentativas de gozo do analisante. Sucesso e gozo sem pagar o preço, ou a
qualquer preço, são esperanças maniqueístas, como se o mundo se resumisse
ao nosso “umbigo”14. Uma análise vai além do corpo do analista (e mesmo de
seu espírito de corpo, ou ”espírito de porco”, na relação com seus pares). Se
confiamos no inconsciente e nos efeitos de nossa própria experiência como
analisantes, temos a chance de não ficarmos presos no narcisismo especular.
Superar a especularidade é reconhecer que há um outro lugar onde podemos
localizar o objeto do desejo. Uma vez que o campo do Outro também é o lugar,
por excelência,desse objeto não especularizável.
Pois como afirma Lacan na última aula do Seminário:
Só há superação da angústia quando o Outro é nomeado. Só
existe amor por um nome, como todos sabem por experiência
própria. No momento em que é pronunciado o nome daquele ou
daquela a quem se dirige nosso amor, sabemos muito bem que
esse é um limiar da maior importância” (Lacan, [1962-63] 2005, p.
366)15.
Um limiar que implica nossa relação com a castração, com seus desdo-
bramentos imaginários e simbólicos, pois necessitamos de recursos e referên-
cias simbólicas para lidar com essa diferença que faz limite a nossa imagem,
ou a uma idealização dela.
Qual é a função da castração nesse objeto, nessa estátua, de
tipo tão comovente que é, ao mesmo tempo, nossa imagem e
14 Não vamos comentar aqui os desdobramentos sobre a transferência feitos no seminário 11,
em que automaton e tiché e alienação e separação são elementos essenciais. Em outro
momento, Lacan vai afirmar que análise é uma experiência em fracasso. Fracasso do impera-
tivo do gozo. Fracasso da dualidade winner or loser. Fracasso em que a religião pode triunfar.
15 “Il n’y a de surmontement de l’angoisse que quand l’Autre c’est nommé. Il n’y a d’amour que
d’un nom, comme chacun le sait d’expérience et le moment ou le nom est prononcé de celui ou
de celle à qui s’adresse notre amour, nous savons très bien que c’est un seuil qui a la plus
grande importance” (Lacan, [1962-63], leçon du 03/07/63, p. 384).
1616
Robson de Freitas Pereira
uma outra coisa, ao passo que, no contexto de uma certa cultura,
parece não ter relação com o sexo? (Lacan, [1962-63], 2005, p.
251)16.
Lacan aponta esse como um fato característico, de nossa cultura, diria
eu. Poderíamos recorrer a mais uma citação que encerra o seminário e prepara
Os nomes do pai, interrompido após uma única aula17. “O que faz de uma aná-
lise uma aventura singular é a busca do ágalma no campo do Outro” (Lacan,
[1962-63] 2005, p. 366)18.
Para nomear, sempre parcialmente, o objeto que se situa no campo do
Outro, é necessário o engano da transferência. Para ultrapassar o momento de
angústia é necessário o desejo do analista. Complementando a primeira cita-
ção: “Interroguei-os diversas vezes sobre o que convém que seja o desejo do
analista, a fim de que seja possível o trabalho ali onde tentamos levar as coisas
além do limite da angústia” (Ibid., p. 366)19.
No trabalho de elaboração das interrogações é que se articulam transfe-
rência, nominação, corte, para levar a análise além do limite da angústia. Certa-
mente que esse desejo do analista se articula com o ato. Um ato de palavra, de
corte que atualiza20 a realidade do inconsciente – via transferência, como vimos
no Seminário 11 (Lacan [1964] 1979) – que é sempre sexual, nesse sentido do
que falha, da impossibilidade que faz interrogação na vida amorosa/sexual de
cada um, analista incluído. Daí termos que nos haver com o horror ao ato: pelo
que se diz e por suportar suas consequências, indo além do sofrimento narcísico.
A superação do engano/equívoco amoroso da transferência pelo que se escuta e
provoca angústia e aturdição; pois que se diga fica esquecido atrás do que se diz,
16 “Quelle est la fonction de la castration dans ce fait étrange que l’object du type le plus
émouvant, pour être à la fois notre image e autre chose, puisse apparaitre à ce niveau, dans
um certain contexte, dans une certain culture comme sans rapport avec le sexe” (Lacan,
[1962-63], leçon du 08/05/1963, p. 264).
17A interrupção dos seminários acontece no contexto citado anteriormente. Lacan, e seu
grupo da SFP, seria aceito na IPA se renunciasse à coordenação da transmissão e à condução
de análises visando à formação de analistas.
18 “Ce qui fait d’une psychanalyse une aventure unique est cette recherche de l’ágalma dan le
champ de l’Autre” (Lacan, [1962-63], leçon du 03/07/1963, p.384).
19 “Je vous ai plusiers fois interrogé sur ce que convient que soit le désir de l’analyste pour
que, là où nous essayons de pousser les choses au-delà de la limite de l’angoisse, le travail
soit possible” (Lacan, [1962-63], leçon du 03/07/63 , p. 384).
20 Insistimos nesta condensação de ato, atualidade e atual, para demonstrar que os atos
determinam a atualidade e estão articulados à realidade psíquica.
Actualidade da angústia
17
naquilo que se escuta. Vamos deixar para outro momento o trabalho de nos inter-
rogarmos sobre outras referências que sustentam o desejo do analista, apenas
apontando que os Nomes do Pai são uma delas e não de menor importância.
Pós-escrito ou texto e contexto II
Seguem algumas observações posteriores ao texto, contextualizando sua
apresentação no congresso da APPOA, em novembro de 2008.
Ao iniciar a conferência, última antes do encerramento, começamos por
reconhecer a persistência dos que ali ficaram. E muitos estavam presentes. É
um misto de surpresa e reconhecimento pelo interesse no tema.
A modo de introdução, constatamos o fato de nossa fala estar influencia-
da por tudo o que havíamos escutado ao longo daqueles dias. As mesas que
nos precederam e deram ensejo a que modificássemos ou acrescentássemos
partes ao que iríamos desenvolver naquele momento.
Nesse sentido, a mesa anterior, em que Mário Corso e Lucia Pereira
haviam desdobrado situações, mostrando como a literatura influenciava nosso
trabalho, era a mais recente, as palavras deles ainda ressoavam no ambiente.
Assim, nos servimos delas para antecipar, ou ajudar a encaminhar o que
gostaríamos de dizer: “Cuidado com aquilo que desejas!”, pois pode acontecer.
A cena de Franskenstein,21 vendo o nascimento da criatura, é exemplar.
Depois de todo seu esforço, o doutor está diante de sua criatura e, para seu
espanto, ela abre os olhos! Está viva! Frankenstein se vê no olhar do outro, de
sua criatura. Aquela que não terá nome ao longo da história, e só será nomeada
com o nome de seu criador. Terá, por fim, o nome do pai. Assim a advertência –
“Cuidado com o que desejas!” – vinda dos artistas plásticos, do cinema, além
dos psicanalistas, poderá ser retomada mais tarde.
