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HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Magnum Eltz O positivismo jurídico Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar os contrastes entre o positivismo jurídico e a jurisprudência dos valores. Analisar a influência do positivismo jurídico na escola da exegese. Avaliar os diversos tipos de positivismo jurídico. Introdução O positivismo jurídico é uma das principais escolas da ciência jurídica, sendo responsável pela sistematização e o desenvolvimento de méto- dos focados em fatores endógenos do sistema legal. Neste capítulo, estudaremos o positivismo jurídico em contraste com a pós-moderna jurisprudência de valores, a sua relação histórica com a escola da exegese e os seus métodos interpretativos e os diferentes tipos de juspositivismo. Positivismo jurídico e juízo de valores O positivismo é uma corrente fi losófi ca e idealista que procura objetivar o estudo da ciência. É considerada por seu criador, Augusto Comte (1978), a “verdadeira fi losofi a”, e ele afi rmava que as fases anteriores do desenvolvimento das ciências eram condições necessárias para atingir esse patamar. No contexto jurídico, o positivismo jurídico é uma espécie de evolução do Direito jusnatural que utiliza o contexto codifi cista e antropocêntrico do século XIX para criar uma base teórica avalorativa e desenvolver uma ciência jurídica de fato, a partir de uma “teoria pura” que estuda a norma tal como dada pelo legislador. A fundação teórica dada pelo positivismo filosófico pode ser extraída do seguinte texto de Comte (1978, p. 36-37): Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibili- dade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do C03_Positivismo_juridico.indd 1 27/03/2018 14:15:01 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, as suas leis efetivas, a saber, as suas relações invariáveis de su- cessão e de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, se resume de agora em diante à ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e a alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir. A partir do positivismo filosófico de Comte, para o qual as ciências devem se ater aos fatos e à ligação dos fenômenos conhecidos, deixando de lado questões metafísicas ou demasiadamente complexas — utilizando-se da observação desses fenômenos e da reflexão lógica sobre eles —, os diversos ramos do positivismo, histórico, sociológico e jurídico tornam a sua atenção para aspectos endógenos (internos) aos seus ramos científicos, ignorando a influência de aspectos exógenos (exteriores). O positivismo jurídico, por sua vez, segundo Norberto Bobbio (1995, p. 45-46), ocorre no ocaso do jusnaturalismo: Para que o Direito Natural perca terreno, [...] é preciso que a filosofia jusna- turalista seja criticada a fundo e que as concepções, ou, ainda, os “mitos” jusnaturalistas (estado de natureza, lei natural, contrato social...), desapareçam da consciência dos doutos. Esses mitos estão ligados a uma concepção filosó- fica racionalista (a filosofia iluminista, cuja matriz se encontra no pensamento cartesiano). Ora, é precisamente no quadro geral da polêmica antirracionalista, conduzida na primeira metade do século XIX pelo historicismo (movimento filosófico-cultural), que acontece a “dessacralização” do Direito Natural. O surgimento do positivismo jurídico teve de passar por essa polêmica acon- tecida no clima do romantismo. O autor (Gustavo Hugo), entendendo o Direito Natural como filosofia do Direito Positivo, o resolve num conjunto de conceitos jurídicos gerais elaborados com base no Direito Positivo (não no Direito Positivo de um Estado específico, mas naquele existente, ou que pode existir, em qualquer Estado. Usando uma terminologia moderna, podemos dizer que Hugo elabora mais do que uma “filosofia do Direito”, uma “teoria geral do Direito”. Com a redução do Direito Natural e da filosofia do Direito Positivo, a tradução jusnaturalista é esgotada (mesmo que ela, naturalmente, vá ressurgir por outras vias). A obra de Hugo assinala a passagem da filosofia jusnaturalista para a juspositivista (lato sensu). Esse pensamento, aflorado na doutrina alemã, viria a encontrar eco no trabalho desenvolvido por Bentham na Inglaterra, onde, segundo Bobbio (1995, p. 92): [...] toda a obra de Bentham é guiada pela convicção de que é possível es- tabelecer uma ética objetiva. É precisamente essa convicção que justifica a O positivismo jurídico2 C03_Positivismo_juridico.indd 2 27/03/2018 14:15:02 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight sua fé no legislador universal, na