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Autora: Profa. Lígia Regina Máximo Cavalari Menna Colaboradoras: Profa. Cielo Festino Profa. Joana Ormundo Literatura Portuguesa: Prosa Professora conteudista: Lígia Regina Máximo Cavalari Menna Profa. Ms. Lígia Regina Máximo Cavalari Menna é graduada e licenciada pela FFLCH-USP, onde concluiu seu mestrado em 2003, na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (Brasil, Portugal e Angola) com dissertação voltada para Literatura Infantil: “A denúncia da exploração humana através da carnavalização”. Atualmente, realiza seu doutorado na mesma área, com o tema “A literatura infantil além do livro: Um estudo das contribuições de jornais e revistas para a literatura infantil brasileira e portuguesa”. É professora e líder das disciplinas de Literatura Portuguesa, assim como coordenadora auxiliar do curso de Letras da Universidade Paulista (UNIP). Para ler seu currículo completo, acesse: <http://lattes.cnpq.br/6923282866494290>. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M547l Menna, Lígia Regina Maximo Cavalari Literatura portuguesa: prosa / Lígia Regina Maximo Cavalari Menna. – São Paulo: Editora Sol, 2012. 168 p., il. Notas: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2-058/13, ISSN 1517-9230. 1. Língua portuguesa. 2. Literatura portuguesa. 3. Prosa. I. Título. CDU 896.0 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Profa. Melissa Larrabure Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Cid Santos Gesteira (UFBA) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Sueli Brianezi Carvalho Amanda Casale Sumário Literatura Portuguesa: Prosa APRESENTAçãO ......................................................................................................................................................7 INTRODUçãO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 ROMANTISMO EM PORTUGAL (1825-1865) ..........................................................................................9 1.1 Contexto histórico e social ............................................................................................................... 10 1.2 A produção literária............................................................................................................................. 12 1.3 Características gerais do Romantismo ........................................................................................ 16 1.4 Início do Romantismo em Portugal .............................................................................................. 19 1.4.1 Alexandre Herculano ............................................................................................................................. 20 1.5 O ultrarromantismo em Portugal .................................................................................................. 23 1.5.1 Camilo Castelo Branco ....................................................................................................................... 23 1.5.2 Amor de perdição ................................................................................................................................... 25 1.5.3 Queda de um anjo .................................................................................................................................. 34 2 TRANSIçãO PARA O REALISMO ................................................................................................................ 37 2.1 As pupilas do senhor reitor .............................................................................................................. 38 Unidade II 3 REALISMO/NATURALISMO EM PORTUGAL (1865-1890) ................................................................ 43 3.1 Contexto histórico e social ............................................................................................................... 44 3.2 A produção literária............................................................................................................................. 46 3.3 Questão Coimbrã .................................................................................................................................. 51 3.4 Características gerais do Realismo ................................................................................................ 53 3.4.1 O romance realista e o romance naturalista ............................................................................... 54 3.5 Eça de Queirós ....................................................................................................................................... 57 3.5.1 O crime do Padre Amaro ...................................................................................................................... 59 3.5.2 Os Maias ..................................................................................................................................................... 60 3.5.3 A cidade e as serras ................................................................................................................................ 60 3.5.4 O primo Basílio ......................................................................................................................................... 63 3.6 A crítica de Machado de Assis ........................................................................................................ 69 4 APóS O REALISMO-NATURALISMO ..........................................................................................................71 Unidade III 5 MODERNISMO ................................................................................................................................................. 81 5.1 Presencismo (1927-1940) ................................................................................................................. 84 5.2 Neorrealismo (1940-1974) ............................................................................................................... 89 6 CONTEXTO HISTóRICO E SOCIAL ............................................................................................................... 89 6.1 Pós-modernismo .................................................................................................................................. 92 6.2 Salazarismo: período de ditadura (1933 a 1974) .................................................................... 95 6.3 A produção literária............................................................................................................................. 98 6.3.1 Alves Redol (1911-1969) ...................................................................................................................... 99 6.3.2 Manuel da Fonseca (1911-1993) ....................................................................................................101 6.3.3 Carlos de Oliveira ..................................................................................................................................1056.3.4 José Gomes Ferreira .............................................................................................................................106 Unidade IV 7 TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS .......................................................................................................... 114 7.1 António Lobo Antunes ..................................................................................................................... 114 7.2 José Saramago ..................................................................................................................................... 118 7.2.1 Comentário sobre algumas obras.................................................................................................. 120 8 BREVE PANORAMA DAS LITERATURAS AFRICANAS EM LíNGUA PORTUGUESA .................131 8.1 Angola .....................................................................................................................................................132 8.1.1 Pepetela ................................................................................................................................................... 133 8.1.2 José Eduardo Agualusa ...................................................................................................................... 139 8.1.3 Ondjaki ......................................................................................................................................................141 8.2 Moçambique .........................................................................................................................................143 8.2.1 Mia Couto ............................................................................................................................................... 