Mas outras associações acrescentam-se. Uma delas, O jovem Frankenstein,
de Mel Brooks22. Paródia mordaz do clássico, desta vez reencenado com humor
e ironia. Uma dessas ironias: o encontro com o cego na cabana. Entenda-se: a
criatura, depois de fugir do castelo, encontra uma cabana onde vive um ermitão
cego. No filme, esse homem que não enxerga, mesmo contente com a inespe-
rada visita, involuntariamente inflige sofrimentos ao monstro, que não fala, só
21 Aqui estamos nos referindo ao filme de 1931, dirigido por James Whale e estrelado por Boris
Karloff, que deu imagem ao personagem literário. A figura com os pinos nas têmporas perma-
nece até hoje como representação do monstro criado por Mary W. Shelley.
22 O jovem Frankenstein, dirigido por Mel Brooks. Comédia em que o neto do Barão Franskenstein
retorna ao castelo original, depois de tentar negar sua ascendência, modificando até a pro-
núncia do nome próprio. Ou seja, não queria assumir a herança que lhe cabia.
1818
Robson de Freitas Pereira
emite grunhidos. De dor, quando sua mão é colocada no fogo, ou quando o
ceguinho derrama água fervente no seu colo. Grunhidos e gemidos que ficam
muito diferentes quando ele quer “fazer amor” com sua escolhida (que chega a
cantar árias ao ser penetrada). Temas esparsos, que não serão retomados: 1. O
cego, desde Tirésias, é uma representação do psicanalista, no teatro ou no
cinema, geralmente para fazer piadas. Tomando a piada como formação do
inconsciente, para que não esqueçamos o quanto temos que ter cuidado para
reconhecer que muitas vezes tateamos no escuro; e que com um pouco de luz,
um saber se constrói com o outro; 2. Os grunhidos começam a se transformar
em linguagem, quando buscam nomear formas diferentes de se relacionar com
o objeto do desejo. Linguagem e sexualidade estão articuladas, para o bem e
para o mal, ou parafraseando: para o desejo e para o gozo, angústia mediante
(sem esquecer o sintoma).
Letra final, restospoéticos
Ao final, queria ler uma canção, com letra de Wally Salomão e Antonio
Cícero. Wally tinha sido citado, neste congresso, mais de uma vez, em traba-
lhos anteriores (lembro Ana Costa, Edson Sousa e Maria Cristina Poli).
Babilaques, sua exposição póstuma, condensação de Babilônia e badulaques,
seus livros, sua prosa caudalosa, poderiam servir de veículo para tocar no tema
Babilônia, Babel. Nossa Babel de falas e letras. Nossa Babel necessária, para
que possamos exercitar um convívio e compartilhar nossa experiência com a
psicanálise.
Achava que a música se chamava Babilônia. Engano, equívoco meu.
Título original: Holofotes (aqueles que iluminam coisas).
Mas lembrava de parte da letra:
“dias sem carinho, mas eu não me desespero/rango alumínio, ar,
pedra, carvão e ferro/
Eu lhe ofereço, estas coisas que enumero/pois quando fantasio é
quando sou mais sincero/
Eis a Babilônia amor, Eis Babel aqui/ algo da insônia/ do seu
sonho antigo em mim”
(Holofotes, letra de Wally Salomão e Antonio Cícero, música de
João Bosco).
Busquei, encontrei o LP de vinil original, em que João Bosco havia pro-
posto aos dois poetas uma parceria inédita. Ele forneceria as músicas, eles
colocariam letra. Título do álbum: Zona de fronteira.
Actualidade da angústia
19
Imprimi a letra para levar ao congresso. Ao chegar no final da conferência,
quando fui buscá-la, não encontrei. Estava perdida, esquecida em casa, só
tinha o recurso da memória, do corpo, da pele do texto. Tive que aceitar o
equívoco; não precisava da letra impressa, interessava a parte que estava im-
pressa em mim, em algum lugar do corpo, do esquecimento, da memória
rememorada.
“A letra voou”
Nas discussões com o público, Élida Tessler lembrou um episódio curio-
so; há algum tempo, em 2007, Wally Salomão estava fazendo uma leitura de
seus poemas na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre. Quando quis mostrar
justamente a letra de Holofotes; pois estava falando do trabalho de parceria com
Antonio Cícero e João Bosco, a folha voou. Um vento forte a levou mundo afora.
Era isto. Tive que reconhecer que queria falar/mostrar isso mesmo que
aconteceu, agregar o eusquecimento (o eu tem que ficar esquecido) para cons-
truir algum saber, ou mesmo para constituir uma escuta analítica.
REFERÊNCIAS
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CAZOTTE, Jacques. O diabo enamorado. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
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LACAN, Jacques. De um Outro ao outro – seminário [1968-69]. Recife: CEF, 2004.
(Publicação não comercial)
_____ . O seminário, livro XI – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
_____ . Le seminaire l’angoisse [1962-63]. Paris: ALI. (Publicacion hors commerce)
_____ . O seminário, livro X – a angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
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Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003]
ROUDINESCO, Elisabeth. História da psicanálise na França. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1988. v. II.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América – a questão do outro. São Paulo: Martins
Fontes, 1991.
Recebido em 15/05/2009
Aceito em 05/06/2009
Revisado por Valéria Rilho
20
TEXTOS
20
Resumo: A relação entre a literatura e a psicobiografia do autor é interrogada a
partir da análise da obra de Clarice Lispector. Em particular, a segunda fase de
sua produção, na qual se observa a inflexão no estilo de sua escrita, contempo-
rânea às crises de angústia vivenciadas pela autora. Buscaremos demonstrar o
efeito de “desamarração”, de “desenlace”, que uma produção literária pode ter.
Trata-se, pois, de interrogar o quanto tal inflexão do estilo, tem relação com o
objeto da angústia, o que nos permite inferir os efeitos dessa questão para a
clínica psicanalítica dos estados de angústia.
Palavras-chave: psicobiografia, literatura, angústia, estilo, Clarice Lispector.
A LOST LETTER
Abstract: This article interrogates the relationship between literature and the
author´s psychobiography from the analysis of Clarice Lispector´s work. Specially
the second phase of her production, in which an inflection in the writing style is
observed, meanwhile anxiety crisis were experienced by the author. We aim to
demonstrate the effect of an unleashment which a literary production might have.
This means that we interrogate if the inflection is related to the object of anxiety,
what allow us to infer its effects to the psychoanalytical clinic of anxiety states.
Keywords: psychobiography, literature, anxiety, style, Clarice Lispector.
1 Trabalho apresentado no Congresso da APPOA: Angústia, realizado em Porto Alegre, em
novembro de 2008.
2 Psicanalista; Membro da APPOA; Doutora em Psicologia pela Université Paris 13 e Pós-
Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professora adjunta do Programa de Pós-Gradua-
ção em Psicologia Social /UFRGS e do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA/
RJ. Coordena, junto com Edson Luiz André de Sousa, o LAPPAP – Laboratório de Pesquisa em
Psicanálise, Arte e Política. Pesquisadora do CNPq. E-mail: mcrispoli@terra.com.br
UMA CARTA PERDIDA1
Maria Cristina Poli2
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 20-27, jan./jun. 2009
Uma carta perdida
21
Este trabalho parte da indagação motivada pelos efeitos do encontro com aobra de uma das principais autoras da literatura brasileira: Clarice Lispector.
