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Severino e Severina. primeiro, personagem ficcional. A segunda, real. DO SEVERINO Um, saído dos versos do poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. A outra, do sertão da Bahia para as ruas de São Paulo. Duas histórias, duas personalidades, duas fontes de E estudo para Antonio da Costa Ciampa. Com elas, discute a identidade não como algo estático, mas dinâmico, em constante mutação, uma metamorfose permanente. Áreas de interesse: Psicologia, DA SEVERINA Antropologia, Sociologia. UM ENSAIO DE PSICOLOGIA SOCIAL ANTONIO DA COSTA B 301 15 C493e ex. 2 brasiliense brasilienseCopyright Antonio da Costa Ciampa. Capa: Aureliano Menezes Revisão: Maria L. Favret Tidori R. Shahara CLASS. 301.15 PHA C493e 2 AQUISIÇÃO: d Prefácio - Silvia T. M. Lane Inst USP 9 DOADOR Prólogo 13 DATA 18 / 04 / 2000 Livro I SEVERINO Capítulo 1. Onde se ouve a personagem do poema tentando dizer quem é 19 Capítulo 2. No qual se observa a mesma personagem não mais tentando dizer quem é, mas atuando para encontrar vida e, nesta empreitada, chegando a se identificar como moribundo 25 Capítulo 3. Que discute, no final, a possibilidade de ter a editora brasiliense s.a. mesma personagem encontrado condições para se identificar como ser humano, por causa de um rua general jardim, 160 grupo que festeja um nascimento 32 01223 são paulo - sp fone (011) 231-1422 brasiliense telex: 11 33271 DBLM BR4 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A HISTOR Livro II SEVERINA Capítulo 7. Que conta como Severina tenta sai Capítulo 1. outro outro No qual inicia seu relato uma per- sonagem real (chamada aqui Severina, apesar de Capítulo 8. seu nome verdadeiro ser outro), nascida numa Onde se vê um moleque podendo ser palhoça no sertão baiano, onde viveu até os 11 isso deixando de ser moleque anos, quando se mudou para a antiga rua dos Os- em Salvador Capítulo 9. 41 Em que inesperadamente surge um vida de Severina Capítulo 2. Que relata o início da peregrinação de Severina, Capítulo 10. incluindo o vôo no gavião-de-prata, e que tam- Em que Severina encontra uma desc bém conta como ela, sendo jogada de um lado vés de quem conhece uma organizad para o outro, vai se transformando na vingadora que busca poder 47 Capítulo 11. Que conta como Severina a or Capítulo 3. dista à prova para decidir se vale a Onde continua o relato da peregrinação de Severi- na mesma na, que tenta fugir de Exu, e nessa tentativa en- Capítulo 12. contra um noivo com quem se casa 54 Que discute a possibilidade de ter S trado condições para se identificar Capítulo 4. mano, por causa de um grupo ond Em que é interrompida a narrativa da peregrina- pois de ter sido ção de Severina para uma reflexão, depois do que voltamos à história na época do seu noivado 59 Capítulo 13. Onde Severina fornece evidências Capítulo 5. mais ela, mas outra pessoa que é ela Da loucura parte) 67 Capítulo 14. Em que a história não termina e p Capítulo 6. capítulo chamado "A Morte e a Da loucura parte) 72 rina"6 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A ESTÓRIA DO SEVERINO E A HISTÓRIA DA SEVERINA 7 Livro III IDENTIDADE Capítulo 7. No qual se afirma que cada um é representante de Introdução si mesmo, o que traz para o re- Onde o autor se dirige pessoalmente ao leitor para presentado 169 lembrar algo dito no "Prefácio" e para pedir des- culpas pelo que se verá 125 Capítulo 8. Que mostra o tríplice sentido da atividade repre- Capítulo I. sentar 174 Que fala de identidade como traço estático do ser, ao mesmo tempo que propõe a forma Persona- Capítulo 9. gem como expressão empírica da identidade 129 Que acrescenta esclarecimentos para prevenir al- gumas armadilhas 183 Capítulo 2. Que mostra a forma Personagem sucessivamente Capítulo 10. como três objetos diferentes, e continua a falar so- Onde é considerada a categoria Consciência (in- bre identidade, agora como algo contraditório: vertida como inconsciente) 189 igual e diferente; essência e aparência 136 Capítulo 3. Capítulo 11. Que continua a falar de identidade, agora como Onde a identidade aparece como concreto e como metamorfose 141 possibilidade 197 Capítulo 4. Capítulo 12. Que abre um longo parêntesis para esclarecer al- Que como questão a identidade humana 202 gumas questões que são apresentadas 147 Capítulo 13. Capítulo 5. No qual se buscam elementos no desenvolvimento Que, para encaminhar a discussão da não meta- do indivíduo para entender o interesse da razão 211 morfose, fala de personagens, autores e atores 152 Capítulo 14. Capítulo 6. Onde se afirma que a aparência de não transfor- No qual se buscam elementos no desenvolvimento mação resulta do trabalho da re-posição 160 da sociedade para entender o interesse da razão 2208 ANTONIO DA COSTA CIAMPA Capítulo 15. Em que se fala que um movimento pode ser pro- gressivo e regressivo, depois do que se busca outro mundo 226 Capítulo 16. Em que a expressão morte-e-vida é substituída Prefácio por outra mais completa e se encerra este tra- balho 236 RESUMO Há já alguns anos no setor de pós-gradua PUC/SP se formou um núcleo interdisciplinar Identidade - Um estudo de Psicologia Social tudar a questão da Identidade Social. sobre a estória de Severino e a história de Seve- bates e publicações vêm sendo produzidos sis rina 243 camente. Por outro lado, o próprio programa de Bibliografia citada 245 Social vem caminhando para a superação das dições existentes no positivismo, desenvolven torno de alguns tópicos, uma metodologia de p em bases materialistas históricas, concebendo mem como um ser produzido historicamente tanto, essencialmente social. É dentro deste contexto que Ciampa dese discute e produz o que ora vem a público, p trabalho tem uma gênese anterior ao núcleo. sementes estão na sua dissertação de mestrado do através de uma pesquisa positivista, o au questionamentos profundos que o levaram a r tanto a metodologia científica como a próprio logia social, procurando, no trabalho interdis que o núcleo propiciava, precisar a questão d tidade, como fundamental para a Psicologia So10 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA 11 Foi enfrentando estes desafios que o autor realiza de uma categoria ontológica, tal como na concepção esta pesquisa sobre identidade-processo-metamorfose materialista histórica tem sido apresentada a Persona- A preocupação com a generalização (o projeto previa lidade. É uma questão que pesquisas futuras deverão vários casos a serem estudados) cede lugar ao aprofun- responder. damento de um caso afinal na singularidade está Uma palavra final sobre o autor, ou melhor, so- também a totalidade. A preocupação com a objetivi- bre a coragem e a criatividade de Ciampa. dade do empírico abre espaço para a subjetividade Coragem de quebrar o modelo tradicional, repleto como processo histórico. Chega-se assim à Identidade de demonstrações de erudição ("vejam o quanto eu já como Metamorfose desvendando a ideologia da não li!"), priorizando o verdadeiro saber que vem da transformação do ser humano como condição para a lise da realidade. Coragem de subordinar a teoria ao não transformação da sociedade. real, de fazê-la emergir da ação de pesquisar, sem des- Nesse sentido a Identidade passa a ser também conhecer o saber já elaborado. Sua obra é um belo uma questão política, pois ela está imbricada tanto na exemplo do que vem a ser a práxis como ciência. atividade produtiva de cada indivíduo quanto nas con- Criativo quando permite que a emoção participe dições sociais e institucionais onde esta atividade ocor- ativamente na comunicação do seu saber fa- re. É política porque a partir da análise aqui feita so- zendo do seu texto uma obra literária, sem com isto mos levados a questionar que espaços, que possibili- perder em rigor científico, demonstrando que a ciência dades nós nos permitimos a nós e aos outros de, pode ser bela e produto de um ato de amor como o sendo nós mesmos, nos transformarmos, nos re-criar- próprio autor o afirma. mos. Este estudo nos leva ainda a outras reflexões: a Silvia T. M. Lane Identidade analisada enquanto um processo dialético nos permitirá um conhecimento mais concreto da per- sonalidade, tema sempre trabalhado teórica e abstra- tamente, gerando teorias muitas vezes contraditórias. Esta questão se coloca, principalmente pelo fato de a Identidade se processar na interação social, impli- cando, necessariamente, atividade e consciência. Por outro lado várias pesquisas psicossociais que não tra- balham especificamente com identidade, no seu pro- cesso de análise, fazem emergir a questão da identi- dade como algo presente e fundamental para a com- preensão do indivíduo e como tal assumindo o caráterPrólogo Eis-nos frente à difícil tarefa de apresentar algo que ainda não foi lido. Não se iluda, leitor. Antes de ler todo o trabalho ele não poderá ser conhecido. uma tese de doutoramento, embora às vezes não pa- reça assim. uma tese de Psicologia Social, embora possa parecer diferentemente. Tem como título "Iden- tidade", mas trata de vários outros assuntos. Formal- mente, é fácil descrevê-la. Na primeira parte, Livro I, é apresentada uma personagem chamada Severino, personagem ficcional, saída do excelente poema de João Cabral de Melo Neto, "Morte e Vida Severina". Escolhi-o porque, além das qualidades intrínsecas do poema (e de suas personagens), trata-se de um velho amor meu. Apai- xonei-me por ele ainda universitário, convivendo com ótimas pessoas no TUCA, o teatro universitário da Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), quando vi ser feito um espetáculo que marcou época e que, inclusive, foi prêmio mundial em Nancy, na França. Sou um "tucano" da velha guarda e muito me orgulho disso. Continuo "tucano" ainda, virou hábito... Na segunda parte, Livro II, é apresentada outra14 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA 15 personagem, chamada Severina, personagem de car- texto. Uma obra sem leitura é uma espera; ainda não ne-e-osso, saída de um drama da vida real. Escolhi-a existe. Também não peço indulgência. Peço, isto sim, também pelas qualidades intrínsecas, se posso assim uma cuidadosa crítica. Só assim poderei corrigir os er- dizer, que possui como pessoa. De certa forma, tam- ros e imperfeições que certamente o texto contém. bém é uma paixão antiga. Não pensem os maliciosos Esta tese dependeu muito de outros amores. Mi- que é amor de homem e mulher; é amor de ser hu- nha mulher, Liliane, por exemplo. Tolerar um douto- mano por outro ser humano, sem sexo. Não pensem, rando em certos momentos só mesmo com muito amor. contudo, que, por ser uma história sem sexo, seja uma É uma personagem pouco compatível com um marido história insípida. Pelo contrário. Na minha opinião, atencioso. Espero que o doutor seja mais agradável poucas pessoas tiveram a vida que a Severina teve, o que seu antecessor. Digo tudo isso a meu filho, Fer- que faz sua história uma história atraente e agradável não, também. o que acontece com o marido acontece de ser ouvida. Aprendi muito com ela. Mais do que ela com o pai. pensa. Espero que alguma coisa o leitor também Minha orientadora, Silvia T. M. Lane, minha aprenda com ela. Se não for instrutivo, pelo menos querida e admirada Silvia, a quem devoto não só res- será agradável. peito intelectual. É antes de tudo uma pessoa admirá- Na terceira parte, Livro III, procuro trabalhar vel, em todos os sentidos, que me ajudou muito. Há teoricamente com um objeto abstrato: identidade. Não muitos anos estou ligado a ela e quero assim continuar é uma personagem nem ficcional, nem real, mas tam- durante muito tempo. bém é outra paixão minha. Há anos venho me preocu- Meu ex-professor Karl E. Scheibe, atualmente um pando com esse tema. Entendo que, não só para a Psi- grande amigo, também tem a ver com este trabalho. cologia Social, que é minha área de especialização, Com ele comecei a estudar identidade, quando profes- mas para uma série de outras quase todas as ciên- sor visitante na PUCSP. Meu caro Scheibe trabalha na cias humanas e para a filosofia, assim como para a Wesleyan University (EUA), o que torna nossa convi- arte, negócios, religião, etc. - a identidade se consti- vência intermitente. A distância não prejudicou nossa tui num tema apaixonante, desafiante e pertinente. amizade, pelo contrário. A admiração e o respeito só Onde houver gente, haverá questão de identidade. têm aumentado nestes já longos anos. Fica um desafio: leia este trabalho e veja se exagero, Se fosse revelar todos meus amores, isto não seria quanto a essa abrangência. um prefácio, seria um romance. Correndo o risco de Enfim, três paixões. De certa forma, então, esta parecer ingrato, não you mencionar todos. tese é antes de mais nada um ato de amor. Amor pelo Não quero, contudo, deixar de mencionar um que conhecimento, mas também amor pelas pessoas. Gos- não poderá ler estas linhas. o ator se foi, a persona- taria que sua leitura, tanto quanto sua feitura, tivesse gem ficou comigo me ajudando muito. o meu fraterno esse caráter. Não peço atenção para mim, mas para o amigo Malufe, José Roberto Malufe, cuja falta sinto16 ANTONIO DA COSTA CIAMPA tanto. Ficou-me seu exemplo de homem excepcional; intelectual que sabia ser gente, tudo de ótima quali- dade. Tinhamos um projeto comum, um grupo de pes- quisa sobre identidade, que perdeu muito quando per- deu seu idealizador. Contudo o grupo sobrevive, gra- ças à dedicação de vários amigos comuns. Grupo de Pesquisas sobre Identidade "José Roberto Malufe", da LIVRO I PUC/SP, em grande parte, ainda é movido pelo movi- mento inicial que seu patrono soube imprimir. Nós