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DION PASIEVITCH DION PASIEVITCH ARITMÉTICA ISBN 978-65-5821-028-3 9 7 8 6 5 5 8 2 1 0 2 8 3 Código Logístico I000043 Aritmética Dion Pasievitch IESDE BRASIL 2021 © 2021 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: devotchkah/ Envato Elements Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P29a Pasievitch, Dion Aritmética / Dion Pasievitch. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2021. 144 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-65-5821-028-3 1. Aritmética. 2. Aritmética - Estudo e ensino. I. Título. 21-71028 CDD: 513 CDU: 511.1 Dion Pasievitch Doutor e Mestre em Matemática pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Tecnologia Java pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Licenciado em Matemática pela Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória. Professor colaborador da Universidade Estadual do Paraná desde 2017, onde leciona disciplinas das áreas de álgebra, geometria, análise e estatística. SUMÁRIO Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! 1 Teoria elementar dos conjuntos 9 1.1 Conjuntos 9 1.2 Relações binárias 15 1.3 Funções 24 1.4 Relações de ordem 30 1.5 Relações de equivalência 32 2 O conjunto dos números naturais 40 2.1 Axiomas de Peano 40 2.2 Adição e subtração de números naturais 46 2.3 Multiplicação de números naturais 52 2.4 A relação de ordem no conjunto dos números naturais 59 2.5 Princípio da boa ordenação 64 3 O conjunto dos números inteiros 67 3.1 O conjunto ℤ 67 3.2 Adição e subtração de números inteiros 73 3.3 Multiplicação e divisão de números inteiros 78 3.4 Relação de ordem em ℤ 82 3.5 Valor absoluto 86 4 Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 90 4.1 Divisibilidade 90 4.2 Divisão euclidiana 95 4.3 Máximo divisor comum 98 4.4 Mínimo múltiplo comum 106 4.5 Números primos e o teorema fundamental da aritmética 111 5 Congruências 120 5.1 O pequeno teorema de Fermat 120 5.2 Congruências módulo m 123 5.3 Inteiros módulo m 127 5.4 O teorema chinês dos restos 137 6 Gabarito 141 APRESENTAÇÃO Vídeo A aritmética aborda conceitos que estão presentes na formação acadêmica de todas as pessoas, desde o ensino básico. Entre estes conceitos, os principais são aqueles que envolvem operações algébricas com números naturais ou inteiros. Igualmente importante é a possibilidade de comparar esses dois conjuntos numéricos. Todos esses assuntos estão presentes no dia a dia e, para compreendê-los efetivamente, é necessário estudar aritmética sob uma perspectiva mais formal. Esta obra está organizada em cinco capítulos. O primeiro deles trata de algumas noções preliminares as quais supomos conhecidas, mas que são desenvolvidas para fixar notações e discorrer com rigor sobre a teoria. Além disso, são relembrados os conceitos de conjuntos e funções, com ênfase especial na teoria das relações. Em particular, relações de ordem e de equivalência são discutidas cuidadosamente, pois constituem aspectos fundamentais para o bom entendimento da teoria. O segundo capítulo introduz o conjunto dos números naturais de maneira axiomática, por meio dos axiomas de Peano. Partindo dessa abordagem, definimos as operações algébricas usuais do conjunto dos números naturais – a adição e a multiplicação – e demonstramos suas propriedades rigorosamente. Em seguida, discutimos a ordem natural do conjunto dos números naturais e apresentamos os princípios da tricotomia e da boa ordenação, ambos resultados bastante relevantes do ponto de vista teórico. O terceiro capítulo aborda o conjunto dos números inteiros e suas operações algébricas – adição, multiplicação e subtração –, além de sua ordem natural, herdada do conjunto numérico apresentado no capítulo anterior. Adotamos uma abordagem construtiva, em que o conjunto dos números inteiros é construído com base no conjunto dos números naturais por meio de uma relação de equivalência específica. Isso permite que a adição, a multiplicação e a ordenação sejam definidas nos termos presentes no conjunto dos números naturais. Adicionalmente, é introduzida a subtração de inteiros. Por fim, discutimos a versão do princípio da tricotomia para o conjunto dos inteiros e a noção de valor absoluto. O quarto capítulo aborda a aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros. Em ambos os conjuntos, vamos definir a relação de divisibilidade, demonstrar suas propriedades e deduzir vários resultados importantes. Dentre eles, destacam-se o teorema fundamental da aritmética e o teorema que mostra a existência de infinitos números primos. Esse último resultado é consequência do teorema da decomposição em fatores primos, o qual é demonstrado cuidadosamente. O quinto e último capítulo apresenta tópicos adicionais que ampliam o escopo e o entendimento da teoria. Destacam-se o pequeno teorema de Fermat e o teorema chinês dos restos, e a sua conexão com congruências lineares. Também são abordados os inteiros