Formularíamos inicialmente a questão do seguinte modo: qual a relação entre
angústia e produção literária? Não a angústia do leitor diante do texto literário.
Essa também existe e interessaria à psicanálise pensar de que modo o escritor
consegue incluir na arte da escrita a presentificação do objeto da angústia com
o qual o leitor vai se confrontar; questão, aliás, da qual se ocupou Freud ([1919]
1988) na abordagem do Unheimlich. Não é disso que trataremos, no entanto.
Tampouco nossa questão se dirige à angústia que move o autor na produção de
sua obra. Questão igualmente pertinente e cuja relação com o que em literatura
se denomina de “angústia da influência” – uma espécie de “temor do plágio” –
caberia precisar. A questão na qual nos deteremos neste trabalho é antes a da
angústia como aquilo que “escapa” ao processo de escrita literária, sendo ao
mesmo tempo produzido por ele. A angústia como efeito de uma letra-carta que
extravasa o texto, atingindo seu autor. Ou, dito de outro modo, para não incorrer
em falsas generalizações, a angústia que acometeu Clarice a partir de dado
momento de sua produção literária e que, segundo nossa leitura, coincide com
o exercício de certo estilo de escrita que se impôs a ela.
Dessa angústia, temos o testemunho daqueles que lhe foram próximos,
transcritas nas biografias, e de algumas cartas trocadas com parentes e ami-
gos, publicadas postumamente. A obra literária de Clarice Lispector foi escrita
entre 1944 (ano do primeiro romance, Perto do coração selvagem) e 1977 (ano
de sua morte e da publicação de A hora da estrela). Alguns escritos foram ainda
publicados postumamente, como Um sopro de vida, compilação de escritos
recolhidos e organizados por Olga Borelli, amiga inseparável de Clarice nos
últimos anos de vida.
É de Olga que provêm os principais testemunhos sobre a angústia que
acometia Clarice:
Não é fácil ser amiga de pessoas muito centradas em si mesmas.
Clarice era deste tipo e portanto exigia e absorvia bastante todas
as pessoas de quem gostava. Tinha grande dificuldade para dor-
mir e inúmeras madrugadas telefonava-me para se dizer angustia-
da e tensa. Acho que jamais esquecerei uma época em que fui
para Salvador dar um curso. Uma noite, ao chegar no hotel, recebi
recado para lhe telefonar com a maior urgência. Sua voz ao telefo-
ne estava estranha: ‘Olga, estou tão aflita. Numa angústia enor-
me. Não sei o que podeacontecer comigo. Volte o mais breve que
você puder.’ Cancelei tudo e vim encontrá-la no dia seguinte na
2222
Maria Cristina Poli
hora do almoço rindo, bem disposta. Sabe o que me disse? Que
eu a levava muito a sério e que tinha apenas me precipitado ao
voltar. É claro, fiquei chateadíssima, mas aprendi muito com a
história (Borelli apud Gotlib, 1995, p. 399-400).
É preciso acrescentar que o que Olga aprendeu foi a dimensionar o tama-
nho da angústia que acometia Clarice, sua necessidade efetiva em se fazer
acompanhar. Em outro momento, é ainda ela que confere o seguinte testemu-
nho sobre a escritora:
Ela sempre dizia: “E agora?”. Você imagina ser amiga de uma
pessoa que, a todo instante, pergunta: “E agora?”. Agora lanchar,
tomar um chá num tal restaurante – nós íamos no Méridien. Termi-
nava de tomar o chá, pagava a conta, ela perguntava: “E agora?” e
agora nós vamos para casa ver televisão. “E agora? E agora? E
depois? E depois?” Era assim (Borelli apud Gotlib, 1995, p. 441).
Tomamos esses recortes sobre Clarice não para interrogar a angústia
que a acometia em sua relação exclusiva com sua biografia – o que não tería-
mos condições de fazer: ler as biografias e conhecer a obra não autoriza a
transformar sua autora em um caso clínico. Interessa-nos é o quanto podemos
reconhecer nesses testemunhos a assunção de uma determinada posição sua
como autora e pensar a angústia como efeito de uma mudança operada em seu
estilo de escrita.
Na obra de Clarice, podem-se reconhecer dois momentos bastante dis-
tintos. Um, primeiro, composto basicamente de seus quatro primeiros livros –
Perto do coração selvagem, O lustre, Cidade sitiada e A maçã no escuro – nos
quais o enredo já é perpassado pelas marcas estilísticas que a caracterizam (o
impressionismo, as elucubrações existenciais, etc.), mas que se sustentam
em dramas passionais, nos quais as condições das relações amorosas e os
desafios identitários (masculino-feminino) dão a tônica da história. Já na segun-
da fase de sua obra, a partir de A paixão segundo G.H., incluindo Água-viva e A
hora da estrela, entre outros, temos o que alguns críticos denominaram de
desficcionalização da obra. São textos cujo cerne não está propriamente no
enredo e na construção de personagens, mas no cair das máscaras, na busca
(impossível) do ponto de encontro entre ser e linguagem. A posição do narrador
aí, sobretudo, é indiscernível daquela do autor, misturando-se com ela.
Lucia Castello Branco (2000) denominou esse tipo de escrita – reconhe-
cível em muitos autores, como Beckett, Joyce e Llansol – do trabalho com a
Uma carta perdida
23
letra na produção de uma textualidade que é diferente daquela que se dá nos
escritos que se organizam pela narratividade. É a letra em sua dimensão de
litoral, de lixo, fazendo lituraterra, como nomeia Lacan ([1971] 2003). Outra coi-
sa é o trabalho com a letra como constituindo uma narrativa. Aí estamos na
operação literária propriamente dita. O que autores como Clarice, Beckett e
Joyce produziram como estilo é da ordem da lituraterra, é da ordem de uma
letra-carta que não chega ao seu destino, como indica Claudia Rego (2005) a
propósito da poetiza Ana Cristina César. Nesses escritos, rompem-se as fron-
teiras entre autor e personagem, entre ficção e realidade. Como escreve Rego,
“o texto não é auto-biográfico. É ato biográfico” (Ibid., p. 105).
Nesse sentido, parece evidente que diferenciar a angústia da pessoa de
Clarice daquela da autora Clarice Lispector implica situar uma clivagem insus-
tentável. Até porque é do segundo tempo de seu trabalho – tempo do trabalho de
lituraterra – que a angústia que relatamos emerge. A primeira parte da obra é
praticamente toda produzida no exterior, onde acompanhava o marido em suas
funções diplomáticas. Desse período temos as cartas trocadas com amigos e
parentes, e que expressam períodos de grande solidão e tristeza, porém nada
semelhante ao que será vivido como angústia posteriormente. Em 1959, separa-
se e instala-se no Rio de Janeiro com os dois filhos. É nessa época que se dá
a “virada” em sua produção.