possibilidade, portanto, de estabelecer leis racionais válidas para todos os homens. Assim, aproveitando-se da secularização jusnaturalista, o juspositivismo utiliza a filosofia de um Direito Humanista em oposição ao Direito canônico para a construção de um Direito científico que poderia ocorrer em qualquer Estado, deixando a principiologia jusnaturalista de lado para privilegiar o sistema organizado a ser estudado a partir dele mesmo. Para tanto, a escola do positivismo jurídico buscou a isenção da ciência jurídica em relação à valoração do seu objeto, ou seja: [...] o positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do Direito numa verdadeira e adequada ciência que tenha as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais. Ora, a característica funda- mental da ciência consiste em sua avaloratividade, isto é, na distinção entre juízos de fato e juízos de valor e na rigorosa exclusão destes últimos do campo científico: a ciência consiste somente em juízos de fato. O motivo dessa dis- tinção e dessa exclusão reside na natureza diversa desses dois tipos de juízo: o juízo de fato representa uma tomada de conhecimento da realidade, visto que a formulação de tal juízo tem apenas a finalidade de informar, de comunicar a um outro a minha constatação; o juízo de valor representa, ao contrário, uma tomada de posição frente à realidade, visto que a sua formulação possui a finalidade não de informar, mas de influir sobre o outro, isto é, de fazer com que o outro realize uma escolha igual à minha e, eventualmente, siga certas prescrições minhas (por exemplo, diante do céu rubro do pôr do sol, se eu digo “o céu é rubro”, formulo um juízo de fato; se digo “este céu rubro é belo”, formulo um juízo de valor) (BOBBIO, 1995, p. 135). Assim, para tornar-se ciência universal, o Direito deveria abandonar o estudo de juízos que adjetivam ou tomam posse de determinada posição em detrimento de entendimentos genéricos e aplicáveis a todos, desconstruindo a casuística em função da normatividade. Em contraste ao pensamento juspositivista, encontra-se a chamada juris- prudência dos valores, baseada na principiologia jusnaturalista, que é vista como uma visão “pós-moderna” do Direito. Conforme ensina Karl Larenz (1991, p. 297-298): [...] ao interpretar as leis (com vista à solução de “casos jurídicos”), não se pode descurar-se que nelas não se trata de um qualquer tipo de enunciados, mas de preceitos que hajam de ser seguidos, de bitolas de julgamento prescritas, em suma: de normas. 3O positivismo jurídico C03_Positivismo_juridico.indd 3 27/03/2018 14:15:02 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight O legislador que estatui uma norma, ou, mais precisamente, que intenta regular um determinado setor da vida por meio de normas, deixa-se nesse plano guiar por certas intenções de regulaçãoe por considerações de justiça ou de oportunidade, às quais subjazem em última instância determinadas valorações. Essas valorações manifestam-se no fato de que a lei confere proteção absoluta a certos bens, deixa outros sem proteção ou protege-os em menor escala; de que quando existe conflito entre os interesses envolvidos na relação da vida a regular faz prevalecer um em detrimento de outro, ou considera cada um dentro de um certo âmbito, na imposição ou proibição de certos modos de conduta, na cominação de “sanções” contra os infratores, na restrição ou negação de direitos, na imputação de riscos. Nesses termos, “compreender” uma norma jurídica requer o desvendar da valoração nela imposta e o seu alcance. A sua aplicação requer o valorar do caso a julgar em conformidade a ela, ou, dito de outro modo, acolher de modo adequado a valoração contida na norma ao julgar o “caso”. Diz, com razão, Joergensen que a peculiaridade da ciência do Direito e da jurisprudência dos tribunais é “terem de tratar quase exclusivamente com valorações”. Assim, ao passo em que o “realismo” juspositivista encara a norma tal como escrita, o “realismo” valorativo reconhece que as normas possuem ideais e valores ou mesmo interesses que maculam a gênese e a aplicação da norma, estando o julgador, o jurista e o legislador fadados aos seus próprios vieses. Assim: [...] “aplicar” uma norma se trata sempre de uma valoração, é algo que certa- mente não se manifesta quando a previsão da norma está formulada em termos de conceitos fáticos isentos de valoração, aos quais possa ser “subsumida” a situação fática, mediante um procedimento lógico. Um tal procedimento postula o constatar-se que todas as notas distintivas que formam o conceito hão de estar presentes na situação sub judice. Se essa constatação puder