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– No romance "Viagens na minha terra", em contraste com "Os Lusíadas", há uma viagem que inicia de Lisboa em direção ao interior do país, refletindo a decadência do império português. O autor destaca a degradação do presente, contrastando com o valor histórico das paisagens visitadas. ➔ Viajante-Escritor ou Escritor-Viajante O título da obra no plural, "Viagens", sugere a inclusão de múltiplas jornadas, tanto físicas quanto psicológicas. Garrett realiza pelo menos duas viagens: uma real, de 80 quilômetros até Santarém, e outra psicológica, permeada por suas reflexões pessoais. No Romantismo, Garrett escreve em um estilo onde o percurso não é o foco principal, ao contrário de "Os Lusíadas". Em "Viagens", as impressões do narrador são centrais, tornando-o considerado o primeiro romance moderno português devido à sua grande popularidade na época. Garrett conjuga seus sentimentos e opiniões com a observação da natureza, rejeitando a "caligrafia clássica" que impunha regras ao ato de escrever, optando por uma imitação do real mediada por perspectivas pessoais. Essa abordagem prevaleceu na modernidade e influenciou a contemporaneidade, sendo até modelo para filmes e novelas. A pesquisadora Ofélia Paiva Monteiro destaca que essa novidade estética reflete a percepção do mundo como instável, paradoxal e problemático, marcando um interesse de Garrett pelas formas modernas de romance e drama. ➔ Sua Obra O autor, através de sua vivência, questionou a identidade portuguesa e transcendeu os limites do nacionalismo crítico, absorvendo influências da prosa romanesca francesa e inglesa. Sua vasta experiência resultou em uma prolífica produção literária, incluindo obras como os poemas "Camões" (1825), "Flores sem fruto" (1845) e "Folhas caídas" (1853), as peças teatrais "Um auto de Gil Vicente" (1842) e "Frei Luís de Sousa" (1844), além de ensaios como "Portugal na balança da Europa" (1830). O romance em questão, originalmente publicado como folhetins na Revista Universal Lisboense (1845-46), combina diferentes gêneros, incluindo escrita de memórias, crônicas de viagem e novela sentimental. O autor inicia o Capítulo I de sua obra com uma exposição de motivos para sua escrita, destacando a sua erudição e vasta vivência que utiliza para reescrever suas observações. Ele expressa o desejo de viajar a Santarém em busca de uma visão histórica de Portugal, impulsionado não apenas pelo clima favorável, mas também pelo convite de um amigo, Passos Manuel. Sua narrativa promete ser uma crônica detalhada e pessoal dos eventos, sugerindo uma ficção com características memorialísticas. O narrador da obra busca envolver o leitor, incentivando-o a agir como um viajante ao seu lado. Ele cria interações ao longo do texto, utilizando um tom prosaico que contrasta com a ambição de sua escrita. Este narrador, segundo Ofélia P. Monteiro, assume uma postura ativa e dialogante, distante da simples entrega do discurso, buscando comunicar e orientar ideologicamente o leitor através de suas intervenções no texto. ➔ Imagens e Pensamentos Garrett, através de sua vida intensa, reflete essa intensidade em sua escrita, que é multifacetada. Apesar de viajar em um ritmo lento, seja montado em um animal ou em um barco, essa lentidão permite a ele observar com mais atenção imagens e cenários do passado, levando a reflexões sobre história, filosofia e literatura. Em sua viagem, destacam-se algumas imagens interessantes, começando por Lisboa, passando por Alhandra e Vila Franca em um barco a vapor pelo rio Tejo, desembarcando em Vila Franca e completando seu trajeto de Azambuja a Santarém em uma carroça e mula. ➔ Lisboa das Crônicas O texto da página 26 da obra descreve a primeira cena da viagem do narrador em julho de 1843, um período marcado pelo movimento liberalista em Portugal. O narrador se encontra com seus companheiros de viagem, incluindo o capitão, que chega em uma carroça que remete ao Antigo Regime. Eles estão a caminho de Santarém, convidados por Passos Manuel, outro líder liberal. O meio de transporte utilizado é um barco que é descrito como conservador e lento, em contraste com a velocidade característica do progresso burguês. O narrador elogia a vista de