O eu do autor e a angústia da obra
Antes de seguirmos essa via de análise, cabe situar melhor aqui uma
questão de método. Pois é preciso que se diga que a pergunta sobre a angústia
como efeito da produção literária coloca para a psicanálise um desafio de méto-
do, na medida justamente em que é impossível elidir dessa questão a pessoa
do autor. Se é o “eu” a sede da angústia, como bem destacou Freud ([1926]
1988), é o “eu” de Clarice que está aí implicado. “Eu”, esse, que ela busca em
sua obra reduzir a uma pura condição de enunciação, um eu que ao longo da
narrativa experiencia o despojamento de suas qualidades (A hora da estrela), o
atravessamento de suas posições identificatórias (A paixão segundo G.H.), a
busca última de uma forma de dizer o indizível (Água-viva).
Essa “paixão pelo real”, que conduz Clarice em sua última produção,
cobra seus efeitos. Como ela mesma nos diz, em seu livro póstumo, Um sopro
de vida: “O objeto – a coisa – sempre me fascinou e de algum modo me des-
truiu” (Lispector [1978]1999, p. 104).
Retomemos, então, por um instante a análise de Lacan ([1958] 1998) sobre
A juventude de Gide ou a letra e o desejo, texto no qual tampouco Lacan se exime
de incluir a psicobiografia do escritor (escrita por Delay) na leitura de sua obra.
2424
Maria Cristina Poli
A psicanálise só se aplica, em sentido próprio, como tratamento, e
portanto, a um sujeito que fala e ouve. Fora desse caso, só pode
tratar-se de método psicanalítico, aquele que procede à decifração
dos significantes, sem considerar nenhuma forma de existência
pressuposta do significado. O que o livro em exame [A psicobiografia
de Gide] mostra brilhantemente é que uma investigação, na medida
em que observa esse princípio, pela simples honestidade de ade-
quação ao modo como um material literário deve ser lido, encontra
na ordenação de sua própria narrativa a própria estrutura do sujeito
que a psicanálise designa (Lacan, [1958] 1998, p. 758).
É possível, portanto, ler o texto literário em sua relação com a biografia
do autor de modo a encontrar aí “a própria estrutura do sujeito que a psicanálise
designa”. Em relação a Gide, o ponto salientado por Lacan é o episódio de sua
biografia, retomado pelo próprio em um texto autobiográfico, no qual sua espo-
sa, Madeleine, se sentindo traída, queima as cartas de amor que Gide lhe ende-
reçara por muitos anos. A história é bastante conhecida: Gide era homossexual
e tinha com Madeleine – que além de esposa era também sua prima – um
“casamento casto” acordado entre ambos. O que não impediu Gide de ser efe-
tivamente apaixonado por Madeleine e de lhe ter escrito uma longa correspon-
dência amorosa, incinerada por ela.
Após a morte de Madeleine, Gide escreve o livro no qual narra de modo
ressentido o episódio da queima das cartas: “talvez não tenha havido jamais
tão bela correspondência”. Lacan, no texto sobre Gide, analisa não apenas o
ato de Madeleine (um ato que, segundo ele, faz dela uma verdadeira mulher ao
destruir aquilo que lhe tinha sido dado de mais precioso). Ele considera tam-
bém a reação ressentida de Gide ao luto pela morte de Madeleine: reagindo à
perda da mulher amada, ele a culpabiliza pela perda das cartas. Gide, escreve
Lacan, reage como uma fêmea ferida no ventre (como a mãe que perde um
filho), sentindo a perda como a “devastação de uma privação desumana”. O
interessante é que Lacan acrescenta ter sido esse ato (a destruição das car-
tas) que permitiu situar ali, em Gide, a “letra do desejo”. A ferida no ventre
“preenche com exatidão o vazio que o ato da mulher quis abrir em seu ser”
(Lacan, [1958] 1998, p.772). A perda das cartas (de seu objeto mais precioso)
situa, portanto, a possibilidade de abertura para o desejo.
Qual o estatuto dessa carta perdida? Aqui Lacan fala em luto, em devas-
tação e ressentimento. Porém, trata-se de uma perda que permite, em sua
elaboração pela escrita, algo de um acesso ao desejo. Nem sempre, contudo –
acrescentaríamos–, é assim que as coisas se passam.
Uma carta perdida
25
No seminário A angústia, no capítulo “De uma falta irredutível ao signifi-
cante”, Lacan ([1962-63] 2005) retoma a diferença, antiga já nessa época, entre
castração e privação, tirando outras consequências. Ele propõe dois apólogos:
um livro está fora de seu lugar na biblioteca. Tal ordem de falta é perfeitamente
nomeável, na medida em que há uma ordem simbólica, uma série (a biblioteca),
na qual uma falta é reconhecida. O que “falta em seu lugar”, dá as condições
para que um significante (simbolizado pelo livro) possa representá-lo. Essa é a
função do falo na castração. Mas Lacan continua: suponhamos que nesse livro
esteja escrito: “faltam quatro gravuras” (p.147). Nesse caso, não adianta resti-
tuir o livro ao seu lugar na prateleira, que as gravuras não retornam. Ou seja, há
um outro tipo de falta – a privação – que situa um objeto insubstituível: o objeto
a. É certo que ele pode ser cifrado, pode ser escrito, mas não é imaginarizável,
nem apreensível. Conforme suas palavras:
A falta é radical, radical na própria constituição da subjetividade, tal
como esta nos aparece por via da experiência analítica. Eu gostaria
de enunciá-la com esta formulação: a partir do momento em que
isso é sabido, em que algo chega ao saber [em que algo é escri-
to?], há alguma coisa perdida, e a maneira mais segura de abordar
esse algo perdido é concebê-lo como um pedaço do corpo (Lacan,
[1962-63] 2005, p.148) (o acréscimo entre colchetes é nosso).
E, mais adiante:
Ele [o objeto a] é justamente o que resiste a qualquer assimilação
à função do significante, e é por isso mesmo que simboliza o que,
na esfera do significante, sempre se apresenta como perdido, como
o que se perde para a ‘significantização’. Ora é justamente esse
dejeto, essa queda, o que resiste à ‘significantização’, que vem a
se mostrar constitutivo do fundamento como tal do sujeito
desejante (Ibid., p. 193).
É esse tipo de falta, essa letra-dejeto, que se faz presente em determina-
das experiências de angústia. Neste caso, a sua relação com a nomeação do
desejo não é tão direta como Lacan parece supor no texto sobre Gide. Não se
trata de situar ali – na experiência da angústia que condiz com o encontro com
esse ponto de privação – o lugar no qual se poderia aceder a uma representação
possível do desejo do Outro, à nomeação daquilo que lhe falta. A angústia, e é
isso que o texto clariciano nos permite apreender, é a presentificação de um real
2626
Maria Cristina Poli
sem nome, mesmo que ele esteja, paradoxalmente, incluído e de certo modo
escrito no texto (“faltam quatro gravuras”).