144 7 APResentAção Esta disciplina tem por objetivos levar o aluno a estabelecer correlações entre produções literárias de diferentes épocas e regiões, considerando o contexto histórico e cultural, assim como as outras artes, em geral; fornecer ao aluno condições de análise da literatura portuguesa em comparação às demais literaturas; levar o aluno a estabelecer relações entre textos literários e com a teoria literária; assim como possibilitar ao aluno condições para desenvolver atividades ligadas à prática de ensino de Literatura Portuguesa, sendo fundamental para o futuro profissional em Letras. IntRodução Caro aluno, na disciplina de Literatura Portuguesa: Prosa, propomos estudo, análise e crítica das principais manifestações em prosa em literatura portuguesa, iniciando pelas novelas e romances românticos portugueses, destacando-se as obras de Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco. Em seguida, abordaremos os romances de Eça de Queirós e sua vertente realista-naturalista. Posteriormente, daremos destaque para a ficção neorrealista portuguesa e as tendências contemporâneas, destacando-se a obra de António Lobo Antunes e José Saramago. Ao final, faremos um breve panorama das literaturas africanas em língua portuguesa, bem representadas por Pepetela, de Angola, e Mia Couto, de Moçambique. Para que você tenha um bom aproveitamento em seus estudos, é necessário que leia tanto os aspectos teóricos apresentados nos diversos capítulos da bibliografia básica e textos sugeridos, como as novelas e romances indicados. Procure ler as obras originais e não resumos, para que possa observar os aspectos estilísticos envolvidos. Em alguns momentos, estabeleceremos relações comparativas entre a Literatura Portuguesa e a Literatura Brasileira, para que a construção do conhecimento se torne mais clara e elucidativa. A seguir, uma lista das leituras obrigatórias, para um melhor aproveitamento dos conteúdos apresentados, assim como as leituras complementares. Alguns livros já fazem parte do domínio público e podem ser encontrados na internet. Outras editoras e edições também podem ser utilizadas: 9 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: Prosa Unidade I 1 RoMAntIsMo eM PoRtugAL (1825-1865) Figura 1 - Tiros de maio - 1808 (Francisco Goya - 1746/1828) observação Entre as principais características do Romantismo, podemos destacar a subjetividade e o sentimentalismo que podem ser observados nessa pintura de Goya: uma cena de guerra repleta de emoção e dramaticidade, uma visão pessoal e idealizada do pintor. Observe que a cena retrata um fuzilamento, repleto de emoção, sofrimento e sangue. Apesar do tom fúnebre e do grotesco, há uma significativa beleza estética nessa pintura, com a luz incidindo sobre o condenado. Toda a composição é harmônica e nos remete a um novo conceito de beleza: o belo-feio. Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828) foi um famoso pintor e artista gráfico espanhol. Passou por diversas tendências, como o Neoclassicismo, até chegar ao Romantismo. Trabalhou como retratista na corte de Carlos V e realizou obras que retratam crueldade e terror, como a série de gravuras Os desastres da guerra, da qual a pintura acima faz parte, ou mesmo as atrocidades das touradas e dos asilos de loucos. O retrato de cenas trágicas, terras distantes, mundos exóticos, mesmo o grotesco, 10 Unidade I Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 são características que encontramos também na literatura romântica. No Museu do Prado, em Madri, encontram-se seus murais conhecidos como “pinturas negras”, considerado o ponto alto de sua carreira. saiba mais Vale a pena assistir a um interessante filme sobre esse genial pintor, estrelado por Stellan Skarsgard, Javier Baden e Natalie Portman: OS segredos de Goya. Dir. Milan Forman, 113 minutos, Estados Unidos/ Espanha, 2006. 1.1 Contexto histórico e social O Romantismo predominou em toda Europa na primeira metade do século XIX, ocorrendo logo após a Revolução Francesa em 1789. Essa época é de radical transformação cultural, filosófica, artística, científica e histórica. O sistema monárquico absolutista entra em crise e dá vez ao liberalismo da burguesia em ascensão. A Revolução Francesa é um dos mais importantes acontecimentos da história do Ocidente. Não é à toa que o ano que marca o seu início, 1789, é também o começo da Idade Contemporânea. Para compreender o que representou o processo revolucionário francês, é preciso antes saber que ele foi um dos primeiros passos para o fim do Antigo Regime, que representava a velha ordem, um tipo de sociedade em que os membros da Igreja e a nobreza possuíam imensos privilégios. Essa sociedade era dividida em grupos sociais fechados, em que cada um deveria viver conforme as normas de seu grupo. Ou seja, um nobre era sempre um nobre e um elemento do povo era sempre uma pessoa do povo, sem direitos políticos e com muitos deveres para com seu senhor. Assim, o “povo”, que era formado por ricos burgueses e humildes camponeses, tinha direitos políticos insignificantes e pagava a maior parte dos tributos que sustentavam o Estado absolutista - ou seja, aquele em que o monarca tem poder absoluto. Assim, com a Revolução Francesa, os burgueses, que antes tinham o poder econômico, adquirem também o poder político. As mudanças já iniciadas com o Iluminismo tomam proporções grandiosas. O povo, que compartilhou entusiasticamente da revolução, como se haveria de esperar, foi relegado a um segundo plano. Quando pensamos em Romantismo, não podemos desvinculá-lo desse quadro sociocultural, principalmente porque essa estética surge como uma forma de agradar a esse novo público burguês, a representar artisticamente seus sonhos, seus ideais em relação à família, ao casamento, às visões políticas e econômicas. A filosofia, principalmente as teorias de Rousseau, como a do “bom selvagem”, passa a modelar diversos autores românticos. 11 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: Prosa Para o filósofo, o homem nasce naturalmente bome inocente, sendo que a sociedade é que o corrompe. Essa concepção será bastante empregada pelos românticos, que encontram na figura dos primitivos, como os índios, os heróis medievais, ou mesmo nas crianças, seres intocados e puros, exemplos de inocência e da bondade. Em seu Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens (1755), descreveu os efeitos corruptores da sociedade sobre os seres humanos, bons e inocentes, como dito anteriormente. Para ele, a propriedade privada e a divisão de trabalho teriam então criado uma desigualdade artificial, ou seja, social e não natural, e uma falsa moralidade. Leia o início desse discurso em que Rousseau diferencia a desigualdade natural da social: Concebo na espécie humana duas espécies de desigualdade: uma, que chamo de natural ou física, porque é estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito, ou da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção, e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Consiste esta nos diferentes privilégios de que gozam alguns com prejuízo dos outros, como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que os outros, ou mesmo fazerem-se obedecer por eles. (...) De que, pois, se trata precisamente este discurso? De marcar no progresso das coisas o momento em que, sucedendo o direito à violência, a natureza foi submetida à lei; explicar por que encadeamento de prodígios o forte pode resolver-se a servir o fraco, e o povo a procurar um repouso em ideia pelo preço de uma felicidade real (ROUSSEAU, 1775. Versão on-line). Inicia-se também a Revolução Industrial que estabeleceu radicais mudanças nos modos de produção. Até a atualidade, temos reflexos desse momento histórico. Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade até hoje são almejados. Será que um dia os alcançaremos plenamente? saiba mais Para contextualizar a época do Romantismo, assista aos filmes: DANTON, o processo da revolução. Dir. Andrzej Wajda, França/Polônia, 131 minutos, 1982. OS miseráveis. Dir. Billie August, Estados Unidos, 131 minutos, 1998. ORGULHO e preconceito. Dir. Joe Wright, Inglaterra/França/Estados Unidos, 127 minutos, 2005. 12 Unidade I Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Em Portugal, o século XVIII iniciou-se cheio de atribulações. Com a vinda de D. João VI, a família real e boa parte dos intelectuais, escritores e comerciantes para o Brasil, devido às invasões napoleônicas, Portugal ficou praticamente à deriva. Com a saída dos franceses em 1817, iniciou-se a luta pelo poder entre os irmãos D. Miguel e D. Pedro IV (nosso D. Pedro I). Inicialmente, D. Miguel, com uma postura retrógrada, venceu essa disputa, contudo, em 1833, D. Pedro invadiu Portugal e colocou sua filha, Maria, no poder. A desordem interna era imensa e só se regularizou, não completamente, em 1847, quando se inicia a Regeneração. Se para o Brasil o Romantismo marcou o início de nossa literatura, pois nos tornamos um país independente, sedento por formar nossa identidade, em Portugal, as artes ficaram como em suspenso. Em clima confuso, a estética romântica demorou em se estabelecer em Portugal. Assim, somente nos anos tranquilos, após a Regeneração, o movimento pôde se desenvolver. saiba mais Em 2008, devido às comemorações dos 200 anos da chegada da família real ao Brasil, vários livros foram lançados sobre o assunto. Sugerimos o livro: GOMES, Laurentino. 1808: a invenção do Brasil. São Paulo: Planeta, 2008. Veja também a palestra ministrada pelo autor na TV Web em 7 out. 2008, Disponível em: <http://www3.unip.br/tvweb/busca. aspx?search=Laurentino%20Gomes>. Para saber mais sobre a História de Portugal, acesse os sites: <http://www.historiadeportugal.info/> e <http://www.portugal.gov.pt>. 1.2 A produção literária Segundo diversos pesquisadores, as origens do Romantismo remontam ao final do século XVIII, sendo o movimento originário em diversos países, como na Inglaterra, Escócia e também Alemanha, sendo a França a responsável por sua disseminação. É por esse motivo que ouvimos falar em Romantismo Alemão e Romantismo Inglês, como raízes para um Romantismo mais amplo. Na Alemanha, suas origens encontram-se no movimento Sturm und Drang (Tempestade e ímpeto), entre 1760 a 1780, que envolveu artistas como Goethe, Schiller e os irmãos Schlegel que combatiam o racionalismo clássico e o culto à objetividade. Há também a redescoberta de contos medievais e lendas de origem germânicas. 