ser feita, então decorre daí que, em conformidade com as leis da lógica, a situação de fato cai dentro do conceito. Mas para se chegar a essa constatação, necessita-se as mais das vezes de uma série de juízos intermédios ou auxiliares. A lei define, por exemplo, “coisas consumíveis” como “coisas móveis cujo uso regular consiste no consumo ou na alienação” (§ 42 do BGB). O que seja “uso regular” de uma coisa sabe-o o julgador pela sua experiência social. Requer-se-lhe, portanto, um juízo com base na experiência e um juízo desse tipo é, já por si, raramente “exato”. Nou- tros casos, há que julgar uma conduta humana, por exemplo, se nela se expressa uma determinada vontade de efeitos jurídicos. Um tal juízo não é uma pura constatação de fatos, reclama antes uma interpretação (LARENZ, 1991, 298). Ou seja, a aplicação de uma norma ao caso concreto depende de um juízo de valor que lhe dá sentido de acordo com o intérprete, e essa valoração preenche a norma por meio de processos de subsunção da norma à vontade O positivismo jurídico4 C03_Positivismo_juridico.indd 4 27/03/2018 14:15:02 junior.vaj Highlight do intérprete. Portanto, não há como se falar em Direito sem reconhecer a valoração das normas e a falibilidade humana. Assim, o juspositivismo e o juízo de valores são visões antagônicas do Direito. A primeira corrente encara o Direito como ciência isenta e aplicável por intermédio de uma lógica cartesiana endógena, e a segunda reconhece a submissão do Direito aos valores dos seus criadores e intérpretes. A relação entre as duas correntes, no entanto, é de complementariedade, não de exclusão, uma vez que, para o desenvolvimento de uma ciência jurídica, é necessária uma análise avalorativa das normas para que se possa traçar uma teoria sistêmica de um determinado ordenamento jurídico posto. A visão crítica de uma análise valorativa é capaz de identificar falhas de sistema a serem corrigidas ou mesmo encarar o estudo avalorativo de forma mais fiel à realidade ao agregar estudos valorativos à mesma ciência. Na prática, as visões valorativas e avalorativas do Direito são utilizadas de forma estratégicas pelos juristas para firmar as suas próprias posições, devendo o acadêmico dominar ambas as técnicas para a sua utilização na práxis jurídica ou mesmo na construção doutrinária. O positivismo jurídico é um ramo que crê que o Direito deve abster-se de examinar valores na aplicação da lei e na sua interpretação. Já a jurisprudência dos valores remete aos princípios jusnaturalistas para trabalhar o sistema jurídico a partir dos valores pessoais dos seus operadores. A influência do positivismo jurídico na escola da exegese O positivismo, como visto, é uma escola jurídica que encontrou proeminência no século XIX a partir de uma abordagem avalorativa do Direito. Um dos seus principais expoentes é o fenômeno da codifi cação, resumido por Bobbio (1995, p. 63): Em 1804, entrou em vigor, na França, o Código de Napoleão. Trata-se de um acontecimento fundamental, que teve uma ampla repercussão e produziu uma profunda influência no desenvolvimento moderno e contemporâneo. 5O positivismo jurídico C03_Positivismo_juridico.indd 5 27/03/2018 14:15:02 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight Hoje estamos acostumados a pensar no Direito em termos de codificação, como se ele devesse necessariamente estar encerrado num código. Isso é uma atitude mental particularmente enraizada no homem comum e da qual os jovens que iniciam os estudos jurídicos devem procurar se livrar. Com efeito, a ideia de codificação surgiu por obra do pensamento iluminista na segunda metade do século XVIII e atuou no século passado: portanto, há apenas dois séculos, o Direito se tornou Direito codificado. Por outro lado, não se trata de uma condição comum a todo o mundo e a todos os países civilizados. Basta pensar que a codificação não existe nos países anglo-saxônicos. Na realidade, a codificação representa uma experiência jurídica dos últimos dois séculos típica da Europa continental. A codificação, pode ser considerada fruto do pensamento juspositivista a partir da incorporação de uma racionalidade e sistematização da norma. O código napoleônico é uma representação perfeita da lógica de uma lei universal a partir da atualização e codificação de preceitos romanos e da cristalização da doutrina e jurisprudência correntes na época. A partir das Guerras Napo- leônicas e do Império Francês, a sua notoriedade se expandiu, tornando-se um dos diplomas legais mais influentes da sua época e com formato seguido até os dias atuais em sistemas jurídicos derivados do sistema continental europeu. Segundo