to- Severino dos do grupo e os que vierem a dele fazer parte nunca deixaremos esse movimento morrer. o Malufe está vivo em nós. Morte-e-vida é um outro nome para identidade. QUE TRATA DA IDENTIDADE Identidade é metamorfose. Esta a tese aqui defendida. DE UMA PERSONAGEM CHAMA- Não quero antecipar o conteúdo, contudo. DA SEVERINO E CUJA Para terminar, um adágio latino: Feci quod po- FOI CONTADA NUM POEMA IN- tui; feciant meliore potentes (Fiz o que pude; quem TITULADO "MORTE E VIDA SE- puder faça melhor). VERINA" DE AUTORIA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETOCapítulo 1 ONDE SE OUVE A PERSONAGEM DO POEMA TENTANDO DIZER QUEM o meu nome é Severino não tenho outro de pia. (p. 107) poema tem início com a personagem principal, Severino, explicando quem é; por se percebe que o primeiro recurso de que lança mão é fornecer seu nome, seu nome próprio, único que lhe foi dado e com o qual se identifica. Recorre a um substantivo ("uma palavra que no- meia o ser") para indicar sua identidade. Mas, apesar de usar um substantivo próprio, seu nome não parece suficiente para que sua identidade seja reconhecida por outros: Como há muitos Severinos (que é santo de romaria) deram então de me chamar Severino de Maria.20 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA 21 Como há muitos Severinos possibilidade de se fazer conhecer apenas com nomes com mães chamadas Maria, próprios seu ou dos pais que possam identificá- fiquei sendo o da Maria lo, pois o nome já não é um substantivo próprio; torna- do finado Zacarias. (p. 107) se substantivo comum. Declara isso ao continuar: Recorre a outros substantivos próprios: os nomes Mas isso ainda diz pouco. da mãe e do pai. Com isso, define uma posição social: Se ao menos mais cinco havia está localizado numa família determinada. Começa a com nome de Severino, se definir pelas relações sociais mais primárias; é filho filhos de tantas Marias, de Maria, órfão de Zacarias. São três personagens que mulheres de outros tantos se definem reciprocamente: pai, mãe, filho. É sufi- já finados Zacarias, vivendo na mesma serra ciente? magra e ossuda em que eu vivia. (p. 108) Mas isso ainda diz pouco: Buscando a diferença encontra a igualdade: se é há muitos na freguesia diferente de seus pais, Maria e Zacarias, é igual a ou- por causa de um coronel tros Severinos, igualmente filhos de iguais-diferentes que se chamou Zacarias Zacarias e Marias. e que é o mais antigo senhor desta sesmaria. (p. 107) Insiste. Se a articulação da igualdade e da dife- rença se mostrou insatisfatória na tentativa que faz de Coloca-se dentro de uma perspectiva histórica, fa- dizer quem é, talvez a descrição de seu físico seu lando algo do passado. Com isso, revela a função ho- corpo poderá individualizá-lo, identificando-o. Mas mogeneizadora do poder que produziu muitos Severi- é em vão: nos, que têm dificuldade de se distinguir. Faz nova Somos muitos Severinos tentativa: iguais em tudo na vida: Como então dizer quem fala na mesma cabeça grande ora a Vossas Senhorias? que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido Vejamos: é o Severino sobre as mesmas pernas finas da Maria do Zacarias, e iguais também porque sangue lá da serra da Costela, que usamos tem pouca tinta. (p. 108) limites da Paraíba. (pp. 107-108) Será membro de uma espécie de seres homogê- Procura precisar melhor a região geográfica de neos e homônimos condenados à mesmice? É o que onde é originário. E esta delimitação deixa clara a im-22 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A HISTÓRIA DA.SEVERINA 23 parece, pois eles não só vivem a mesma vida, mas tam- Presente e passado... sim, mas há o futuro; como bém morrem a mesma morte: é o projeto severino? E se somos Severinos Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida, iguais em tudo e na sina: morremos de morte igual: a de abrandar estas pedras mesma morte severina. suando-se muito em cima, Que é a morte de que se morre a de tentar despertar de velhice antes dos trinta, terra sempre mais extinta, de emboscada antes dos vinte, a de querer arrancar de fome um pouco por dia. (p. 108) algum roçado da cinza. (pp. 108-109) Vida e morte iguais; produção da mesmice. É Tudo parece igual: presente, passado e futuro. como se o substantivo próprio, que se transformou em Cada novo esforço em descrever sua identidade substantivo comum, se tornasse um adjetivo: o Seve- revela que sua existência é a encarnação de um mo- rino é um severino severino (este último termo quali- mento da História, fazendo com que seu tempo seja ficando o anterior). um tempo severino. Severino é um severino severino. Homogenei- Um tempo severino que é vivido como um quoti- zação absoluta. diano estruturado na luta pela sobrevivência. quo- Nada o distingue, nada o singulariza: nem seu tidiano o produz e ele o reproduz severino: esta sua nome, nem seus pais, nem o passado, nem o corpo, sina! nem o lugar onde vive, nem a vida, nem a morte o Sua identidade é a História personificada não individualizam. Sua identidade transcende sua indivi- dualidade. se tratando de ver alguém apenas sendo afetado por condições históricas determinadas que pudessem ser Sua identidade se constitui também por vidas destacadas dele ou ele delas pudesse ser separado: ser ainda não vividas e por mortes ainda não morridas, Severino é personificar a História, é a História se con- mas que já estão contidas em suas condições atuais e cretizando. que emergirão como desdobramento de um tempo se- Deve então renunciar a se identificar a não ser verino: coletivamente, como um representante de uma cate- goria, como membro de um conjunto? Ver na severi- (De fraqueza e de doença nidade a expressão, a manifestação de uma natureza é que a morte severina severina, de uma sociedade severina, de um tempo se- ataca em qualquer idade e até gente não nascida.) (p. 108) verino? Desistir de buscar também o que o diferencia e se contentar em se identificar pela igualdade (ou me-24 ANTONIO DA COSTA CIAMPA lhor pela equivalência) com outros semelhantes que, então, precisam permanecer idênticos a si mesmos, como ele mesmo também idêntico sempre, como dois termos de uma igualdade que subsiste enquanto seus termos permanecem iguais? Manutenção do status quo, reprodução da mesmice... Severino parece perceber a impossibilidade de di- Capítulo 2 zer quem é, desta forma. Falou de uma identidade co- letiva, que compartilha com outros Severinos, mas sua individualidade, sua singularidade, sua identidade pessoal permanece oculta. Percebe que não deve per- NO QUAL SE OBSERVA manecer como substantivo ou como adjetivo; precisa A MESMA PERSONAGEM NÃO se fazer verbo, fazer-se ação. MAIS TENTANDO DIZER Por isso, encerra seu discurso de auto-apresenta- ção, preparando-se para se transfigurar num ator: QUEME, MAS ATUANDO PARA ENCONTRAR VIDA E, NESTA Mas, para que me conheçam EMPREITADA, CHEGANDO A SE melhor Vossas Senhorias IDENTIFICAR COMO e melhor possam seguir MORIBUNDO a história de minha vida, passo a ser o Severino o poema se modifica: a personagem, que inicial- que em vossa presença emigra. (p. 109) mente aparece como o autor de um discurso de auto- apresentação, transforma-se num ator que passa a de- sempenhar seu papel de migrante, numa história cuja narrativa é de um autor ausente do texto, como a su- gerir que deixemos de apenas ouvi-lo e passemos a se- guir seus passos. Assim, uma série de acontecimentos e de encon- tros se sucedem, entremeada por reflexões de Seve- rino, que nos ajudam a conhecê-lo melhor: Desde que estou retirando só a morte vejo activa.26 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A HISTÓRIA DA SEVERINA 27 Só a morte deparei, A seguir, como que se desculpando, Severino con- às vezes até festiva. fessa: Só morte tem encontrado quem pensava encontrar vida que me fez retirar e o pouco que não foi morte foi de vida severina não foi a grande cobiça. que apenas busquei aquela vida que é menos foi defender minha vida vivida que defendida... (p. 119) da tal velhice que chega Identifica-se fundamentalmente como "quem antes de se inteirar trinta. (p. 132) pensava encontrar vida". Isso o levou a retirar. Isso o levou a alterar seu É como se explicasse porque o lavrador transfor- mou-se em retirante. Tinha consciência do que certa- quotidiano de lavrador. Mas, não vê vida para ser vi- mente lhe sucederia se mantivesse sua anterior identi- vida, apenas para ser defendida. Procura achar "tra- balho de que viva", mas não está preparado, pois dade. Migra, como uma forma de defender a vida, de encontrar vida. Como a aqui a morte é tanta Porém, tudo que viu e ouviu ao longo de sua só é possível trabalhar viagem gera dúvidas. Um pouco antes de chegar a seu nessas profissões que fazem destino declara: da morte ofício ou bazar. (p. 125) Mas não vejo diferença Busca a vida e descobre que poderia sobreviver se entre agreste e a caatinga, conseguisse ajudar a morte. e entre a caatinga e a mata Revolta? Provavelmente nem pensa. Sabe o que a diferença é a mais mínima. sucede a quem se revolta, ouvindo dos amigos de um Está apenas em que a terra lavrador, no funeral deste: é por aqui mais macia. (p. 132) Esta cova em que estás, Mesmo assim, resolve se apressar e chegar a seu com palmos medida destino. Aí dois coveiros conversam entre si e revelam (...) a parte que te cabe o que pode esperar objetivamente "quem pensava en- contrar deste Não é cova grande, Esse povo lá de cima é cova medida. de Pernambuco, da Paraíba, É a terra que querias que vem buscar no Recife ver dividida. (p. 128) poder morrer de velhice28 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA 29 encontra só, aqui chegando, cida. Outra lhe é permitida: migrar. Identifica-se com cemitérios esperando. ela, certo inicialmente de encontrar condições que lhe Não é uma viagem que fazem permitam ser outro. através de montanhas, vargens. Ser outro. Encontrar vida. Aí está o seu erro: Para isso, tem de saber qual a verdadeira via, a Vem é seguindo seu próprio enterro. (p. 139) alternativa que esperava existir para se tornar outro. A identidade que lhe é atribuída pelos coveiros é Mas, o que ouve dos coveiros dá um novo signifi- Descobre-se como um morto-ainda-vivo, cado a sua ação de migrar, não mais encontrar a vida, um moribundo: pois a gente retirante E agora descubro que, (...) ao chegar não têm mais o que esperar. esta viagem concluída, Não podem continuar sem saber desde o sertão, pois têm pela frente o mar. meu próprio enterro eu seguia. Não têm onde trabalhar Só que devo ter chegado e muito menos onde morar. (p. 138) adiantado de uns dias. enterro parou na porta: Identifica-se como um moribundo, um morto-ain- o morto ainda está com vida. (p. 141) da-vivo. Que fazer? Que alternativa lhe resta? Como Tudo adquire novo sentido para ele. É como se age um moribundo convicto? encontrasse solução para o problema com que se depa- A solução é apressar rara anteriormente: a morte a que se decida e pedir a este rio Tenho de saber agora que vem também lá de cima qual a verdadeira via que me faça aquele enterro entre essas que escancaradas que o coveiro descrevia. (p. 141) frente a mim se multiplicam. (p. 116) A verdade está no significado que atribui a sua Buscava a verdadeira via, através da qual pensava condição, produzindo uma nova identidade. Severino, encontrar vida. Sabia que se permanecesse na sua ser- lavrador na serra magra e ossuda. Severino, retirante ra magra e ossuda, seu sangue teria pouca tinta, mor- na viagem que fazia. Severino, moribundo na chegada reria de velhice antes dos trinta, ou de emboscada an- ao Recife. tes dos vinte e de fome um pouco por dia. Recusa-se Sua identidade de moribundo foi se engendrando a se identificar com essa alternativa que lhe era ofere- ao longo da viagem. Foram decisivas para isso as pala-30 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA 31 vras das outras personagens. Todas falavam de morte Sempre discordando de Severino, José, o morador e não de vida. do mocambo, argumenta: Nenhuma palavra que alterasse o sentido dado a sua viagem: seguir o próprio enterro. É como se tudo, A vida de mais um dia cada fala, cada encontro, cada cena, cada acidente, cada dia hei de comprá-la confirmasse essa verdade. (...) Nada, ninguém, só seu desejo falava de vida. Não é que espere comprar Seu desejo o fez viver até os dezoito; seu se- em grosso de tais partidas. jo o fez migrar, seu desejo o fez procurar qual seria a Mas o que compro a retalho verdadeira via entre as que frente a ele se escancara- é de qualquer forma vida. (p. 145) vam. Severino, que abandonara a busca da vida e agora Como continuar desejando vida, se ninguém ain- queria encontrar definitivamente a morte, reluta em da lhe falara de outro modo? concordar com o que lhe dizia José: Severino, retirante, muita diferença faz Seu José, mestre carpina, entre lutar com as mãos que diferença faria se em vez de continuar e abandoná-las para trás. (p. 144) tomasse a melhor saída: Encontra o morador de um mocambo que se re- a de saltar, numa noite, cusa a dizer-lhe se rio no ponto onde estão dá "para fora da ponte e da vida? (p. 145) cobrir corpo de homem"; ele discorda de Severino que Severino, um morto-ainda-vivo! lhe pergunta: quando a força que morreu não tem onde se enterrar, porque ao puxão das águas não é melhor se entregar? (...) Seu José, mestre-carpina, e em que nos faz diferença que como frieira se alastre, se acabamos naufragados num braço do mar miséria? (pp. 143-144)A ESTÓRIA DO SEVERINO E A DA SEVERINA 3 que constitui a comunidade na qual nasceu o filho d José. Tudo o que até então Severino não