13 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: Prosa Como exemplo, podemos citar os irmãos Grimm que fizeram uma ampla pesquisa das histórias orais, de tradição alemã, que constituíram uma instigante coletânea de contos, conhecidos hoje como contos de fadas ou maravilhosos. Assim, os irmãos Grimm não foram autores de contos famosos como Chapeuzinho Vermelho ou João e Maria. Essas histórias fazem parte da tradição oral de diferentes povos e compõem a tradição cultural do Ocidente. Na Escócia, surge o Ossianismo iniciado por James Macpherson (1760 a 1763), que escreveu vários poemas de cunho medieval, simulando que esses escritos eram de autoria de um bardo escocês chamado Ossian, os quais ele simplesmente estava traduzindo. Pura jogada de marketing, diríamos hoje. Quando foi descoberto, já era tarde, pois seus poemas já haviam conquistado o público letrado do século XVIII. Simultaneamente, na Inglaterra, Shakespeare é redescoberto e escritores como Walter Scott, Schiller e Lorde Byron pregavam o domínio da emoção sobre a razão, além de exaltarem o passado nacional, assim como também ocorrera na Alemanha. A França, como dito, foi o centro do movimento e o polo divulgador do Romantismo na Europa. Artistas como Lamartine, Musset e Victor Hugo abraçaram as características do movimento e pregaram a liberdade de expressão, uma obra de arte sem regras ou modelos a seguir, contrária, portanto, aos padrões clássicos até então impostos. Surge, portanto, uma nova relação entre escritor e público, uma maior proximidade, um novo estilo com um novo significado estético, assim como novos gêneros literários são criados. observação Conceito de Romantismo “O adjetivo ‘romântico’ é de origem inglesa seiscentista (romantic) e deriva do substantivo romaunt, de origem francesa (roman ou rommmant), que designa os romances medievais de aventuras. O emprego da palavra generalizou-se a tudo aquilo que evoca a atmosfera desses romances-cavalaria e em geral a Idade Média. [...] Do inglês e do francês, a palavra passou a todas as línguas europeias” (SARAIVA & LOPES, 2001, p. 653). O Romantismo ficou conhecido como a estética da burguesia, formada por um novo público leitor, que exigia mudanças e simplificações estéticas. Positivamente, podemos dizer que houve uma certa “democratização” da cultura e a literatura passou a ser um bem de consumo em maior escala, e não somente reduzido a um pequeno grupo. Além disso, o Romantismo foi um movimento literário contrário às regras clássicas e a favor da liberdade formal. Vale ressaltar que é nessa época que surge um novo gênero literário: o romance. O romance, como entendemos hoje, surgiu no final do século XVIII a partir de uma revolução cultural de origem anglo-saxônica. 14 Unidade I Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Inicialmente, os romances eram publicados em capítulos nos jornais, os conhecidos folhetins, bem semelhantes às telenovelas atuais. Os leitores e leitoras, em número reduzido, pois poucos sabiam ler, ficavam ansiosos pelos novos episódios, sedentos de aventuras e histórias de amor. Vale ressaltar a importância da imprensa e do jornalismo para o desenvolvimento e alcance da literatura. Como vimos, nas origens remotas do Romantismotemos o progresso econômico e social da burguesia, conforme dito anteriormente, e por consequência, a Revolução Industrial, com a qual aperfeiçoaram tecnologias tipográficas, tanto no que se refere aos livros quanto aos jornais. Durante muito tempo, esses foram artigos de luxo, mas, aos poucos, foram tornando-se objetos culturais de consumo geral. A partir do século XVIII, começam a surgir gabinetes de leitura e bibliotecas ambulantes, que alugavam os livros e jornais. Uma nova massa de leitores impulsiona o rápido desenvolvimento do jornalismo. Segundo Saraiva & Lopes (2001): O público popular, não alfabetizado, também se beneficia da imprensa, visto que certas obras, como é o caso do Quixote, de Cervantes, se liam oralmente em círculos de ouvintes. A um público burguês e também popular se destinam, por exemplo, na Península Ibérica, os folhetos de cordel; e por ele se popularizam gêneros literários à margem da tradição clássica, como o romance picaresco espanhol (SARAIVA & LOPES, 2001, p. 656). Como vemos, para entender os processos de leitura e recepção de obras, torna-se imprescindível o estudo do Romantismo e de seu contexto, época em que germina a cultura de massa e a comercialização das obras de arte. O romance passou a ser o porta-voz dos valores, ambições e desejos da burguesia, funcionando como uma espécie de sedativo para a realidade da vida doméstica. Como observamos no trecho acima, não só livros inteiros eram lidos, como também os folhetins, em voz alta, para um público de iletrados, como a criadagem e escravos, democratizando, de certa forma, a literatura. Os primeiros romances, ditos românticos, pois se iniciaram com o Romantismo, ainda se assemelham às novelas, sendo a distinção entre os gêneros bastante tênue, sutil. Comumente, os primeiros romances eram epistolares, ou seja, em forma de cartas. A solidificação do gênero romance, enquanto espaço de experimentação e profundidade, será somente possível na segunda metade do século XVIII. Assim, colocamos a seguir algumas possíveis diferenças entre esses gêneros, mas não se preocupe se tiver dificuldades de identificá-los claramente. Principalmente em nossa atualidade em que temos uma mescla de gêneros que são transpostos, adaptados e modificados. 15 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: Prosa Lembrete Romance e novela são gêneros bastante parecidos. Possuem várias personagens, diversas tramas, vários espaços, o tempo pode ser longo. Contudo, o romance costuma ser mais longo, há simultaneidade entre as diferentes células dramáticas (acontecimentos, tramas), sendo que uma se destaca entre as outras. Há também densidade e profundidade na construção das personagens e enredo. Já na novela, às vezes mais curta, há sucessão de células dramáticas, ou seja, várias tramas vão ocorrendo, umas após as outras, e nem sempre uma se destaca. Assim, na novela, há menos densidade dramática do que no romance. Segundo Massaud Moisés, a obra que pode ser considerada o primeiro romance foi A história de Tom Jones, um enjeitado, de 1749, de Henry Fielding. Contudo, o primeiro grande representante do gênero foi Stendhal com sua obra prima O vermelho e o negro, de 1830. Vale ressaltar que tais considerações podem ser contestadas, já que as pesquisas sobre a História da Literatura apresentam diferentes descobertas, que podem refutar tais fatos. Por isso, é importante que o estudioso de literatura procure sempre se atualizar. Para Massaud Moisés, o criador do romance moderno, semelhante ao que conhecemos hoje, foi Honoré de Balzac com sua vasta e famosa obra Comédia Humana (1829-1850), um amplo panorama da sociedade burguesa francesa. Além de Balzac, entre os grandes romancistas românticos, podemos citar o alemão Goethe (Os sofrimentos do Jovem Werther e Fausto), o francês Victor Hugo (Os miseráveis e Corcunda de Notre Dame), as inglesas Jane Austen (Razão e sensibilidade) e Emily Brönte (O morro dos ventos uivantes), entre outros. Contudo, é importante ressaltar que existem diversas escolas românticas que eventualmente se contrastam entre si, devido à tamanha complexidade dessa estética. Segundo Saraiva & Lopes (2001), não cabem nas escolas românticas escritores como Heine, que combateu os românticos de sua época, nem um Victor Hugo, que atravessou várias gerações, sempre ativo, entre 1822 a 1885, nem mesmo um Dickens, que é classificado dentro do período vitoriano, mas foi muito além, concretizando o romance romântico. Ao citar algumas escolas românticas, o autor nos lembra de que sua cronologia é arbitrária, pois se baseiam alguns escritores e obras que, de alguma forma, assemelham-se. Na Inglaterra, por exemplo, a escola romântica data de 1798, com a primeira geração (Wordsworth e Coleridge), e em 1832, com a segunda geração (Byron, Shelley, Keats). Em Literatura Brasileira, já são nossos conhecidos Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha) e o exemplar José de Alencar (Senhora, Iracema, O guarani, Lucíola). Podemos classificar diferentes gerações 16 Unidade I Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 de poetas, por exemplo, a primeira, com Gonçalves Dias, a segunda, com Álvares de Azevedo, e a terceira com Castro Alves. Em Portugal, também podemos dizer que há uma certa diferença entre as gerações de escritores e poetas, sendo a primeira mais marcada pelo neoclassicismo, a segunda ultrarromântica e a terceira já com aspectos realistas, contudo, escritores como Camilo Castelo Branco, por exemplo, não podem ser encaixado em gerações, devido a diversidade e extensa produção. Didaticamente, consideramos que o Romantismo se inicia em 1825 quando o poeta Almeida Garrett escreve o longo poema Camões, composto por 10 cantos em versos decassílabos brancos e se encerra em 1865, como a Questão Coimbrã, conflito intelectual entre românticos e realistas. 