Norberto Bobbio (1995), a codificação, por sua vez, é uma das principais causas da criação da escola hermenêutica da exegese, sendo que: [...] esta serve, com efeito, como uma espécie de prontuário para resolver, se não todas, ao menos as principais controvérsias. Como pôs em evidência Ehrlich [...], os operadores do Direito (juízes, administradores públicos, advogados) procuram sempre a via mais simples e mais curta para resolver uma dada questão. Ora, é indubitável que, existindo um código, a via mais simples e mais curta consiste em procurar a solução no próprio código, desprezando as outras fontes das quais se poderia deduzir uma norma de decisão (costume, jurisprudência, doutrina, etc.), sendo o manuseio dessas fontes mais complexo e difícil do que o Direito codificado (BOBBIO, 1995, p. 78). A escola da exegese é uma consequência da codificação e do juspositi- vismo por se tratar de uma visão hermenêutica em que a interpretação deve ser restrita à busca da vontade do legislador e aos aspectos literais da norma, na qual o código deve ser a principal fonte de resolução de conflitos. Para a escola da exegese: [...] o argumento fundamental que guia os operadores do Direito no seu racio- cínio jurídico é o princípio da autoridade, isto é, a vontade do legislador que pôs a norma jurídica;pois bem, com a codificação, a vontade do legislador O positivismo jurídico6 C03_Positivismo_juridico.indd 6 27/03/2018 14:15:02 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight é expressa de modo seguro e completo e, aos operadores do Direito, basta ater-se ao ditado pela autoridade soberana (BOBBIO, 1995, p. 78). Em contexto, se a legislação é fruto do trabalho do “legislador universal” e as suas normas são fruto de um raciocínio lógico que produz partes de um sistema coeso e racional, é natural que a autoridade do legislador deva ser respeitada e que as normas sejam interpretadas de acordo com a sua vontade originária, podendo ser depreendida do próprio texto normativo. Também é nesse contexto que é construída a figura do juiz “boca da lei”, como regra advinda do pensamento de Montesquieu, fundado na separação dos poderes, que contextualiza a formação do ordenamento jurídico “iluminista” do século XIX, segundo o qual: [...] a justificação jurídico-filosófica da fidelidade ao código é representada pela doutrina da separação dos poderes, que constitui o fundamento ideológico da estrutura do Estado moderno (fundada na distribuição das competências, portanto na atribuição das três funções fundamentais do Estado — a legis- lativa, a executiva e a judiciária — a três órgãos constitucionais distintos). Com base nessa teoria, o juiz não podia criar o Direito, caso contrário in- vadiria a esfera da competência do poder legislativo, mas devia, de acordo com a imagem de Montesquieu, ser somente a boca través da qual fala a lei (BOBBIO, 1995, p. 79). Finalmente, Bobbio (1995) elenca como característica da exegese o prin- cípio da certeza do Direito, segundo o qual os associados podem ter do Direito um critério seguro de conduta somente conhecendo antecipadamente, com exatidão, as consequências do seu comportamento. Ora, a certeza só é garantida quando existe um corpo estável de leis, e aqueles que devem resolver as controvérsias se fundam nas normas nele contidas, não em outros critérios. Esse princípio se relaciona ao próprio movimento de codificação e respeito à autoridade do legislador como forma de garantir a segurança jurídica. Por consequência dessas características, Larenz (1991) destaca que os métodos da escola da exegese se diversificam em função dos elementos de interpretação e do grau de liberdade conferido aos juízes: O método tradicional ou clássico se valeu do meio gramatical e da lógica interna. Foi adotado pela chamada escola da exegese, que se formou na França no início do século XIX. O pensamento predominante da escola era codicista, de supervalorização do código. Pensavam os seus adeptos que o código encerrava todo o Direito. Não have- ria qualquer outra fonte jurídica. Além do código, o intérprete não deveria 7O positivismo jurídico C03_Positivismo_juridico.indd 7 27/03/2018 14:15:02 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight pesquisar o Direito na organização social, política ou econômica. A sua função limitava-se ao estudo das disposições legais. Em seu teor, o código era considerado absoluto, com regras para qualquer problema social (LARENZ, 1991, p. 158). Assim, os métodos de interpretação da escola da exegese, conforme a teoria juspositivista, buscam no código, por meio de interpretação gramatical e lógica interna, a