Um outro modo de pensar isso também é proposto por Lacan, ao se valer,
em diferentes momentos, da metáfora do pote de mostarda. A brincadeira que
ele faz é com a metáfora do oleiro, introduzida por Heidegger, como paradigma
da produção do objeto de arte. O vaso de argila produzido pelo oleiro recorta um
espaço vazio, a partir de seu contorno. A condição da arte é a de bordear um
vazio, de modo semelhante ao contorno do objeto operado pela pulsão, produ-
zindo, no mesmo movimento, o orifício erógeno no corpo.
Imaginemos agora que esse vazio pudesse extravasar as bordas que o con-
têm. Quando pensamos no pote de mostarda, é fácil, podemos facilmente imaginar
colocar mostarda demais e ela transpor as bordas de seu pote. No caso do vazio,
é mais difícil imaginar, mas a experiência da angústia é o que nos demonstra a
sua possibilidade. Quase como se no jogo de figura-fundo, ao invés de vermos o
vaso e o vazio dentro dele, víssemos o vazio dentro e fora, contendo o vaso.
Na literatura de Clarice, algo assim se produz. Para o leitor, a experiência
é a do encontro com um texto-vaso que constrói um veio de leitura tracejado
pelas letras. Para sua autora, no entanto, a radicalidade dessa escrita, a busca
que ela opera, se traduz (conforme Lacan ([1962-63] 2005): “a angústia é a
tradução subjetiva do objeto a”) na experiência de angústia que a acossa.
A poedeira e os efeitos da autoria
Quando trabalha a escrita de Joyce, no Seminário 23, Lacan ([1975-76]
2007) compara o trabalho do escritor ao de uma poedeira. Pôr um ovo é a figura-
ção evocada para a produção de um novo pedaço de real. Segundo Lacan, foi
essa produção feita por Joyce que lhe permitiu aceder a uma amarração subje-
tiva, a construção de um quarto nó (o Sinthoma), que fez suplência ao Nome-do-
pai. Tal foi o efeito de retorno que a produção da obra teve, no caso de Joyce,
sobre seu autor. Será, no entanto, sempre assim? A pergunta se justifica porque
no caso de nossa autora, Clarice Lispector, a produção da obra parece que teve
efeito contrário, teve um efeito de desamarração subjetiva. Escrevemos “pare-
ce”, e sublinhamos a palavra, porque não temos elementos suficientes para
sustentá-lo com certeza. É um tema de trabalho a desenvolver.
Em todo o caso, gostaríamos de destacar, através desse contra-exem-
plo, que nem sempre a produção da obra e a nomeação subsequente (vale
destacar que também Clarice foi muito reconhecida em vida e que sua obra será
igualmente estudada pelos universitários nos próximos 200 anos) têm tal efeito
de amarração subjetiva. Pelo contrário, a desmontagem que impôs a seus es-
critos parece ter incidido também sobre ela.
Uma carta perdida
27
Fiquemos, então, com suas próprias palavras – com a impactante luci-
dez, na hora de estrela:
Com essa história eu vou me sensibilizar, e bem sei que cada dia
é um dia roubado da morte. Eu não sou um intelectual, escrevo
com o corpo. E o que escrevo é uma névoa úmida. As palavras
são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais,
estalactites, renda música transfigurada de órgão. Mal ouso cla-
mar palavras a essa rede vibrante e rica, mórbida e obscura tendo
como contratom o baixo grosso da dor. Alegro com brio. Tentarei
tirar ouro do carvão. Sei que estou adiando a história e que brinco
de bola sem a bola. O fato é um ato? Juro que esse livro é feito
sem palavras. É uma fotografia muda. Esse livro é um silêncio.
Esse livro é uma pergunta (Lispector, [1977] 1988, p.22-23).
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Secretaria do Estado da Cultura/ UFJF, 1997.
REGO, Claudia de Moraes. Ana Cristina Cesar: uma carta nem sempre chega a seu
destino. Letra Freudiana – Do sintoma ao sinthoma. Rio de Janeiro, n. 17/18, p. 103-
109, 2005.
Recebido em 17/04/2009
Aceito em 08/05/2009
Revisado por Larissa Scherer e Simone Goulart Kasper
28
TEXTOS
28
Resumo: O artigo parte do romance Homem comum, de Philip Roth, para abor-
dar as angústias contemporâneas, manifestas na solidão, no desamparo, na
falta de sentido na vida, na extrema preocupação com o corpo e no temor em
relação à morte – mais do que com a morte física, com a morte psíquica, a
morte do desejo. Além da análise do texto literário, o artigo apresenta também
um relato clínico para abordar a direção do tratamento psicanalítico nesses
casos.Palavras-chave: angústia, contemporaneidade, solidão, desamparo, morte.
CONTEMPORARY ANXIETIES
Abstract: This article takes Philip Roth romance The common man to investigate
contemporary anxieties, shown in solitude, in helplessness , in the lack of meaning
in life, in the extreme worry with the body and the fear of death – not a physical
death, but a psychic death, a death of the desire. Beyond literary analysis, the
article also presents a clinical case to discuss the direction of psychoanalytical
treatment in such cases.
Keywords: anxiety, contemporary, solitude, helplessness, death.
ANGÚSTIAS
CONTEMPORÂNEAS1
Rosane Monteiro Ramalho2
1 Trabalho apresentado no Congresso da APPOA : Angústia, realizado em Porto Alegre, em
novembro de 2008.
2 Psicanalista; Membro da APPOA; Mestre em Psicologia Clínica - PUC/SP; Professora da
Residência Médica em Psiquiatria e da Residência Multiprofissional em Saúde Mental, do Insti-
tuto Municipal Philippe Pinel, no Rio de Janeiro. E-mail: rosaneram@gmail.com
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 28-37, jan./jun. 2009
Angústias contemporâneas
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Um dos maiores escritores americanos da atualidade, Philip Roth é autor demais de vinte romances, entre eles: Complexo de Portnoy, Pastoral ameri-
cana, Complô contra a América, A marca humana, O animal agonizante; a partir
deste último, recentemente foi realizado um filme cujo título em português é:
Fatal3. Roth tem recebido vários prêmios literários, sendo candidato constante
ao Prêmio Nobel. O sucesso de sua obra parece decorrer não apenas de seu
estilo peculiar, direto e contundente, mas também do tema central que atraves-
sa suas narrativas: a angústia do sujeito contemporâneo, manifesta na solidão,
no desamparo, na depressão, na falta de sentido na vida, na extrema preocupa-
ção com o corpo e com a limitação deste – a doença, a velhice e a morte.
Essa temática é retomada de maneira tocante num de seus últimos livros
Homem comum (Roth, 2007). O título original do romance, Everyman, vem de
uma peça anônima do século XV, um clássico da dramaturgia inglesa, cujo
tema é a convocação dos vivos para o reencontro com os valores cristãos a
partir de um confronto com a Morte, a figura trágica por excelência. Roth cons-
trói uma história pungente do encontro de um homem comum com a morte, mas
esta se escreve com minúscula, sem o sentido religioso ou transcendente. Em
sua narrativa, a morte é apenas o ponto final da existência. No entanto, a proxi-
midade desse momento terminal acaba levando o homem comum a deparar-se
com o vazio de sua vida. A crítica logo apontou a afinidade temática do livro com
a obra prima de Leon Tolstói (1997), A morte de Ivan Ilich, de 1886, na qual um
juiz à beira da morte se dá conta de como sua vida havia sido convencional,
supérflua, medíocre.