1.3 Características gerais do Romantismo A estética romântica, como vimos, é bastante complexa, e muitas vezes, características que se encaixam em uma obra ou autor, não se encaixam em outros. Não podemos afirmar que todos os românticos seguem a mesma linha, temos as diferentes gerações que seguem ou ditam regras conforme seu contexto, artístico, político e social. Há, inclusive, dentro da mesma obra de um autor, aspectos divergentes. Dessa forma, não procure encaixar as obras e suas características sem reflexões. Não podemos desvincular o Romantismo de seu contexto histórico e econômico, sendo que sua ideologia é fruto de uma nova sociedade e seus novos valores. Vejamos o que diz Benjamin Abdala Jr. a esse respeito: A euforia provocada pela Revolução Francesa, associada à liberdade de ascensão econômica e individual, é o suporte e inspiração de uma literatura de emoções individuais. (...) Essa nova visão nada mais é que um novo modo de conceber o mundo, é a ideologia da nova sociedade que vê limitações e relatividades do homem e da história. As emoções individuais, a visão relativa do universo, o apego às tradições nacionais, a mitologização da história vêm se opor aos séculos de racionalismo, absolutismo e impessoalismo (ABDALA JR.,1985, p. 79). Temos, portanto, as emoções pessoais sobrepondo-se ao impessoalismo clássico. O homem e o artista romântico mudam o foco, estabelecem uma nova visão. Eis a raiz do individualismo, em seus aspectos positivos e negativos. Dessa forma, não podemos confundir o Romantismo que brota no século XVIII do romantismo enquanto trato amoroso, constante em diferentes momentos da história da literatura. Com isso, destacamos que uma postura romântica tem permeado a arte desde a antiguidade clássica até nossa atualidade. Dizemos que o “romantismo”, com letra minúscula, pode ser visto em diferentes momentos da arte. Contudo, quando falamos de “Romantismo” com letra maiúscula, referimo-nos à estética que surgiu ao final do século XVIII e perdurou até meados da primeira metadedo século XIX, uma estética de origem anglo-saxônica e germânica, difundida pela França, na qual vemos refletidas as consequências da Revolução Francesa. 17 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: Prosa Quando pensamos em emoções individuais, já pontuamos uma das mais importantes e evidentes características românticas: o subjetivismo, o artista volta para si e vê o mundo a partir de uma perspectiva muito pessoal. Há a valorização do “eu” e de seus sentimentos, que são apresentados de forma exagerada, ao que chamamos de sentimentalismo. O romântico ama e odeia com intensidade. Além disso, a vontade de glorificar a pátria e de fazer confissões pessoais, duas faces do mesmo individualismo, demonstram uma manifestação a favor de aspectos espirituais e não materiais, criando, de certa forma, a mitologização da história, citada anteriormente. Devido sua visão subjetiva, compete ao romântico seguir os rumos do escapismo e da idealização. O uso da fantasia e da imaginação leva o artista a fugir do presente, do cotidiano e a sonhar com lugares distantes, em épocas passadas, principalmente porque é nessa época que encontrará o homem natural, o bom selvagem, livre das influências da sociedade. Surge, então, a figura do herói medieval, resgatado de tempos distantes, característica que denominamos por medievalismo. No Brasil, essa tendência se volta para a figura do índio, e temos, portanto, o indianismo. Em Portugal, Alexandre Herculano abraçou essa tendência medievalista, principalmente ao buscar as raízes do povo português em sua pré-história, quando a península ainda era povoada por ibéricos e visigodos. Nessa tendência, valores medievais também são resgatados, entre eles o espiritualismo, com base nos preceitos cristãos. Por outro lado, temos a valorização do mistério e das sobras, o satanismo, principalmente em histórias de mistério e terror que passam a fazer muito sucesso. É nessa época que o escritor inglês Edgar Allan Poe compõe vários de seus contos extraordinários. A idealização, por outro lado, não se configura somente no medievalismo, mas na construção dos protagonistas, heróis e heroínas românticos, cheios de virtudes, força, alegria e amor. O herói romântico não é um conformado, luta, enfrenta os valores impostos. Sua amada é idealizada, é a mulher perfeita e seu amor é eterno. Outro aspecto importante para se ressaltar é fusão entre o grotesco e o sublime, pois surge uma nova concepção de beleza, divergente da concepção clássica. É o que chamamos de o “belo-feio”. Cenas trágicas, a morte, a velhice passam a ser retratados com alto teor de beleza estética. Um bom exemplo é o personagem Quasimodo de O corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo. O corcunda é um ser horrendo, sua aparência a todos espanta. Mas é um ser puro, bom, repleto de bons sentimentos. Quanto à concepção do amor, já citado anteriormente, vale destacar que o amor romântico é intenso, a paixão vigora. Esse amor pode levar o ser humano à felicidade, à loucura ou mesmo à morte, que é vista como saída para os amores impossíveis. Como são contrários às rígidas regras clássicas, os escritores românticos defendem a liberdade formal, o que se pode observar pelas escolhas de enredos, falas de personagens, uso da língua, entre outros aspectos. 18 Unidade I Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Ao pensarmos nas características específicas da novela e do romance romântico, ainda podemos citar outros aspectos relevantes. O amor aparece como uma redenção, salvando o herói, um ser que inicialmente demonstra suas fraquezas e defeitos, restituindo-lhe a honra. Em um primeiro momento, o herói pode até parecer um fraco, mas sua figura é extremamente idealizada. Ele é belo, bom, forte fisicamente, defende os fracos e elimina os vilões. Até sua rebeldia pode ser fruto de imaturidade, mas o herói amadurece. A heroína romântica é bela, pura, um ser angelical, pleno de benevolência e, como o herói, também é idealizada. Normalmente, as personagens românticas não nos surpreendem, sabemos desde o início quem são os bons e quem são os maus da história, assim, podem ser classificadas como personagens planas. O que não significa que personagens redondas sejam também encontradas. Há sempre um impedimento para os amantes: diferentes classes sociais, um antagonista, vilão que disputa a amada do herói. Temos um impasse amoroso que termina com um final feliz ou trágico. Os heróis românticos se opõem a valores impostos pela sociedade como o casamento por dote, arranjado, por exemplo. O herói se opõe aos valores sociais impostos como a miséria, a escravidão... Mas sua visão é subjetiva, sem reflexões mais profundas. O escritor romântico abusa de metáforas que enaltecem e idealizam pessoas e lugares, sendo sua linguagem bastante metafórica. Agora reflita: quantas dessas características você já pôde observar em filmes, séries e telenovelas? A estrutura básica das obras de cultura de massa ainda carregam em si a estrutura e características do Romantismo do século XIX. Uma obra emblemática do Romantismo é Os sofrimentos do jovem Werther de Wolfgang Goethe, que relata, por meio de cartas, os sofrimentos de um rapaz loucamente apaixonado pela bela Charlotte. Werther escreve longas cartas para seu amigo Wilhelm, nas quais o leitor tem a dimensão desse imenso amor. Contudo, Charlotte fica noiva de outro, e Werther, sem suportar tanta dor, acaba por se matar. Consta que tal obra causou tanta comoção no século XIX que vários jovens cometeram suicídio, iludidos pela imagem do herói romântico subjugado pela paixão intensa. Vejamos um trecho: Que a vida humana é apenas um sonho, já ocorreu a muita gente, e esta ideia também me persegue por toda parte. Quando vejo os limites que aprisionam a capacidade humana de ação e pesquisa; quando vejo que toda a atividade se esgota na satisfação de necessidades, cujo único propósito é prolongar a nossa pobre existência e, ainda, que na tranquilidade em relação a certas questões não passa de uma resignação sonhadora, pois as paredes que nos aprisionam estão cobertas de formas coloridas e perspectivas luminosas... isso tudo, Wilhelm, me deixa mudo! Volto para dentro de mim mesmo e encontro um mundo! 19 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: Prosa Infeliz! Você está maluco? Enganando a si mesmo? Que fim vai levar essa paixão frenética e sem limites? As minhas preces são só para ela, não vejo nenhuma outra imagem a não ser a dela e tudo o que vejo no mundo, à minha volta, relaciono com ela. E isso me proporciona muitas horas felizes... Até que, novamente, sou forçado a me desvencilhar dela! Ah! Wilhelm! Para onde me arrasta este meu coração (GOETHE, W. 1999, p. 37-38. Destaques nossos). Observe o tom melancólico do narrador, a subjetividade romântica em destaque. Em um mundo de sonhos, Werther volta-se para si. Sua amada é idealizada, ele só pensa nela, vive por ela. Sua paixão intensa o amedronta. Figura 2 - Monumento em homenagem a Goethe saiba mais Como o livro Os sofrimentos do jovem Werther já faz parte do domínio público, você poderá encontrá-lo no site <http://books.google.com.br/ books>. 