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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Faculdade de Direito – Sociologia Geral – MG1 São Paulo, 23 de março de 2021 Profª Dora Nogueira Porto Ana Beatriz Mendes Simon Machado, Beatriz Camargo Ferreira de Castilho, Bruna Furlan Pedrosa, Júlia Mello Pinheiro, Karoline Torres Ferreira. Atividade II: Relacionar o filme “O enigma de Kaspar Hauser” com os processos de socialização. Pierre Bourdie, George Mead, entre outros estudiosos, tiveram como objetivo o estudo da psicologia social, ou seja, buscavam entender o comportamento humano dentro da sociedade. Nesse sentido, define-se o processo de socialização como uma relação entre indivíduo e coletividade, estabelecida por meio de hábitos e comportamentos desenvolvidos ao longo do convívio social. Esse processo acompanha os indivíduos desde o nascimento até a morte, e insere, desse modo, padrões e valores que influenciam nas ações particulares e moldam a identidade do homem enquanto parte da sociedade. Nessa perspectiva, o filme “O Enigma de Kaspar Hauser”, dirigido e produzido por Werner Herzog, relata a história de Kaspar, cujo nascimento ocorreu de maneira isolada, o que consequentemente o privou de um processo de socialização primária. Dentro dessa perspectiva, ele será integrado na cidade de Nuremberg por meio da obediência às regras e repressão, de maneira que o seu principal instrumento será a linguagem. Dessa maneira, a sociedade tentará concebê-lo de acordo com seus moldes, algo que Kaspar não tinha contato em sua natureza. É importante mencionar que no panorama do século XIX, época na qual Kaspar Hauser viveu, era notório uma sociedade fortemente marcada por um viés positivista. A visão de um modelo científico que contribuiria para o desenvolvimento dos homens e para a obtenção de uma sociedade ideal estava em seu auge. Sob esse aspecto, todos os indivíduos que não estavam englobados nessa perspectiva de homem “civilizado” eram classificados como atrasados e deveriam ser “ajudados” a promover graus mais elevados de desenvolvimento e evolução. É dentro desse prisma que Kaspar será socializado. Kaspar Hauser viveu em um mundo em que acreditava ser o único, reduzido apenas a quatro paredes e a poucos objetos, como um cavalo de brinquedo. Desconhecendo por completo a existência de um mundo além daquele ambiente frio e escuro que conhecia, não desenvolveu a linguagem nem as atividades motoras, haja vista que fora privado do “jogo sem regras”, o qual é conceituado por George Mead como o momento em que os indivíduos aprendem os papéis sociais e imitam os adultos os quais convivem. Desse modo, o menino tem seu primeiro contato com a sociedade somente aos 18 anos, quando foi deixado por seu criador em uma praça de Nuremberg em maio de 1828, trazendo em sua mão uma carta de apresentação anônima para o capitão da cavalaria local e clamando que fizessem dele um cavaleiro como fora seu pai, sem ao menos saber o significado desse pedido. Nesse viés, ele entra em contato com uma comunidade já dotada de uma organização e de padrões de comportamento pré-estabelecidos, fato que gera um choque muito grande para ele, visto que, além de não ter participado do “jogo sem regras”, Kaspar deveria tomar consciência de um mundo que imaginava compreender somente as paredes da torre em que vivia, sendo que se ele tivesse passado pela fase do "jogo com regras", teria estado em busca de reconhecimento, pela necessidade de querer ser considerado membro dessa sociedade. Kaspar passa a integrar a sociedade sem ter sofrido a socialização primária, ou seja, processo que se inicia na primeira infância quando são introduzidos alguns valores e princípios que, por serem transmitidos como verdades absolutas, marcam o indivíduo para o resto de sua vida. Desse modo, o personagem é forçado a aprender, por meio de experiências empíricas, esses valores sociais. Exemplo disso, é a cena em que coloca sua mão no fogo por alguns segundos, visto que não lhe foi ensinada a noção de perigo, mas mesmo assim ele chora pela dor. Nesse contexto, ele aprende, após o ocorrido, que o fogo tem a propriedade de queimar, mesmo que não tenha sido ensinado sobre