Lisboa oriental por sua preservação histórica, enquanto critica a vista de Belém, associada à era das navegações. Esses elementos introduzem as tensões que serão exploradas ao longo da viagem e da obra, permitindo uma reflexão crítica sobre a sociedade do século XIX e os valores humanos diante da história. ➔ Sancho Pança e Dom Quixote O autor concebe suas viagens como mais do que meros deslocamentos físicos, mas como uma oportunidade para explorar ideias profundas. No início do segundo capítulo, ele dialoga diretamente com o leitor, estabelecendo o caráter ficcional de sua narrativa, que transcende a mera descrição de impressões de viagem para se tornar um "símbolo" ou "mito". Garrett transforma a experiência imediata em uma obra estética na qual ele combina suas percepções sensoriais com reflexões filosóficas, agindo de forma crítica sobre esses elementos. Ele examina as dicotomias entre espiritualismo e materialismo, utilizando as figuras de Dom Quixote e Sancho Pança como representações desses princípios opostos. Dom Quixote personifica o espiritualismo, com seu foco nas teorias abstratas e sua indiferença às preocupações materiais e terrenas, enquanto Sancho Pança personifica o materialismo, com sua pragmática falta de crença nas teorias abstratas. No entanto, Garrett observa que, assim como na história de Cervantes, esses princípios aparentemente conflitantes coexistem e, às vezes, até mesmo se complementam, avançando juntos apesar de suas diferenças. Essa reflexão não se limita ao contexto político de Portugal na época, mas transcende para questionamentos filosóficos sobre a natureza humana e o progresso. Após enfrentar dificuldades em sua jornada, o viajante chega a Vila Nova da Rainha, descrevendo o local como o mais feio que já viu. Em um momento de hesitação, ele debate se deve continuar seu percurso, debatendo internamente entre o pragmatismo representado por Sancho Pança e o idealismo de Dom Quixote. No entanto, um amigo oferece-lhe uma carona em sua carroça até Azambuja. Ao chegar a Azambuja e se deparar com uma estalagem que também funciona como hotel, restaurante e café, o viajante fica chocado com a aparência do local, comparando-o a um antro e declarando que sua pena cai da mão, encerrando o capítulo com uma cena que evoca um take cinematográfico. ➔ Estalagem e o Pinhal Azambuja O narrador, ao invés de descrever imediatamente o que o chocou na cena anterior, inicia uma reflexão sobre a abordagem literária que adotará. Ele reconhece que não seguirá o protocolo romântico de idealizar descrições da natureza para evocar emoções, mas sim busca uma "fatal sinceridade", o que o leva a fazer digressões sobre a situação portuguesa do século XIX. Ele critica a substituição dos trabalhos agrícolas pela construção de ferrovias, visando lucro rápido e massivo. Essa reflexão culmina em uma ponderação humanística sobre a oposição entre ganância e miséria, questionando o preço humano da riqueza. Antes de descrever a estalagem, o narrador ainda reflete sobre a natureza da literatura em relação à sociedade, argumentando que esta é materialista enquanto a literatura é excessivamente espiritualista. Ele caracteriza a literatura como hipócrita, abrindo espaço para uma análise mais profunda sobre a relação entre a sociedade e sua expressão literária. Em seguida, o narrador parte para conhecer o pinhal de Azambuja, mas se entrega a novas divagações sobre sua propensão ao devaneio. Ao falar sobre o sonho, ele desvia do propósito inicial de escrever com precisão sobre o que vê, reafirmando a natureza reflexiva intrínseca à escrita. Essa abordagem, que se assemelha ao hiperlinkar contemporâneo,é caracterizada pela conexão de pensamentos e ações, mas com uma diferença significativa: enquanto hoje essas conexões são determinadas pela velocidade e pela multiplicidade de atividades, na obra de Garrett, elas são fruto de um olhar lento e erudito, com conceitos interligados e solidamente repensados pelo autor. Isso resulta em uma sucessão de imagens que não são escolhidas aleatoriamente, mas estão fundamentadas em um universo histórico e literário que motiva a viagem do autor e, por sua vez, influencia sua escrita. O narrador, ao deparar-se com o pinhal de Azambuja, fica estarrecido