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f ------------------------------------------------------------------ - EDIÇÃO Tradução: Carlos Rizzi Copidesque: Maria Carolina de A. Boschi Coordenação Editorial: Paulo S. M. Machado Consultoria Geral: Prof. Florestan Fernandes ARTE <_____ Capa: Elifas Andreato Produção Gráfica: Virgínia Y. Fujiwara Edição de Arte: Eliazar F. Sales J ISBN 85 08 03458 x ' .... ....... 1989 ■ ' ----- Todos os direitos reservados pela Editora Ática S.A. R. Barão de Iguape, 110 — Tel.: PBX 278-9322 (50 Ramais) C. Postal 8656 — End. Telegráfico “Bomlivro” — S. Paulo SUMARIO INTRODUÇÃO 7 1. PODER E SOCIEDADE 1. Contra o oportunismo e o dogmatismo da esquerda, 53 2. Luta de classes e poder político, 66 3. A revolução burguesa e os dois tipos de democracia, 70 4. A luta de classes sob o poder soviético, 83 II. 0 MOVIMENTO POLÍTICO E OS PARTIDOS III. O ESTADO 5. A organização dos operários e a organização dos revolucionários, 97 6. Reflexões sobre o período atual, 111 7. Os partidos políticos na Rússia, 124 8. A sociedade de classes e o Estado, 139 9. As tarefas fundamentais da ditadura do proletariado e do partido comunista na Rússia, i 153 10. As dificuldades de transição para o socialismo, 167 ÍNDICE ONOMÁSTICO 187 Textos para esta edição extraídos de: Lenine, V. I. Oeuvres. Paris, Editions Sociales, Moscou, Editions du Progrès, Editions en Langues Etrangères, 1961, 1962, 1965, 1966, 1969, 1970. v. 5, 9, 15, 18, 25, 27, 29, 31, 32. Florestan Fernandes Professor de Sociologia da: Universidade de São Paulo (1945-69), Columbia University (1965-66), Universidade de Toronto (1969-72), Yale University (1977) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Já se disse que “o leninismo é o marxismo da época do im perialismo e da revolução pro letária”. 1 Esse significado do marxismo- -leninismo delimita a impor tância teórica e prática de Lê- nin. Ele não só se tornou o mentor de uma corrente do marxismo — aliás, a única que produziu ou alimentou as revo luções do século XX — dentro e fora da Rússia. Ele foi o prin cipal dirigente da revolução so cialista na Rússia, em suas di ferentes etapas, e, em parti cular, o seu autêntico “homem político” na fase decisiva — como intérprete da história; como encarnação sublimada da vontade revolucionária do proletariado e de outros setores do povo russo; e como o verdadeiro artífice da vitória, nos momentos difíceis da tomada do poder e da cons trução das estratégias vinculadas à destruição da ordem burguesa, à consolidação do Estado proletário e à transição gradual para o socialismo sob a hegemonia do poder soviético — berri como o inspirador da rearticulação do internacionalismo socialista como movimento mundial. 1 Staline, J. Les questions du leninisme. Paris, Éditions Sociales. 1946 v. I. p. 10. 8 Esse bosquejo sugere que não se pode fazer um balanço razoável da obra política de Lênin sem se considerar, simultanea mente, os três marcos de sua atividade: 1°) sua contribuição teórica, como criador altamente original no seio do pensamento marxista; 2.°) sua contribuição prática, como inventor de no vas combinações institucionais de organização do movimento marxista-leninista e dos partidos que podiam mediatizar a sua transformação em força política especificamente revolucionária ou, ainda, como inventor de táticas e de palavras de ordem que calibravam politicamente a influência de tal movimento e de tais partidos nas condições concretas em que operavam como força política revolucionária; 3°) seus papéis históricos, nos diversos momentos da evolução do marxismo e do marxismo-leninismo, na Rússia ou no plano internacional, e do desenvolvimento do que se convencionou chamar de “revolução russa”. Nos limites de uma introdução a uma apertadíssima seleção de textos, além do mais destinada a uso didático, é impossível levar a cabo um balanço que faça justiça a Lênin nos três níveis mencionados. O terceiro aspecto só não foi sacrificado por com pleto porque aparece de modo implícito aqui e ali. Por sua vez, o primeiro e o segundo aspectos só foram abordados de forma esquemática, para assinalar pontos que são essenciais ou sugerir pistas de trabalho mais ou menos fecundas. Poder-se-ia dizer que Lênin, o político, cedeu lugar a Lênin, o pensador político, e que, ainda assim, este só foi localizado em alguns de seus ele mentos centrais. O que é verdade e nasce da natureza mesma da presente coletânea de textos. Não há nisso, portanto, nenhuma intenção “acadêmica” de despolitizar Lênin — nem isso seria possível. Vida e Obra de Lênin Vladimir Ilich Ulyanov (ou Nikolai Lênin) nasceu em Sim- birsk (depois Ulyanovsk), aos 10 (22)* de abril de 1870, e faleceu em Gorki, aos 21 de janeiro de 1924. O pai era inspetor escolar, e a mãe pertencia à pequena burguesia rural. Ele e seus cinco irmãos se devotaram à luta revolucionária contra a auto * O calendário juliano, substituído oficialmente na União Soviética pelo calendário gregoriano, em 1923, apresenta uma diferença de 13 dias a mais sobre aquele antigo calendário. (N. do Org.) 9 cracia. O irmão mais velho participou de um atentado contra o czar Alexandre III e foi executado a 8 (20) de maio de 1887. Lênin concluiu os seus primeiros estudos em Simbirsk com grande êxito, recebendo na formatura uma medalha de ouro (Liceu de Simbirsk, em 10 (22) de junho de 1887). Começou os estudos universitários na Universidade de Kazan. Associando-se às atividades políticas revolucionárias dos estudantes de Kazan, nesse mesmo ano (1887) Lênin é expulso da universidade. Até 1890 participou de vários círculos revolucionários, dedicando-se intensamente ao estudo e à divulgação da obra de Karl Marx. Autorizado a submeter-se como externo aos exames de Estado da Universidade de São Petersburgo, Lênin passou com brilhantismo nas provas a que se submetera, em 1891, qualificando-se no ano seguinte para o exercício da advocacia. Contudo, não pratica a profissão, absorvido como estava pelas atividades políticas. Estas o levaram à prisão, a 9 (21) de abril de 1895, e à condenação ao degredo na Sibéria oriental, a 29 de janeiro (10 de fevereiro) de 1897. Aí viveu durante três anos, deslocando-se por várias cidades, nas quais trabalhou fecundamente, tanto como intelec tual e investigador, quanto como líder revolucionário. Casou-se com Nadezhda Konstantinovna Krupskaya (1869-1939) na Si béria, a 10 (22) de julho de 1898. Suas atividades políticas eram ilegais e clandestinas, sofren do constante perseguição policial. Isso impunha aos agrupamen tos revolucionários o uso do espaço exterior como recurso de sobrevivência. Livros, revistas e jornais eram publicados em países da Europa e de lá recambiados para a Rússia e distribuí dos clandestinamente. As reuniões para tratar da organização desses agrupamentos, de sua linha política, de agitação e de propaganda também eram realizadas no exterior. Doutro lado, os dirigentes mais importantes e os intelectuais mais criadores também eram enviados ao exterior, como medida de proteção de suas pessoas e de seu trabalho revolucionário. As duas razões concorreram para que Lênin passasse longos períodos de sua vida no exterior, embora por duas vezes a expatriação se prendesse a motivos específicos de segurança. Em 1895, Lênin realiza várias tarefas partidárias e políticas junto ao grupo “Liberação do Tra balho” — ao qual pertenciam Plekhanov, Axerold, Zassoulich e outras figuras muito conhecidas — e ao movimento operário europeu. Outras viagens, da mesma natureza, foram empreendi das de abril a maio de 1905 (em que Lênin participou do IV 10 Congresso de Unificação do Partido Operário Social-Democrático Russo, em Estocolmo); em 1906 e 1907, quando se desloca várias vezes à Finlândia, para tratar da organização do partido, da redefinição de suas tarefas ou para se proteger; de abril a fins de agosto de 1907 (em que participa de várias atividades do partido na Inglaterra, Finlândiae Alemanha). Os dois períodos mais extensos de vida no exterior compreendem: de 16 (29) de julho de 1900 a 7-8 (21-22) de novembro de 1905, no qual residiu em vários países da Europa; e de 13 (22) de dezembro de 1907 a 27 de março (9 de abril) de 1917, em que se deslocou novamente por vários países. A guerra acabou restringindo as cidades em que podia viver sob relativa segurança. Por isso, a partir de setembro de 1914 fixou-se na Suíça (em Berna e, mais tarde, em Zurique). Quando eclode a “Revolução de Fevereiro”, faz várias tentativas para voltar à Rússia. Graças a um acordo entre o socialista internacionalista suíço Fritz Platten e o embai xador da Alemanha na Suíça, um vagão selado, contendo 32 imigrados russos e desfrutando as regalias de extraterritorialidade, transportou-os para o novo destino. Lênin chegou a Bieloostrov a 3 (16) de abril de 1917 e, à noite, a Petrogrado. Essas condições de atividade política revolucionária davam aos militantes russos condições de participação simultânea no movimento revolucionário russo e no movimento socialista euro peu. Essa circunstância merece especial atenção, pois a ela se prende o teor realista e ao mesmo tempo universalista da orien tação política de Lênin. Ele conhecia profundamente tanto a situação histórica da Rússia, quanto a obra dos principais teóri cos europeus do socialismo, com as vantagens e mazelas do Partido Social-Democrático e da II Internacional na Europa. Doutro lado, graças às suas atividades políticas na Europa e à crítica construtiva que fazia às correntes reformistas ou oportu nistas do socialismo, Lênin logo granjeou grande prestígio como um dos principais teóricos do socialismo revolucionário russo. No momento em que eclodiu a revolução soviética, ele passou naturalmente ao primeiro plano do movimento socialista mundial, o que facilitou enormemente a irradiação mundial da III In ternacional, fundada sob sua inspiração e orientação em março de 1917.2 2 Sobre a III Internacional e sua fundação, ver esp. Lênin. CEuvres. v. 28. p. 479-501 e v. 29, em particular, p. 308-16. 