Diferentemente do que ocorre na peça do século XV e no romance do fim
do século XIX, na narrativa de Roth (2007) não há nenhuma promessa de reden-
ção, ou de continuidade, de vida para além da morte. Seu personagem chega ao
final da existência para lá encontrar nada mais do que o inventário desolador de
suas escolhas e a somatória pífia de seus atos. O homem comum de Roth, tão
comum que sequer recebe do autor um nome próprio, é uma metáfora que
condensa em grande medida a perplexidade e a solidão do sujeito contemporâ-
neo. O fato de não ter nome sugere ainda que pode se tratar de qualquer um de
nós.
A história inicia-se após a morte do protagonista – no enterro –, partindo
daí para a recapitulação de sua trajetória de vida. Estamos num cemitério deca-
3 Com direção de Isabel Coixet.
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Rosane Monteiro Ramalho
dente, situado no que fora outrora um lugar aprazível e calmo, mas que havia se
tornado ao longo dos anos um desconfortável amontoado de túmulos à beira de
uma movimentada estrada. Poucas pessoas estão presentes – apesar do cui-
dado da filha em chamar alguns conhecidos, para que não estivessem na ceri-
mônia somente ela, um tio e sua esposa. Por conta de seu empenho, acabam
indo ao funeral também a sua mãe (uma das três ex-mulheres de seu pai), seus
dois irmãos do primeiro casamento – que detestavam abertamente o pai –,
alguns alunos das aulas de artes que ele havia passado a dar após a aposenta-
doria, e alguns velhinhos do condomínio, uma espécie de asilo, em que ele
morava no final de sua vida. Uma única pessoa presente não tinha sido convida-
da – uma enfermeira amiga que havia cuidado dele numa cirurgia anterior.
 Roth comenta:
E assim terminou. [...] Em todo o estado, naquele dia, tinha havi-
do quinhentos funerais como este, rotineiros, normais. [...] É jus-
tamente o que há de normal nos funerais que os torna mais dolo-
rosos, mais um registro da realidade da morte que avassala tudo
(Roth, 2007, p.17-18).
Toda a história do livro gira em torno da angústia, insistente e sem remé-
dio, do homem comum em relação à realidade da morte. Esse sentimento inqui-
etante e atormentador o persegue. Desdobrado em várias cenas: desde o seu
primeiro confronto chocante com a morte nas praias idílicas de sua infância, em
que viu um cadáver inchado saindo do mar, passando pela cirurgia de hérnia a
que se submeteu quando ainda era menino (e o fato de ter presenciado, naquela
ocasião, a morte de outra criança, no leito ao lado do seu), a crise de peritonite
que, na sua infância, acometeu a seu pai e quase o matou, até, na velhice,
deparar-se com a deterioração de seus contemporâneos, com seus próprios
problemas de saúde e a decadência inexorável de seu corpo. Durante toda a
vida, sua angústia e a sua única certeza se misturavam na ideia da inevitabilidade
da morte.
O homem comum trabalhara numa agência publicitária de Nova Iorque,
tendo tido sucesso. Após a aposentadoria, dedicou-se à pintura de quadros –
que era, na verdade, seu desejo sempre adiado –, passando a morar na praia, a
mesma à qual ia com a família, quando criança, passar parte dos verões. Teve
três casamentos, com mulheres muito diferentes. Separou-se da primeira mu-
lher para ficar com a amante, fato que causou grande abalo e revolta na ex-
mulher, e produziu nos filhos um sentimento do qual jamais se livraram – o de
que não tinham mais pai. Do segundo casamento ele teve uma filha, uma das
Angústias contemporâneas
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únicas pessoas com quem conseguiu manter relação afetiva forte ao longo da
vida. Apesar do amor que reconhecia sentir pela esposa, e do valor que sua
família tinha para ele, no entanto, o homem comum se via sempre impulsionado
a buscar novas sensações eróticas. Assim, embora esse casamento tivesse
correspondido ao que ele sempre buscara para si em uma relação amorosa,
acabou por ter desfecho semelhante ao anterior, atropelado pelo seu envolvimento
com outra mulher – uma jovem modelo cuja idade era a metade da sua. Esse
terceiro casamento durou, no entanto, o pouco tempo compatível com a super-
ficialidade da relação. Com o passar dos anos, já na velhice, reconheceu que a
solidão que sentia era consequência de suas escolhas ao longo da vida. Sua
única companhia constante terminou sendo praticamente a do seu próprio cor-
po – agora, porém, frágil e hesitante – e as doenças que foram se sucedendo
até que a última o conduzisse ao inexorável ponto final de sua existência.
Como acreditava que nada havia além da morte, passou a vida inteira
tentando driblá-la, fugir dela, embora o tempo todo pressentisse a sua insidiosa
presença. Com o tempo, a decadência física e as inúmeras doenças e internações
tornaram sua presença uma realidade anunciada incontornável. Invejava a saúde
do seu irmão mais velho, chegando a odiá-lo por isso, pois, ao vê-lo, saudável e
forte, via a si mesmo como um corpo decadente. Passou a ter vergonha do ser
em que se transformara: “dava-se conta, humilhado, de que não era apenas no
plano físico que se havia reduzido à condição de alguém que não desejava ser”
(Roth, 2007, p. 105). “Havia se tornado algo que jamais sonhara ser” (Ibid., p.
117). Percebia, de forma contundente, que havia construído para si seu destino
solitárioe que já não havia mais como refazê-lo.
Deprimido, não conseguia nem mais pintar. Certa vez, falando com a filha
única pessoa com quem mantinha contato no final de sua vida – disse ter sofrido
uma “vasectomia estética irreversível”.
Sentia-se meio morto em vida, como se permanentemente esperasse
pela morte, ao mesmo tempo em que lutava contra ela. Mesmo nos momentos
felizes que havia tido ao longo da vida, por exemplo, ao estar na praia – que era
um dos seus lugares preferidos – ao lado da mulher a quem amava, ainda as-
sim, uma angústia insistente o acompanhava.
Vejamos a seguinte passagem:
Os únicos momentos desconfortáveis eram, à noite, quando ca-
minhavam juntos ao longo da praia. O mar escuro a rugir imponen-
te e o céu a esbanjar estrelas lhe dizia de modo inequívoco que
ele estava fadado a morrer, e o trovão do mar a poucos metros de
distância – e o pesadelo daquele negrume mais negro sob o frene-
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Rosane Monteiro Ramalho
si das águas – lhe davam vontade de sair correndo daquela ame-
aça de aniquilamento para a casinha de praia acolhedora, ilumina-
da e quase sem móveis (Roth, 2007, p.28).