1.4 Início do Romantismo em Portugal Em Portugal, didaticamente, consideramos que o Romantismo se inicia em 1825 quando o poeta Almeida Garrett escreve o longo poema Camões, em 10 cantos com versos decassílabos brancos. Segundo Benjamim Abdala Jr.: 20 Unidade I Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 A base social do Romantismo português foi muito fraca; mais fraca ainda a ideologia. Os escritores combativos como Garrett ainda estão sob influência do Iluminismo neoclássico. Como consequência apresentam publicações com inovações ainda tímidas (...) o movimento, entretanto, foi bastante importante para a evolução estética da literaturaportuguesa (ABDALA JR., 1985, p. 81). Essa falta de consistência do Romantismo português, como vimos, origina-se da tardia chegada a Portugal. No final do século XVIII, o movimento brotava e floria no restante da Europa, enquanto Portugal seguia o Neoclassicismo. Apesar dessa situação, o poema de Garrett, repleto de resquícios neoclássicos, tende para uma biografia sentimental de Camões, na qual o subjetivismo e a melancolia dão o tom, ou seja, já apresenta a essência romântica. Segundo Saraiva & Lopes (2001), essa obra, contudo, não teve uma sequência imediata. Somente em 1836, com a publicação de A voz do profeta, de Alexandre Herculano, é que o movimento adquiriu força em Portugal. Foi nessa época também, entre 1837 e 1838, que se intensificaram as traduções das obras de Walter Scott, autor do célebre Ivanhoé, típico romance histórico romântico, dando ênfase à faceta nacionalista dessa nova estética que perdurou nas primeiras obras. Em 1837, inicia-se também a primeira revista romântica portuguesa, o Panorama, que perdurou até 1868 com êxito, demonstrando que havia um novo público leitor, adepto ao Romantismo. Um dos precursores foi Antônio Feliciano de Castilho, esteticamente, um escritor menor, mas que se destacou como divulgador do Romantismo e também por suas polêmicas com o Realismo na Questão Coimbrã que veremos na próxima unidade. observação Os primeiros escritores românticos eram bastante nacionalistas e muitos se dedicaram ao romance histórico, nos moldes de Walter Scott, como é o caso de Alexandre Herculano. 1.4.1 Alexandre Herculano Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo (1810-1877) nasceu em Lisboa, foi um liberal moderado e se formou dentro do romantismo. Causou muita polêmica com os conservadores ao propor uma nova maneira de se fazer literatura e de recontar a História. A sua vertente de historiador pode ser nitidamente vista em suas obras, denominadas romances históricos. Herculano acreditava que a pesquisa histórica era capaz de definir a nacionalidade portuguesa. Como os nossos primeiros românticos brasileiros, Herculano era um nacionalista. 21 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: Prosa Devido ao seu envolvimento na Revolta do 4 de Infantaria, foi obrigado a emigrar para Inglaterra, onde tomou contato com a obra de Walter Scott. Ajudou a organizar a Biblioteca Pública do Porto e, em 1839, foi nomeado diretor das bibliotecas reais das Necessidades e da Ajuda. Suas principais obras são: A harpa do crente (1837), Lendas e narrativas (2 volumes, 1839-1844), Eurico, o presbítero (1844), o primeiro volume da História de Portugal (1846), O Monge de Cister (1848), entre outras. Figura 3 - Retrato de Alexandre Herculano Herculano também foi responsável por artigos teóricos sobre o Romantismo, como alguns publicados no Repositório Literário do Porto (1831-1835), em que abordava ideias do Romantismo alemão. Alguns críticos consideram que Alexandre Herculano teve dificuldades de integrar em suas obras os aspectos ficcionais aos históricos. Assim, o seu rigor histórico e a necessidade de investigação e documentação dos fatos comprometem o valor estético de sua obra. Vejamos o que nos diz José Saraiva e óscar Lopes (2001) sobre os problemas formais encontrados nas obras de Alexandre Herculano: Na composição das novelas procurou Herculano ordenar os diversos elementos e tendências que ali cumulou; sucedem-se as cenas dramáticas de interior, dominadas pelo diálogo e pela descrição minuciosa de do ambiente (...) cenas ao ar livre (...) as reflexões morais-religiosas, a explicação histórico-social. Normalmente cada um destes gêneros de exposição – dramático, narrativo-descritivo, expositivo e didático - ocupa o seu capítulo próprio. Não há uma integração perfeita entre estes elementos ligados por contiguidade (SARAIVA & LOPES, 2001, p. 671). Lembrete Observe que o conceito de gêneros é aplicado a partir de uma perspectiva antiga. Atualmente, denominamos narração, exposição e descrição, entre outras, como tipologias textuais e não gêneros. 22 Unidade I Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Uma de suas obras mais importantes é Eurico, o presbítero. Com o intuito de resgatar as origens medievais de Portugal, Alexandre Herculano cria uma história em uma época em que o país nem existia, no século VIII. Os visigodos e os árabes lutavam na península Ibérica. Eurico, um godo, resolveu dedicar-se ao sacerdócio, ou seja, ser um presbítero, como forma de se curar de seu amor impossível por Hermengarda, que pertencia a uma classe social mais elevada. Com o acirramento da guerra, Eurico larga o hábito e transforma-se no Cavaleiro Negro, e se consagra como um grande herói, salvando inclusive sua amada dos inimigos. Contudo, a sorte não lhes sorri. No episódio a seguir, Eurico reencontra sua querida Hermengarda, agora como o Cavaleiro Negro. Veja um trecho do livro: XVIII Impossível! Nada neste mundo me agita o seio, senão o teu amor. Lenda de S. Pedro Confessor, 9. Apenas Pelágio transpôs o escuro portal da gruta, Eurico alevantou-se. Aspirava com ânsia, como se aquele ambiente tépido não bastasse a saciá-lo. O desgraçado resumia num pensamento devorador, numa síntese atroz, o seu longe e doloroso passado e o seu torvo e irremediável futuro. Como voltara àquele lugar? Como, sem lhe vergarem os joelhos, tinha ele descido das alturas do Vínio com Hermengarda nos braços? Que tempo durara essa carreira deli ciosa e ao mesmo tempo infernal? Não o sabia. Imagens confusas de tudo isso era apenas o que lhe restava – do sol, que pouco a pouco lhe viera alumiar os passos, dos ribeiros que vadeara, das penedias agras, dos recostos dos montes, das selvas que recuavam para trás dele, dos cabeços negros que, às vezes, lhe parecera de bruçarem-se no cimo dos despenhadeiros, como para o verem correr. No meio destas recordações incertas e materiais, outras passavam íntimas, ardentes, voluptuosas, negras, desesperadas. Por horas, que haviam sido para ele uma eternidade de ventura, o respirar daquela que amava como insensato se misturara com o seu alento; por horas sentira o ardor das faces dela aquecer as suas, e o coração bater-lhe contra o seu coração. Depois, avultavam-lhe no espírito a imagem veneranda de Sisberto e o altar da sé de Híspalis, junto do qual vestira a pura estringe de sacerdote, e Carteia, e o presbitério e as noites de agonia volvidas nos ermos do Calpe. E tudo isto se contra dizia, se repelia, se condenava, o amor pelo sacerdócio, o sacerdócio pelo amor, o futuro pelo passado; e aquela alma, dilacerada no combate destes pensamentos, quase cedia ao peso de tanta amargura. (HERCULANO, 1844, cap. XVIII.) Observe nesse trecho algumas características do Romantismo. O herói sofre por um amor impossível. Há muito sentimentalismo, um amor exacerbado, que machuca, que angustia, já que Eurico precisa partir para a batalha e não poderá ficar com sua amada. 23 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: Prosa Como podemos observar no trecho a seguir, a linguagem é metafórica e visão de mundo é bastante subjetiva e idealizada. Expressões como “aspirava com ânsia”, “ambiente tépido”, “o desgraçado”... reforçam o tom dramático e a essência romântica da obra. Repare na escolha lexical, principalmente na adjetivação: “Aspirava com ânsia, como se aquele ambiente tépido não bastasse a saciá-lo. O desgraçado resumia num pensamento devorador, numa síntese atroz, o seu longe e doloroso passado e o seu torvo e irremediável futuro.” Ao ter sua amada nos braços, diversas sensações físicas são despertadas, como um resgate da uma paixão ardente: “Por horas, que haviam sido para ele uma eternidade de ventura, o respirar daquela que amava como insensato se misturara com o seu alento; por horas sentira o ardor das faces dela aquecer as suas,e o coração bater-lhe contra o seu coração.” Veja que há também a oposição aos valores sociais, como o sacerdócio que não foi uma vocação, mas uma fuga. Eurico se vê dividido entre sua amada e o sacerdócio, atente para o trocadilho utilizado pelo autor: “E tudo isto se contra dizia, se repelia, se condenava, o amor pelo sacerdócio, o sacerdócio pelo amor, o futuro pelo passado; e aquela alma, dilacerada no combate destes pensamentos, quase cedia ao peso de tanta amar gura.” 1.5 o ultrarromantismo em Portugal Os ultrarromânticos possuíam como características principais o exagero de todas as características românticas, voltados muitas vezes para o pessimismo e para a melancolia. Em Portugal, isso também ocorre, contudo, um dos maiores prosadores românticos e um dos maiores escritores portugueses do século XIX, Camilo Castelo Branco, não se prendeu a uma só vertente, apresentando inclusive humor e ironia em muitas de suas obras. Na Questão Coimbrã, posicionou-se a favor dos românticos e de Castilho, contudo, paradoxalmente, escreveu obras de influência realista. 