11 A facçào bolchevique do P.O.S.D.R. constituiu-se na cisão que se deu no II Congresso desse partido, realizado entre 15 (28) de julho e 10 (23) de agosto em Bruxelas e Londres. 3 O con flito fundamental centrou-se em “um episódio da luta pela influência sobre o Comitê central a instalar-se na Rússia”. Mas, como salientava Lênin, “toda a atividade do Iskra [A Centelha, jornal político do par tido, então sob o controle de Lênin e seus colaboradores], como grupo particular, foi até o presente uma luta pela influência, porém, entenda-se, trata-se de algo mais: trata-se de comunicar essa influência às estruturas, e não apenas de lutar por ela”.4 A maioria então obtida — “bolchevique” e “menchevique” significam, respectivamente, maioria e minoria — logo se desvane ceu, com o deslocamento de Plekhanov para a facção antagônica a Lênin. Este conheceu, então, um árduo e melancólico período de ostracismo e de difamação, dentro do seu próprio partido, ao qual conseguiu sobrepor-se pela firmeza de suas convicções e por sua fibra de lutador. Mas aí se acham as raízes de sua vitória final, tanto no plano partidário, quanto nos planos ideológico e político. Em torno de si formou o grupo de extrema-esquerda revo lucionária, que sob seu comando direto ou indireto iria crescer em termos partidário, ideológico e político, e passar, mais tarde, de núcleo bolchevique do P.O.S.D.R. a Partido Comunista da Rússia. Sob esse aspecto, além da personalidade política de Lênin, essa cisão, com suas conseqüências partidárias, ideológi cas e políticas, conta como um dos fatores históricos da radicali zação, do amadurecimento rápido e do êxito do movimento socialista revolucionário na Rússia. Foram a estratégia, as táticas e as palavras de ordem emanadas dessa facção, sobre cuja elabo ração e aplicação Lênin exercia profunda influência permanente, que criaram o vértice crítico da oposição operária em 1905 e decidiram os rumos da revolução de 1917, instalando Lênin na chefia do primeiro Estado proletário na história moderna. 3 Sobre a contribuição de Lênin a esse Congresso, ver CEuvres. v, 6. p. 489-533 (sobre as razões do conflito, esp. p. 529-32). 4 V. Lênin. CEuvres. v. 6, p. 531. 12 Nos períodos de grande tensão, Lênin superava-se a si próprio. Sintonizava-se psicológica e politicamente com a his tória in flux, ajustando ou reajustando rapidamente, em extensão e em profundidade, as táticas e as palavras de ordem às condições concretas cambiantes. Firme e inflexível quanto aos alvos finais e estratégicos, era pragmático e extremamente flexível na inter pretação dos fatos e na escolha dos “meios possíveis” da luta revolucionária. Como não cultivava o revolucionarismo “verbal” e “romântico”, repelia as intenções que só poderiam ser “revo lucionárias” na aparência. Graças à sua argúcia para descobrir e em atender os estados ou as orientações de opinião das massas, inventava táticas e palavras de ordem que traduziam, em termos políticos, o que ele chamava de “relações de poder real” (que podiam contar com o suporte revolucionário do proletariado ou de alianças dos setores operários e camponeses). Três situações ilustram de modo típico quão profunda e plástica era sua capa cidade de pensar revolucionariamente sob tensão. Primeiro, na fase em que se atinge o vértice crítico da re volução de 1905, na qual dá várias palavras de ordem sucessivas — que vão do boicote à Duma à luta de duas frentes (uma legal e outra clandestina), todas visando o melhor uso político da pressão revolucionária, que era a pressão operária (a única que poderia acelerar a evolução da democracia burguesa). Nesse período, viu com extrema lucidez o sentido do movimento dialético que entrelaçava os diversos momentos políticos da contra-revo lução e da revolução entre si, concentrando o impacto político da luta de classes no aprofundamento da revolução burguesa e na criação de obstáculos políticos à união da burguesia liberal com a reação. Segundo, na fase em que as oscilações da esquerda revolu cionária puseram em risco a revolução de 1917, por imprimir à pressão operária o significado de uma luta pela democracia bur guesa. Logo após seu retorno — e no melhor estilo revolucio nário do seu pensamento político — define o alvo central como a tomada do poder pelo proletariado, a liquidação da maquinaria do Estado burguês e a insurreição armada. Assim, dava por concluída a revolução democrática burguesa e punha em primeiro plano a superação do impasse criado pela “dualidade do poder” — concomitância de um governo provisório, que detinha o poder, e o soviete de deputados operários e soldados, dotado de um poder 13 de controle fictício — por meio da “transformação da guerra imperialista em guerra civil”. 5 Terceiro, para superar os dilemas econômicos, sociais e políticos enfrentados sem êxito para a “transição socialista” pelo chamado “comunismo de guerra”, Lênin não trepidou em afrontar o ultra-radicalismo socialista russo e europeu, subvertendo as regras do jogo previstas. Delimitou friamente os riscos que um Estado proletário podia e devia correr, sem arriscar-se e sem arriscar o poder soviético, ao dar uma marcha-à-ré que se impunha como uma condição sine qua non para a consolidação desse mes mo Estado, do poder em que se fundava e da futura transição para o socialismo (ver a respeito a última leitura desta coletânea). Nessas três situações, Lênin demonstrou seu talento ímpar, tanto como político e estadista revolucionário, quanto como in térprete da história em processo. O único erro irremediável de previsão, que lhe é imputado (e o qual não tinha como corrigir), refere-se ao prognóstico de que a revolução russa seria seguida de explosões análogas nos países adiantados da Europa, as quais iriam garantir as bases para a evolução “normal” do socialismo na Rússia. Esse é um erro de previsão que todointernacionalista teria de cometer (me$mo que se considerasse imune a qualquer utopia, como o fazia Lênin). Sem desculpá-lo, poder-se-ia per guntar: qual seria a evolução histórica se os movimentos socialis tas europeus não sucumbissem à traição nacional-chauvinista? Doutro lado, como o próprio Lênin ponderou em suas últimas análises globais, o “socialismo em um país” teria sido impossível ou muito mais difícil sem a solidariedade internacional do prole tariado. Esta operou como um foco de contenção, acabando por impor aos governos imperialistas uma política de acomodação e de conflito desmilitarizado com a Rússia Soviética. Entre seus vários papéis, o que mais ò seduzia era o de publicista. Lênin tinha plena consciência de que era um intelec 5 Sobre o assunto, ver Lênin. “Les tâches du prolétariat dans notre révo- lution”, as famosas “Thèses d’avril.” In: (Euvres. v. 24, p. 47-81 (e outros escritos anteriores, no mesmo volume ou no volume 23). Quanto à crise suscitada pela posição de Lênin e por suas teses autenticamente revolu cionárias entre os bolcheviques e na esquerda, ver a descrição completa de Trotsky, L. Storia de delia Rivoluzione Russa. 2.a ed. Monza, Garzanti, 1946. v. 1, p. 315-45. 14 tual e de que sua preeminência política procedia de sua produção teórica e prática como “publicista”. Sua obra escrita não tem paralelos na história dos líderes políticos e dos grandes estadistas. Sem contar os volumes de correspondência e alguns escritos que não chegaram a ser incorporados, suas Obras atingiram, na quarta edição, 33 alentados volumes. Os seguintes livros ou ensaios aparecem como suas contribuições mais importantes, no consenso dos especialistas: O que São os “Amigos do Povo” e como Eles Lutam contra os Social-democratas (1894); Para Caracterizar o Romantismo Econômico (1897); O Desenvolvimento do Capi talismo na Rússia (1899); Que fazer? (1902); Um Passo Adian te, Dois para Trás {1904)\ Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática (1905); O Programa Agrário da Social- -Democracia na Primeira Revolução Russa de 1905-1907 (1908); Materialismo e Empiriocriticismo {1909)’, A Questão Agrária na Rússia no Fim do Século XIX (redigido em 1908 mas publicado pela primeira vez em 1918); Notas de um Publicista (1910); Do Direito das Nações de Dispor delas Próprias (1914); O Socialis mo e a Guerra (1915); Novos Dados sobre as Leis do Desenvol vimento do Capitalismo na Agricultura (1917); O Imperialismo, Estágio Supremo do Capitalismo (1917); O Estado e a Revolu ção (1918); A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky (1918); A Doença Infantil do Comunismo, O “Esquerdismo” (1920). Do ponto de vista das ciências sociais, suas obras mais importantes são O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, O Estado e a Revolução e O Imperialismo. De um ponto de vista puramente político e socialista, são Que Fazer?, As Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática, O Estado e a Revolução e A Doença Infantil do Comunismo. No entanto, vá rios dos seus pequenos ensaios ou escritos constituem verdadeiras obras-primas e disputam um lugar ao sol em confronto com suas obras mais famosas. O que é o marxismo-leninismo ? Desde o início de suas atividades intelectuais e políticas, Lênin sempre se considerou um marxista — e, o que é mais importante, sempre procurou ser um marxista ortodoxo. Por isso, não se contentou com a rica produção socialista que encontrou à sua disposição como jovem: foi diretamente aos textos de Marx e Engels, estudou-os sistematicamente e aos poucos tentou domi- 15 nar também os autores que estavam nas raízes da formação do marxismo.6 A sua primeira obra de grande envergadura, O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, evidencia três coisas: 7) completo domínio crítico das teorias econômicas de Marx e do materialismo histórico; 2) aplicação exclusiva dessas teorias na descrição e na interpretação dos fatos (isto é, sem qualquer mo dalidade