encontrara co meça a surgir ante seus olhos: alegria, animação, en tusiasmo, solidariedade, amizade, confiança no fu turo, beleza, força, transformação, saúde, etc. ítulo 3 Severino observa uma comunidade inteira desfi lar diante de José, festejando o nascimento de seu fi lho. Como que há uma mágica transformação da rea lidade. cenário de tristeza, desolação, pobreza e mort QUE DISCUTE, NO FINAL, A POSSIBILIDADE DE TER A é outro. Tudo adquire novo significado, depois que o vizinhos afirmam: MESMA PERSONAGEM ENCONTRADO CONDIÇÕES cada casa se torna PARA SE IDENTIFICAR COMO mocambo sedutor. SER HUMANO, POR CAUSA DE ada casebre se torna UM GRUPO QUE FESTEJA mocambo modelar... (p. 148) UM NASCIMENTO A solidariedade e a amizade não são impedida pela pobreza. Os amigos trazem presentes para o re Compadre José, compadre, (...) Minha pobreza tal é não sabeis que vosso filho nada posso ofertar. saltou para dentro da vida? (p. 146) Se não é o leite que tenho debate que vínhamos observando entre José e para meu filho amamentar. Aqui são todos irmãos no é interrompido pelo anúncio do nascimento de leite, de lama, de ar. (p. 149) o do primeiro. om isto, há nova mudança de enquadramento Fraternidade, comunidade, humanidade. Severino como que passa a segundo plano Vida que se encarna no recém-nascido. to com mestre carpina, transforma-se em obser- Mas, vida que se encarna principalmente nas re da ação desenvolvida por um conjunto de atores lações sociais de vizinhança, compadrio, amizade, so34 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A ESTÓRIA DO SEVERINO E A DA SEVERINA 35 lidariedade, que fazem do nascimento uma festa do Não o vejo dentro dos mangues, grupo. vejo-o dentro de uma fábrica. É na ação que cada membro da comunidade de- Se está negro não é de lama, sempenha que a vida pode ser encontrada. é de graxa de sua máquina... (p. 153) o sentido da atividade social que metamorfoseia o real e cada uma das pessoas. São duas alternativas possíveis, dois projetos de Os vizinhos adquirem realeza e magia: são reis vida: o pescador de maré vestido de lama da cara ao pé magos! e o homem de ofício, negro da graxa de sua máquina. Até mesmo a identidade futura do recém-nascido Confiança na possibilidade de um futuro melhor: se transfigura na profecia que a segunda cigana faz, vejo coisa que o trabalho corrigindo a da primeira. talvez até lhe conquiste... (p. 154) São duas identidades pressupostas que se diferen- ciam claramente; na primeira o recém-nascido: Um recém-nascido e duas alternativas futuras de identidade; uma expressando uma expectativa pessi- Cedo aprenderá a caçar: mista, outra uma mais otimista. primeiro com as galinhas Se mil ciganos fizessem mil profecias diferentes, que é catando pelo chão todas poderiam estar pressupondo identidades futuras tudo que cheira a comida. possíveis. Todas poderiam estar expressando a inesgo- Depois aprenderá com tável plasticidade do humano contida naquela tenra outras espécies de bichos: vida. verdade que as probabilidades de cada uma e com os porcos nos monturos, de todas essas alternativas sempre dependeriam de com os cachorros no lixo. (pp. 152-153) condições objetivamente dadas, inclusive das expecta- tivas dos pais e de outras pessoas significativas bem Sua vida, contudo, pode ter outro sentido. A se- como das expectativas interiorizadas pelo próprio su- gunda cigana mostra uma alternativa diferente: jeito. De qualquer forma, quando essas condições da- das impedirem quaisquer alternativas de se concreti- Minha amiga se esqueceu zarem estarão expressando a desumanidade de seu de dizer todas as linhas. Não pensem que a vida dele tempo, de sua sociedade. Se lhe estiver vedada a iden- há de ser sempre daninha. tidade do homem de ofício, negro da graxa de sua má- Enxergo daqui a planície quina, será uma condição desumana, negação da vida. que marca homem de ofício Dai que a vida, a liberdade, o trabalho, nunca são da- e é mais sadia que os mangues, dos naturalmente; uma identidade humana é sempre tenha embora precipícios. negação do que a nega.36 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA 37 Será este recém-nascido tão diferente dos Severi- vida" era que lhe restava para não continuar morto- nos homogêneos e homônimos que vimos encerrados ainda-vivo. contato com José, mestre carpina, mos- na sua mesmice? Na verdade, é um ser do mesmo gê- trou-lhe outras possibilidades; porém, o que parece ter nero que, inclusive, também pode vir a ser mais um sido decisivo foi ver concretizada a idéia de vida não só Severino, como possibilidade não como necessi- no nascimento da criança, mas principalmente nos dade. o que o caracteriza é a plasticidade; define-se gestos, nas ações, nas palavras de todos os vizinhos e pelo vir-a-ser. amigos da comunidade em que chegara. Foram essas relações que deram materialidade às palavras de José, É um menino magro, tanto que este reconhece: de muito peso não é. Mas tem peso de homem, É difícil defender de obra de ventre de mulher. só com palavras a vida (...) tem a marca de homem (ainda mais quando ela é marca de humana oficina. esta que vê, severina) (p. 158) (...) as mãos que multiplicam nas suas já se adivinha. De certa forma, podemos achar que foi o signifi- (...) tão belo como um sim cado socialmente atribuído a um fato natural (o parto) numa sala negativa. que permitiu a Severino entender (e aceitar, parece) as (...) Belo porque é uma porta palavras seguintes, praticamente finais de José, ao ten- abrindo-se em mais saídas. (pp. 155-157) tar responder se não valia mais "saltar fora da ponte e da vida": Descrição que pode ser de qualquer ser humano. Descrição com a qual qualquer indivíduo pode se iden- E não há melhor resposta tificar. que o espetáculo da vida: humano é sempre "uma porta abrindo-se em vê-la desfiar o seu fio mais saídas". humano é vir-a-ser humano. (que também se chama vida), Identidade humana é vida! ver a fábrica paciente Tudo que impede vida impede que tenhamos que ela mesma se fabrica, vê-la surgir como há pouco uma identidade humana. em nova flor explodida. (pp. 158-159) Podemos, então, entender que o desejo de Seve- rino de encontrar vida pode ser traduzido por buscar poema termina por aqui. Podemos supor que, concretizar uma identidade humana. Fugia da desu- finalmente, Severino encontrou o que buscava: vida. manidade que é ser um morto-ainda-vivo. Neste sen- Como podemos compreender isso? Apenas pelo tido, talvez, seu desejo trágico de "saltar para fora da fato biológico da reprodução da vida que ele assistiu?38 ANTONIO DA COSTA CIAMPA Certamente que não caso contrário, cada vez que uma mulher parisse uma criança, toda magia e arre- batamento que o nascimento descrito no poema pro- duz se reproduziriam. A vida que supomos que Severino encontrou, con- vém repetir e frisar, está muito mais em tudo o que é LIVRO II expresso pelos vizinhos e amigos por ocasião do nasci- mento: respeito e amor pela vida (mesmo franzina, mesmo severina). Severina valor da vida para essa comunidade fica claro quando lembramos que a primeira reação que os vizi- nhos têm ao se deparar com o recém-nascido é afirmar: QUE TRATA DA IDE Todo céu e a terra DE UMA PESSOA lhe cantam louvor. (p. 147) (AQUI) SEVERINA E FOI CONTADA Um grupo de pessoas que participa tão intensa- ORALMENTE, AO A mente do nascimento de uma simples criança ("é um menino guenzo / como todos destes mangues" p. 155) e se refere a isso como um acontecimento que movimenta todo o céu e toda a terra, certamente, co- local a vida acima de tudo! Encontrar um grupo com esses valores é encon- trar vida. Num grupo assim, pode-se supor, cada indi- víduo reconhece no outro um ser humano e é assim reconhecido por ele sozinhos certamente não pode- mos ver reconhecida nossa humanidade, conseqüen- temente não nos reconhecemos como humanos. Ter uma identidade humana é ser identificado e identifi- car-se como humano!Capítulo 1 NO QUAL INICIA SEU RELATO UMA PERSONAGEM REAL (CHAMADA AQUI SEVERINA, APESAR DE SEU NOME VERDADEIRO SER OUTRO), NASCIDA NUMA PALHOÇA NO SERTÃO BAIANO, ONDE VIVEU ATÉ os 11 ANOS, QUANDO SE MUDOU PARA A ANTIGA RUA DOS ossos, EM SALVADOR que fui, o que eu era... Vamos começar assim, numa comparação, da minha criação: dizer como fui criada, no interior, no norte, numa cidade muito pobre; um lugar onde não tinha nada (...) Vivíamos no campo, eu nunca morei numa casa de telha, nem casa de barro: só morei em palhoça. Severina, para dizer quem é, começa descrevendo lugar de onde provém, suas condições de vida na infância, passando em seguida a falar de seus pais.42 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A ESTÓRIA DO SEVERINO E A DA SEVERINA 4 Os pais muito desencontrados; meu pai era uma pes- consegue deixar isso claro contando quem foi, quen soa muito ruim; a única coisa que via entre eles era era seu pai, sua mãe! De si própria apenas diz: espancamento, era judiação dele com minha mãe. E eu, sempre apanhando. Minha mãe era uma pessoa eu tinha revolta dentro de mim (...) Tudo isso rude. fui vendo (...) Tudo isso foi me revoltando. Meu pai era boiadeiro. Minha mãe cuidava da casa. cuidava da casa trabalhando na roça; nós éra- Severina parece perceber que falar dela mos rendeiros (...) seria pouco Só afirma: "tudo isso foi Papai era muito bebia, judiava de ma- revoltando". A força de sua descrição não está no que mãe; nossos dias... quer dizer, que infância que a gente teve? Nunca tive infância, nunca tive nada. afirma de si, mas sim no relato da conduta do pai Nós sentimos a intensidade de sua revolta quando en Sua foi toda marcada pela seguida acrescenta: violência do pai e pelo sofrimento da mãe. Todo relato que se segue ilustra e clareia essa violência, entre- A última briga que ele teve com mamãe, ele meada de ausências paternas. todinha minha mãe, de Minha vida com meu pai e minha mãe até os 11 anos Para contar a vai delinean foi um transtorno. Dentro da minha casa o que eu via? do um retrato de corpo inteiro do pai. Mesmo assim Era briga, espancaniento, ele chegava tirava este lhe parece alguém incompreensível na sua violên minha mãe de casa, tirava a gente, jogava na rua, em- cia: baixo dos pés de joá quantas vezes a gente não dor- mia lá! Ele chegava de fogo, jogava a gente na rua, nas Nessa noite, ele não estava em casa, porque ele goteiras, nas épocas de chuva. saía, estava pelos campos, pelas fazendas, ele era ca que no fundo, no fundo, eu não conheci meu Severina conta que esse procedimento do pai, pai, eu não sei quem é meu pai na realidade; não tinha numa determinada noite, acabou provocando a morte contato com ele: só via quando chegava; viajava, vivia de uma irmã mais nova. Conta esse episódio e faz o sempre com boiada, levava e trazia boiada dos fazen seguinte comentário: deiros, as tropas; quando ele voltava, se passava uma semana, um mês dentro de casa, trabalhando nas fa veja como é: as coisas ruins a gente lembra tudo; pa- zendas que tinha lá, era só briga e confusão. rece um filme na mente da gente; eu nunca esqueço dessa minha irmã. De alguma forma, parece, pode achar que o par Severina extrai da memória os fatos que considera não era só violento, beberrão, ausente, etc. como se significativos para que saibamos quem foi, quem era... implicitamente se perguntasse: "meu pai era só isso?44 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA Se o conhecesse na realidade saberia quem é meu Aparentemente, sem mais nem menos, o pai en pai?". em casa, noite alta, mutila a mãe, Severina sentiu Contudo, não convém que desviemos a atenção de correu o perigo de ser morta e diz: "eu não sei seu relato. Afinal, ela se propôs dizer quem foi, quem meu pai na realidade". era. Descreveu-se como revoltada e está apenas expli- cando as coisas que a deixaram revoltada. Podemos "Depois disso, papai ficou muito tempo sem vol até achar que ela, pelo fato de não ter conhecido um Mas, naquele tempo era a a mulher tinha outro lado que supostamente o pai pudesse apresentar, aceitar; voltou, tinha que aceitar o marido; não é h tenha essa revolta aumentada. não é nós agora (porque eu só o meu 2 an Voltou e continuou tudo a mesma coisa naquela Vamos devolver a palavra a Severina. (...) Engravidou mamãe e quando tinha mais ou nos 6 meses de gravidez, ele pôs o pé no mundo o Nessa noite (a mesma citada anteriormente) (...) ma- vez (...) Mamãe com a barriga na boca e nós passa mãe na cozinha falou: Você quer comida, eu fome (...) ela trabalha com as mãos tudo torta esquentar. Quando eu vim para a cozinha só vi na luz Nós tínhamos que carregar água para pagar a re do candeeiro o brilhar, e mamãe gritou; ela es- da casa que nós morávamos: acordávamos às 4 h tava de costas, e acho que ela ouviu mexer na tramela da manhã para encher os dos fazende e abrir a porta; eu fiquei parada; e agora, o que eu do patrão. faço? Gritar, pedir socorro! Mas via o brilhar e Quer dizer que naquela época era mais ela aparava nas mãos e aquilo cortando tudo. Uma cravidão (...) Com toda lealdade, era escravidão hora, não sei o que deu em mim (...) eu avancei para Analisa bem, veja o alicerce da minha vida, o qu passar entremeio os dois e mamãe segurou o facão no eu! ar. Se eu passasse e mamãe não tivesse segurado, ele Escrava-revoltada, fala de uma infância-que me cortava no meio, direto. Passei, gritei e pedi so- corro (...) eles vieram; foi quando papai passou teve: tudo o que ocorreu, sua história, é descrito por mim; vinha limpando o facão na bainha, na barra alicerce de sua vida, como se até então fosse da camisa. Eu digo: - Papai, você matou mamãe? E ele disse: Não matei sua mãe! Severina fala de si