E continua:
Não conseguia entender de onde vinha aquele medo, e precisava
de todas as suas forças para ocultá-lo de Phoebe4. Por que esta-
ria inseguro sobre sua vida, justamente agora que a dominava
mais que em qualquer outro momento dos últimos anos? Por que
se imaginava próximo da extinção quando um raciocínio tranquilo
e objetivo lhe dizia que ainda tinha muita vida sólida pela frente?
(Roth, 2007, p. 28).
A angústia diante da morte tingia seu cotidiano e se manifestava de vari-
adas maneiras. Uma delas era a excessiva preocupação com o corpo, que se
intensificou quando começou a envelhecer e as doenças passaram a se tornar
mais presentes. O sucesso profissional alcançado fôra com certeza importante
para ele, por outorgar-lhe valor, não só aos seus olhos, mas também aos olhos
dos outros. Apesar disso, o sentimento mais forte era de que sua potência para
a vida tinha relação muito mais direta com a vitalidade do corpo, com a tonicidade
dos músculos. A imagem que tinha de si consistia na imagem que tinha de seu
corpo. Desse modo, quando passou a ver o corpo em decadência, também a
imagem de si tornou-se a de um ser decadente.
O homem comum sentia não ter com o que contar, algo que lhe desse
sustentação, para além da precária ancoragem na imagem de um corpo saudá-
vel e forte. Não é de espantar, uma vez que a falta ou precariedade dos referenciais
simbólicos, da função paterna em nossa cultura – no caso a ocidental – faz com
que os sujeitos tomem as imagens oferecidas pelo social como balizas para
dizer de si, utilizando a imagem do corpo como um referente privilegiado para
sua construção identitária. Percebemos, ainda, que o que acaba fazendo limite
ao sujeito, na falta de uma interdição simbólica, é justamente o real do corpo, ou
seja, a doença, o envelhecimento e a morte.
Podemos dizer que a angústia e suas expressões: a sensação de de-
samparo, de vazio, a constante suposição de uma ameaça velada de aniquila-
4 Sua mulher na época.
Angústias contemporâneas
33
mento, o vago sentimento de se achar próximo da extinção, que encontramos
no homem comum de Roth, fazem parte do leque de afetos que rondam a expe-
riência dos humanos. A inevitável dor de existir faz parte da condição humana e
é também o que move o sujeito. A angústia, porém, se apresenta em modalida-
des e intensidades diversas, variando não só na singularidade da existência de
cada sujeito, como também nos contextos sócio-históricos nos quais as coleti-
vidades de sujeitos constroem suas formas de vida. Nos dias atuais, a angústia
emerge em variadas formas, seguindo roteiros de configuração e expressão do
sofrimento predominantes em nossa cultura. Transtorno do pânico, depressão,
adições em geral (de álcool, de drogas, de objetos de consumo, obesidade ou
outros transtornos alimentares, tais como, anorexia, bulimia), são algumas das
formas com que a angústia se apresenta hoje.
Além disso, há, como já é conhecido, o significativo aumento dos casos
limítrofes, também chamados estados-limite (segundo a nomenclatura france-
sa) ou borderline (conforme a nosografia americana) – casos que não consistem
em quadros de neurose propriamente dita, tampouco de psicose, mas que apre-
sentam em comum a problemática acerca dos limites, das bordas, enfim, da
diferença entre o eu e o outro.
Freud já dizia que, em matéria de experiência humana, os escritores e
poetas dizem melhor e mais cedo o que os psicanalistas se esforçam por tentar
entender a seu modo. A descrição que Roth faz das vicissitudes da vida do
homem comum vale como uma chave para compreender algumas das caracte-
rísticas essenciais do modo de sofrer a que estão expostos os sujeitos atuais,
membros de uma sociedade que, em nome da liberdade, livrou-se das amarras
simbólicas e que, em nome da autonomia e da autocriação, desfez os laços,
referências e horizontes que balizavam sentidos transcendentes em relação às
existências.
Num curioso efeito colateral, a sociedade que mais liberou os indivíduos
das proscrições do passado acabou por esvaziar também as prescrições em
relação ao futuro, tornando a experiência de existir um penoso desafio para
muitos. Donos do seu destino ou entregues à própria sorte? Livres para escolher
ou sem bússola com que se orientar? Autônomos em relação aos outros ou
desgarrados? Nem sempre é fácil se situar nessa gangorra, e o preço a ser
pago pela oscilação é, frequentemente, o da angústia, seja na sua forma aguda,
seja na sua forma mais difusa. É nessa inconsistência, nesse vazio de referenciais,
que reside a fonte de boa parte da angústia inominada, insistente e difusa que
acometia o homem comum. É ela também que se revela por trás da dinâmica
psíquica de muitos que compõem o panorama – recorrente na clínica atual – dos
sujeitos à deriva, em busca de si mesmos e de um lugar para si no mundo.
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Rosane Monteiro Ramalho
 Certa vez, procurou-me para análise um rapaz que não conseguia viver a
sua vida. Sentia-se, em suas palavras, “morto em vida”. Havia concluído a facul-
dade a muito custo, mas não conseguia trabalhar. Seu mundo social era muito
estreito, limitando-se às idas à academia de ginástica três vezes por semana.
Essa era praticamente a sua única ocupação. Tinha uma forte preocupação
com sua imagem, com as bordas do seu corpo – expressão de sua extrema
fragilidade psíquica. Mantinha uma vida reclusa, vivida entre as paredes de seu
jk (o chamado quitenete), onde escutava música, lia, ficava no computador.
Costumava masturbar-se – o que passou a ser uma preocupação para ele, pois
a julgava uma prática excessiva –, assim como comer compulsivamente. Não
conseguia ter limite em relação a esses atos, através dos quais tentava deses-
peradamente preencher seu vazio psíquico. Também achava preocupante o uso
contumaz que fazia de álcool e de maconha, como certa anestesia para sua
angústia. Quando esta se intensificava, tornando-se insuportável, sentia que
seu corpo se dissolvia, perdia seu contorno, suas bordas, ocasiões em que
ficava um longo período olhando-se no espelho, na tentativa desesperada de
sustentar uma imagem de si que lhe parecia se desintegrar. Sentia um desam-
paro, uma insuficiência, um vazio e uma solidão enormes, encontrando-se sem
condições de entrar na vida e, por isso, permanecia à margem dela, não encon-
trando lugar para si no mundo. Sua vida não tinha sentido algum para ele. A
relação com a família era bem difícil e mantinha sistemática distância em rela-
ção a ela. Tinha uma irmã com graves problemas físicos congênitos e com
complexas repercussões psíquicas – que ocupava praticamente toda a atenção
de seus pais. Estes depositavam mensalmente uma quantia para o filho e era
nisso que basicamente consistia o contato entre eles. Não encontrava um lugar
para si no desejo de seus pais. Mantinha, porém, relação bem estreita com uma
amiga, por meio de quem estabelecia seu frágil contato com o mundo, alguém
que tinha emrelação a ele uma posição eminentemente materna – algo que ele
não encontrava na sua própria mãe. Era com essa amiga, por exemplo, que
frequentava a academia.