erudita de ecletismo); 3) as teorias econômicas de Marx forneciam “hipóteses diretrizes”, estando longe de ser a fonte de um dogmatismo estéril: o que assegurava a marcha criadora da investigação, que se abria para a descoberta tanto do que era geral, quanto do que era peculiar à manifestação do capitalismo na Rússia. Esse estilo de trabalho aparece com igual maestria nos es critos especificamente políticos da época, principalmente naqueles em que faz a crítica marxista do “populismo” e “economicismo” no movimento socialista russo. Portanto, as aplicações do mar xismo ao plano prático revelam o mesmo espírito de identificação congruente, a um tempo flexível mas intransigente, com os prin cípios do socialismo revolucionário. Que Fazer?, como obra de síntese e de superação das experiências políticas acumuladas durante o período de formação, constitui a face política das des cobertas históricas e econômicas contidas em O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. Sua total fidelidade ao marxismo não pressupunha a “repetição de Marx” ou a ossificação da dialética, e sim a busca de caminhos novos, que só o marxismo podia desvendar, desde que aplicado de forma precisa, exigente e ima ginativa, como um saber vivo, em intrínseca conexão com a vida.7 Na cisão de 1903, vários bolcheviques, mais intimamente associados a Lênin e à sua liderança política, foram designados ” As influências da longa fermentação e maturação de várias correntes revolucionárias russas no pensamento de Lênin são apontadas por Ulam, A. B. The Bolsheviks. The Intellectual, Personal and Political History of the Triumph of Communism in Rússia. New York, Collier Books, 1965. cap. II e III, leitura muito útil apesar de incompreensões motivadas pelo antagonismo ideológico do autor. Para se ter uma idéia do mencio nado percurso pelas fontes originais do marxismo, veja-se Lefèbvre, H. La pensée de Lénine. Paris, Editions Bordas, 1957. p. 124-205 (sobre o pensamento filosófico de Lênin). "Seria um absurdo dizer que “até 1905 foi a teoria abstrata que influen ciou e dominou todo o pensamento de Lênin” (Meyer, A. G. Lenine et 16 como “leninistas” (palavra que reaparece em outros contextos e mesmo, de passagem, em escritos de Lênin). No entanto, após a reviravolta de abril e a tomada do poder, o “leninismo” ganhou expressão política, que se acentuou graças à luta pela sucessão de Lênin após sua morte. O “leninismo”, assim entendido, signifi cava pouca coisa: na primeira acepção, “seguidor de Lênin”, no sentido de uma oposição intransigente ao reformismo, e ao oportunismo; na segunda acepção, alguém que fazia profissão de fé diante da natureza revolucionária do partido comunista, da ditadura do proletariado e do Estado soviético (e, implicitamente, no desdobramento das etapas de transição para o socialismo e para o comunismo). Ora, se isso fosse tudo, não haveria razão para o uso crescente da expressão marxismo-leninismo> que final mente se universalizou e se viu consagrada de modo definitivo. O legado de Lênin transformou o marxismo e é essa transformação que nos interessa aqui. Sem subestimar-se a contribuição teórica de Lênin (crucial em vários pontos para o enriquecimento e o aprofundamento do marxismo: como no estudo da penetração do capitalismo na agricultura, das condições e efeitos do desenvolvimento desigual ou do imperialismo, na explicação da guerra e da revolução, na sistematização das explicações marxistas do Estado e da própria utopia marxista, tão mal representada e conhecida antes dele, etc.), é no terreno da prática que se acha o eixo da transmutação leninista do marxismo. Isto não quer dizer que esta prática esti vesse desligada da teoria — pois nunca esteve ou poderia estar, no pensamento dialético-materialista — nem tampouco que Marx, Engels e os seus seguidores tivessem negligenciado, na teoria e na ação, as várias dimensões da prática (especialmente a política). Mas significa, isso sim, que Lênin se impôs como tarefa de suavida a adequação instrumental, institucional e política do marxis mo à concretização da revolução proletária. O marxismo, depois de Lênin, não é mais a mesma coisa, porque ele incorporou um “modelo” de como passar da ditadura burguesa à ditadura do proletariado. le leninisme. Trad. de M. Matignon. Paris, Payot, 1966. p. 202). Pois é exatamente nos últimos escritos, e em particular em O Estado e a Revo lução, que Lênin extrai o que havia de melhor nas teorias políticas de Marx e Engels. 17 Esse modelo desloca o âmago do marxismo para a reflexão política, ou seja, para as condições concretas da ação política e da transformação política, quando se focaliza dialeticamente as relações de classes como relações de poder (a luta de classes como um processo que conduz à formação e ao controle do Estado que mantém a ordem, ou à constituição de um Estado que a destrói e instaura a transição para o socialismo). Antes de Lênin, semelhante elemento político estava incluído no mar xismo como uma previsão e, também, como um momento da vontade política. Com Lênin, esse elemento converte-se no ponto central da indagação marxista e, do próprio marxismo como movimento político. Sob as condições mais ou menos paralisadoras da democracia burguesa, como dar ao proletariado — classe que pode arrastar atrás de si a massa não-possuidora e constituir-se em núcleo hegemônico de uma maioria atuante — a capacidade de converter seu poder potencial em poder real? Absorveu-se, assim, no problema político da sociedade de classes; e, como marxista, não apenas para explicar como a minoria pode suplantar a maioria e submetê-la, mesmo sob o “capitalismo agonizante”, mas também para descobrir como transformar o inócuo poder potencial da maioria em poder especificamente político, concentrado e disciplinado de forma revolucionária. Atento às estruturas de poder e aos efeitos políticos da dominação de classe, inerentes à democracia burguesa, Lênin chegou rapidamente à conclusão de que a revolução proletária possui um padrão histórico próprio. Em contraste com a revo lução burguesa, ela não pode iniciar-se antes da tomada do poder pelo proletariado e da dominação pela maioria. Por isso, o pro blema estratégico da luta pelo poder tinha de ser proposto em termos do uso, revolucionário do espaço político que a classe operária pode conquistar e manejar com relativa autonomia, ilegal e legalmente, no seio da sociedade de classes. Como a dominação burguesa também implica socialização ideológica e política do resto da sociedade pela burguesia, tal uso do espaço político impunha, naturalmente, certas condições básicas: 1) for mação de uma minoria contestadora fortemente organizada, capaz de atuar legalmente e ilegalmente, sem vacilações, como vanguar da revolucionária da classe operária; 2) a ruptura com todas as formas diretas ou indiretas e visíveis ou invisíveis de acomodação à 18 ordem democrática burguesa; 3) a educação política do proletaria do e, na medida do possível, das massas pobres e da pequena bur guesia, através de situações e de reivindicações concretas, do desenvolvimento da consciência de classe e da agudização (aos níveis econômico, sócio-cultural e político) dos conflitos de classe. Isso punha em primeiro plano a quest&o da organização do partido revolucionário do proletariado e de sua orientação política. E, de outro lado, exigia uma nova mentalidade e uma nova prática política nas relações do partido com sua base e com a massa. Com referência à organização do partido, Lênin fixou normas de racionalização que deviam ser iguais ou superiores às que têm vigência na grande empresa capitalista, no exército mo derno ou no Estado democrático búrguês. Em conseqüência, as tarefas de agitação e de propaganda podiam irradiar-se por toda a sociedade, embora concentrando-se com maior intensidade na classe operária; e as tarefas políticas, imediatas e de largos prazos, podiam ser definidas segundo critérios específicos de flexibilidade e de eficácia. A idéia básica consistia em que a revolução não nasce pronta e acabada — o partido revolucionário do proleta riado deveria travar suas batalhas, clandestina ou abertamente, tendo em vista as combinações que poderiam favorecer, em de terminado momento, ou o fortalecimento da democracia burguesa, ou o deslocamento desta no sentido de uma democracia operária, ou a tomada pura e simples do poder. Podas essas estratégias foram exploradas, com as táticas correspondentes, e Lênin foi o mestre das principais diretrizes (embora a sua produção intelectual e política, nessa direção, aguarde estudo sistemático). Por sua vez, para cumprir essa missão era indispensável interromper a infiltração ou a corrupção burguesa, impedindo as soluções de compromisso ou de aparente “revolução dentro da ordem” (ambas de exclusivo interesse para a dominação burguesa e a consolidação do status quo). Daí a necessidade imperiosa de combater sem tréguas o oportunismo, o reformismo e o ultra-esquerdismo, por vários motivos dissolventes do espírito revolucionário, da atuação revolucionária racional e da solidariedade política do proletariado. Por fim, uma van guarda revolucionária do proletariado não podia nem devia representar-se e comportar-se como uma elite e segundo valores elitistas. Se ela devia contribuir para a expansão da consciência 19 cie classe do proletariado de “fora para dentro” (isto é, imprimindo às suas tarefas políticas um teor pedagógico), ela nunca foi con cebida por Lênin, em si mesma, como o pólo decisivo. Este tinha de ser, naturalmente, o proletariado, como sujeito da ação revo lucionária em escala coletiva, já que de sua impulsão dependeria a vitória da revolução proletária ou da contra-revolução. Por conseguinte, as relações do partido revolucionário do proletariado com sua base e com a massa eram definidas segundo um esquema dialético: para dirigir o processo político, aquele partido teria de sintonizar-se com a