como de uma personagem Cheguei lá, ela estava de joelhos (...) os vizinhos foi (e não é mais), lutando contra a fome, a pobre chegaram para acudir e ele foi embora, sumiu (...) violência. A morte rondando. Embora não diga e Mamãe ficou uns 4 ou 5 meses em tratamento (...) citamente, o único apoio, a única fonte de segur Ficou aleijada: as mãos, os dedos, os braços, mutilou parece ter sido a mãe. tudo; não pegou no corpo porque ela ficava defen- dendo, porque acho que ele queria cortar a cabeça (...) foi dessa gravidez que mamãe morreu, no dela pelo jeito. (...) pra frente eu nunca soube mais dele (o p46 ANTONIO DA COSTA CIAMPA (...) Era época de Natal quando mamãe morreu e nós (mais duas irmãs sobreviventes) fomos distri- buídas, cada uma pra um lado. (...) Fui para Salvador; tinha 11 para 12 anos (...) trabalhar de empregada. Nunca esqueço o nome da rua: antiga rua dos Ossos! Foi daí para frente que começou minha vida, mi- nha peregrinação. Capítulo 2 Severina, no seu relato, aparece como mera teste- munha das brigas, das confusões, das violências. Es- crava revoltada, o único gesto que aponta como seu foi o de irromper entre o pai e a mãe, na cena do QUE RELATA o INÍCIO DA para pedir socorro: um gesto de desespero, de animal PEREGRINAÇÃO DE SEVERINA, acuado. Tudo o mais lhe acontecia: era surrada, era INCLUINDO o NO jogada para fora da casa, era obrigada a carregar água, E QUE foi levada para Salvador... uma história em voz pas- CONTA COMO ELA, siva: uma SENDO JOGADA DE UM LADO A memória de sua infância é um filme repleto de PARA o OUTRO, VAI SE cenas ruins. TRANSFORMANDO NA Sua termina aos 11 anos de VINGADORA QUE BUSCA PODER idade; sozinha, de mãe-morta e de pai-desapare- cido, arrancada de sua palhoça natal e levada para a cidade grande desconhecida. Sua vida, sua peregrinação começa na antiga rua Foi por diante que começou: era casa por dos Ossos. não sabia trabalhar, não sabia fazer o serviço (...) nunca tinha visto uma vassoura, nunca tinha visto um banheiro: a primeira vez que fui lavar a cara - a mu- disse que era pra lavar a cara quando ela che- gou eu estava pegando água na privada pra lavar rosto (...) eu não esqueço isso (...) daí ela explicou isso é pra gente sentar... explicou o que era pra fazer ali (...) eu fui pegar água lá porque eu não tinha visto nenhuma nascente, nenhuma fonte!48 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A ESTÓRIA DO SEVERINO E A DA SEVERINA Literalmente, Severina era um bicho-do-mato, naquela Não dava nem para comprar animal ferido e acuado, escorraçado para um lugar es- (...) eu fui crescendo, mas com aquele negócio tranho, desconhecido. de mim: eu tinha que trabalhar, tinha que viver Mas, um bicho-humano: que ultrapassar, fazer alguma coisa pra voltar lá truir toda aquela gente (...) Ai! quanta bobag pensava dentro de mim, né? Quando comecei a entender, eu não voltei mais pra (minha terra) (...) quando mamãe faleceu todo mundo Graças ao projeto que tem, o bicho-huma dizia (...) foi a amante dele (pai) que matou ela, de adquirindo uma identidade que dará sentido macumba (...) tudo aquilo eu escutei e gravei na mi- vida: a vingadora. nha mente, gravei mesmo (...) Então, quando eu co- Transformada em vingadora, é esta pesso mecei a entender, eu sempre tinha aquilo: mamãe entra na adolescência e juventude. Na época, foi a Preta (amante do pai) que matou, foi a cho-do-mato transformado em vingadora. Hoje macumba.. porque lá não chama macumba, chama fez feitiço e matou mamãe. Então, só vol- tra que ela é, afirma "quanta bobagem", mas tar lá quando eu puder me vingar dela (...) Então eu les dias era importante, nada era mais importan queria trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, vital. porque eu só vivi pra vingança; eu tinha uma vingança Vingadora e revoltada: muito grande dentro de mim: era encontrar meu pai e essa mulher... Sempre mudando, porque não tinha juízo: q coisa que diziam pra mim, quebrava o pau; er bicho-humano começa a entender e encontra tada, brigava com Deus e todo mundo; brig rua, brigava dentro de casa, brigava em todo significado para os acontecimentos: a morte da mãe os patrões se me davam um pão eu não queria tem uma explicação (natural e sobrenatural), os indi- dois (...) era a coisa mais gostosa comer pão, víduos têm intencionalidade; sua situação deixa de ser comi pão... porque antes comia só biju (...) um absurdo incompreensível. bicho-humano faz escolhas: quer permanecer A vingadora que arquiteta planos para a em Salvador, trabalhar muito. poder e "destruir toda aquela gente", convive Sua atividade adquire sentido: trabalhar para revoltada que briga "com Deus e todo mund poder vingar. vendo ainda o bichinho faminto que sente um Um projeto: vingança! Uma grande vingança; prazer em comer pão, "era a coisa mais gostosa para isso, ela precisa adquirir poder! A vingadora sempre sonhando adquirir po Mas em Salvador eu nunca consegui ganhar dinheiro, Sempre eu tinha uma coisa: mamãe chamava que era insuficiente, porque quanto que eu ganhava eu tinha isso sempre dentro50 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A ESTÓRIA DO SEVERINO E A DA SEVERINA 51 que um dia ainda eu ia voar num En- quando estava vencendo o mês, a mulher foi me pa- tão, depois começou aquele negócio: não era mais eu gar: de se reduziu a 300 cruzeiros meu ordenado ganhar dinheiro em Salvador, eu tinha que vir embora (...) ela me diz: tem que pagar a viagem de avião e tem para São Paulo. Mas como? Quem ia me trazer? Um que trabalhar 2 anos para pagar a viagem, descon- dia eu vou, mas como que vou? Vou dar um jeito de eu tando por mês (...) ir, pensava comigo! Pensei que tinha saído de uma escravidão, cai numa pior; digo: não, eu não you ficar aqui... Revoltada, acaba criando as condições: numa das muitas brigas, depois de apanhar muito de um patrão, Achara que o gavião-de-prata a levaria para São um galego dono da pensão onde trabalhava, que a Paulo e com isso ganharia dinheiro suficiente para rea- chama de filha sem pai, sai à rua procurando novo lizar seu projeto de vingança; descobre-se de novo es- emprego. acaso dá uma ajuda e uma desconhecida crava; escrava solitária, num mundo estranho im- lhe oferece trabalho em São Paulo. A possibilidade de potente até mesmo para voltar. voar no gavião-de-prata se torna concreta e talvez tam- Resolve prosseguir sua peregrinação. Foge depois bém o sonho de ganhar dinheiro em São Paulo e de alguns meses; arruma outro emprego na mesma ci- com isso ter poder! dade, numa casa em que não tem onde dormir; ar- Acredita que ficará com a família da mulher que ruma um quarto na casa de uma conterrânea e, em lhe ofereceu emprego, mas não; é levada para uma ci- pagamento do mesmo, trabalha também para esta. dade do interior de São Paulo (e não para a Capital, como acreditava) e deixada com outra família. Co- Outra escravidão: tinha que trabalhar na casa da pa- menta: troa e na casa da baiana (...) Veja como é minha vida: sempre jogada de um lado Já está com 18 anos de idade. Faz amizades na para o outro (...) cidade, até que um dia, Chorava dia e noite, de frio, de frio que eu não aguentava; 5 horas da manhã tinha que estar de pé; na besteira de arrumar um namorado; a família tinha 6 crianças nessa casa, era uma casa do tamanho do rapaz não queria, porque eu era sem família, era de um quarteirão; eu tinha que tomar conta, lavar a lá eles dizem filha de ninguém quando a gente é roupa de 6 crianças, cuidar das 6 crianças e cuidar da só (...) lá é outra cidade severa, uma cidade dura (...) casa; tinha uma cozinheira (...) (...) aquele namoriquinho, aquela coisa boba (...) (...) me largaram lá; eu digo: e agora que faço? no fim ele estava querendo ficar noivo (...) começou a sozinha, num mundo destes (...) eu não entendia nada guerra da mãe do rapaz comigo (...) entre ela (mãe) e (...) então digo: tenho que aguentar aqui; ganhar um a Z (a baiana que alugara o quarto) houve um com- dinheirinho e voltar (...) continuar trabalhando (...) binado...52 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A ESTÓRIA DO SEVERINO E A HIST Uma escrava, filha de ninguém, não pode ser a um revólver, comprar algum noiva de um rapaz de família, principalmente numa qualquer coisa, ou chegar e cidade severa e dura. uma alternativa de identidade e fazer o que ela (amante do I que lhe é socialmente negada. As posições que pode - o que eu achava que ela fez ocupar, as relações que pode manter dependem de sua que fazer igual; achasse meu I identidade. Noiva de rapaz de família é incompatível com escrava Como impedir que isso se concretize? combinado foi trazer Severina para a capital, a pretexto de acompanhar sua conterrânea, que vinha fazer um tratamento médico, e deixá-la aqui. A mulher foi embora e me deixou (...) quando re- cebeu alta (...) me deixou (...) sem emprego e sem nada, na casa de (uma família), que era pra essa fa- mília arrumar um emprego pra mim aqui, porque não tinha mais condições de voltar pra (cidade do interior) (...) perdi o namorado, perdi tudo. (...) dai foi casa por casa, casa por casa, casa por casa, casa por casa, trabalhando (...) então cada vez mais cada dia eu era jogada de um lado pra o outro. Quem pensava, chegada em São Paulo, conse- guir os meios para se libertar da escravidão, ganhar dinheiro, adquirir poder e concretizar o projeto de vin- gança, vê tudo isso cada vez mais difícil. Sente-se um joguete nas mãos dos outros, que a enganam, explo- ram-na e a abandonam. Que mudou? Nada, nem seu propósito. Continuava na mesma coisa, no mesmo ritmo, com a idéia de vingança, de trabalhar e de voltar (...) ficar rica, ganhar dinheiro, pra pagar passagem e comprarA DO SEVERINO E A DA SEVERINA 55 não podia fazer nada, tinha que correr mesmo, por- que a raça era fogo e eu tinha que viver, não podia morrer antes do tempo (...) porque eu tinha alguma coisa pra mim fazer na vida. A única coisa que ninguém podia lhe tirar e à qual Capítulo 3 se agarrava como forma de sobreviver era seu desejo de vingança. Mas, cada vez menos este projeto se viabi- liza. Continua sendo tudo o que foi: escrava revoltada e briguenta, filha de ninguém, etc.; mas a vingança cada vez mais distante. A realidade objetiva se impõe. Seu desejo tam- ONDE CONTINUA o RELATO DA Como preservar a vingadora com que se identi- PEREGRINAÇÃO DE SEVERINA, fica? Que fazer? QUE TENTA FUGIR DE EXU, E Alucinar: uma saída? NESSA TENTATIVA ENCONTRA UM NOIVO COM QUEM SE CASA Mais ou menos eu já estava com uns vinte e poucos anos quando comecei a ter esses tipos de pesadelos (...) antes eu não tinha, a única coisa que eu tinha era muita revolta, muita briga. Severina prossegue sua que nós po- As visões eram verdadeiras (...) verdadeiras não deríamos chamar calvário. Como ela mesma diz, "jo- hoje, hoje não, verdadeiras na época, entende? A- gada de um lado para o "de casa por casa". quilo era tão real, o que eu via (...) Cada vez que muda, muda sua escravidão, mas esta a Eu tinha mil-e-uma coisas; eu enxergava, eu via acompanha desde cedo. Se conviveu com a violência as coisas (...) à noite eu tinha aqueles pesadelos hor- quando era filha-do-pai, com ela continua convivendo ríveis, acordava gritando, berrando, eu acordava e via quando se transforma em filha-sem-pai e depois filha- múmia, via coisas na beira da minha cama, eu via um Tudo lhe é negado. bendito de um (...) eu via tudo isso (...) as me- Depois que perde o provável noivo, na cidade se- ninas (que moravam na mesma pensão) vinham me acordar pra ver o que estava acontecendo comigo (...) vera e dura do interior, tem uma segunda oportuni- Um dia eu pelada, quase pelada; de (onde dade em São Paulo, quando começa a namorar um morava) fui até (o lugar onde trabalhava), porque os japonês. Mas, de novo, a família do moço se soldados estavam correndo atrás de mim e eu (...) que soldado nada! (...) pai do japonês correndo de mim sempre; não Era um tipo de crise que dava em mim, de acesso dava certo mesmo, eu não tinha quem me ajudasse, eu de loucura, qualquer coisa, não é?56 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA É a Severina-de-hoje falando da Severina-de-on- mação da identidade que construíra prefere aban tem; a primeira é quem dá esta explicação (acesso de donar a realidade. loucura); a segunda é quem tinha visões que eram ver- Mas, a realidade muitas vezes é mais surpreen dadeiras. De que explicações esta dispunha? A mãe já dente do que imaginamos. fora morta de feitiço; agora, ela é quem corria perigo: o meu marido eu conheci sabe como? No centro Achava que ia morrer, é lógico; tudo pra mim era coi- rita. Comecei a ir e depois a gente começou sa feita, era macumba, era que as pessoas fa- papo (...) ziam pra mim. Foi cinco anos de namoro e noivado; era tude bem; ele era ótimo (...) Foi a primeira pessoa na realidade que me der suporte social que garantia ser verdadeira a ex- carinho, que me deu atenção, assim na verdadeira plicação ela o encontra na lembrança das afirmações mesmo (...) pra mim ele era tudo, era meu pai, er feitas pelos vizinhos em sua terra natal, quando a mãe meu irmão, era meu noivo; sou sincera a dizer (... morreu; agora, era reafirmado pelas meninas da pen- dentro desses cinco anos ele foi bacana comigo, m são: respeitou mesmo, porque ele, sabendo que eu era so zinha, não tinha família, não tinha ninguém... eu an As meninas achavam que eu tinha encosto, que eu ti- dava com ele parecia que era meu irmão, meu amigo nha as coisas, que eu tinha isso, que eu tinha aquilo era aquela coisa maravilhosa que tinha entre nós (... outro e (uma delas) me levou lá no centro espírita (...) Eu acreditava