isso em sua primeira infância. Logo, fica evidente que, apesar de falha para Kaspar, a socialização primária é fundamental, haja vista que tem grande poder na formação individual. Posteriormente à chegada de Kaspar à cidade, na ocasião em que ele deixa de representar uma ameaça à sociedade, o personagem é acolhido por uma família durante suas refeições, de maneira que lhe são ensinados comportamentos que ele nunca havia entrado em contato antes, como comer com talheres e sentar-se à mesa. Pode ser notado nessa cena, o campo de forças, que teorizado por Bourdieu, configura-se como a estrutura da sociedade que induz os seres humanos a agirem de determinada maneira, ou seja, conforme aquela sociedade acha certo, sendo nesse caso a ação de comer com a colher, diferentemente de como Kaspar fazia antes, quando vivia isolado, utilizando as mãos. O campo de luta, conceituado também pelo filósofo Bourdieu, é observado em diversos momentos do filme, na circunstância em que Hauser contesta a estrutura ou age contra ela. Isso é exemplificado quando ele questiona a atribuição feminina dentro da sociedade na frase "Para que servem as mulheres? Só para ficarem sentadas?", visto que não entendia o caráter patriarcal na estrutura social, que diferenciava os papéis atribuídos aos homens e às mulheres. Além disso, nota-se essa ideia também exposta no momento em que ele não entende e não quer acreditar em Deus e religião, como é imposto pelos religiosos da cidade em que vive, os quais queriam que ele aceitasse esses princípios sem nenhum questionamento, de forma alienada. Ademais, a cena em que Kaspar tem uma visão da realidade diferente da sociedade alemã em relação a percepção de espaço do quarto e da torre, também retrata essa contestação que faz parte do conceito de campo de luta. Ele diz: “Quando estou dentro do quarto e olho à direita, à esquerda, à frente e para trás só enxergo o quarto”, “Quando olho para a torre e depois me viro a torre desaparece. Então, o quarto é maior que a torre” – “Não Kaspar. Não é isso. Tem que pensar melhor, ainda não entendeu.”. A cena revela, então, que a visão de Hauser era tida como errada e ele era logo reprimido, visto que seu posicionamento diferia da visão dos outros homens. Ainda sob essa perspectiva eurocêntrica, oriunda do viés positivista do século XIX, pode-se citar o momento em que Kaspar é colocado em um circo e anunciado como “o grande enigma da Europa”. Esse fato revela o processo de desumanização sofrido pelo personagem, que por ser considerado um animal exterior aos moldes sociais europeus da época, passou a ser tratado como um objeto de estudo e observação, de modo que era tido como atrasado e deveria ser “salvo” pela superioridade da civilização europeia. Kaspar Hauser se sente perturbado pelo mundo e diz que "o mundo é todo mau", para seu tutor após perceber que alguém pisou nas flores que plantara no jardim. Assim, evidencia-se que Kaspar, apesar de aprender os costumes e valores da sociedade em que foi inserido, ele nunca se sentiu parte dela, isso acontece devido a um erro básico sobre uma organização social fundada com princípios do racionalismo positivista, mostrando que a socialização do ser humano não é uma decorrência biológica da espécie, mas consequência de um longo processo de aprendizagem social. Esse processo de aprendizagem faz com que o indivíduo se entregue ao grupo em que nasceu, assimilando um conjunto de hábitos e costumes característicos, participando de uma vida em sociedade e aprendendo suas normas, valores e costumes, porém, essa socialização não aconteceu com o personagem, visto que as pessoas riam dele e não atribuíam uma perspectiva humana, assim, Kaspar chega à conclusão de que os homens são como lobos, uma abordagem bastante trabalhada por Thomas Hobbes. Em seu leito de morte, o personagem conta uma história para os que estão ao seu redor, alegando conhecer somenteo começo. Ela se contrapõe à própria narrativa de Kaspar Hauser, visto que, diferente da história, ela não possui um começo, afinal, a origem de Kaspar é uma incógnita. Além disso, sua morte também permanece um enigma, dado que sua causa continua desconhecida, o que abre espaço para várias