classe operária e com as massas, acompa nhando as evoluções de sua aprendizagem e de sua socialização política através das flutuações da luta de classes. Apesar da extrema condensação, essas formulações sugerem como Lênin, a partir do marxismo e dentro do marxismo, quebrou a circularidade política que pesava sobre a revolução proletária. Ele ignorou o peso paralisante da existência ou inexistência de “condições objetivas” que permitissem a revolução proletária. Fez isso deslocando em várias direções o aproveitamento revo lucionário das condições objetivas existentes (na consolidação da democracia burguesa, na acentuação da influência operária dentro da democracia burguesa ou na criação de uma democracia ope rária sem a destruição do Estado democrático-burguês, na implantação do Estado proletário, etc.), sempre em direções que atendessem, a curto e a longo prazos, os alvos finais de destruição do capitalismo e de transição para o socialismo. Doutro lado, deu maior ênfase (e mesmo maior peso relativo) ao controle político das “condições subjetivas”, mais suscetíveis de tratamento político deliberado, segundo manipulações estratégicas e táticas. Nessa esfera, tanto era possível aproveitar a influência direta da van guarda revolucionária sobre o proletariado e as massas, quanto os efeitos educativos, seja da ineficácia do Estado democrático burguês para atender às reivindicações do proletariado, seja da existência da opressão política e da repressão policial, seja de uma vitória eventual da contra-revolução. A vantagem de dis pensar maior atenção às “condições subjetivas” procedia de outro resultado previsível: a rápida transformação do proletariado em classe politicamente consciente e apta para proceder à reeduca ção política do resto da maioria. Assim, em “condições objetivas” aparentemente desvantajosas, um país atrasado como a Rússia logrou realizar a primeira revolução proletária da história. 20 As revoluções de 1905 e de 1917 forneceram a Lênin basepolítica para a ampliação e o aperfeiçoamento desse “modelo” básico. A primeira revolução, em particular, submeteu à prova a própria consistência do “modelo”. O comportamento do proletariado e do ^campesinato pobre demonstrou que ele era correto: a vanguarda revolucionária não ficou sozinha (e por vezes andou atrás das massas!). Portanto, dadas as condições adequadas de organização e de orientação política, o partido revolucionário do proletariado podia colocar-se à frente do mo vimento político revolucionário e dirigi-lo. De outro lado, eclodiram e multiplicaram-se greves de massas, econômicas e políticas, que abriram os olhos de Lênin e dos socialistas europeus para as novas técnicas revolucionárias que emergiam, as quais envolviam a contraviolência armada. À medida que os sovietes se firmam, por sua vez, como o equivalente russo da Comuna, as reflexões de Lênin se voltam para os aspectos institucionais e militares da tomada do poder. O soviete oferecia uma solução para a pressão democrático-revolucionária do proletariado, de alguns setores do campesinato ou das massas urbanas. Todavia, ao longo do processo ficou patente que os sovietes não detinham a força real e que não podiam, por si mesmos, suprimir a domi nação de classe burguesa. Ainda aí voltava a ser decisivo o “modelo” central esboçado acima. Só que a situação compelia a novas definições, relacionadas com a natureza e variedade dos meios institucionais de que se deveria valer a ditadura do prole tariado para atingir seus objetivos. Os sovietes permitiam resolver o problema das fontes e da natureza do poder proletário, que deveria emanar da maioria e exprimi-la o mais democraticamente possível, em sua estrutura interna. As fases iniciais, porém, teriam de ser de dominação exclusiva e plena da maioria (portanto, não de abolição imediata das classes, que não iriam desaparecer por um passe de mágica, mas de sua destruição progressiva). Lênin formula o Estado desse período como um Estado proletário, fundado no poder real da maioria (isto é, o poder soviético), mas submetido à necessidade inelutável de construir uma fortíssima maquinaria estatal, instrumentalizada pelo partido revolucionário do proleta riado e pelos sovietes. Antes de promover a transição para o socialismo, esse Estado proletário ou soviético deveria proceder ao reajustamento das “condições objetivas”, levando a revolução 21 proletária a todas as estruturas econômicas, sociais, culturais e políticas da sociedade russa. 8 Aí está, em linhas gerais, o “modelo” ampliado de Lênin, quanto à passagem da ditadura burguesa à ditadura do proleta riado. Para o marxismo, a contribuição de Lênin representa um acréscimo substantivo em duas direções. Primeiro, ela repôs o marxismo como política em suas bases revolucionárias, avan çando do conhecimento da realidade política da sociedade de classes para o modo de organizar politicamente a sua transforma ção e destruição, como etapa preliminar à instauração do socia lismo. Segundo, ela traz consigo a primeira descrição teórica e a primeira formulação prática da revolução proletária como K Essa síntese livre se funda principalmente em Que Fazer?', Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática', O Estado e a Revo lução e A Doença Infantil do Comunismo. Mas também foram levadas cm conta formulações contidas em Um Passo Adiante, Dois para trás', A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky e nos seguintes escritos: (Euvres. v. 1, p. 280-87; v. 2, p. 356; v. 4, p. 175-86, 235-61 e 334-52; v. 5, p. 333-34 e 343-49; v. 6, p. 11-19, 31-74 e 237-55; v. 8, p. 209-19; v. 9, p. 454-63; v. 10, p. 136-47 e 203-86; v. 11, p. 193-204 e 281-305; v. 12, p. 205-15; v. 13, p. 116-25; v. 15, p. 27-36, 48-61 e 286-300; v. 20, p. 427-32; v. 23, p. 84-96, 116-32 e 369-71; v. 24, p. 11-14, 32-45, 49-67 e 245-330; v. 25, p. 11-23, 198-206 e 247-62; v. 26, p. 13-19, 20-35, 50-52, 68-79 e 83-134; v. 27, p. 155-59, 304-26, 327-30 e 348-67; v. 28, p. 281-499; v. 29, p. 29, p. 101-14; v. 30, p. 259-83; v. 31, p. 352-74; v. 32, p. 11-35, 287-300, 362-81; v. 33, p. 53-74, 77-103, 221-29, 271-314 e 430-40. O professor poderá localizar aqui a discussão da evolução do Estado soviético e suas relações com a centralização do poder e a hegemonia do partido comunista, adotadas por Lênin. Alguns autores atribuem a Lênin e ao “centralismo democrático” tudo o que ocorreu posteriormente (c/. Berdiaev, N. Le Fonti e lo Spirito dei Comunismo Russo. Trad. de E. Villoresi. Milano, A. Cortticelli, 1945. p. 137-56; Conquest, R. Lenin. London, Fontana/Collins, 1972. p. 116-29). Essa é uma forma eviden temente destorcida de ver as coisas, já que Lênin nunca falou em esta bilizar a transição. Em termos do debate socialista, podem ser aprovei tados criticamente: Luxemburgo, Rosa. A Revolução Russa. Trad. de M. Macedo e pref. de M. Pedrosa. Rio de Janeiro, 1946; e Lukács, G. His- toire et conscience de classe. Trad. de K. Axelos e J. Bois. Paris, Les Éditions de Minuit, 1960. p. 309/32 (uma crítica marxista de R. Luxem burgo e sua interpretação). Como análises de caráter histórico, seriam recomendáveis principalmente Carr, E. H. La formation de l'U. R. S. S.: la révolution bolchevique (1917-1923). Trad. de A. Broue. Paris, Les Éditions de Minuit, 1969; ou Ferro, M. La révolution russe de 1917. 2.a ed. Paris. Flammarion, 1967. 22 processo histórico e vivido. Embora Lênin se preocupasse mais com as condições, as técnicas e os processos políticos de interven ção revolucionária na realidade, limitando as formalizações abstratas ao conhecimento teórico essencial para atingir tais fins, suas indagações e reflexões introduzem no marxismo um trata mento mais livre e dialético do político. Sem ignorar que qualquer transformação política possui uma base econômica e social concreta, ele desvendou, mais que os outros pensadores marxistas, o grau de autonomia relativa do político e a intensificação dessa autonomia nos momentos de crise e de revolução. Com ele, o marxismo torna-se politicamente operacional, o que explica porque, depois dele, converte-se em marxismo-leninismo. 9 Lênin e as Ciências Sociais Lênin nunca procurou afirmar-se como cientista social (e tampouco, em sentido mais amplo, como scholar). Sempre rea lizou as suas investigações e análises tendo em mente os objetivos cognitivos e práticos do socialismo revolucionário. Todavia, não só possuía excelente formação universitária, vocação de investiga dor e erudição histórica: apreendeu com maestria a complexa tradição científico-filosófica inerente ao movimento socialista europeu e russo, nos vários domínios do conhecimento e em particular do estudo histórico-sociológico do homem em socie dade. Doutro lado, o marxismo forneceu-lhe — além de uma concepção básica da filosofia, do socialismo e da ciência — uma teoria da ciência social e uma metodologia para a investigação e a explicação dos fenômenos sociais. Nenhuma história das ciências sociais é completa se não considerar as suas contribuições e a importância que elas tiveram dentro e fora dos círculos socialistas. O núcleo de sua visão da ciência social é extraído de Marx e já aparece totalmente constituído em seu pensamento a partir 9 A propósito, seria conveniente refletir sobre a seguinte afirmação de Gramsci: “Traçar um paralelo entre Marx e Ilitch, buscando determinar uma hierarquia, não tem sentido e é ocioso; eles expressam duas fases: ciência-ação, que são simultaneamente homogêneas e heterogêneas” (Gràmsci, A. Concepção Dialética da História. Trad. de C. N. Coutinho. Rio de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira, 1966. p. 94). 23 dos primeiros ensaios. Tomamos de um deles o esboço de caracterização materialista da sociologia como ciência crítica e objetiva. Como Marx, Lênin assimila a formação social (ou “a formação econômica da sociedade”) “à marcha da natureza e à sua história”. 