nele piamente, ele era a única coi Cada vez mais diziam que era encosto que eu ti- sa, foi a única pessoa que eu achei que confiei, nha (...) que eu tinha que desenvolver (...) que eu ti- acreditei e, acima de tudo, eu pensei que eu amei nha um danado de um Exu, que eu tinha um não sei Tudo pra mim que ele fazia era perfeito; não existi quem era outro lá (...). nada imperfeito nele pra mim. De repente, a realidade que se mostrava tão host Se é verdade que feitiços são reais, fica explicada a Severina a ponto de ela começar inconscientement e aceitável a dificuldade que Severina está tendo de a se evadir da mesma - muda surpreendentemente concretizar seu projeto de vingança: as outras pessoas encontra um rapaz com quem durante cinco anos ter é que impedem-na, graças a essa coisa poderosa que é um namoro e um noivado perfeitos. Não falta o fina o feliz: casam-se, de papel passado e na igreja, com a Parece bastante razoável admitirmos que, frente dos pais do marido. Ele é instruído (pra à dificuldade objetiva de conseguir o poder de que ne- ele era doutor: tinha ginasial completo) e está empre cessita para realizar seu projeto de vingança, em vez gado (era soldado, com função de datilógrafo e taqui de abandoná-lo - o que implicaria profunda transfor- grafo, num tribunal militar).ANTONIO DA COSTA CIAMPA ma alternativa de mudança de identidade dese- r muitas moças - até mesmo de classe média e mília - ser esposa, dona-de-casa, mãe, tudo ho! ariosamente, não se percebe nenhuma evidência Severina desejasse isso antes. Apenas tinha ido ro espírita por causa dos feitiços, dos encostos Capítulo 4 nado de um Exu), buscar ajuda (desenvolver). do o que declarara até então fora trabalhar, ca, adquirir poder, voltar para sua terra e vin- a vingadora! que temos Severina casada, dona-de-casa e, EM QUE INTERROMPIDA A ano, mãe de um menino. NARRATIVA DA nias do destino... ou de Deus... ou do diabo... PEREGRINAÇÃO DE SEVERINA PARA UMA REFLEXÃO, DEPOIS DO QUE VOLTAMOS À NA DO SEU NOIVADO Até os vinte e poucos anos, a história de Seve- rina, sob a aparência de uma grande diversidade e va- riedade de situações e episódios, é relativamente ho- mogênea e repetitiva; é possível perceber com certo grau de nitidez o desenvolvimento de sua identidade, que é mantida por uma contradição até então não su- perada. Na configura-se a escrava- revoltada, que constitui o que chamou de seu alicerce, período de Assinala o começo de sua vida - sua peregrinação - quando entra na adolescência como bicho-do-mato, que logo se mostra bicho-humano quando começa a entender e dar signi-60 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A ESTÓRIA DO SEVERINO E A DA SEVERINA 61 ficado a sua existência. Isto a leva a se identificar, en- gando e lutando já não mais com as pessoas que tão, como ao mesmo tempo em com ela interagem mas com seus fantasmas inte- que se descobre Propõe-se traba- riores. As alucinações são percebidas como sintomas lhar muito para conseguir poder e concretizar seu pro- de encosto; seu mundo imaginário adquire status de jeto de vingança, mesmo sentindo-se jogada de um la- realidade sobrenatural, realidade que é legitimada e do para o outro, e vendo impedidas outras alternativas confirmada pelos membros do centro que de identidade: ou escrava (que lhe ou vinga- passam a explorá-la (segundo sua visão retrospectiva). dora (que deseja vir a ser). Ambas se opõem e se ne- Reduzida novamente à condição de escrava explo- gam. rada, pensa ter encontrado uma saída, uma alterna- Não consegue superar essa contradição, nem eli- tiva no noivado. Cria uma realidade inter-subjetiva- miná-la. mente compartilhada apenas com o noivo, um mundo Pode-se entender que aos vinte e poucos anos de quase celestial. Prepara-se para ser idade começa a esmorecer. As alucinações principiam. casa/mãe. Objetiva esta nova identidade com o casa- A história se complica e sua identidade perde a ni- mento: esta nova realidade já não é apenas inter-subje- tidez. tiva, sua concretização se dá pela inserção dessas re- De um lado, a vingadora permanece apenas como lações no mundo objetivo da sociedade de classes em possibilidade. Não concretiza seu projeto por falta de que vive, onde ocupa assim como seu marido condições objetivas; é um projeto alimentado apenas uma posição praticamente marginal. A totalidade so- pelo seu desejo e sobrevive como realidade puramente cial se impõe decisivamente. subjetiva, um imaginário individual, que não compar- o casamento se revela uma nova forma de escra- tilha com ninguém. vidão e o marido encarna a violência e a exploração De outro lado, a escrava sempre se concretizando das relações a que está submetida e que caracterizam e se reproduzindo em cada momento de sua peregri- nossa sociedade. noivado foi apenas uma pausa, que nação, a despeito de seu esforço e de sua vontade em cobriu com o véu da ilusão uma realidade que ressurge fugir dessa condição. Objetivamente, esta é a reali- mais forte após o casamento. dade que se materializa nas suas relações sociais. Para percebermos melhor esta evolução, aqui an- Como escraya que é, sente-se revoltada por não tecipada, voltemos à narrativa que Severina faz de sua conseguir transformar-se em vingadora; impotente, vida. consegue apenas ser briguenta. Além do que já foi dito sobre os cinco anos que Ao mesmo tempo, esses dois componentes con- durou noivado, que mais podemos saber? traditórios de sua identidade se desenvolvem. A vingadora como que se recolhe cada vez mais Nesses cinco anos continuei com o centro espírita e as para um mundo imaginário, onde ela continua bri- coisas ruins me acontecendo: os pesadelos, sempre eu62 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA 63 tinha os pesadelos (...) cada vez mais diziam que era encosto que eu tinha, eles falavam (...) tudo que era os caras do centro, alimentá-los, ser por eles tratada e de mau, de ruim, eu tinha em mim, eles diziam (...) e manipulada. eu acreditava, acreditava! Retrospectivamente, a Severina-de-hoje diz que isso era bobagem, mas corrige: como na época acre- relato que Severina faz desse período de sua ditava, não era boba. Era, de fato, iludida. vida é comparativamente pobre de informações, de de- Esta condição de iludida mascara sua condição de talhes. Dá a impressão de uma pausa, de uma trégua escrava e como que encapsula a vingadora-briguenta. da vingadora-briguenta, que acaba gerando novas for- Iludida não só pelos caras do centro - nem prin- mas de cipalmente mas basicamente iludida com um novo significado que eles (do centro espírita) davam projeto de vida, que era ser a seu comportamento tornava reais, verdadeiros seus mãe. Um projeto a dois, não mais individual como a pesadelos; se não fala mais em fala agora em da vingadora, um projeto que, parece, idealizou junto encosto. É uma realidade socialmente compartilhada, com noivo e junto com ele esperava concretizar. que dava sentido ao que acontecia. Mas, Isso inclusive determina um novo arranjo no seu quotidiano: (...) na realidade, no fundo mesmo, ele não era nada disto, porque ele viveu um mundo-fantasia (...) Meu noivo dizia que eu tinha que ir, que tinha que frequentar: todo sábado, toda sexta; todo sábado, Iludida por alguém que também estava iludido, é toda sexta; todo sábado, toda sexta; tomar passe, fa- que ela parece querer dizer. zer limpeza no corpo, os banhos, as coisas, tudo que tinha que fazer; e o dinheiro que gastava, que eu tinha É curioso notar que ao descrever sua relação com que ganhar: tinha que comprar as coisas pra dar pra o noivo nos cinco anos que antecederam o casamento eles comer boba né? não era boba porque acre- ela diz: era aquela coisa maravilhosa que tinha entre ditava mesmo (...) a gente comprava as coisas e levava nós. Embora real a maravilhosa relação no noivado, pros caras do centro; meu sogro era presidente do cen- seu desenvolvimento desvela sua base ilusória. tro (...) (...) talvez ele gostasse de mim, e talvez goste até hoje, A nitidez de sua identidade fica embaçada: ela não sei porque coração é terra em que ninguém que não confiava em ninguém, nem a ninguém obe- anda, não é verdade? - mas ele pensou que o casa- decia, vê-se dirigida pelo noivo, em quem confiava mento era uma coisa simples! E, outra coisa (...) eu morava dentro de um quartinho, mas dentro desse piamente; ela que queria ganhar dinheiro para rea- lizar seu projeto de vingança é induzida a gastá-lo com quartinho eu tinha tudo; então, acho que ele achou que já estava completa a casa; só faltava comprar o64 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERIN dormitório (...) então, quando ele foi com minha so- Era a vingadora-briguenta, encapsulada gra, na minha casa, foi pra cá que ele antecipou da que avisa o casamento; quer dizer que ele vivia com os proble- em vão. mas dentro de casa, o que ele ganhava ele dizia que ganhava uma coisa e não ganhava ele não tinha aquele ordenado que falava, o pai dentro de casa não que eu apanhei desse cara não foi bolinho dava dinheiro, quer dizer que o pai e a mãe castiga- apanhei muito! Ele batia minha cabeça no vam, judiavam dele, judiavam modo de dizer: aperta- se bate um coco, tunc, tunc, tunc, tunc! e vam ele; então (...) ele diz assim: está na hora, é ago- e voltava (...) me caluniava (...) Qual m ra, you me livrar deles (...) não sei se foi um tipo de falta das coisas dentro de casa; eu não podia fuga dele que queria ter liberdade, eu não posso en- boca. Eu pedia e dentro de casa o que é que tender o que foi (...) Era o meu dinheiro, porque o dinheiro nhava, se ele ganhava alguma coisa, então e sentido do noivado, supostamente mesmo panhava os outros, gastava tudo (...) farrista para ambos, na verdade era diferente para cada um; era a pinga; acho que era o tóxico, porque então, não havia um projeto comum. Dai seu caráter comigo (...) ele era alto, ele era forte (...) e ilusório, a frustração. cavalaria (...) das polícias especiais, ele era grande, era enorme, daquelas patrulhas mudou tudo, porque que vivemos dentro de tava comigo! Naquela época quanto que eu p cinco anos. depois dois anos foi de inferno. quilos; ele lutava comigo como se lutasse mem; ele me massacrava (...) eu enfrentava e quebrada (...) com a cabeça deste tamanho Se, de alguma forma, pode ser um pouco surpre- tamanho de um bonde, e eu enfrentava! endente que um noivado celestial evoluísse para um casamento infernal, o que não é nem um pouco sur- preendente é que, tendo deteriorado, tenha durado Severina resume aqui dois anos de casam apenas dois anos. Na verdade, durou muito. fundo, nada tinha mudado: escrava, explora Severina já advertira o noivo: lentada, jogada literalmente de um lado para revoltada, briguenta, insubmissa. Sua reaçã Eu contei pra ele a minha história, a minha mente, é de bicho acuado, de animal que se is que eu passei com meu pai e com minha mãe e eu so numa armadilha, ameaçado de morrer. sempre disse pra ele (...) se um dia eu me casar, eu Contudo, ela não acusa o marido de não you nem um terço que minha mãe agüen- mentindo e ocultando, como um car tou; o homem não vai fazer comigo o que meu pai fez farçado. Não, este é o caráter da ilusão com minha mãe. que se pode caracterizar a fase do noivado.ANTONIO DA COSTA CIAMPA pode uma pessoa, um ser humano ter duas... digo, ele foi duas personagens, dois seres r só, numa pessoa (...) e a transformação alvez ele casou comigo e não era isso o que então era um modo dele se livrar de mim, Capítulo 5 DA LOUCURA PARTE) Severina conta que seu marido foi duas perso- nagens, dois seres em um só ser, que sofreu uma gran- de transformação. o noivo divino metamorfoseia-se em marido diabólico. Concomitantemente, as relações entre ambos se transformam. Concomitantemente, a identidade de Severina sofre mudanças, mudanças inesperadas para ela. Esse casamento era meu ideal, minha vida; ali eu ima- ginava ter um marido, um irmão (...) porque está cer- to eu não tinha preparo, mas eu pensava que no meu casamento era o fim do meu sofrimento; mas é que começou meu sofrimento: dobrou (...) Severina recorda aí o projeto que acalentou nos cinco anos de noivado celestial. Nessa época sua escra- vidão se tornara mais suave. Até mesmo no trabalho melhorava. Ainda noiva, arranja emprego em um hos-68 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA 69 pital; já não é mais casa por casa. A escravidão da do- méstica suaviza-se e é escamoteada por um trabalho as- que eu não queria perder meu filho (...) fiz uma pro- messa se meu filho nascesse (...) foi dai pra que eu salariado com registro em carteira, previdência social, comecei porque eu levantei da cama, pisei o pé no etc. Tanto que pudera montar o quartinho com tudo o chão e eu senti a mesma coisa que eu chegar aqui na que precisava, tanto que pudera comprar as coisas janela, pisar aqui na janela e o pé parecia que estava pros caras do centro. lá embaixo, foi que começou o problema e co- medida que sua situação econômica melhora meçou as hemorragias; então chamaram ele (marido), pode ser mais roubada, mais explorada. No fundo, então ele disse que aquilo fui eu que tinha me jogado esta a única explicação que encontra para o noivo ter da janela pra baixo em casa, por isso tinha ficado da- casado com ela, em especial para a antecipação de seu quele jeito, que eu era louca; então foi daí pra diante casamento. Mas isto é a Severina-de-hoje falando. A que começou o negócio de ele dizer que eu era louca Severina-de-ontem casa-se achando que era o fim do (...) foi que eu comecei a fazer o tratamento meu sofrimento. pital em que trabalhava). Ao mesmo tempo que recebe