resolução de conflitos, refutando elementos exógenos ao Direito posto. Conforme o autor (LARENZ, 1991, p. 158): O principal objetivo da exegese era revelar a vontade do legislador, daquele que planejou e fez a lei. A única interpretação correta seria a que traduzisse o pensamento do seu autor. Consequência dos postulados expressos pela escola foi o entendimento de que o Estado era o único autor do Direito, pois detinha o monopólio da lei e do código. Como os tradicionalistas não admitiram outra fonte normativa, a sociedade ficava impedida de criar o Direito costumeiro. Em resumo, os postulados básicos da escola da exegese foram: — dogmatismo legal; — subordinação à vontade do legislador; — o Estado como único autor do Direito. Segundo Larenz (1991, p. 158), o declínio da escola da exegese (assim como o da escola do juspositivismo) “[...] teve início no último quartel do século XIX, na época em que o Poder Judiciário chamou a si a importante tarefa de adaptar os velhos textos às necessidades do tempo”. A jurisprudência se voltou novamente à atualização das normas aos novos tempos. Para isso, utilizou o preenchimento de “conceitos abertos”, até então não reconhecidos pelo positivismo, para construir um novo Direito, baseado no uso de princípios jusnaturalistas. Isso caracteriza o Direito pós-moderno, com a contradição constante da doutrina que ora alterna o seu direcionamento à escola avalora- tiva positivista, como é o caso da corrente análise econômica do Direito, ou valorativa, como as doutrinas da constitucionalização do Direito Privado e privatização do Direito Constitucional. Os diferentes “positivismos jurídicos” Segundo a doutrina especializada, representada aqui por Norberto Bobbio (1995), há duas correntes principais dentro de uma perspectiva doutrinária do positivismo jurídico. A primeira se caracteriza pela exacerbação da legislação como única fonte da lei e como o alpha e o omega do Direito, como fonte O positivismo jurídico8 C03_Positivismo_juridico.indd 8 27/03/2018 14:15:02 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight primária e único método de resolução de confl itos. A segunda é pautada pela identifi cação da instrumentalidade da legislação como um meio de atingir a justiça e outros valores que circundam a ciência jurídica positiva. Segundo o autor, trata-se de uma classifi cação ideológica do positivismo jurídico: O positivismo jurídico, além de uma teoria, é também uma ideologia? Para res- ponder a essa indagação, devemos, preliminarmente, esclarecer os conceitos de teoria e de ideologia. [...] Dissemos que a teoria é a expressão da atitude puramente cognoscitiva que o homem assume perante uma certa realidade e é, portanto, constituída por um conjunto de juízos de fato, que têm a única finalidade de informar os outros acerca de tal realidade. A ideologia, em vez disso, é a expres- são do comportamento avaliativo que o homem assume face a uma realidade, consistindo num conjunto de juízos de valores relativos de tal realidade, juízos estes fundamentados no sistema de valores acolhido por aquele que o formula, e que tem o escopo de influírem sobre tal realidade (BOBBIO, 1995, p. 223). Segundo Bobbio (1995), portanto, ao examinar a literatura positivista e classificá-la, não se examinam fatores objetivos da aplicação da doutrina, senão a posição valorativa da crença dos seus autores, o que faz com que essa distinção seja efetivamente uma classificação sobre a ideologia de correntes distintas de doutrina juspositivista. O autor complementa essa ideia ao sustentar o plano ideológico do posi- tivismo jurídico: Supondo-se que seja correto falar de uma ideologia típica de todo o positivis- mo jurídico, no que consiste isso? Podemos dizer que tal (suposta) ideologia consiste em afirmar o dever absoluto ou incondicional de obedecer à lei enquanto tal. É evidente que com tal afirmação não estamos mais no plano teórico, mas no plano ideológico, visto que ela não se insere na problemática (cognoscitiva) que concerne à definição do Direito, mas naquela (valorativa) relativa à determinação do nosso dever: não estamos mais diante de uma dou- trina científica, mas de uma doutrina ética do Direito (BOBBIO, 1995, p. 225). Assim, a divisão dessa doutrina ética do Direito sedá não pelo questio- namento sobre a necessidade de obedecer a lei enquanto tal, ética comum a todo o positivismo, mas sobre o pano de fundo que rege esse predicado. Para o chamado positivismo dito extremista: [...] a afirmação do dever absoluto de obedecer à lei encontra sua explicação histórica no fato de que, com a formação do Estado moderno, não só a lei se tornou