10 11 Mas repudia, por igual, as concepções naturalista e subjetivistada sociologia, defendidas por autores como “Spencer e consortes”, que discutem a “sociedade em geral, o fim e a essência da sociedade em geral, etc.”. Prefere, antes, indagar por que Marx fala da sociedade “moderna” (enquanto os econo mistas e sociólogos que o precederam falavam da sociedade em geral); em que sentido Marx emprega a palavra “moderno”; em virtude de que critérios comprova essa modernidade; ou em que sentido fala da lei econômica da sociedade, que chama alhures de lei da natureza. O que está em jogo, portanto, é a concepção materialista da sociologia, que situa o homem e a sociedade na natureza, mas os compreende como uma realidade específica e de uma perspectiva histórica, dialético-causal. Retomando um largo excerto de A Crítica da Economia Política, procede à caracterização da sociologia assim concebida, a qual envolve, de um lado, o estudo científico das formações sociais concretas, consideradas nas condições de sua constituição e evolução,12 e, de outro, o estudo meticuloso dos fatos correspondentes.13 Esse estudo requer um tratamento analítico especial, (ao nível da téc nica de observação experimental dos fenômenos), que permitiu a Marx chegar à sua idéia fundamental de que “o desenvolvimento das formações econômicas da sociedade é um processo de história natural”, e abrange dois movimentos da inteligência-inquiridora: “Estudando à parte, entre as diversas esferas da vida social, a esfera econômica; estudando à parte, entre todas as relações sociais, as relações de produção, consideradas fundamentais, 10 V. LêNIn. Ce que sont les “amis du peuple” et comment ils luttent con- tre les social-démocrates. (In: (Euvres. 4.a ed. Paris/Moscou, Éditions So- ciales/Êditions en Langues Étrangères, 1958. v. 1, p. 143-360). Obra es crita e publicada em 1894. Relembramos que usamos a 4.a ed. de suas Obras Completas. 11 V. Lênin. Op. cit. p. 150 (Lênin transcreve um trecho do prefácio à l.a ed. de O Capital). 12 “Marx apenas fala de uma só ‘formação econômica da sociedade’, a for mação capitalista”, e somente afirma “ter analisado a lei de evolução dessa formação” (c/. Lênin. Op. cit. p. 150). 13 Lênin. Op. cit. p. 150-51. 24 primordiais, e determinando todas as outras relações”.14 A reelaboração de idéias e de pontos de vista de Marx revela a própria posição central de Lênin em face da ciência social. Por isso, é essencial ler-se atentamente o largo excerto seguinte, transcrito do ensaio em questão: 15 (...) “Essa idéia do materialismo em sociologia era já, por si mesma, uma idéia genial. Ela não era ainda, naturalmente, mais que uma hipótese, porém uma hipótese que, pela primeira vez, permitia abordar os problemas histórico e sociais de um ponto de vista estritamente científico. Incapazes até então de descer ao conhecimento de fatos tão simples e primordiais, como são as relações de produção, os sociólogos procediam direta mente à análise e ao estudo das formas políticas e jurídicas. Eles enfrentavam uma realidade na qual essas formas surgiam de tais ou tais idéias da humanidade, em uma época dada — e não iam além disso. Assim, as relações sociais teriam sido estabe lecidas conscientemente pelos homens. Mas essa dedução, que encontrou sua plena expressão na idéia de Contrato social (cujos traços são muito visíveis em todos os sistemas do socialismo utópico), estava em completa contradição com todas as obser vações históricas. Nunca, tanto no passado quanto atualmente, os membros da sociedade representaram o conjunto das relações sociais no meio das quais vivessem, como um todo bem defi nido, inspirado em um princípio fundamental; ao contrário, a massa se adapta inconscientemente a essas relações, e ela está tão longe de concebê-las como relações históricas particulares que, por exemplo, a explicação das relações de troca, as quais presidiram a vida dos homens durante séculos, não foi formu lada senão nos últimos tempos. O materialismo suprimiu essa contradição, estendendo a análise mais ao fundo, até à própria origem das idéias sociais do homem; e sua conclusão, segundo a qual o curso das idéias depende do curso das coisas, é a única compatível com a psicologia científica. De outro lado, essa hipótese elevou a sociologia, pela primeira vez, à posição de uma ciência. Até então, os sociólogos mal conseguiam distin guir, na complexa rede dos fenômenos sociais, os que eram importantes e os que não eram (aí está a raiz do subjetivismo em sociologia); eles não podiam fundamentar essa distinção sobre um critério objetivo. O materialismo forneceu um critério perfeitamente objetivo, isolando as ‘relações de produção’ como 14 Id., ibid. p. 162. 15/í/., ibid. p. 153-55. (Textos transcritos como no original.) 25 estrutura da sociedade e abrindo a possibilidade de aplicar a essas relações o critério científico geral da repetição, que os subjetivistas consideravam inaplicável à sociologia. Enquanto se restringiam às relações sociais ideológicas (ou seja, às relações que, antes de se constituírem, passam pela consciência * dos homens), eles não podiam descobrir a repetição e a regularidade nos fenômenos sociais de diferentes países, e sua ciência não era, no melhor dos casos, mais do que uma descrição desses fenômenos, que uma acumulação de dados brutos. A análise das relações sociais materiais (quer dizer, daquelas que se cons tituem sem passar pela consciência dos homens: ao trocar pro dutos, os homens entram nas relações de produção, sem mesmo tomar conhecimento que aí se trata de relações de produção sociais), a análise, portanto, das relações sociais materiais, per mite constatar, de imediato, a repetição e a generalidade, e generalizar os sistemas dos diversos países para chegar a uma só concepção fundamental, a de formação social. Só essa gene ralização permitiu passar da descrição dos fenômenos sociais (e de sua apreciação de um ponto de vista ideal) à sua análise estritamente científica, a qual põe em evidência, por exemplo, o que distingue um país capitalista de outro e estuda o que é comum a todos. (...) Em terceiro lugar, por fim, uma outra razão pela qual essa hipótese tornou possível, pela primeira vez, uma sociologia científica: reduzindo-se as relações sociais às relações de produção e estas últimas ao nível das forças produ tivas, descobriu-se a única base sólida que permite estudar o desenvolvimento das formações sociais como um processo de história natural. É evidente que, se não se toma esse ponto de vista, é impossível uma ciência da sociedade. (Os subjeti vistas, por exemplo, embora admitissem que os fenômenos his tóricos se conformam a leis, eram não obstante incapazes de considerar sua evolução como um processo de história natural, e isso precisamente porque se limitavam às idéias e aos fins sociais dos homens, sem saber reduzir essas idéias e esses fins às relações sociais materiais.)” Até que ponto essa visão da ciência social — que não fez senão consolidar e refinar ao longo de sua carreira, através de diferentes tipos de investigação empírica e de análises de situação, de conjuntura ou de processos de larga duração — satisfazia ao próprio Lênin, e como ele a avaliava, de uma perspectiva crítica? * “Bem entendido, aí sempre se trata de relações sociais, e não de outras.” (Nota de Lênin.) 26 Ainda aí, é através de Marx que podemos conhecer o pensamento e a posição de Lênin, extraindo ou resumindo, do ensaio que focalizamos 16 os .textos mais reveladores a esse respeito. “No entanto, Marx, que formulou essa hipótese depois de 1840, apega-se ao estudo concreto (nota bene) dos fatos. Ele toma uma formação econômica da sociedade — o sistema da econo mia mercantil — e, sobre a base de uma prodigiosa quantidade de materiais (que ele estudou pelo menos durante vinte e cinco anos), fornece uma análise minuciosa das leis que regem o funcionamento dessa formação e seu desenvolvimento. Essa análise se volta unicamente para as relações de produção entreos membros da sociedade, sem jamais recorrer, em suas expli cações, a fatores situados fora das relações de produção. Marx permite ver como se desenvolve a organização mercantil da economia social; como ela se transforma em economia capita lista e cria as classes antagônicas (desta vez no quadro das relações de produção): a burguesia e o proletariado; como ela desenvolve a produtividade do trabalho social e introduz assim um elemento que entra em contradição irredutível com os pró prios princípios dessa organização capitalista.” Segundo Lênin, esse é o esqueleto de O Capital. Todavia, Marx não se limitou a esse esqueleto, já que ultrapassou a “teoria econômica” em seu sentido ordinário. Ao explicar “a estrutura e o desenvolvimento da formação social considerada exclusivamente pelas relações de produção”, ele sempre “analisou as superestru turas correspondentes a essas relações de produção, e revestiu o esqueleto de carne e de sangue”. Por conseguinte, O Capital revela a “formação social capitalista como uma coisa viva, com os fatos da vida corrente, com as manifestações sociais concretas do antagonismo das classes inerentes às relações de produção, com a superestrutura política burguesa que protege a dominação da classe dos capitalistas, com as idéias burguesas de liberdade, igualdade, etc., com as relações de família burguesa”. Em suma, Marx pôs fim “à concepção segundo a qual a sociedade era um agregado mecânico de indivíduos que sofrem todas as espécies de transformações à mercê das autoridades (ou, o que dá no mesmo, à mercê da sociedade e do governo), que nasce e se transforma ao acaso. Ele foi o primeiro a fundar 10 V. Lênin. Op. cit. p. 155-56, 156-57. (Transcrição como no texto ori ginal.) 