assistência médica Quando eu estava com 3 ou 4 meses de gravidez, quase perdi o (filho), do chute que ele (marido) me deu e ele para evitar o aborto (fiquei meses de repouso), começa me jogou na parede. Eu fui pro hospital (em que es- a receber tratamento Informa que algum tava empregada) trabalhar toda arrebentada de pan- tempo depois cada que eu tinha levado porque (ele achava que) o filho não era dele (...) Foi pra cá que as coisas fiquei com os nervos, tudo, desmolengados, eu fi- depois começaram a acontecer comigo, esse negócio quei dentro da cadeira de rodas, ia e voltava, ia e vol- de desequilíbrio. tava, porque me punha de pé eu não eu andava ou de muleta ou na cadeira de rodas. Dois me- fato casual de estar empregada num hospital ses eu fiquei internada. As minha carnes pulavam... acaba sendo um fato extremamente relevante para o que parecia que eu tinha bicha; eu falava (...) eu te- desenvolvimento de sua história, com pelo menos uma nho minhoca, tenho minhoca, tenho bicho, tenho bi- implicação altamente significativa para sua identi- cho; minhas carnes pulavam inteirinho, direto, todi- dade: os sintomas que antes eram interpretados como nha (...) sabe gia quando a gente mata ela, que ela fica pulando (...) aqui chama (...) mesmo depois de encosto vão ser vistos medicamente. morta fica estrebuchando, então, meu corpo inteiro, Estive para perder o (filho), estava ruim, ruim, ruim até o couro cabeludo pulava (...) até negócio de hipno- (...) os coágulos que caíam da hemorragia eram enor- tismo, essas coisas, até isso fizeram pra mim. mes (...) chamaram ele (marido) porque queriam fa- bicho-acuado está ferido quase mortalmente! zer curetagem; ele disse que poderia fazer (...) eu Estrebucha, as carnes pulam, a força dos mem- pedia para o (médico), pedia que eu queria meu filho, bros desaparece.A ESTÓRIA DO SEVERINO E A HISTÓRIA DA SEVERINA 71 70 ANTONIO DA COSTA CIAMPA É uma reação praticamente animal de sobreviver A Severina-de-hoje reconhece que foi salva pelo e preservar a cria. patrão, o médico dono do hospital onde trabalhava. Sobrevive! A cria também! Mas, a Severina-de-ontem acreditava que era doente e o bicho-humano? mental. Com afirma: e dai eu fiquei louca. E fiquei! Identifica-se como louca. louca! Tudo faz sentido. o significado socialmente com- Antes, de solteira, tinha aqueles problemas (...) de es- piritismo, que tinha encosto que tomou conta de mim partilhado define, explica, legitima a realidade e a (...) nem pensava em loucura (...) foi depois disso, que nova identidade. ele (marido) falou que eu era louca, falou pros médi- Quando Severina estava sendo tratada no centro cos que eu era louca (...) os médicos acreditaram (...) espírita, o noivo confirma o encosto. Agora, tratada e eu acreditei (...) vê o que é, é duro, é fogo, né, como num hospital, o marido confirma a doença mental. E que pode, o que que é a mente da gente (...) ele inven- ela sempre acreditando. E agindo como tal! A reali- tou, pra encobrir a surra (...) e eu fiquei louca. E dade sendo produzida socialmente. Como fiquei! (...) Quem olhava pra mim parecia que eu era afirmar a loucura num centro Como afirmar uma lelé, lelé mesmo; eu andava como uma tonta, o encosto num hospital? uma biruta, e como que as pessoas conseguem, Ele Loucura, destruição Transformação fez minhas fichas, ele (...) falou pra todo mundo que de identidade. eu era doida, que eu estava louca (...) Por pouco que eu não estava em Franco da Rocha; eu não estou e eu agradeço a isso e tenho muita gratidão ao (médico, dono do hospital em que trabalhava) (...) aquelas pes- soas me ajudaram muito, ajudaram muito. o (dono do hospital) depois que ficou sabendo do meu proble- ma começou a ajudar a mim, pelo menos nestas par- tes. Então, quando ele (marido) chegou lá com as fi- chas prontas pra me internar - não sei como ele con- seguiu - só estava faltando a perua (...) então o (dono do hospital) disse que que eu não saía dali não, que se eu estivesse com problemas (...) eu ia ser cui- dada lá, iam me encaminhar pro INPS (...) mas pe- rante ele (marido) eu era uma louca e eu acreditava, como eu acreditava! Uma nova identidade: louca, doente mental. Se não a morte biológica, então a morteA DO SEVERINO E A DA SEVERINA 73 cido. Um quotidiano que reproduz a violência, a ex- ploração, o enlouquecimento. Com aqueles problemas dentro de casa, dele não pa- gar as dívidas, não pagar nada, o dinheiro que entrava era só o meu e era muito pouco; então ele queria que Capítulo 6 eu saisse por divina força do hospital (...) descobri que estava havendo relacionamento (sexual) entre ele e ela (moça que Severina empregara para cuidar do filho enquanto trabalhava), ai foi onde começou as encren- cas (...) digo: não dá mais (...) arrumei uma senhora DA LOUCURA de idade pra ficar lá (...) que virou bagunça mesmo PARTE) (...) e ele encrencando comigo, judiando de mim (...) batendo em mim, me caluniando, me tocaiando na porta do hospital, dizendo que eu tinha amantes, o tratamento médico salva Severina da morte que eu tinha isso, que eu tinha aquilo outro (...) Azu- crinava tanto que às vezes eu achava que tinha aman- biológica e da morte Sobram seqüelas, cer- te (...) tamente. Com o parto bem sucedido lhe é outorgada a identidade de mãe; apesar dos pesares já era esposa. Ainda tem crises intermitentes; às vezes vai tra- Então, tinha também que ser dona-de-casa, para con- balhar no hospital, às vezes fica internada. De qual- figurar integralmente o padrão de identidade femi- quer forma, está mais fortalecida. Afinal, o bicho- nina: Além disso, man- acuado ferido quase mortalmente sobrevivera; é pre- tinha o emprego no hospital; era uma trabalhadora ciso cuidar do filhote. também. A escravidão tomara formas tão variadas e surrada, mas enfrenta o marido. sutis que permanecia A vingadora continua encapsulada, comprimida. (...) então a revolta continuou; aí já não tinha dois pra Advertira o noivo antes do casamento que não eu tinha três - meu marido; já tinha mais um aguentaria nem um terço que minha mãe aguentou. na lista negra. Como a mãe sofreu muito, provavelmente esta medida ainda não se completara. A revolta da escrava desperta a vingadora-bri- Insiste em ter um lar. Ele, ela, o filho recém-nas- guenta. Mas, como anteriormente, a vingança é desejo que não se concretiza; permanece fantasia.74 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA 75 Prefere agir de acordo com sua identidade femi- Severina sem filho deixaria de ser mãe... nina convencional e pede a ajuda do sogro. Este in- terfere a favor da Severina. Falou pro meu sogro que não era pra eu entrar mais lá (casa do casal); disse que era pra eu entregar a chave; Ficou assim, do menino ir pra lá (casa do sogro) até queria, porque queria a chave da casa. normalizar a vida da gente (...) então eu falei pra ele (...) mas eu junto, pelo menos uns 15 dias, porque o primeiro filho é duro a gente deixar, já pensou sepa- Severina sem casa deixa de ser dona-de-casa... rar? (...) Então eu faria isso: um dia ia pra (casa do sogro) um dia eu vinha pra (casa dela) (...) aí quando meu sogro diz, dá Severina, dá essa chave. chegava na casa (casa do sogro) estava o maior banzé (...) as maiores confusões (...) no dia seguinte (uma Severina sem marido já não é esposa... vizinha) (...) foi correndo no meu serviço e disse: dona Severina vai lá que (seu marido) está vendendo tudo o que é da senhora, está acabando tudo o que tem den- Era no outro dia pra mim ir lá (na casa do casal) bus- car o resto da minha roupa (...) Fui, quando cheguei tro da sua casa, acabando com tudo (...) lá (...) entramos no corredor (acompanhada de um ca- Novamente vai pedir socorro ao sogro, em cuja sal vizinho ao qual pediu ajuda), ele veio pra me agar- casa acaba encontrando o marido. rar (...) o (vizinho) se atracou com ele (...) (...) pra ir embora (...) vem a (outra vizinha) correndo: dona (...) foi quando ele rasgou minha certidão, né, rasgou Severina, vai lá, vai lá, vai correndo, acuda, ele está a certidão! tacando fogo em tudo que é da senhora; ele acabou mesmo (...) tacou fogo em tudo (...) eu fiquei só com Detalhe? Ou ato prenhe de significado simbólico? algumas roupas que tinha na casa do meu sogro e o o marido parece sintetizar nesse ato aparente- que eu estava vestindo no corpo; fiquei sem nada (...) todo mundo diz que aquele álcool não era pra tocar mente tolo e inócuo toda sua intenção: destruir a iden- fogo naquilo; ele ia tocar fogo em mim (...) como ele tidade de Severina. Note-se que faz isso em seguida ao não conseguiu, ele queimou minhas coisas; aí que da- que uma vizinha descrevera como está acabando com nou mesmo, aí que acabou com tudo mesmo (...) ele tudo (o que é dela, o que tem dentro da casa). sumiu seis meses (...) mas nestas alturas eu já estou no Já que os médicos do hospital haviam anterior- auge da... coisa, né, porque eu já não trabalhava mente frustrado sua tentativa de destruir Severina, mais, eu trabalhava uma semana, uma semana eu fi- tenta de novo. cava internada; eu trabalhava uma semana, uma se- mana eu ficava internada; (...) onde ele me encontrava Tinha pegado o menino (filho) e tinha saído (...) fo- ele me espancava, na época eu andava como uma bi- ram pegar ele lá no mercadinho com a criança. ruta e na casa do meu sogro (...) eu fiquei um ano76 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA 77 morando na casa do meu sogro (...) o (meu marido) Nesse entremeio, ele (marido) começou a azucrinar por pouco, por pouco, teria me destruído completa- minha sogra, pra minha sogra pegar a tutela do me- mente! nino. Ele queria; porque eu não saía com o menino, eu não podia sair com o menino; eu saía com o menino e De fato, quase a destruiu completamente. Desde quando encontrava com ele, fazia eu voltar pra casa e quando começa sua peregrinação, Severina tem o tra- entregar o menino outra vez, devolver o menino. Não balho como missão, vendo-o como meio para poder podia sair com o menino de espécie alguma de dentro realizar seu projeto de vingança. Na sua história, des- de casa (...) Meu sogro mais moderado (...) Minha de a o trabalho é uma presença sogra ficava fustigando (...) ficava do lado dele, lógico constante. (...) Um dia meu sogro foi comigo no Juizado (de Me- nores) e ele (marido) foi junto (...) mas eu fui porque Foi que, quando eu não tinha mais condição de tra- meu sogro diz: vamos Severina porque precisamos re- balhar - e ficando internada, e ficando internada solver esta coisa direita, pra ver que a gente vai fazer foi quando me puseram na caixa (INPS), me encosta- (...) mas não falou nada de tutela, que eu tinha que ram na caixa; me encostaram na caixa e eu fiquei na dar a tutela do menino pra ele (sogro) (...) quando caixa, e como que eu ia viver? chegou lá, ah! ouvi tudo que podia imaginar; ele (ma- rido) falou pra advogada (sic) que eu era uma indi- Não é mais trabalhadora, ela que antes dos 11 gente, que eu era uma prostituta, que eu abandonei o anos já madrugava para encher de água os filho, que eu abandonei ele, que eu abandonei a casa, dos fazendeiros, a rendeira cujo trabalho era pior que que eu abandonei tudo, e falou, e falou, e falou (...) Um observador externo diria que estava montado Escrava-encostada, inútil, inutilizada. o cenário ideal para um complô. Não é bem o julga- Os médicos a salvaram da morte. Continuar cui- mento que a Severina-de-hoje faz, especialmente quan- dando dela talvez seja difícil, talvez seja antieconô- do preserva a figura do sogro. De qualquer forma, não mico. Dentro da racionalidade capitalista a melhor so- fosse a defesa e apaixonada que Severina fez lução é aposentá-la; afinal, trata-se apenas de uma es- de si poderia perder a tutela do filho. Terminal dizendo crava inutilizada! risco de tornar-se uma doente à advogada (sic) do Juizado de Menores: mental crônica é inevitável para uma escrava inutili- Até o último momento que eu tiver de vida, dia de zada. Dane-se! Já foi salva uma vez quando o pro- vida, eu quero assumir esta responsabilidade; é meu blema era agudo. Saúde é uma mercadoria muito ca- filho, a única coisa de bom que eu tenho até hoje é ra, dispensável para uma escrava. meu filho; eu you dar? (...) eu digo: doutora, nem os Nem mesmo escrava consegue mais ser! bichos, nem os animais dão seus filhotes, agora eu you Que resta? dar? E quando meu filho crescer o que ele vai achar de Ser mãe; sim, ainda havia filho. mim?78 ANTONIO DA COSTA CIAMPA Não perde o filho. Conserva sua identidade de mãe. Alguma coisa se salvou: por pouco, por pouco, teria me destruído completamente. Quando eu cheguei em casa, minha sogra estava toda feliz, pensando que eu tinha dado, de papel passado, o menino, a tutela pro meu sogro... quando cheguei em casa e não tinha nada ajeitado, ela fechou a cara Capítulo 7 comigo (...) passou dois dias (...) meu sogro falou pra mim: Severina, você faz assim, você arruma um lu- gar pra ficar (...) porque aqui não vai ter mais condi- ções de você ficar, ajeita sua vida, deixa o menino aí, que a gente toma conta do menino (...) Ai! que me deu QUE CONTA COMO SEVERINA mais revolta, deixar meu filho, deixar meu filho ali, TENTA SAIR DO ZERO: sozinho; ai! que eu tinha vontade mesmo de acabar UM OUTRO OUTRO com a vida do (meu marido), da mãe dele, de todo mundo, daquela raça inteira... Não perde o filho? Conserva sua identidade de fiquei a zero (...) eu fiquei a zero (...) mãe? Alguma coisa se salvou? Severina faz um balanço desolador de sua vida. Se alguma coisa se salvou foi coisa pouca; de impor- tante, sua vida e a do filho. Sempre pode recomeçar. A tutela legal do filho