ao constatar que a realidade não condiz com a lenda que ouvira sobre o lugar. Ele esperava encontrar uma região temida e misteriosa, mas se decepciona ao ver que o pinhal não corresponde às suas expectativas. Essa decepção reflete um conflito entre a imaginação e a realidade, pois a lenda contrasta com a paisagem atual. A transformação do pinhal pode ser comparada à modernização da sociedade, onde tudo é transferido para instituições financeiras. ➔ Cartaxo Ao chegar à região de Cartaxo, o narrador descreve pela primeira vez um lugar belo, a vasta planície. Ele admira a forma como a planície se estende suavemente no horizonte, desafiando os raios do sol, e sente um aroma delicioso no ar. Apesar de afirmar que não é romântico no sentido popular da palavra, o narrador reconhece o encanto indefinível da paisagem, especialmente a charneca entre Cartaxo e Santarém. Ele se sente inclinado a fazer versos, embora não saiba sobre o que versariam. A presença de companhia impede que se entregue a essa inclinação poética. A descrição das belezas naturais por Garrett destaca sua "ironia romântica", como evidenciado quando ele declara "Romântico, Deus me livre de o ser", após admirar a natureza da planície. Esta aparente contradição reflete a ironia presente em seu estilo romântico. Ao ironizar aqueles que escrevem versos apenas por moda, Garrett busca singularizar sua própria visão, reafirmando sua escrita única e autêntica, baseada em experiências genuínas. No entanto, ao ser confrontado com a memória da terrível batalha entre absolutistas e liberais que ocorreu na região, o narrador fica desolado, pois os eventos históricos reais se sobrepõem à beleza superficial do presente, revelando a complexidade e a dualidade da paisagem. Ele cai em si e reflete amargamente sobre os sacrifícios impostos àquela geração. Ele sente o coração bater ao recordar os grandes feitos e tragédias ocorridos ali, e questiona por que só sente tristeza naquele lugar marcado por lutas fratricidas. Em meio a essas reflexões amargas, toda a beleza da charneca desaparece diante dele. Ao chegar à ponte das Assecas, o narrador percebe que esta ponte não apenas evoca memórias do passado, mas também delimita a transição narrativa. Ao atravessá-la, ele estará em Santarém, o próximo destino que poderá verdadeiramente exaltar. ➔ Encontro com a Janela O narrador apresenta Santarém como um local de beleza singular, onde ressoa um sentimento de nacionalismo e uma atmosfera utópica de paz e pureza. Destaca-se a singularidade da natureza portuguesa, representada pelo vale de Santarém, pátria dos rouxinóis e das madressilvas, que supera Paris, França e qualquer outra terra do Ocidente. Esta percepção idealizada de Santarém contrasta com os males e as vilezas da vida, destacando um binômio entre espiritualismo e materialismo, similar à dicotomia entre Dom Quixote e Sancho Pança. Em Santarém, o narrador encontra um local harmonioso e delicado, que evoca o Éden original com sua inocência e pureza. Nesse ambiente, ele se sente inspirado a contar um romance, motivado por uma história ouvida de um dos companheiros de viagem. Uma janela torna-se uma metáfora, representando a abertura para essa história que se entrelaça com a narrativa de viagem até então acompanhada. Nota-se que a história que o narrador se prepara para contar em Santarém tem uma conotação triste, como indicado pela presença dos rouxinóis, uma alusão à obra "Menina e Moça" de Bernardim Ribeiro, na qual a protagonista reflete sobre sua saudade, simbolizada pela morte de um rouxinol. Durante a observação dessas aves, o narrador inicia um diálogo com um companheiro de viagem, que revela a história da "menina dos rouxinóis", uma figura associada à janela que atrai a atenção do narrador. A janela emerge como um elemento central da narrativa, pois a jornada do narrador começa com a visão da janela de seu quarto, representando seu desejo de sair do mundo pessoal para explorar o mundo exterior. Agora, mais uma vez, uma janela o atrai, levando-o do mundo exterior para o interior de uma casa, envolvendo-o na história de uma mulher e de seu círculo humano, concluindo assim a interação entre as dimensões pública e privada.
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