Assim como ocorria com a experiência de si, sempre precária e vacilante
ao sentir seu corpo sem bordas – também a fronteira entre ele e o outro era
bastante tênue, e, por isso, facilmente, em suas poucas relações pessoais,
alternavam-se os sentimentos de invasão e o de abandono – ocasiões em que
se tornava muito agressivo. Essa agressividade, porém, consistia numa reação
frente à agressividade experienciada como vinda do outro, sob a forma de inva-
são ou de abandono. Ele seguidamente incomodava-se com os barulhos dos
vizinhos, barulhos que considerava como dirigidos propositalmente a ele, de
forma a atormentá-lo. A força de sua convicção parecia fazer dela um delírio.
Angústias contemporâneas
35
Porém, não se tratava de uma formação delirante porque ele, às vezes, chegava
a duvidar de que fosse mesmo um ato intencional por parte do vizinho. Os ruídos
vindos da parede ao lado o atormentavam principalmente por evocarem a vida
social da qual ele se sentia excluído. Nessas ocasiões, ele fazia um barulho
ainda maior, de forma a revidar a agressão sofrida, batendo com a vassoura no
chão ou na parede divisória ao apartamento do vizinho, ou colocando uma músi-
ca (um rock estridente) em volume ensurdecedor. Também nesse sentido, na
análise, muitas vezes ele era tomado pela fúria justamente nos momentos em
que se sentia abandonado ou invadido, restando espaço muito reduzido para
transitarmos entre esse tudo ou nada. As bordas, os contornos entre ele e o
outro eram frágeis, pouco definidos. Por isso, o estabelecimento de algum limite
por mais que fosse ansiado por ele – era, também, por demais agressivo, quan-
do não impossível, por muitas vezes implicar a sensação de destruição psíqui-
ca. Como se, perdendo o outro (esse outro sendo vivido como literalmente uma
parte dele), ele não mais pudesse existir. De modo semelhante, ao se sentir
invadido, sentia-se implodindo psiquicamente. Sua resposta a isso era a
agressividade, ora voltada a si mesmo, ora ao outro, algumas vezes, passando
ao ato, colocando, inclusive, a vida em risco.
Acredito que essa seja uma das situações mais difíceis com as quais
tenho lidado na clínica, pois se trata de uma clínica de riscos. Nesses casos,
muitas vezes, diante do excesso de real, há o risco de a angústia do analista
transformar-se em impotência, diante da dificuldade de lidar nesse limite, nesse
fio da navalha, em que um deslize pode ser fatal. Mais do que o levantamento do
recalque para uma abertura significante, uma vez que justamente se trata da
falta da falta – da falta simbólica, ou seja, da castração5 –, nesses casos, a
clínica implica justamente o estabelecimento de um limite, de uma borda, en-
fim, de uma alteridade. Trata-se de um trabalho cuidadoso e delicado de cons-
trução dessa possibilidade, visto o limite ser vivido por esses sujeitos como
impossível. E como o dentro e o fora se dão simultaneamente, num processo
dialético, ou seja, o dentro pressupõe um fora – e vice-versa –, a construção de
um limite, de uma borda, de um litoral, implica também a construção de uma
identidade para si, ou seja, de certa consistência subjetiva. E isso só será
alcançado na medida em que o sujeito possa construir uma narrativa para o que,
até então, era experienciado como pura angústia – sem palavras, portanto: na me-
5 Lacan, no Seminário 4 , fala de três faltas: falta simbólica (ou castração), falta imaginária (ou
frustração) e falta real (ou privação). E, também, no Seminário 10, ele formula a ideia da
angústia como sinal da falta da falta simbólica.
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Rosane Monteiro Ramalho
dida em que possa dar um contorno a esse real, ou, em outras palavras, nominar
esse indizível, transformando essa vivência numa narrativa compartilhada.
O fato de o paciente colocar em palavras o que até então era vivido como
pura angústia consiste na tentativa de dar inscrição simbólica ao real, de dar
forma ao vazio. Porém, não se trata de preencher esse vazio, mas de dar-lhe
uma borda, um contorno. Como no ato de falar há endereçamento a um outro, o
analista, então, ao escutar, passa a ocupar o lugar desse outro a que as palavras
são endereçadas, ao mesmo tempo em que passa a exercer a função de teste-
munho da narrativa que ali se produz. O reconhecimento, pelo analista, daquilo
que é falado pelo paciente (dessa sua experiência narrativa) outorga também àquele
que fala o reconhecimento enquanto sujeito – na medida em que supõe que ali
exista um –, possibilitando-lhe, assim, aceder à posição de sujeito.
O trabalho clínico, nesses casos, requer que o analista se mantenha
nem excessivamente longe, nem excessivamente perto do seu paciente, mas
que consiga sustentar a presença fundamental que possibilite instaurar uma
ausência, constituindo, então, a possibilidade da presença de uma ausência,
ou seja, de uma via simbólica. A partir de relação transferencial intensa, quase
fusional, sem diferença entre ele e o outro, o analista tenta instaurar um interva-
lo, tal qual o fort-da freudiano – o que muitas vezes é extremamente complica-
do, porém essencial, para que seja possível a construção de uma narrativa do
que, até então, era só vivido de forma emudecida ou atuada.
Podemos dizer que a angústia que atormentava o meu paciente era seme-
lhante à do homem comum: expressa no desamparo, na solidão, no vazio, na falta
de sentido na vida – porém numa intensidade significativamente maior, potencializada,
transbordante, ameaçando inclusive sua frágil consistência psíquica.
Para concluir, volto novamente à literatura, desta vez a Fernando Pessoa,
mais exatamente ao seu heterônimo, Álvaro de Campos, que conseguiu colocar
em palavras, de forma muito bonita e tocante, o indizível da angústia. É a poesia
chamada: Bicarbonato de soda.
Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Angústias contemporâneas
37
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E—xis—tir ...
Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,
Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconsequência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!
Deem-me de beber, que não tenho sede! (Pessoa, 1980, p. 264-265).
Essa é a angústia, a dor que afligia o homem de Roth e que aflige os
homens sem contorno, que seguidamente encontramos na clínica. Podemos
ver também o quanto é comum essa angústia nos sujeitos, hoje, os quais, em
suas solidões, sentem não poder contar com mais ninguém, além de si
mesmos...uma angústia que, mais do que em relação à morte física, diz respei-
to à terrível experiência de morte psíquica, de morte subjetiva, de morte do
desejo. O nosso desafio na clínica, hoje, consiste, então, em como, diante
desse deserto de ancoragens, fazer emergir sujeitos desejantes.
REFERÊNCIAS
LACAN, Jacques. O seminário, livro 4: as relações de objeto [1956-1957]. Rio de
Janeiro: J. Zahar Ed., 1995.
______. O seminário, livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2005.
PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
ROTH, Philip. Homem comum. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
TOLSTOI, Leão. A morte de Ivan Ilitch. Rio de Janeiro: Lacerda, 1997.
Recebido em 20/03/09
Aceito em 17/04/09
Revisado por Ieda

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