27 a sociologia sobre uma base científica, analisando a noção de formação econômica da sociedade como um conjunto de relações dadas, e estabelecendo que o desenvolvimento dessas relações é um processo de história natural”. “Atualmente — depois do aparecimento de O Capital — a con cepção materialista da história não é mais uma hipótese, porém uma doutrina cientificamente demonstrada. E enquanto não tiver mos outra tentativa de explicar cientificamente o funcionamento e a evolução de uma formação social, precisamente, e não dos usos e costumes de um país ou de um povo, ou mesmo de uma classe — uma outra tentativa que, como o materialismo, seja capaz de colocar a ordem nos ‘fatos correspondentes’, de traçar um quadro vivo de uma formação fornecendo uma explicação estritamente científica — a concepção materialista da história será sinônimo de ciência da sociedade. O materialismo não é ‘por excelência uma concepção científica da história’, como acre dita o senhor Mikhaílovski, mas é a única concepção científica.” Pelas transcrições feitas, fica evidente que Lênin situa a interpretação dialética nas ciências sociais como uma interpreta ção generalizadora, embora especificamente histórico-sociológica. Trata-se de explicar cientificamente, portanto, de generalizar, porém dentro dos limites que determinam a vigência histórica e a própria validade causal das explicações. Como escreveu em uma polêmica com Rosa Luxemburgo: “Quando se analisa uma questão social, a teoria marxista exige expressamente que ela seja situada em um quadro histórico determinado', pois, se se trata de um só país (por exemplo, do programa nacional para um país dado), que sejam tomadas em conta as particularidades concretas que distinguem esse país de outros, nos limites de uma só e mesma época histórica”.17 Do mesmo modo, na comparação de países diferentes, “a condição preliminar mais elementar, quanto à ocorrência, consiste em saber se as épocas históricas do desenvolvimento dos países comparados se prestam à compara ção”. 18 Ao mesmo tempo, para explicar, do ponto de vista dialético, é preciso não só apanhar o que é essencial na manifes tação do fenômeno, mas ainda fazê-lo de maneira a compreender o essencial em termos de sua estrutura interna, do seu funciona- 17 V. Lênin. (Euvres. v. 20 (1913/julho de 1914), 423. (Grifo do original.) 18 ld., ibid. p. 428. (Grifo do original.) 28 mento e da sua evolução. Isso significa que, para Lénin, as “estruturas” não podem ser tomadas em si e por si mesmas, o mesmo sucedendo com os “dinamismos” da vida social. “Estru turas” e “dinamismos” são interdependentes e se dão simultanea mente in concreto, sendo preciso reconstruí-los, empírica e analiticamente, nessa condição. É a partir dessa matéria-prima que se procede à observação e à descrição das causas, através da interpretação dialética. Pois, como escreve, “a dialética exige que um fenômeno social seja estudado sob todos os ângulos, e que a aparência, o aspecto exterior seja reduzido às forças motrizes capitais, ao desenvolvi mento das forças produtivas e à luta de classes”.19 Ou, ainda, como afirma em outra passagem mais elaborada: “A lógica dialética exige que cheguemos mais longe. Para co nhecer realmente um objeto, é preciso apanhar e estudar todos os seus aspectos, todas as suas ligações e ‘mediações’. Nós não o conseguimos jamais completamente, mas a necessidade de con siderar todos oí, ^nectos nos protege de erros e de lapsos. Eis um primeiro pouSegundo: a lógica dialética exige que se considere um objeto em seu desenvolvimento, seu ‘movimento próprio’ (como o diz às vezes Hegel), sua transformação. (. . .) Terceiro: toda a prática do homem deve entrar na ‘definição’ completa do objeto, a um tempo como critério da verdade e como determinante prático da ligação do objeto com o que é necessário ao homem. Quarto: a lógica dialética ensina que ‘não há verdade abstrata’, que ‘a verdade é sempre concreta’, como gostava de dizer, seguindo Hegel, o falecido Plekhanov.” 20 Ao preservar o modelo da explicação marxista nas ciências sociais, Lênin também sempre soube manter-se fiel ao escrúpulo propriamente científico de respeito aos dados de fato.21 Se evitava os fatos isolados, “fora de sua conexão”, pretendia porém basear suas interpretações sobre princípios escrupulosamente 19 V. Lênin. (Euvres. v. 21 (agosto de 1914/dezembro de 1915), p. 221. 20 V. Lênin. (Euvres. v. 32 (dezembro de 1920/agosto de 1921), p. 94. 21 Consulte-se, a respeito, as recomendações contidas em “Estatística e So ciologia”. (In: (Euvres. v. 23, agosto de 1916/março de 1917, p. 298-305). Citações extraídas da p. 299. Lênin apreciava muito os inquéritos, usando tanto os feitos por outros autores (como sobre os zemsfvcw), quanto os feitos por conta própria (no v. 6, p. 377-88; e no v. 8, p. 197-98 encon tram-se exemplos de formulários que ele mesmo elaborou). 29 inferidos de “fenômenos precisos e indiscutíveis”. Essa orientação aparece, clara e sólida, tanto em seus trabalhos de investigação empírica, quanto em suas análises políticas, aparentemente livres e abstratas. Tome-se, como exemplo, o seu ensaio sobre “A Vi tória dos Cadetes e as Tarefas do Partido Operário”. 22 Contra os liberais e os mencheviques, Lênin combate ferrenhamente “as ilusões constitucionais”, recusando-se a transferir o processo re volucionário da sociedade para o parlamento. Tomando em conta “todas as particularidades históricas do momento presente”, concluiu que a história de 1905 se repetia, o que reservava à autocracia, às classes burguesas e à pequena-burguesia, bem como ao proletariado, uma “crise revolucionária” (e não simplesmente uma “crise parlamentar”). Em consequência, “a luta na Duma não pode decidir a sorte da liberdade do povo, ela não pode ser a forma principal de luta, pois é notório que esse ‘parlamento’ não é reconhecido por 'nenhum dos dois par tidos em luta’ e a forma principal do movimento social na Rússia atual permanece, como no passado, um movimento diretamente revolucionário de amplas massas do povo, quebrando as velhas leis, destruindo os órgãos de opressão do povo, conquistando o poder político, criando um direito novo”. Esse sentido dialético(mas profundamente científico e não- -especulativo) do concreto levou-o a criticar com severidade as descrições e as interpretações que esvaziavam a história — ou pelo uso abusivo de “raciocínios gerais” e de “modelos”,23 ou pelo emprego sistemático de “modelos” abstraídos das condições histórico-sociais concretas, 24 ou, ainda, pela utilização de “defi nições forjadas, escolásticas e artificiais” e por “estéreis querelas de palavras”.25 Doutro lado, rejeitava as “posições” e as “definições” ecléticas, nas quais via uma ameaça à pureza, ao alcance e à solidez da explicação dialética. Aos níveis da inves tigação e da análise existe uma liberdade que desaparece ao nível da construção do raciocínio científico e de sua comprovação. Portanto, não era por simples dogmatismo que condenava a fusão 22 V. Lênin. (Euvres. v. 10 (novembro de 1905/junho de 1906), p. 201-86. (Citações extraídas das p. 282-84). 23 Cf. (Euvres. v. 23, p. 299. (Grifos do original.) 24 Cf. (Euvres. v. 19 (março/dezembro de 1913), p. 122. 27>Cf. (Euvres. v. 25 (junho/setembro de 1917), p. 509. (Grifo do ori ginal.) 30 da lógica formal e da lógica dialética. Ele estava convicto de que tal fusão só pode produzir um conhecimento imperfeito, que esteriliza a dialética, pondo em seu lugar um “ecletismo morto, privado de conteúdo”. 26 Em confronto com Marx, se Lênin enfatiza mais o com ponente científico-natural da ciência social (no que acompanha Engels), ele o faz em uma direção puramente dialético-materia lista (mantendo inalteráveis, portanto, as fronteiras que separam o materialismo histórico seja da sociologia positiva franco-inglesa, seja da sociologia formal ou sistemática e da sociologia da com preensão alemãs). Mas, em alguns pontos, sua posição interpre- tativa apresenta matizes que o singularizam perante Marx. Isso merece ser assinalado, especialmente com referência a três temas centrais para o marxismo. Primeiro, embora seguindo o exemplo de Marx e Engels e cingindo-se ao seu modelo básico de interpretação sociológica, Lênin põe mais ênfase nas funções heurísticas (para fins teóricos ou práticos) das relações de classe na explicação dos fenômenos sociais. 27 Dois simples exemplos: a) ao nível empírico e teórico — “um marxista não deve abandonar o terreno sólido da análise das relações entre as classes”; b) ao nível prático — o marxista deve manter-se atento à “necessidade de tomar em conta, com uma objetividade rigorosa, as forças de classes e a relação dessas forças, antes de iniciar uma ação política qualquer”. Note-se que essa não é uma conseqüência puramente prática de seu inte resse maior pelas estruturas de poder e do grau do seu envolvi mento político no processo revolucionário. É certo que não há uma quebra de ortodoxia: Lênin sempre observou e caracterizou as relações e as estruturas de classe a partir da organização e do desenvolvimento do sistema material de produção da vida social, sob o capitalismo. Todavia, sem separá-los um dos outros, ele se interessou menos pelo “esqueleto” mais pela “carne e sangue” da sociedade capitalista (retomando-se ao pé da letra sua avalia 20 Cf. (Euvres. v. 32, p. 95 (onde procede à crítica de N. Bukharin: ver p. 95-101). Não obstante a interpretação exposta, é sabido que Lênin era extremamente sensível às conseqüências da quebra da ortodoxia (por exem plo, como ela se liga, no caso de Bernstein e outros, à passagem ao reformismo e ao oportunismo: veja-se, a respeito, (Euvres. v. 19, p. 318). 2‘ Cf. (Euvres. v. 24 (abril-/junho de 1917), p. 36; e v. 31 (abril-dezembro de 1920), p. 27, respectivamente. 