está salva mas, de fato (ain- da que não de direito), sua guarda e seu cuidado ca- bem a seus sogros: até a companhia do filho lhe é ti- rada. Pode visitá-lo de vez em quando. É mãe, mas trabalho também está perdido. Sua doença mental a afasta do emprego. É trabalhadora, mas tra- balhadora-na-caixal Escrava inutilizada, de fato uma ex-escrava. Tam- bém é ex-esposa e ex-dona-de-casa. Tudo lhe foi tirado, roubado, espoliado, destruído. Como isto pode ser dito80 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA 81 em termos positivos? Em vez de afirmarmos o que não era, o que era ela? INPS) (...) depois ainda me deu infecção nos rins, que Doente mental, oficialmente, com laudo médico e eu urinava sangue, de nefrite, urinava sangue que nem uma doida. E as mulheres tudo dali, nossa! Elas olha- tudo mais. Recebe uma pensão para se manter viva e vam pra mim, porque não sabiam donde que eu vi- reproduzir sua identidade de doente mental, encarna- nha, pensavam que eu era um bicho qualquer, uma ção, concretização da destrutividade de uma sociedade mulher da rua e eu fui cair na bobagem de falar pra desumanizadora. Seu ex-marido apenas foi mais um outra que eu estava com problema de urina, que es- dos muitos instrumentos dessa destrutividade, embora tava urinando sangue, virgem! (...) Foi fogo naquele tenha sido um dos principais no caso particular de Se- pedaço ali pra mim; e eu ali; mas eu sempre com as verina. Ele próprio também sofre os efeitos dessa des- minhas vinganças dentro de mim, com a minha raiva, trutividade. Ex-noivo perfeito, tem a mesma sina de com a minha bronca; eu tinha que me vingar do (meu Severina. Está desempregado, sumido pelo mundo, marido), tinha que dar um jeito na minha vida. Mas como? único modo que eu poderia me vingar dele: enlouquecendo cada vez mais: algoz e vítima a um só ou matando ele ou o centro, ou macumba, né? tempo! Mas, Severina é quem tem a palavra. A vingadora-encapsulada retoma seu lugar. É ela quem vai dar forças e sentido para esse ser quase des- duro... eu vim morar. pedir na antiga casa que truído completamente. eu morava antes de eu casar, dos portugueses (...) quando chego lá não tinha lugar pra mim ficar; onde Que alternativa lhe restava, se até escrava não era que eu ia ficar? (...) Então fui falar com (outra mulher mais? A única coisa que não lhe tinha sido tirado era o que aluga quartos na proximidade) (...) não tem lugar projeto de vingança. Se lhe tirassem, talvez fosse a úl- pra mim ficar (...) Onde que eu you ficar agora? (...) tima coisa a ser tirada antes de perder a vida! então ela (a mesma mulher) tinha um banheirinho, o projeto é reformulado e ampliado. Não mais só não sei por que razão eles fecharam aquele banheiri- o pai e a amante, nem prioritariamente. Primeiro o nho, taparam tudo (...) sabe esses banheirinhos de marido. Mas como? Antes é preciso manter-se viva, pensão, uma coisa muito pequenininha? Então ela diz: olha, o único lugar que tem é este banheirinho, se sobreviver. você quiser ficar fique (...) Então eu disse: tudo (...) (uma mulher) que hoje já me deu uma es- bem (...) Arrumou uma cama velha (...) pediu um col- piriteira; (outra mulher) deu uma caneca, essa caneca chão pra negrona que tinha lá (...) tinha (uma antiga está tudo quebrada, mas eu guardo até hoje isso conhecida) na outra pensão (...) que me arrumou um está guardado e é naquela espiriteira que eu faço um cobertorzinho, uma colchinha que eu forrei e fiquei pouco de café, alguma coisa assim: comprava pão, vi- ali. E comer? (...) arrumei de comer no (hospital em via de pão e água e quando tinha ou chá ou qual- que trabalhou) até receber o primeiro pagamento (do quer coisa assim; e no INPS, e brigando com o INPS,82 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A HISTÓRIA DA SEVERINA 83 brigando com a turma do INPS nunca esqueço um dia que (um médico) falou pra mim assim, que ia me Consegue emprego na casa de um casal, onde ga- dentro de uma camisa-de-força (...) nha um pequeno salário, comida, etc.; continua mo- rando no foco. o médico do INPS talvez não entendesse. Pen- Como eu sempre falo pra todo mundo, eu digo: com sava que estava tratando de uma doente mental, mas toda sinceridade, com toda lealdade - isso eu tenho estava era tratando com uma vingadora-briguenta... gravado dentro de mim - como eu encontrei (esse ca- Pensa voltar a ser Mesmo que reco- sal) naquela época, eu poderia ter encontrado outras mecè casa por casa. pessoas; porque se eu não tivesse encontrado (esse ca- sal) acho que hoje eu estaria na sarjeta, porque na- Nessa confusão toda que eu estava, e sem dinheiro por- quela época eu estava no maior desespero (...) por que o que eu recebia era muito pouco, não dava (...) pouco, por pouco (...) através (desse casal) que, como Foi nessa época que eu comecei a procurar emprego é que se diz, minha vida, como é que se diz, voltei ao (...) Estava no maior desespero, morando num lugar normal, comecei a normalizar de novo. que só tinha ladrão; à noite tem um terracinho e meu quarto ficava do lado à noite via eles contar Começar de novo! A Severina-de-hoje valoriza um pra mim, outro pra você, um pra mim, outro pra muito a oportunidade que teve, mas como pensava, você; as mulheres, de manhã, elas ficavam dentro de sentia e agia a Severina-de-ontem? casa, à tarde, elas saíam, iam pras lojas (...) tinha um tal de C., muito falado, muito afamado, famoso; ma- taram ele, estraçalharam com ele. Esse C. morava lá, (...) eu estava tão transtornada, tão biruta, meio pi- e quantas vezes a mulher dele não me deu comida! rada como era, né... quase (...) lá eu não trabalhava, (...) eu estava no foco dos maconheiros e dos ladrões e só aprontava lá dentro (risos). o que eu fazia? Fazia não tinha pra onde ir, porque não tinha condição. uma coisa boa e três ou quatro ruins... só aprontava (...) vêm os problemas (...) eu chegava lá mas não es- tava contente, chegava lá, em vez de trabalhar, quan- Dentro de certos padrões mais convencionais, é tas vezes eles chegavam em casa e não tinha nada razoável supor que teria dificuldades em arranjar em- pronto pra eles comer (...) a verdura encharcada numa prego. Se alguém fosse fazer uma descrição de sua panela de pressão (...) arrumava a casa: um dia quan- identidade na época, quem era ela? Uma doente do eu queria arrumava, quando não queria não fazia; mental, que estava na caixa do INPS; moradora num bagunçava, né; eu tinha muita... coisa. sabe com local suspeito, onde ela mesma era suspeita; só, sem quê (risos) por uma estante! eu queria ver não sei, não família, nem amigos, vinda não se sabe de onde; quase sei o quê (...) eu queria ler e se não me engano eu maltrapilha, faminta. Aparência muito pouco reco- tenho até hoje um livro dele comigo (risos) (...) Eu mendável. Mas, talvez apenas aparência. ficava com uma bronca, com uma raiva, quando eu e principalmente se chegava lá e prin-84 A DO SEVERINO E A ANTONIO DA COSTA CIAMPA cipalmente se chegava lá e queria arrumar o quarto, vem a ser criança, uma criança endi ele estava dormindo! Eu não me conformava de che- o moleque que não teve a oportuni gar lá e o homem estar dormindo, o patrão dormindo. alternativa que lhe foi negada no quê eu fazia? (risos) Então chegava na sala e eu que-não-teve. Uma trilha não perco deitava também, dormia. Quantas vezes eu não fiz que não pode tomar. isso, quantas vezes eu chegava e ia dormir. Ah! esse Um outro outro. homem dormindo ai, eu não posso limpar nada não podia limpar porque eu não queria, nél É preciso deixar de só ouvir a Severina-de-hoje e prestar atenção a todos seus gestos, suas expressões faciais e corporais; toda sua conduta deve ser obser- vada quando narra esta fase. Suas palavras falam de uma Severina-de-ontem amarga, com raiva, com bronca, que só apronta. a vingadora-briguenta ne- gando a escrava-revoltada. É um outro da empregada doméstica, aparência sob a qual se manifesta a es- crava. Mas, a expressão (mais que as palavras) da Se- verina-de-hoje revela uma terceira personagem, um outro outro. Os risos quase o tempo todo - uma certa ternura que se percebe neste momento da narrativa des- velam um outro outro. É uma criança traquinas, um moleque endiabrado, turbulento e travesso, que quer falar. Falar da bagunça que faz, das confusões que arma... puerilidades, criancices! É uma complicada dialética: a vingadora, que nega a escrava, é negada pelo moleque, que é ela mes- ma. Rompe com a mesmice: vingadora/escrava, es- crava/vingadora. Ela é ela-mesma, transformando-se. Se não é uma superação, tende para isso. Aparentemente, ao aprontar, estava realizando o mito da vingadora; mas, em essência, concretiza-se numa metamorfose, cronologicamente tardia, em queA ESTÓRIA DO SEVERINO E DA SEVERINA 87 Outra pessoa não me aturaria não! Outras pessoas que eu tivesse conhecido, outros patrões, não me atura- riam (...) Porque eu tinha tanta bronca de mim... não! Não é bronca de mim: eu tinha bronca de todo mundo, da vida, de todos, eu tinha raiva de tudo! Eu não me conformava de eles chegarem, deitar, dormir, descan- Capítulo 8 sar, e eu ter que trabalhar.. e ela tinha muita paciên- cia comigo tanto ela como ele! Eu não penteava cabelo, sabe? De vez em quando ele prometia me dar um pente (risos) dar um pente pra mim... coitado! Chegar na cozinha, a cozinha não era muito grande, ONDE SE VE UM MOLEQUE cozinha de apartamento, uma mulher com um assa- PODENDO SER MOLEQUE E POR nhamento no cabelo, essas bregas do tamanho de um bonde, cozinhando, o que ele ia imaginar, o que ele ia ISSO DEIXANDO DE SER achar... (risos). Como que eu posso dizer? A gente está MOLEQUE brincando assim, falando tudo assim, mas se analisar profundamente, aquela fase pra mim não foi brinca- deira, não foi brincadeira. Não foi e digo: pra eu vol- moleque se manisfesta às ocultas. Apronta tar no normal, porque, quer dizer que eu estava tra- quando o casal não está em casa ou o patrão dorme. Se balhando, né? Trabalhava, estava trabalhando... tra- for castigado? E a violência? Ah! essa velha conhecida balhando: fazendo hora (...) Eles tiveram muita que persegue Severina a vida inteira. E se for de novo tolerância comigo, porque eu aprontei muito, eu apron- jogada pra rua, jogada de um lado para o outro? Casa tei muito, tudo eu queria pra mim, achava que queria por casa... pra mim (...) se fossem outros patrões não riam (...) aguentaram tudo isto de mim, quantos anos moleque precisa ser tolerado, aceito, reconhe- eu trabalhei lá? (...) de 68 até 71, quatro anos. cido, talvez até amado. Precisa de condições objetivas. Só se é alguém através das relações sociais. moleque pode ser moleque. o indivíduo isolado é uma abstração. A identi- É aturado, aceito, tratado com paciência e tole- dade se concretiza na atividade social. mundo, cria- rância - pode até manter a aparência de bicho-do- ção humana, é o lugar do homem. Uma identidade mato, cabelos assanhados sem pentear - isso é motivo que não se realiza na relação com o próximo é fictícia, para brincadeira: não é punido e pode até ganhar coi- é abstrata, é falsa. sas que o deixem com aparência mais civilizada! tal- moleque precisa ser moleque. vez aquele mesmo bichinho que em Salvador disse: era a coisa mais gostosa comer pão!88 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA 89 Já estava mais equilibrada, quer dizer, equilibrada não era mais. Volta a ser escrava-útil e o INPS não moralmente; financeiramente continuava ruim, mas descobre. pelo menos eu já estava ganhando, eu já tinha onde preciso sempre lembrar o significado real da si- comer: porque eu comia, eu eu tomava café tuação para Severina, e não o aparente. Caso contrá- de manhã; eu ia trabalhar sem café e ia tomar no ser- rio, fica ilógico: Severina tinha parado de trabalhar no viço; eu eu jantava; muitas vezes, a comida hospital porque se tornara uma doente mental. Logo, que sobrava eu trazia pra mim jantar, porque quando o desejável seria que quisesse deixar de ser doente eu cismava que eu vinha embora, eu largava tudo e mental para voltar a trabalhar. Contudo, está traba- vinha embora, eu largava tudo e vinha embora (...) lhando e tem de não ser mais declarada doente apoio que eu tive (do casal)... eles me deram muito apoio, me deram (...)" mental; chega até a enganar médico do INPS. Certa- mente, para Severina, deixar de ser doente mental era Podendo ser moleque, sua situação começa a ter continuar sendo declarada doente mental, não voltar novo significado. Descobre que estar na caixa pode ser para o mundo que a enlouquecera, e ficar naquele re- uma vantagem. Recebe a pensão do INPS e o salário fúgio onde de vez em quando podia fazer molecagens. de doméstica; no emprego é alimentada, tolerada, o próprio fato de voltar a trabalhar dá a impres- apoiada pelos patrões. são de algo ilógico pelo menos do ponto de vista da Periodicamente, deve se submeter a exames mé- lógica vigente no mercado de trabalho. Vamos supor dicos no INPS para verificar se continuava ou não que se tivesse recorrido a um especialista em recursos doente mental. humanos neste episódio. Imaginemos Severina sendo submetida a uma seleção de pessoal por um psicólogo Já estava melhor (...) estava com medo (...) e eu conse- especializado típico. Provavelmente, nunca teria sido perguntava gui (...) (...) quem (médico) que falei que eu não estava bem ele admitida dentro dos padrões convencionais. Absurdo, com quem eu tinha ido, com eu erro técnico crasso aprová-la numa seleção criteriosa. não tinha ido, foi aquela confusão todinha comigo, no Continuemos imaginando; supondo que, por falta de fim ele me deixou mais um ano (...) depois mais um critérios racionais na seleção ela tivesse sido admitida; ano (...) qualquer especialista em administração de pessoal, Que molecagem! Enganar o médico que tratava fazendo uma avaliação do seu desempenho, não teria a dela! Porém, se o médico se enganava agora, será que menor dúvida em demiti-la. Não continuaria no em- não se enganara anteriormente? De qualquer forma, prego; seria ilógico, irracional para um especialista em continua por um ano doente mental oficialmente, de- recursos humanos que pense pela lógica da ideologia claração que foi renovada por mais um outro ano, de- dominante. Com certeza, se não fosse demitida e con- pois várias vezes, até ela ser definitivamente aposen- tinuasse no emprego, por qualquer motivo, não teria tada: doente mental, incapaz, de direito. Inutilizada aumento de salários.90 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA 91 Eu mudei (de onde morava) (...) porque lá foi despe- fazia. E a ajuda desse casal (patrões), sempre me aju- jado (...) o homem recebia da gente, mas não pagava o dando, que, ai de mim se não fossem eles, ai! aluguel para o proprietário (...) arrumei um quartinho (em outra casa de cômodos) (...) só que era um pou- Ainda que um refúgio, o emprego não é uma si- quinho mais caro (...) Foi quando falei com meus pa- tuação irreal, fantasiosa. É uma realidade objetiva. trões e foi que eles me ajudaram e aumentou um Ganha dinheiro, comida, ajuda, apoio. Novas relações pouco mais meu ordenado. sociais se estabelecem. Começa a interagir com pessoas Nosso imaginário especialista em administração com outros valores. Talvez até pudéssemos dizer um do pessoal estaria Que absurdo! Que fal- gueto discrepante de tudo que Severina encontrara até ta de lógica e de critério! então (confirmado pela suposta observação que um Graças a esses absurdos e de lógica e de imaginário especialista em administração de pessoal critério, Severina vai deixando de ser moleque e vai faria do emprego de Severina). Assim como a violên- podendo assumir sua condição de mãe. cia, a exploração se concretizou ao longo de toda sua vida, encarnando-se, sintetizando-se na sua revolta e Meu filho continuava com meu sogro; (...) o que eu na sua loucura. A tolerância, o apoio, a ajuda, certa- ganhava tinha que dividir pra ajudar meu sogro (...) mente, produzirão outros resultados. Porém, leva al- eu tinha que ir de 15 em 15 dias lá visitar, que eles gum tempo, não é nem encosto de espírito puseram não foi o juiz que pôs - eles mesmos que bom. É um processo humano, social, histórico. puseram que era de 15 em 15, mas mesmo assim eu quebrava a coisa e ia no meio da semana, quando dava A revolta continuava dentro de mim, a única coisa que pra mim ir eu ia visitar, mas sempre com os mesmos eles (sogros) queriam de mim era dinheiro e dinheiro problemas, com as mesmas (...) Apoio deles eu não tinha. Eu parava de ir (visitar) porque não ti- (sogros) eu não tive nenhum; do meu sogro ele podia nha dinheiro pra dar. Os lugares que eu ia (morar) querer ter vontade de dar, mas ele não dava, não dava, eram muito pequenos (quer dizer: não dava para abri- pra não brigar dentro de casa (...) gar também o filho) (...) Foi a época mais massacrante pra mim pela minha sogra (...) quando ia lá, um pe- Na verdade, o emprego é um refúgio, uma ilha. daço de pão eu não tinha, não tinha nada; (...) saía (...) meu filho ficava chorando (...) porque eu vinha em- Fora, continua explorada, violentada. bora; eu não tinha condições (de levá-lo) e não podia Depois que vim morar (no novo local, após ser despe- dormir jada do banheirinho) começou a melhorar mais as coi- sas pra mim, que eu levava mais dinheiro, porque eles Transição difícil. Já não é mais tratada como es- (sogros) não davam nada, nada, nada dizer que fa- crava, mas objetivamente ainda é. Quer morar num ziam as coisas pra meu filho não! Tudo era eu que lugar maior, ter seu canto e permanecer com o filho e92 ANTONIO DA COSTA CIAMPA não consegue. Isto sugere um novo projeto: arrumar um trabalho em que ganhe mais e arrumar uma mo- radia em que possa acomodar o filho. Com isso, dei- duziria. xaria de ser explorada pelos sogros e sua revolta se re- Quer deixar de ser moleque para poder ser mãe. A escrava e a vingadora ainda sobrevivem. Capítulo 9 EM QUE INESPERADAMENTE SURGE UMA MANICURE NA VIDA DE SEVERINA Eu já estava bem, estava, estava, estava bem melhor do que eu estava, eu estava assim, quer dizer, de tra- balhar; já tinha noção das coisas melhor, já tinha ou- tro pensamento, mas foi pelo alicerce, pelo que eu ga- nhei, pelo que casal fez pra mim, pelo que a família fez mim, quer dizer, que eles me deram bastante apoio (...) Eu tive a grande boa sorte de pra sair de uma casa boa e ir pra outra casa boa. A (nova patroa) foi muito boa, muito boa mesmo, muito, foi ótima pra mim, sou muito grata a ela. casal que a empregara anteriormente muda-se para um bairro distante. Severina também vai mas, no fundo, parece querer continuar no mesmo bairro, pró- xima de onde mora. Não diz, mas é razoável supor que, mesmo confusamente, ensaia novos planos, novos projetos.94 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A DA SEVERINA 95 Houve.. eu não sei o quê... Foi por causa de falta crava de mim própria. Até estas alturas, quem poderia minha, eu estava faltando muito no serviço. Tinha vez imaginar que Severina sempre tinha vontade de fazer que eu faltava até 8 dias. Eu não vinha trabalhar. curso de manicure, sempre (...) toda vida? Surpresa! Uma vez era por causa duma coisa, outra vez era por Novidade!? Mil saídas... causa de outra, eu não sei, não entendia porque eu não vinha... ficou longe, tudo, mas... não era tanto Os novos patrões propiciam condições objetivas e por longe. Severina se envolve num novo papel: aluna de escola de manicure. o moleque tomou juízo, vai para a es- Os patrões lhe arrumam outro emprego, na casa cola, vira aprendiz, tem planos razoáveis. Severina de amigos que moram no antigo bairro, que dispen- não menciona os velhos planos de vingança. Talvez es- sam a Severina tratamento semelhante. tejam guardados lá no fundo, mas no momento estão arquivados. Agora tem um objetivo; o moleque vai li- Eles também foram um casal que me ajudou bastante bertar a escrava; para isso, o moleque deve deixar de (...) Ela ficou grávida e eu digo: eu não you trabalhar existir: se faz aprendiz, prepara-se para uma nova in- em casa que tem criança, não vou, não you ficar aqui. serção no mundo do trabalho, uma forma diferente de Um dia, não sei por que, me deu na bola querer me participar do mercado de trabalho. Prepara-se para arrumar... eu fui na escola (de manicure) com uma amiguinha do prédio (onde trabalhava) e eu fui fazer assumir aquela responsabilidade. as unhas (...) Que bacana! Eu sempre tinha vontade Demonstra uma consciência mais clara da reali- de fazer curso de manicure, sempre eu tive, toda vida. dade: já tinha outro pensamento. Intuitivamente per- E então eu perguntei pra mulher como era, como que cebe que suas relações sociais, em última análise, são eu podia fazer (...). No dia seguinte falei com a (nova determinadas pela posição que ocupa no mercado de patroa) se eu poderia fazer o curso (...) Oh! casal le- trabalho. Ainda há um certo idealismo utópico ao so- gal, bacana toda vida (...) Então eu comecei (...) nhar não ser mais escrava de ninguém. quer dizer que eu já tinha um objetivo, já tinha al- Objetivamente, sua vida se transforma. A apren- guma coisa dentro de mim, eu ia trabalhar por minha diz vira manicure. Deixa de ser empregada doméstica. conta, não ia mais ser empregada de ninguém (...) Algumas dificuldades iniciais inevitáveis e compreen- Pensava: não you mais ser escrava de ninguém e síveis. trabalhar por minha conta! Sabe, no fim, eu sou es- crava de mim própria, não é gozado? É pior ainda (...) Uma senhora lá me arrumou umas clientes (...) duas tem que assumir aquela responsabilidade. horas no pé, uma hora e meia na mão. Mas mesmo assim, as mulheres tinham paciência de me aturar 3 projeto vai tomando corpo. A escrava final- horas, 4 horas e lá vai pedrada, pra fazer um pé-e- unhal (...) Ai eu já estava mais um pouquinho racio- mente parece ter encontrado uma não mais ser cinando: não tem condição dos outros ficarem me empregada: não you mais ser escrava de es- aguentando (...) A única família (cliente) na época era96 ANTONIO DA COSTA CIAMPA essa senhora (a primeira mencionada). Ninguém me conhecia, não conhecia meu serviço, não sabia quem eu era, ninguém queria. Então eu fiquei com aquelas meninas lá da boca, do La Licorne, do Big-Ben, tudo de boate (...) aquelas meninas ali (...) mocinhas, tudo menina da bagunça (...) Quantas vezes eu não dali chorando! E quando elas me castigavam? (...) que foi duro, foi fogo! Mas a (primeira cliente de família) Capítulo 10 me apresentou outras fregueses (de família) (...) aí eu fui em frente. Seu aprendizado foi caro; além de pagar o curso EM QUE SEVERINA ENCONTRA na escola de manicure, sujeita-se temporariamente a UMA DESCONHECIDA ser explorada, sofrer violências, mas foi em frente. DE QUEM CONHECE UMA Objetivamente sua vida se transformou. ORGANIZAÇÃO BUDISTA E subjetivamente? Mas não se preocupa que as broncas continuam den- tro de mim, as raivas, as bagunças, as brigas, as con- A manicure Severina vai procurar uma clien fusões, tudo continua (...) tinha (uma vizinha), nós com quem marcara hora, num casarão no bairro duas éramos como o cão e o gato, uma não podia ver a Liberdade. Não a encontra. atendida por uma de outra (...) sempre tinha uma vítima para mim, sempre conhecida que explica que a cliente não está. tinha alguém em quem eu queria descarregar minha Um encontro casual, mas que acarretará raiva, minhas revoltas (...) inesperadas e decisivas. A metamorfose ainda não está completa: o bicho Ela (a desconhecida) estava de porta aberta; eu ba trocou de pele, perdeu alguns tentáculos, desenvolveu na porta dela e perguntei pela (cliente). Ela diz: alguns órgãos, mas seu funcionamento básico perma- (cliente) saiu, mas ela volta logo. Ela diz: o que a nece o mesmo. A vingadora-briguenta ainda se es- faz? Expliquei o que fazia. Ela disse: entra e esper conde atrás da manicure, ainda atua dissimulada. um pouquinho. Aí eu vi o oratório (...) achei bem Severina dá a mesma impressão que certos ado- teressante, bem interessante aquilo. Eu perguntei lescentes: exteriormente parecem adultos, mas inte- que era aquilo. Tudo escuro, madeira escura (...) Aí el riormente ainda são imaturos, egocêntricos, incons- explicou que era uma organização (budista), que el tantes. Duplicidade, divisão, conflito. pertencia a essa organização, que era muito bom98 ANTONIO DA COSTA CIAMPA A DO SEVERINO E A HISTÓRIA DA SEVERINA tudo (...) inclusive ela estava ensinando a Sutra pra vou, que eu ia, os caras me jogavam pra fora, desde o uma moça. Sutra é o livrinho sagrado (...) Ela disse: começo, desde criança, sempre me jogando, me des- você não quer assistir uma reunião? Eu digo: tudo pejando, sempre eu estava na rua (...) bem. ela me deu um livro, mas eu não sabia ler direito, quer dizer, eu lia alguma coisa, lia por ler, Repete-se a situação anterior. Está na iminência mas entender era a mesma coisa de nada (...) de ser despejada; precisa de ajuda com alguma urgên- cia. Não tem ninguém, nem patrão, a quem recorrer: é Um convite: você não quer assistir uma reunião? manicure, trabalha autonomamente, ganha pouco, in- Uma resposta: tudo bem. cluindo o que recebe do INPS. Eis os fatos. Porém, qual seu significado? Impos- sível alguém saber; precisamos perguntar a Severina. Então, ela disse pra mim: a senhora começa a pra- Quais seus desdobramentos? Impossível adivinhar; ticar, a pronunciar a (oração budista). Então eu disse precisamos aguardar o tempo passar. pra ela: tudo bem. Então ela disse: vem aqui assistir Por ora, Severina apenas nos conta como se apro- (uma reunião em que se reza coletivamente 2 ou 3 ho- xima da organização. Nesse momento, talvez, nem ras seguidas). Então eu cheguei, entrei, sentei, fiquei, mesmo ela saiba responder a essas perguntas. e ali começaram rezar, rezar, rezar. Ai! dormi tanto nesse dia, dormi tanto! (...) Depois ela me incentivou Então ela me deu um exemplo (...) se tem um doce muito. (...) eu digo pra senhora: é gostoso. Mas, se a senhora não provar esse doce a senhora não vai saber se é gos- Severina espera ajuda. A situação ainda não pa- toso, se é bom. Então é que nem a organização. A rece fazer muito sentido para ela. Participa mecanica- senhora tem que provar, tem que praticar para a se- mente de rituais. Sua conduta é meramente nhora sentir. tica. Uma expectativa mágica talvez. Um milagre, um Talvez, quem sabe? Como descobrir de que se trata? Severina parece curiosa, quer provar o doce. Ela (a catequista budista) disse: Virge! mas a senhora A catequista inicia seu trabalho; procura conhe- tem problemas, não? Então a senhora tem que resol- cer Severina, saber de sua vida; se tem algum pro- ver primeiro problema (...) precisa fazer bastante blema. Severina satisfaz a curiosidade da moça, inclu- (oração budista); mas a senhora começa com dez mi- nutos fazendo sempre pro lado do Sol nascente e pe- sive fala de um problema recente que também nós dindo pra Deus do Universo ajudar a senhora a so- ainda não tomamos conhecimento. lucionar, resolver que meu primeiro problema é re- solver, arrumar um lugar pra mim morar. Então aí dono (sic) da casa (onde Severina subloca um quar- comecei a praticar; não sabia direito... eu fazia tudo to) não pagava aluguel (...) todos os lugares que eu errado.