a fonte única do Direito, mas o Direito estatal-legislativo se tornou o 9O positivismo jurídico C03_Positivismo_juridico.indd 9 27/03/2018 14:15:02 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight único ordenamento normativo, o único sistema de regulamentação do compor- tamento do homem em sociedade; e, como a valoração de um comportamento se funda numa norma, podemos acrescentar: o Direito estatal-legislativo se tornou o critério único e exclusivo para valoração do comportamento social do homem. Isso sucedeu pelo fato de, na época moderna, o Estado não só ter emergido e se imposto sobre todas as outras organizações do tipo político como também ter se tornado o único portador dos valores morais, desautorizando e substituindo a Igreja (a saber, as instituições religiosas em geral). Estando assim as coisas, compreende-se porque, segundo o positivismo jurídico, o dever de obedecer às leis é absoluto e incondicionado. [...] O absolutismo ou incondicionalismo da obediência à lei significa à ideologia positivista também outra coisa: significa que a obrigação de obedecer à lei não é apenas uma obrigação jurídica, mas também uma obrigação moral (BOBBIO, 1995, p. 226). Logo, a lei deve ser obedecida, pois existe. Não há, para essa corrente, necessidade de outro valor que condicione a obediência à lei, senão uma própria e inerente obrigação moral, absoluta e incondicionada. Em contraste, a versão moderada do positivismo jurídico: [...] afirma que o Direito tem um valor enquanto tal, independentemente do seu conteúdo, mas não porque (como sustenta a versão extremista) seja sempre por si mesmo justo (ou com certeza o supremo valor ético) pelo simples fato de ser válido, mas porque é o meio necessário para realizar um certo valor, o da ordem (e a lei é a forma mais perfeita de Direito, a que melhor realiza a ordem). Para o positivismo ético, o Direito, portanto, tem sempre um valor, enquanto para a sua versão extremista trata-se de um valor final, para a mo- derada trata-se de um valor instrumental (BOBBIO, 1995, p. 229). Ou seja, para o juspositivismo moderado, a obediência à lei justifica-se pela busca de um valor maior, seja a ordem ou a justiça; o Direito é um instrumento para alcançar determinados fins. Para tanto, elenca Bobbio (1995) dois requisitos que garantem a instrumen- talidade e neutralidade da lei ecoada na doutrina moderada do positivismo: Generalidade da lei — a lei é geral no sentido de que disciplina o com- portamento não de uma única pessoa, mas de uma classe de pessoas. Desse modo, a lei realiza um outro aspecto ou concepção da justiça: a igualdade forma, que consiste em tratar de modo igual as pessoas que pertencem à mesma categoria. O positivismo jurídico10 C03_Positivismo_juridico.indd 10 27/03/2018 14:15:03 Abstração da lei — a lei é abstrata no sentido de que comanda não uma ação singular, mas uma categoria de ações. De tal modo ela realiza uma exigência de fundamental importância para que a ordem possa ser conservada: a certeza jurídica, que consiste na possibilidade de cada pessoa poder, no âmbito de um sistema normativo, prever as consequências do próprio comportamento. Assim, a lei deve ser geral e disciplinar a totalidade dos sujeitos presentes em um Estado e deve ser abstrata o suficiente para comportar uma série de ações. No mesmo sentido, deve ser específica o suficiente para que os sujeitos possam identificar as consequências do seu comportamento. Em suma, o con- ceito de ordem do positivismo jurídico moderado é bastante similar ao conceito geral de segurança jurídica, somente alcançável em um sistema coeso e claro. A versão moderada do positivismo jurídico difere da extremista em relação à valoração do próprio sistema jurídico. Para a versão moderada, o Direito é um meio para atingir a determinadas finalidades, enquanto, para a versão extremista, as leis são um fim nelas mesmas e devem ser obedecidas por existirem. BOBBIO, N. O positivismo jurídico: lições de filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. (Elementos de Direito). COMTE, A. Curso de filosofia positiva; Discurso sobre o espírito positivo; Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo; Catecismo positivista. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores). LARENZ, K. Metodologia da ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1991. Leitura recomendada FERRAZ JUNIOR, T. S. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003. 11O positivismo jurídico C03_Positivismo_juridico.indd 11 27/03/2018 14:15:03 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight
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