1.5.1 Camilo Castelo Branco Figura 4 - Camilo era amado e odiado por muitos, devido suas críticas literárias 24 Unidade I Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Camilo Castelo Branco (1825-1890) nasceu em Lisboa no dia 16 de março, filho ilegítimo de Manuel Joaquim Botelho e Jacinta Maria. Ficou órfão aos 10 e aos 16 casou-se, abandonando a esposa em seguida. Frequentou a sociedade portuense, dedicando-se ao jornalismo, e teve uma vida romanticamente agitada, desde vários casos amorosos até a prisão. Ele se apaixonou perdidamente por Ana Plácido, uma mulher casada. Chegaram a ser presos por adultério, mas foram inocentados. O escândalo favoreceu o escritor com uma súbita notoriedade logo após a publicação de Amor de perdição, escrito no tempo da prisão. Quando sua amada ficou viúva, puderam se casar. Contudo, nada foi fácil para o escritor, com muitos filhos e pouca verba, escrevia freneticamente para sustentar sua família. Ao ficar cego, impossibilitado de escrever, suicidou-se com um tiro na cabeça em sua casa em São Miguel de Seide. Podemos dizer que a vida imita a arte, já que a história de Camilo Castelo Branco daria uma boa novela romântica. O autor escreveu em diversos gêneros, de biografias a peças de teatro, contudo, notabilizou-se por suas novelas, principalmente as passionais, ou seja, cheias de amor e sangue. Vejamos o que nos diz Paulo Franchetti, pesquisador da Unicamp, a esse respeito: Camilo foi o primeiro escritor português a viver do seu ofício. Numa sociedade que não dispunha de um número expressivo de leitores, num tempo em que os direitos autorais estavam começando a ser reconhecidos (a lei dos direitos de autor, proposta por Garrett, é de 1851), Camilo teve de escrever muito. Suas obras contam-se em centenas: foi poeta, teatrólogo, novelista, crítico literário, editor literário e tradutor de grande atividade. Ao procedermos a um levantamento do corpus moderno da novelística camiliana - isto é: os livros que citados nos estudos mais conceituados de história e de crítica aparecidos na segunda metade deste século - veremos que o cruzamento das informações produz um número enorme: só de novelas e contos, ainda se referem usualmente cerca de 40 títulos. São textos muito variados, mas a crítica os tem distribuído basicamente em 2 categorias principais: a novela passional e a novela satírica de costumes (FRANCHETTI, Disponível em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/ projetos/ensaios.html>. Destaques nossos). Assim, Camilo Castelo Branco era uma espécie de escritor profissional, pois escrevia para sobreviver e sabia conquistar seu público. Utilizou a técnica folhetinesca e sua produção foi imensa, apresentando desde obras-primas até textos insípidos, criados somente com o intuito de agradar aos leitores burgueses. Ele foi um excelente prosador, sabia contar histórias e prender a atenção dos leitores, criando um diálogo com eles. Vejamos o que nos diz Benjamin Abdala Júnior a respeito da técnica do autor: 25 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: Prosa A técnica de Camilo é folhetinesca e está relacionada com a expansão do jornalismo. As narrativas eram publicadas em capítulos que precisavam motivar o leitor a adquirir o capítulo seguinte. A escrita deveria, então, ser bastante simples, para facilitar o entendimento. A trama deveria enredar emocionalmente esse leitor, jogando com suas expectativas (ABDALA JR., 1985, p. 88). Além do uso da ironia e do humor, mesmo em novelas passionais, Camilo Castelo Branco utiliza outros recursos estéticos interessantes. Encontramos em suas obras o uso da metalinguagem e reflexões sobre como fazer novelas. Além disso, procurou adequar a linguagem das personagens à suas origens, ou seja, um homem simples como João da Cruz, em Amor de perdição, fala com simplicidade. saiba mais Leia o livro ALVES, J. Paródia das novelas-folhetins camilianas. Biblioteca Breve. Biblioteca virtual Camões. Disponível em: <http://cvc.instituto- camoes.pt/index.php>. Acesso em: 10 jul. 2011. A seguir, algumas obras do autor: Novelas de mistério ou terror (Mistérios de Lisboa, Livro negro de padre Dinis); Novelas históricas (O judeu, O santo da montanha, A filha do regicida); novelas passionais (Amor de perdição, Carlota Ângela, Amor de salvação, A doida do Candal); Novelas satíricas (Coração, cabeça, estômago, A queda dum anjo) e novelas de influência realista (Eusébio Macário, A corja, A brasileira de Prazins e As novelas do Minho). 1.5.2 Amor de perdição Amor de perdição é um paradigma para as demais novelas passionais. Foi publicada em folhetins em 1862, quando o autor estava preso, acusado de adultério, como já dissemos. O narrador (nesse caso confunde-se com o próprio autor) revela-nos que, quando esteve preso, teve acesso ao registro de seu tio Simão Botelho, irmão de seu pai, Manuel Botelho, de quem era filho bastardo. Ao saber a história dramática do tio, por cartas também recebidas, resolveu escrever a novela, atestando a legitimidade da história narrada, dando-lhe verossimilhança. Esse foi um recurso bastante utilizado pelos romancistas românticos. Cartas, documentos encontrados, serviam de “provas” para a veracidade da história, claramente tida como inventada, ficcional. 26 Unidade I Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Figura 5 – Cidade do Porto, onde Simão passa seus últimos dias preso saiba mais Veja o documentário Grandes livros, da RTP, Disponível em: <http:// vimeo.com/11695854>. Acesso em: 29 maio 2012. Nele você encontrará uma interessante análise dessa obra, com depoimentos de professores e críticos literários. O enredo é bastante simples e conhecido em nossa modernidade. Seria uma história de Romeu e Julieta à portuguesa. Simão Botelho, típico herói romântico, intenso e destemido, apaixona-se perdidamente por Teresa de Albuquerque, meiga, linda e pura. A família de Simão não aprova o namoro, pois os Albuquerques não são bem-nascidos, são ricos, mas não possuem “um nome”, um antepassado importante. O pai de Teresa também é contra o enlace amoroso, já que o pai de Simão, Domingos Botelho, era juiz e lhe foi contrário em algumas contendas. Tadeu de Albuquerque insiste que a filha se case com seu sobrinho Baltasar Coutinho, o vilão da história. Caso não se case com o primo, Teresa terá que ficar reclusa em um convento. Como complicador, forma-se um triângulo amoroso com a inclusão da personagem Mariana, moça simples, extremamente dedicada a Simão, resignada e consciente da impossibilidade desse amor. Não contaremos o final da história, contudo, o próprio autor nos adianta que o fim de Simão será triste e nos comoverá. 27 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: ProsaFigura 6 - Romeu e Julieta (data: entre 1900 e 1920, sem autoria) observação Romeu e Julieta é uma tragédia escrita por William Shakespeare no início de sua carreira, entre 1591 e 1595. Conta a história de dois jovens apaixonados impedidos de ficar juntos, pois suas famílias eram inimigas. Julieta era da família dos Capuletos, e Romeu da família dos Montecchios. Essa talvez seja a mais popular obra do dramaturgo inglês, tornando-se uma alegoria para o amor juvenil e muitas vezes impossível. Leia a introdução do livro de Camilo Castelo Branco: Folheando os livros de antigos assentamentos no cartório das cadeias da Relação do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, a fl. 232, o seguinte: Simão António Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro e estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelo e barba preta, vestido com jaqueta de baetão azul, colete de fustão pintado e calça de pano pedrês. E fiz este assento, que assinei – Filipe Moreira Dias. À margem esquerda deste assento está escrito: 28 Unidade I Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Foi para a índia em 17 de março de 1807. Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor se cuido que o degredo de um moço de dezoito anos lhe há-de fazer dó. Dezoito anos! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida! As louçanias do coração que ainda não sonha em frutos e todo se embalsama no perfume das flores! Dezoito anos! O amor daquela idade! A passagem do seio da família, dos braços da mãe, dos beijos das irmãs, para as carícias mais doces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor da mesma sazão e dos mesmos aromas, e à mesma hora da vida! Dezoito anos!... E degredado da pátria, do amor e da família! Nunca mais o céu de Portugal, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem um amigo!... É triste! O leitor decerto se compungia; e a leitora, se lhe dissessem em menos de uma linha a história daqueles dezoito anos, choraria! Amou, perdeu-se e morreu amando. É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a criatura mais bem formada das branduras da piedade, a que por vezes traz consigo do Céu um reflexo da divina misericórdia?! Essa, a minha leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe dissessem que o pobre moço perdera a honra, reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe, vida, tudo, por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de inocentes desejos?! Chorava, chorava! Assim eu lhe soubesse dizer o doloroso sobressalto que me causaram aquelas linhas, de propósito procuradas, e lidas com amargura e respeito e, ao mesmo tempo, ódio. ódio, sim... A tempo verão se é perdoável o ódio, ou se antes me não fora melhor abrir mão desde já de uma história que me pode acarear enojos dos frios julgadores do coração e das sentenças que eu aqui lavrar contra a falsa virtude de homens, feitos bárbaros, em nome da sua honra. (CASTELO BRANCO, 2008, p.17-18.) Veja o tom eloquente dessa introdução; o narrador habilmente seduz seu leitor, instigando-lhe a curiosidade para saber o que aconteceu com Simão Botelho. Como características românticas, podemos destacar o sentimentalismo, a subjetividade e, principalmente, a oposição aos valores sociais. Simão é impedido de ficar com sua amada devido a valores hipócritas da sociedade burguesa que levava em conta as origens familiares, a dinastia, o interesse dos pais em detrimento aos sentimentos dos filhos. Entretanto, é importante ressaltar que esse tom ultrarromântico, por vezes melancólico e por vezes pungente, de pura revolta, não é o único nessa obra, pois há ainda episódios de aventura, de suspense e de extremo humor. Note-se que o autor quer garantir a verossimilhança de sua obra, deixando claro que havia encontrado registros reais da prisão de Simão. 