31 ção de O Capital, mencionada acima). Assim, ele instaurou dentro do marxismo uma orientação menos economicista e mais político-centrista, que permite fixar as contradições de uma dada sociedade capitalista (ou em marcha para o capitalismo) a partir da irradiação imediata dos antagonismos e conflitos de classe. Segundo, ainda dentro de uma orientação marxista indis cutivelmente ortodoxa — pois é dele a célebre afirmação: “sem teoria revolucionária, não existe movimento revolucionário”28 — Lênin deslocou a preeminência para a prática. Em termos filosóficos, sua posição é a do aprendiz, repetindo Marx e En- gels; 29 como eles, também exigia extrema coerência: não se pode dizer-se marxista, ensinar o marxismo e eximir-se de aplicar a dialética marxista a todos os aspectos da vida.30 Entretanto, graças à situação e à experiência revolucionárias, o marxista russo ganhava uma nova compreensão da prática (e por meio dela, da teoria), definindo ambas a partir da revolução e da ação revolucionária (e não de suposições de como “transformar o mundo”). É nesse sentido que Lênin fala de “uma teoria revo lucionária justa, que não é um dogma, e que não se forma definitivamente senão em estreita ligação com a prática de um movimento realmente maciço e realmente revolucionário”. 31 Tal perspectiva não é a de quem pensa sobre a prática como uma condição de alteração do mundo; mas a de quem possui o domínio de uma prática que atua efetivamente na alteração do mundo. Deste ângulo, a prática ganha preeminência porque regula, ao mesmo tempo, a acumulação e a verificação do conhecimento, tanto quanto a transformação da realidade. Aí se encontra, segundo pensamos, o fundamento de afirmações do seguinte teor: “É preciso estudar a prática. (...) A prática é cem vezes mais importante que não importa que teoria”.32 O próprio processo revolucionário impunha seus ritmos e suas medidas, aconselhando o desvinculamento mesmo da teoria revo lucionária e o acercamento da prática exigida pela situação. 28 Cf. (Euvres. v. 5 (maio de 1901/fevereiro de 1902), p. 376. (Grifo nosso.) 29 C/. (Euvres. v. 14 (1908), p. 141-47. 30 Cf. (Euvres. v. 31, p. 98-99. (Grifo de Lênin.) 31 Id., ibid. p. 19-20 (nas quais Lênin analisa as origens do bolchevismo). 32 V. Lênin. (Euvres. v. 32, p. 22-23. 32 “Contudo, introduzir no programa uma abundância excessiva de minúcias é prematuro e pode mesmo nos prejudicar, atando nossas mãos em pontos secundários. E nós devemos conservar as mãos livres, para fazer o que é novo com mais força, quando entrarmos completamente na nova via”.33 Fiel à sua norma segundo a qual “um marxista deve, para julgar uma situação, fundar-se sobre o real e não sobre o possível”, Lênin recomenda que “é preciso saber adaptar os esquemas à vida” e não repetir mecanicamente fórmulas abstratas de suposto teor revolucionário (pelas quais não se reproduz, de qualquer modo, o “marxismo vivo”).34 Deveras importante para a compreensão da posição de Lênin diante das ciências sociais: ele não extraiu dessa nova visão das relações entre teoria e prática a conclusão de que, com a revolução bolchevique, essas ciências se convertiam em técnicas (convicção que se generalizou, em seguida, entre os intelectuais saídos da revolução). Terceiro, Lênin também refundiu a concepção marxista das relações entre as “estruturas materiais” e as “superestruturas” da sociedade (ou seja, especificamente, entre o econômico, o político, o jurídico e o ideológico). De um lado, a sua tendência predomi nante sempre consistiu em buscar o “político”, por baixo ou acima do “econômico”. De outro, no processo revolucionário o “político” ganhou em relevo natural, sucedendo mesmo, após a tomada do poder, que a experiência iria mostrar-lhe vários âm bitos de precedência e de predominância das transformações políticas sobre as transformações econômicas. A formulação teórica dessa experiência foi feita através de uma linguagem puramente marxista: “Toda a democracia, como em geral toda superestrutura política (o que é inevitável enquanto a abolição da sociedade de classes não esteja concluída, enquanto a socie dade sem classes não tenha sido criada), está enfim a serviço da produção, e o que a determina, no fim das contas, são as relações de produção em uma sociedade”.35 Isso não impede que o político ganhe uma posição central e tampoucoo reconhecimento de sua importância relativa: “A política é a expressão concen- 33 V. Lênin. (Euvres. v. 26 (setembro de 1917/fevereiro de 1918), p. 175. 34 V. Lênin. (Euvres. v. 24, p. 36. (Grifo no texto, com referência ao pri meiro excerto transcrito.) 35 V. Lênin. (Euvres. v. 32, p. 79. 33 trada da economia, como tenho repetido em meu discurso, pois eu já entendera antes os reproches à minha atitude ‘política’, o que é absolutamente destituído de sentido e inadmissível na boca de um marxista. A política não pode deixar de ter primazia sobre a economia. Raciocinar de outro modo, é esquecer o abc do marxismo”.30 O Pensamento Político de Lênin Lênin nasceu, cresceu e viveu para a ação política — não para a ação política comum ou convencional, dentro das regras do jogo, para a qual também estaria credenciado, mas para a ação política revolucionária, consagrada ao socialismo. Todo o seu pensamento é político: em suas origens, em suas motivações ou em seus alvos. Mesmo sua maior obra de investigação cien tífica (O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia) foi em preendida por inspiração política. Lênin queria deixar patente, de uma vez por todas, que a revolução nacional russa era uma revolução atrasada, porém especificamente burguesa. Como tal, ela estava sujeita a determinadas regras, tinha um sentido inequí voco e seguiria certos caminhos mais ou menos previsíveis, cuja natureza e implicações políticas cabiam aos socialistas conhecer com rigor, para que pudessem agir revolucionariamente. Isso mostra quanto a ciência era instrumental para Lênin. O que era central em sua perspectiva intelectual era a ação política dirigida primariamente contra a autocracia czarista e, a largo prazo,, vol tada para a instauração do socialismo. Contudo, a ciência estava presente, distinguindo a qualidade do seu pensamento político e, quiçá, o grau de eficácia que ele com freqüência adquiria. É muito difícil esquematizar as nuanças, as flutuações e, principalmente, o saber político acumulativo que resulta das múltiplas aplicações de um pensamento político voltado para os pequenos e os grandes dramas coletivos. Ele emerge não só sob o signo da história, mas com o propósito consciente de “fazer história”, de acelerar e de alterar os rumos das coisas. Essa é a 36 ld.t ibid. p. 82. (Grifo nosso.) A seguinte afirmação põe em evidência os riscos da posição oposta: "Em outras palavras, o ponto de vista político significa: se abordarmos os sindicatos de uma maneira errônea, o poder dos sovietes e a ditadura do proletariado estão perdidos” (loc. cit.). 34 área por excelência do marxismo vivo: uma força histórica atuan te, de baixo para cima. Não se pode compreender a vitalidade desse pensamento político, diretamente inserido na história em processo, se não se tem em mente que ele não existiria como tal sem o movimento socialista, que lhe deu ao mesmo tempo reali dade histórica e sentido político revolucionário. Ele definiu o seu módulo político, determinando tanto o seu conteúdo, quanto sua orientação revolucionários; e explicando simultaneamente seja sua continuidade e oscilações, seja suas debilidades e sua força terrível. Em Lênin temos, portanto, uma combinação em profundi dade da ciência social com o movimento socialista revolucionário. Isso não produz uma variante pura e simples da “ciência políti ca”. O movimento socialista livrava Lênin do condicionamento institucional que bloqueia a pesquisa científica e o pensamento científico no mundo acadêmico e universitário. A “ciência bur guesa” não pode ir além da ordem existente (e, em alguns casos isolados, das revoluções dentro da ordem), em virtude desse blo queio. Contudo, o tipo de análise política que o movimento socialista impunha era uma expressão direta de sua própria orientação revolucionária: ele contrapunha a sua prática política revolucionária à prática política burguesa. Apoderando-se da ciência, o movimento socialista colima a transformação revolu cionária da sociedade burguesa (e não o crescimento puro e simples do “edifício da ciência”). Não se trata de cultivar a “ciên cia pela ciência” (ou seja, uma ciência política oposta à “ciência política burguesa”); porém, de usar a ciência na produção de um conhecimento livre de interferências conservantistas e intrin secamente explosivo. Nessa conjunção, o modelo de análise político é substan cialmente prático. Ele não só é instrumento da prática revolucio nária socialista, como deve visar à previsão de suas possibilidades concretas e a complexa tarefa de sua orientação teórica. Por sua conexão com a ciência, ele se impõe critérios de verdade supra- políticos (que não entram, todavia, em conflito com os móveis práticos da ação revolucionária socialista: antes, são requeridos como conditio sine qua non de êxito no confrontamento daquela prática com a ordem burguesa). Não obstante, tais critérios de verdade não são questionados no processo político propriamente dito. Aí, o decisivo não é a origem nem a natureza do tipo de 35 conhecimento político, mas a relação de forças que permite a uma ciasse (e não a outra) decidir os rumos da história por meio do uso de tal conhecimento. Portanto, não é o conhecimento em si c por si mesmo que opera como força social: ele pode conver ter-se ou não em força social, dependendo de uma relação que é, no mundo moderno, uma relação de classes antagônicas. Em conseqüência, seria errôneo considerar o pensamento político de Lênin (ou o modelo de análise política que dele se pode extrair) cm termos convencionais: ou da ciência política, tout court\ ou dos tipos de racionalidade contidos na ordem política burguesa. Ambos rompem esses limites, seja a partir da irradiação revolu cionária do movimento socialista, seja a partir da espécie de conhecimento político que esse movimento requer. De um lado, não existem objetivos especificamente empíricos ou sistemáticos, pois não existe também análise política “abstra ta” ou “neutra”. De outro, a racionalidade burguesa é definida, ab initio. como 0 protótipo da irracionalidade, e o fim do processo revolucionário socialista não só consiste em negar aquela raciona lidade, mas em destruí-la. Por isso, a lógica a que se submete semelhante pensamento político (e também o seu modelo de análise), não é formal nem intelectualista: é prática. Para atingir seus alvos, o conhecimento político produzido precisa ser aceito, reconhecido como verdadeiro e absorvido pelas massas, para em seguida manifestar-se através do seu comportamento coletivo. Onde a revolução só pode dar-se de baixo para cima, não existe outro caminho nem outro veículo para a ação política revolucio nária. A massa não aparece apenas como objeto e consumidora presumível: ela se define como único agente que pode decidir, em termos finais, se haverá a vitória de uma revolução (ou de uma contra-revolução). Temos aí todo um rol de requisitos que situam a natureza do conhecimento político, sua forma, propa gação e meios de verificação numa relação direta com a prática política propriamente dita (e não com os requisitos do conheci mento científico formal). Voltamos a Marx: “A questão de saber se ao pensamento humano cabe verdade objetiva não é uma questão de teoria, mas uma questão prática”, 37 porém com outro espírito. Pois a prática política revolucionária engendra o seu próprio quadro de “verdade objetiva”. 