interpretações e teorias, de forma que em uma autópsia prévia, foi considerado assassinato, mas após ser refeita, a autópsia foi considerada como inconclusiva, pois a posição dos ferimentos indicaria o seu suicídio. Ao analisarem seu cérebro, os legistas descobriram que havia uma anomalia no cerebelo, além de o lado esquerdo de seu cérebro, responsável por controlar as funções verbais incluindo a linguagem, pensamento e a memória de palavras, ser menor do que o esperado. Esse fato revela a falha em seu processo de socialização, o qual possui relação direta com a linguagem. Concluído o filme, uma das interpretações que podem ser retiradas é sua morte ter se dado devido ao fato de suas atitudes e convicções serem diferentes e não aceitas pela sociedade da época, a qual estabelecia parâmetros comportamentais, de modo que pudesse ter certo grau de previsibilidade nas atitudes dos cidadãos. Entretanto, Kaspar rompeu essa previsibilidade, visto que não aderiu todos os consensos sociais estabelecidos por esse ordenamento social, de modo que era alvo de inquietação, haja vista que temiam que ele se transformasse em um exemplo de transgressão para os demais. Logo, ao se deparar com um indivíduo destoante das práticas comuns, a sociedade reage tentando marginalizá-lo, o que pode ter provocado sua morte tanto simbólica, quanto física, como quando a condição de pessoa lhe é tomada ou nem mesmo atribuída. Além disso, pode-se estabelecer uma intertextualidade entre os filmes O Quarto de Jack, de Lenny Abrahamson, e O Enigma de Kaspar Hauser, dado que ambos os personagens nunca tiveram contato com o "mundo real". Essa relação fica clara nos momentos em que o garoto, que nunca teve contato com o "mundo externo" fora do cativeiro, é questionado sobre o tamanho do quarto em que vivia e, de acordo com ele, era enorme. Porém, quando retorna ao local, percebe o quão distorcida era sua visão, como se depois de descobrir o resto do mundo, tudo que ele havia conhecido antes de ser liberto, era menor do que ele esperava. Essa mesma reação pode ser observada em Kaspar quando ele é questionado sobre o tamanho de seu quarto na torre que, aos seus olhos, era enorme. Demonstrando muito de uma característica própria do desenvolvimento enquanto o cérebro ainda é "plástico", ou seja, na primeira infância, que os dá mais facilidade na abertura para mudanças da realidade, se adaptando. A socialização primária é muito carregada de emoção, em que todo aquele mundo conhecido pode sofrer alterações, mas se o indivíduo quiser invalidá-lo totalmente, ou seja, negar todos os valores ensinados ele deve sofrer um processo de ressocialização – a formação de uma nova identidade, que faz com que o indivíduo negue todos os valores que antes lhe foram ensinados. Quando a criança sofre algum tipo de abuso ou violência, cria-se nela um poder muito grande na formação da sua identidade. Em suma, têm-se no final do filme o entendimento de uma verdadeira disfunção dos indivíduos no processo de socialização de Kaspar Hauser, uma vez que é evidenciado a falta de humanidade no tratamento ao personagem a partir do momento em que não era englobado nas normas pré-estabelecidas socialmente. Além disso, na conjuntura da transformação do personagem em um objeto de análise é evidenciado a tentativa humana de isentar-se da culpa em relação à exclusão do indivíduo, mesmo após a sua inserção na comunidade, além da rejeição das consequências da falta da socialização na vida do sujeito. Dessa maneira, fica claro que o pensamento positivista de transformação por meio de modelos científicos possui diversas falhas, uma vez que, olhando para o viés fortemente etnocentrista da população daquela época, percebe-se que havia um bloqueio para o entendimento acerca das diferenças do personagem, de maneira que não buscavam estudar de maneira aprofundada os motivos que levaram o indivíduo a não ter atribuído os mesmos padrões da comunidade. Nesse aspecto, o filme tem grande importância na reflexão acerca dos temas apontados, promovendo um viés crítico para os moldes sociais, indicando o caráter enigmático de Kaspar Hauser e a sua impossibilidade de se imaginar sendo membro da população de Nuremberg.