29 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: Prosa Dona Rita Preciosa, mãe de Simão, julga-se superior a todos, pois foi aia da Rainha Dona Maria, conhecida por nós como a Louca, mãe de D. João VI. Além disso, honrava-se do nome Caldeirão, herdado de um antepassado militar. Contudo, Camilo não poupa críticas e ironia. Vale lembrar que ele está falando de sua família. Dona Rita e Domingos Botelho são mostrados de forma caricatural, são ridicularizados constantemente pelo narrador-autor. O antepassado Caldeirão, por exemplo, possuía este nome por ter sido frito por selvagens em um grande caldeirão. Domingos Botelho é caracterizado como um homem feio, sem inteligência, sem dinheiro, mas engraçado, tanto que era requerido constantemente pela Rainha que adorava suas graças. A própria figura de João da Cruz, pai de Mariana, possui comicidade, já que, como homem simples, abusa dos ditos populares como regras para a vida. Veja um trecho do capítulo VI que ilustra a construção dessa curiosa personagem. Não mate o homem, senhor João! — disse o filho do corregedor. — Que o não mate! Essa é de cabo de esquadra! Com que então o fidalgo quer pagar-me com a forca o favor de o acompanhar... hein? — Com a forca?! — atalhou Simão. — Pudera não! Quer que este homem fique para ir contar a história? Acha bonito? Lá vossa senhoria, como é filho de ministro, não terá perigo; mas eu, que sou ferrador, posso contar que desta vez tenho o baraço no pescoço. Não me faz jeito o negócio. Deixe-me cá com o homem... — Não o mate, senhor João; peço-lhe eu que o deixe ir. Uma testemunha não nos pode fazer mal. — O quê! — redarguiu o ferrador. — Vossa senhoria é doutor, saberá muito, mas de justiça não sabe nada. E há de perdoar o meu atrevimento. Basta uma só testemunha para guiar a justiça na devassa. As duas por três, uma testemunha de vista, e quatro de ouvir dizer, com o fidalgo de Castro d´Aire a mexer os pauzinhos, é forca certa, como dois e dois serem quatro. — Eu não digo nada; não me matem, que eu nem torno a ir para Castro-d’Aire — exclamou o homem. — Deixe-o ficar, João da Cruz... vamos embora... — Isso! — acudiu o ferrador. — Chame-me João da Cruz... para este maroto ficar bem certo de que sou o João da Cruz... Como efeito, não sei o que me parece vossa senhoria querer deixar com vida uma alma do diabo que lhe deu um tiro para o matar. — Pois sim, tem você razão; mas eu não sei castigar miseráveis que não resistem. 30 Unidade I Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 — E, se ele o tivesse matado, castigava-o? Responda a isto, senhor doutor. — Vamos embora — tornou Simão — deixemos por aí esse miserável. (CASTELO BRANCO, 2008, p. 50-51. Destaques nossos.) Observe como a linguagem de João da Cruz é coloquial. Não era comum se imitar a linguagem das pessoas do povo e isso Camilo fazia muito bem. Distinguir as falas das personagens por sua origem social foi uma inovação camiliana. Simão, como um estudante, possui uma fala mais formal. Já João da Cruz, um homem do povo, exprime-se através da coloquialidade. Note a incoerência da última questão: “E se ele o tivesse matado, castigava-o?”. João da Cruz não quer deixar testemunhas e não questiona se deve matar ou não o inimigo. Já Simão, como um herói romântico que é, perdoa seu agressor e não considera que deva matá-lo. Chega a chamá-lo de miserável, sem resistência. Outra característica camiliana a se destacar é a grande habilidade do autor para criar diálogos verossímeis. Nesse trecho aventuresco, o diálogo entre João da Cruz e Simão nos chama a atenção por sua agilidade e verossimilhança. O humor também se destaca, pela maneira e comportamento simples de João da Cruz, que apesar de não sua coragem e esperteza, parece-nos humilde e inocente. Um trecho bastanteexemplar do humor contido nessa obra é o capítulo VII, quando Teresa chega ao convento. A moça se depara, como diz o próprio autor, com um “edificante discurso sobre caridade” feito pelas freiras. Esse é um episódio cômico e repleto de crítica aos conventos e suas freiras que são retratadas caricaturalmente como fofoqueiras, devassas e bêbadas. Veja um trecho: A nossa madre entrou nos seus aposentos, e disse a Teresa que era sua hóspeda enquanto ali estivesse; e ajuntou que não sabia se seu pai escolheria aquele convento ou outro. — Que importa que seja um ou outro? — disse Teresa. — É conforme. Seu pai pode querer que a menina professe em ordem rica das bentas ou bernardas. — Professe! — exclamou Teresa. — Eu não quero ser freira aqui, nem noutra parte. — A senhora há de ser o que seu pai quiser que seja. 31 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: Prosa — Freira?! A isso não pode ninguém obrigar-me! — recalcitrou Teresa. — Isso assim é — retorquiu a prioresa — mas, como a menina tem de noviciado um ano, sobra-lhe tempo para se habituar a esta vida, e verá que não há vida mais descansada para o corpo, nem mais saudável para a alma. — Mas a nossa madre — tornou Teresa, sorrindo, como se a ironia lhe fosse habitual — já disse que a estas casas ninguém vem para se sentir bem... — É um modo de falar, menina. Todos temos as nossas mortificações e obrigações de coro e de serviços para que nem sempre o espírito está bem disposto. Ora vês aí. Mas, em comparação do que lá vai pelo mundo, o convento é um paraíso. Aqui não há paixões, nem cuidados que tirem o sono, nem a vontade de comer, bendito seja o Senhor! Vivemos umas com as outras como Deus com os anjos. O que uma quer querem todas. Más línguas é coisa que a menina não há de achar aqui, nem intriguistas, nem murmurações de soalheiro. Enfim, Deus fará o que for servido. Eu vou à cozinha buscar a ceia da menina, e já volto. Aqui a deixo com a senhora madre organista, que é uma pomba, e com a nossa mestra de noviças, que sabe dizer melhor que eu o que é a virtude nestas santas casas. Apenas a prioresa voltou as costas, disse a organista à mestra de noviças: — Que impostora! — E que estúpida! — acudiu a outra. — A menina não se fie nesta trapalhona, e veja se seu pai lhe dá outra companhia enquanto cá estiver, que a prioresa é a maior intriguista do convento. Depois que fez sessenta anos, fala das paixões do mundo como quem as conhece por dentro e por fora. Enquanto foi nova, era a freira que mais escândalos dava na casa; depois de velha era a mais ridícula porque ainda queria amar e ser amada; agora, que está decrépita, anda sempre este mostrengo a fazer missões e a curar indigestões. Teresa, apesar da sua dor, não pôde reprimir uma risada, lembrando-se da vida de Deus com os anjos que as esposas do Senhor ali viviam, no dizer da madre prioresa. (CASTELO BRANCO, 2008, p. 55-56.) É interessante notar que Teresa concorda em ir para o convento, mas em nenhum momento pensou em virar freira. Isso era muito comum nos séculos passados. Viúvas inconformadas, mães solteiras, moças rebeldes, ou seja, mulheres excluídas da sociedade iam para os conventos sem qualquer tipo de vocação. Sendo assim, como esperar dessas mulheres seriedade em seus votos? É isso que questiona Camilo, criando uma situação cômica para criticar a vida nos conventos. As freiras se demonstram fofoqueiras, cheias de vícios. Em seu discurso, hipocritamente, referem-se a “vida de Deus com os anjos que as esposas do Senhor ali viviam”, o que leva a crítica irônica não só do autor, mas também da protagonista Teresa. Será que uma história como essa interessa aos leitores atuais? Aos adolescentes? 32 Unidade I Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 O romântico tem em sua essência um espírito jovem, adolescente, cheio de alegrias, dúvidas e tristezas. Assim, uma obra como Amor de perdição pode ser muito apreciada pelo público atual. Talvez a linguagem seja um obstáculo, mas o importante é que se contextualize a obra, o autor e o próprio romantismo. Teresa e Simão nem sequer se beijam. Como é isso para um jovem do século XXI? Leia o livro e observe como são construídas as personagens camilianas e o desenrolar da trama cheia de amor, aventura, ou seja, cheia de romantismo. Figura 7 - A atriz Cristina Hauser como Teresa, no filme Amor de Perdição, de Manoel de Oliveira, 1978 saiba mais Filme baseado na obra: AMOR de perdição. Dir. Manoel de Oliveira. 262 min. Portugal. 1978. Veja também o vídeo da versão do diretor Antônio Lopes Ribeiro, de 1943, Disponível em: <http://www.amordeperdicao.pt/basedados_filmes. asp?filmeid=66>. Acesso em: 29 maio 2012. No trecho a seguir, o professor Rubens Pereira dos Santos, da Unesp, defende uma releitura de Camilo Castelo Branco, que pode ser considerado sentimentalista e piegas, mas que, na realidade, privilegia o sentimento amoroso, tão desprezado em uma sociedade moderna. Vejamos: Acreditamos que uma releitura de Amor de perdição, destacando os aspectos mais contundentes de uma narrativa que privilegia o sentimento 33 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: Prosa amoroso por um ângulo que traduz o sofrimento e a tragédia, elencando dados significativos da vida do autor, alinhado a outras narrativas em que o escritor se mostre diferente, poderá ser enriquecedora. A atualidade de Amor de perdição reside justamente na representação de um sentimento que provoca tantos abalos (perda, ganho) e que trará aos leitores momentos de reflexão sobre o mundo que tanto se modificou tecnologicamente, mas que no aspecto afetivo e sentimental pouco mudou. Continuamos a nos apaixonar perdidamente. Muitas vezes encaramos o amor tão distante de nós, mas de repente sentimo-nos fisgados pelo Cupido (SANTOS, 2007, p. 352). Haveria no mundo moderno, repleto de avanços tecnológicos, espaço para reflexões a respeito do amor? Acreditamos que sim, que essa temática é de muito interesse para os alunos, desde que seja feito um trabalho de