37 Apud Fernandes, F. Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica. 2.a ed. São Paulo, Companhia Ed. Nacional, 1972. p. 280. 36 “Quando se pretende assumir um papel de direção política, deve-se saber meditar sobre as tarefas políticas”.38 Note-se: Lênin fala de um saber político que nasce de uma meditação. Mas essa meditação tom? por objeto “as tarefas políticas”, nos termos de “um papel de direção política”. O que vem a ser, pois, tarefa política para um líder revolucionário? “A questão do poder é a questão capital de toda revolução”,39 eis a resposta. “Atomada do poder é a tarefa da insurreição; seu fim político apa recerá claramente depois”. 40 Todavia, a revolução constitui um complexo processo político, que se determina, como outras ocor rências histórico-sociais, através da conjunção da “necessidade histórica” com o “papel da personalidade na história”.41 A cadeia causal não transforma os homens em marionetes: uma “evolução” necessária não se impõe mecânica ou automatica mente, pois a história não “usa” os homens (estes é que a constroem, como uma realidade viva e coletiva). Sob o capitalismo, a organização da sociedade em classes antagônicas imprime uma forma típica a essa história. O poder econômico, social e cultural das classes torna-se poder político ao concentrar-se no Estado e, através dele, na dominação estatal. A luta de classes converte-se, assim, em luta política de “um grau superior”, quando entra em questão o controle do Estado e da dominação estatal pela burguesia ou pelo proletariado. “O marxismo reconhece que a luta de classe atinge seu pleno desen volvimento, que ela alcança ‘a escala de toda a nação’, unica mente quando, não se contentando em estender-se à política, ela se apodera do que é o mais essencial na própria política: a organização do poder de Estado”.42 A esse nível mais profundo, a luta de classe regula o curso da história, decidindo a continui dade de uma “evolução” ou o começo de outra: “Para que a maioria decida verdadeiramente os negócios públicos, é necessário condições concretas determinadas. É preciso, pri meiro, estabelecer solidamente no país um regime político, um 38 V. Lênin. (Euvres. v. 27 (fevereiro/julho de 1918), p. 343. 39 ld., ibid. p. 362. (Grifo nosso.) V. também v. 26, p. 84. Isso sem ignorar que “uma larga política de princípios é a única realmente prática” (c/. v. 12, janeiro/junho de 1907, p. 493). 40 V. Lênin. (Euvres. v. 26, p. 241. 41V. Lênin. (Euvres. v. 1, p. 175. 42 V. Lênin. (Euvres. v. 19, p. 120. (Transcrito como no texto original.) 37 poder de Estado que torne possível a decisão dos negócios pela maioria e assegure a transformação dessa possibilidade em reali dade. Doutro lado, é necessário que essa maioria, por sua com posição de classe, pelas relações existentes em seu seio (ou fora dela) entre as diversas classes, seja capaz de conduzir em har monia e com êxito a carruagem do Estado. Para todo marxista, é evidente que essas duas condições concretas são de uma impor tância decisiva na questão da maioria e da direção dos negócios do Estado em conformidade com a vontade dessa maioria. (...) Se o poder é exercido no Estado por uma classe cujos interesses coincidam com os da maioria, uma direção dos negócios públicos efetivamente conforme a vontade da maioria é possível. Mas se o poder político é exercido por uma classe cujos interesses divir jam dos da maioria, a direção dos negócios públicos em confor midade com a vontade da maioria converte-se inevitavelmente em um logro, ou leva ao esmagamento dessa maioria. Cada república burguesa nos fornece centenas e milhares de exemplos desse gênero. Na Rússia, a burguesia exerce uma dominação tanto política quanto econômica. Seus interesses, sobretudo no curso de uma guerra imperialista, se opõem da maneira mais clara aos da maioria”.43 Por outro lado, a revolução requer um desdobramento da luta política em várias direções, inclusive da luta armada. Ela impõe uma organização especial e uma concentração única da vontade coletiva da classe. Como escreve Lênin, “a revolução se distingue precisamente da situação ‘normal’ dos negócios do Es tado naquilo em que as questões litigiosas da vida pública são decididas diretamente pela luta de classes e por uma luta das massas que chega ao recurso das armas. Não pode ser diferente, porque as massas são livres e armadas. Resulta desse fato essen cial que não é suficiente, em período revolucionário, conhecer a ‘vontade da maioria’; não, é preciso ser o mais forte, no momento decisivo e no lugar decisivo; é preciso vencer. (...) Nós vemos inumeráveis exemplos que mostram uma minoria mais bem organizada, mais consciente, mais bem armada, impor sua von tade à maioria e vencê-la”.44 A luta pelo poder define-se, portanto, no próprio plano da luta de classes. O essencial vem a ser a preparação do proleta riado para enfrentar suas tarefas políticas: na luta contra a 4»V. Lênin. (Euvres. v. 25, p. 216-17. 44 Z</., ibid. p. 218. 38 autocracia, para neutralizar a contra-revolução e para consolidar ou expandir a democracia burguesa; ou na luta para tomar o poder, criar um Estado proletário e abrir o caminho para o socia lismo. Essa foi a seqüência das tarefas políticas que se delineou historicamente na Rússia, de 1905 a 1917. Contudo, outras combinações são possíveis. A questão consiste em saber: qual é o comportamento político do partido revolucionário do proletariado diante delas? “O dever imperioso do partido proletário era ficar com as massas, esforçar-se por imprimir um caráter tão pacífico e também organizado quanto possível à sua ação legítima, não se autoproteger, não lavar as mãos à maneira de Pôncio Pilatos, sob o pretexto pedantesco de que não está organizado até o último homem e que em seu movimento se produzem excessos”.43 Em resumo, o partido revolucionário precisa comportar-se como uma vanguarda consciente, responsável e corajosa: cabe-lhe montar a tática e escolher as palavras de ordem ajustadas a cada situação, avançar sempre, estabelecer a melhor ligação pos sível e insuperável entre os fins imediatos e os fins permanentes ou gerais do movimento socialista. Se isso impõe uma constante recalibração política do partido revolucionário, também não deixa de exigir uma incessante reeducação política dos militantes, do proletariado e, através deles, da massa ou do povo. Lênin dis tingue esses vários conceitos, como partido e classe, classe e massa, proletariado e povo. Mas procede em sentido prático. Não pretendia colocar uma escolástica “marxista” no lugar de uma política proletária revolucionária, pois sempre foi infenso à in fecção liberal e pequeno-burguesa do marxismo. No final das contas, o eixo da ação política revolucionária está na luta ativa, que aparece para Lênin, ao mesmo tempo, como meio de conhecimento e meio de transformação da rea lidade. “Tudo o que podemos fazer, na hora atual, é enrijecer nossas forças, tendo em vista consolidar a organização ilegal de nosso partido e decuplicar nossa agitação entre as massas do proleta riado. Só a agitação pode nos revelar, em uma escala vasta, qual é o verdadeiro estado de espírito das massas, só a agitação pode criar uma ligação estreita entre o partido e o conjunto da classe operária, só a utilização, com fins de agitação política, ibid. p. 222. 39 de cada greve, de cada acontecimento ou problema importante da vida operária, de todos os conflitos no interior das classes dirigentes ou ainda entre uma facção dessa classe e a autocracia, de cada intervenção dos social-democratas na Duma, de cada manifestação nova da política contra-revolucionária do governo, etc., só o conjunto desse trabalho reformulará os quadros do proletariado revolucionário e nos fornecerá dados seguros para julgarmos a velocidade de maturação das condições de desenca deamento de novas batalhas mais decisivas”. 46 O ponto de partida desse processo de luta política deve re pousar na desintoxicação das massas populares, que precisam libertar-se do aburguesamento inevitável das condições de exis tência operária sob o capitalismo e das influências pequeno- -burguesas; e o objetivo final, por sua vez, deve ser a criação e a emulação do espírito revolucionário das próprias massas, ele vando sua consciência de classe e, concomitantemente, sua combatividade como e enquanto classe. Algumas citações per mitirão situar o pensamento de Lênin sobre tal assunto: “A verdadeira educação das massas não pode ser jamais separada de uma luta independente, e principalmente