contextualização. Mas nem só de amor são feitas as obras de Camilo, há também de retratos contundentes da sociedade burguesa: Camilo coloca frente a frente as “razões do coração” e as razões da sociedade burguesa oitocentista, temerosa de enfraquecer-se pela concessão de direitos éticos individuais que possam pôr-lhe em crise os dogmas, as convenções e as modas. Ao fim de contas, uma equação inequivocamente burguesa, uma vez que apenas em tal sistema social se explica semelhante conflito: ao reagir contra a burguesia, as heroínas e os heróis românticos não deixam de agir burguesamente. Típicos burgueses sofrem a “fatalidade” do amor precisamente porque o julgam “pecado” ou porque o meio social, manietando-lhes o pensamente e a vontade, se incumbe de convencê-los disso (MOISÉS, 2008, 206-207). Parece um paradoxo, mas, por meio das obras camilianas, temos um panorama da burguesia vista por si mesma. Nesse quesito, Camilo se compara a Eça de Queirós, sendo o segundo mais áspero e contundente em relação à burguesia da qual também fazia parte. Devido ao cultivo das novelas passionais e o dos folhetins, Camilo Castelo Branco também foi muito criticado e visto por alguns teóricos como um escritor menor, que copiava os modelos franceses e só pensava em agradar ao público, seu consumidor, e que suas obras não possuíam valor estético. Contrário a essas críticas, temos o texto de José Edil de Lima Alves (1990): Camilo tem sido sistematicamente apontado como autor de uma vastíssima e irregular obra literária. Considerado o verdadeiro artífice da novela passional, o gênio camiliano é reconhecido, fazendo-se-lhe, contudo, uma série de restrições, algumas mais, outras menos pertinentes. 34 Unidade I Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão: F ab io - 3 0- 05 -1 2 Autor muito difundido, como bem atestam as sucessivas edições de suas novelas, personalidade marcante, ativo em sua produção literária e nas e nas polêmicas que manteve, Camilo foi um espírito lúcido, pode-se mesmo afirmar, pela leitura do que deixou, bastante superior ao comum dos homens. Mas, se com justiça se lhe reconhece o valor e a capacidade criativa em novelas como Amor de perdição, romances como A Brasileira de Prazins, não pode deixar de surpreender a desconsideração em que é tida aquela parte de sua obra onde se evidenciam as marcas dos modelos franceses utilizados. Contudo, é relativamente fácil perceber as razões que estão na raiz mesma de tal desconsideração. O romance-folhetim, praticamente desde seu surgimento, foi visto por muitos como subliteratura, cujos objetivos eram apenas agradar a um público amorfo, sem a devida instrução, semianalfabeto, de cultura bastante inferior. Em uma palavra: indigno do interesse de alguma obra ou algum autor sérios (ALVES, 1990, p. 12). Pode-se observar que Camilo Castelo Branco enfrentou vários preconceitos em sua época. Contudo, graças a esse autor, a literatura portuguesa pôde tomar outros rumos e se popularizar. Além de seu estilo, foi responsável por divulgar e desenvolver o gênero novela, ou o romance-folhetim, em Portugal, vistos inicialmente como um gênero menor. Mas será que não há mais espaço para grandes dramas passionais como Romeu e Julieta ou A dama das camélias? Em uma sociedade pragmática como a nossa vale a pena discutir questões sentimentais? Segundo o professor Rubens Pereira Santos, o estudante do curso de Letras não deve se comportar como um leitor comum, mesmo que o mundo atual exija maior praticidade, o futuro professor de literatura “precisa viver a época do autor estudado, precisa sentir o clima vivido pelas personagens, para entender as emoções e os dramas enfrentados por elas na narrativa” (SANTOS, 2007, p. 351). Tal observação vale para o estudo de outras obras em diferentes contextos. Lembrete É necessário um conhecimento profundo da obra e de seu contexto para entender suas características e ideologias e, assim, poder analisá-la adequadamente. 1.5.3 Queda de um anjo observação É importante destacarmos que, além das novelas passionais, conforme já explicamos, Camilo Castelo Branco escreveu novelas cômicas, verdadeiras paródias do amor romântico. Um bom exemplo é a novela Queda de um anjo. 35 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: Prosa Queda de um anjo foi escrita em 1866 e revela o talento de Camilo para mesclar humor e crítica. O “anjo decaído” se refere ao protagonista Calisto Eloy que cai vertiginosamente nas garras da sedução e da corrupção. Calisto Eloy, homem casado com Theodora Figueirôa, vivia tranquilo no interior de Portugal lendo seus clássicos. Ele era um morgado, ou seja, um proprietário rural. Quando foi eleito deputado, mudou-se para Lisboa, disposto a lutar a favor dos bons costumes. Seus discursos eram tradicionais e defendiam, entre outras coisas, o bom uso da língua portuguesa. Contudo, a cidade grande o seduz, principalmente na figura de Dona Adelaide, que, na verdade, apenas zomba do pobre interiorano. O trecho a seguir, retirado do capítulo XIV, é um pouco longo, mas essencial, pois compõe uma cena bastante significativa, retratando o início da queda, justamente no momento em que Calisto se percebe apaixonado ao jogar cartas com Dona Adelaide: XIV *Tentação! Amor! Poesia!* Eis que, a súbitas, do coração de Calisto ressalta a primeira faísca de amor! Conheço que este desastre não se devia contar sem grandes prólogos. Sei que o leitor ficou passado com esta notícia. Grita que a inverossimilhança é flagrante. Não pode de boa mente consentir que se lhe desfigure a sisuda fisionomia moral do marido de D. Theodora Figueirôa. Quer que se limpe da fronte deste homem o estigma de um pensamento adúltero. Honrados desejos! Mas eu não posso! Queria e não posso! Tenho aqui á minha beira o demônio da verdade, inseparável do historiador sincero, o demônio da verdade que não consentiu ao sr. Alexandre Herculano dizer que Affonso Henriques viu coisas extraordinárias no céu do campo de Ourique, e a mim me não deixa dizer que Calisto Eloy não adulterou em pensamento! Estes são os ossos malditos do oficio; esta é a condenação dos infelizes artífices que edificam para a posteridade, e exploram nas cavernas do coração humano os cimentos da sua obra. Ai! Se Calisto Eloy foi de repente assalteado do dragão do amor, como hei de eu inventar prelúdios e antecedências que a natureza não usou com ele!? Se o homem, espantado, a si mesmo se interrogava, e dizia: «isto que é?!» como hei de eu dizer ao leitor o que foi aquilo?! O que ele sabia e eu sei é que, estando Calisto de Barbuda a jogar a sueca de parceiro com Adelaide, a razão de cruzado novo a partida, a menina passou a sua bolsinha de filigrana para a mão do parceiro, e disse-lhe: — Administre-me o meu tesouro, sr. Morgado. Tenho aí o meu dote. 36 Unidade I Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 — Pois sejam todos muito boas testemunhas da quantia que recebo da ex.ma. sra D. Adelaide, minha senhora; — disse Calisto, esvaziado a bolsinha. Com as moedas de prata e ouro, que a bolsa continha, saiu um pequeno coração de ouro esmaltado com iniciais. Ah! — acudiu Adelaide pressurosa. — Isto não!... — e retirou sofregamente o coraçãozinho. Algum dos circunstantes disse: — Então o sr. Morgado não serve para administrar corações?! — Serve para os dominar com a sua bondade, e enchê-los de afetuosa estima —respondeu com adorável graça a menina. Foi neste instante que o Morgado da Agra de Freimas sentiu no lado esquerdo do peito, entre a quarta e quinta costela, um calor de ventosa, acompanhado de vibrações elétricas, e vaporações cálidas, que lhe passaram a espinha dorsal, e daqui ao cerebelo, e pouco depois, a toda a cabeça, purpureando-lhe as maçãs de ambas as faces com o rubor mais virginal. Disto não deu tento Adelaide nem a outra gente. Duas enfermidades há aí, cujos sintomas não descobrem as pessoas inexpertas; uma é o amor, a outra é a tênia. Os sintomas do amor, em muitos indivíduos enfermos, confundem-se com os sintomas do idiotismo. Mister muito acume de vista e longa prática para descriminá-los. Passa o mesmo com a tênia, lombriga por excelência. O aspecto mórbido das vitimas daquele parasita, que é para os intestinos baixos o que o amor é para os intestinos altos, confunde-se com os sintomas de graves achaques, desde o hidrotórax até á espinhela caída. E aqui está que Calisto Eloy — ia me esquecendo dizê-lo — também sentiu a queda da espinhela, sensação esquisita de vácuo e despego, que a gente experimenta, uma polegada e três linhas acima do estomago, quando o amor ou o susto nos leva de assalto repentinamente. Sem embargo da concomitância de tantas enfermidades, Calisto de Barbuda embaralhou as cartas, passou-as à esquerda, e jogou a primeira partida com tamanha incúria e desacerto, que Adelaide, no ato do pagamento da aposta observou ao parceiro que era preciso administrar com mais zelo o dote da sua amiga. E ajuntou: — V. ex. esteve a compor algum belo discurso para a câmara... O Morgado cacarejou um sorriso, e mais nada. 37 Re vi sã o: S ue li - Di ag ra m aç ão : F ab io - 3 0- 05 -1 2 Literatura Portuguesa: Prosa Prosseguiu o jogo. Calisto deu provas de supina bestidade em quatro partidas de sueca. Adelaide, dissimulando a má sombra do fastio com que estava jogando, aturou até ao fim a partida, com grande desfalque do seu pecúlio. (CASTELO BRANCO, 1999, p. 100. Destaques nossos.) Observe no trecho destacado, como o narrador trata os sentimentos de Calisto Eloy, parodiando e satirizando o amor romântico. Ou o herói estava apaixonado, ou sofria de vermes, tênia ou lombriga. Compara
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