módulo m. Esse assunto, em particular, é bastante relevante para outras disciplinas de álgebra, dado que fornece um modelo de grupo abeliano finito. Os exercícios foram escolhidos de modo a auxiliar no entendimento dos tópicos tratados ao longo desta obra. Em geral, apenas a leitura da teoria será suficiente para respondê-los. Enfatizamos que a resolução de exercícios é fundamental para aprender novos conceitos em matemática. Sendo assim, deve-se formar o hábito de praticar a teoria discutida com os exercícios, pois, além de possibilitar que os tópicos sejam revisados, essa prática contribui para o desenvolvimento do raciocínio lógico-matemático-formal. Esperamos que esta obra contribua com o aprimoramento do pensamento matemático e que seja suficientemente interessante para motivar a busca por novos conhecimentos, não somente do campo da aritmética, mas de outras áreas. Além disso, os tópicos discutidos aqui configuram em introdução e motivação para o estudo de diversos outros conteúdos nas teorias de grupo, anéis e corpos, e na teoria de números. . Teoria elementar dos conjuntos 9 1 Teoria elementar dos conjuntos A teoria de conjuntos e seus desdobramentos constituem os funda- mentos da matemática. É por meio da noção de conjuntos que é possível definir relações, funções e formalizar diversos conceitos. Neste estudo, é primordial que você adquira uma boa familiaridade com a teoria de con- juntos, mesmo que no nível mais elementar. Pensando nisso, este capí- tulo apresentará a teoria ingênua dos conjuntos, com ênfase na teoria das relações, abrangendo os conceitos de função, relações de ordem e de equivalência – assuntos fundamentais para o bom entendimento da aritmética. Entretanto, cabe destacar que o assunto da teoria de conjuntos não será encerrado neste capítulo. Tal tarefa seriaimpossível. O objetivo cen- tral é relembrar alguns conceitos elementares estudados em outras disci- plinas e fixar a notação. 1.1 Conjuntos Vídeo Nesta seção, discutiremos noções básicas da teoria ingênua dos conjuntos. O qualificador ingênua é utilizado para distinguir essa teoria da teoria axiomática dos conjuntos. No nível ingênuo, aceitamos a noção de conjunto de maneira intuitiva; já no nível axiomático, desenvolvemos a teoria rigorosamente desde o princípio por meio dos axiomas, por exemplo, dos axiomas de Zermello-Frankel. Entretanto, essa abordagem axiomática foge ao escopo desta obra e, portanto, a exposição feita abrange exclusivamente a teoria ingênua dos conjuntos. No ensino básico, somos ensinados que um conjunto é uma coleção ou um agrupamento de objetos. Este é o entendimento adotado na teoria ingênua dos conjuntos e é suficiente para os propósitos deste curso. Contudo, para dar início à discussão, é necessário introduzir algumas terminologias e notações. Os conjuntos, ao longo deste texto, serão denotados, comumente, por le- tras latinas maiúsculas. Entretanto, em algumas situações serão utilizadas le- tras maiúsculas estilizadas. Por exemplo, os conjuntos dos números naturais, inteiros, racionais, reais e complexos serão denotados, respectivamente, como ℕ, ℤ, ℚ, ℝ e ℂ. 10 Aritmética Conjuntos são, usualmente, formados por elementos que dependem da nature- za do conjunto. Por exemplo, o conjunto A, das vogais do alfabeto latino, tem como elementos: a, e, i, o, u. Nessa situação, escrevemos A = {a, e, i, o, u} e dizemos que o conjunto A foi descrito listando-se seus elementos. Caso um conjunto tenha quantidade finita, com muitos elementos, é possível simplificar a escrita. Para ilustrar, considere B o conjunto dos números naturais menores que 10. Nesse caso, B = {1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9} Como é bastante trabalhoso listar todos os elementos de B, é possível utilizar a notação alternativa B = {1, 2, 3, …, 9} em que os elementos 4, 5, 6, 7 e 8 foram substituídos por reticências. Nesse tipo de simplificação, devemos exibir uma quantidade adequada de elementos para que fique claro o padrão seguido. A simplificação da notação também pode ser aplicada no caso de conjuntos com infinitos elementos. Por exemplo, C = {1, 2, 3, …} denota o conjunto dos números inteiros positivos. Nesse caso, uma quantidade infinita de elementos foi omitida. Entretanto, para evitar qualquer tipo de ambiguidade, é conveniente descrever um conjunto com base na propriedade comum que seus elementos possuem. A título de ilustração, considere o conjunto X formado pela coleção dos inteiros pares positivos. É possível denotar esse conjunto por X = {2, 4, 6, 8, …} ou, de maneira mais precisa, como X = {x : x é um inteiro par positivo} Perceba que os elementos x de X são identificados por meio da propriedade de ser um inteiro par positivo. Portanto, qualquer objeto que cumpra essa proprie- dade será um elemento do conjunto X. Naturalmente, os únicos elementos que satisfazem tal propriedade são os números 2, 4, 6, 8 etc. Dessa forma, é possível escrever X = {x | x é um inteiro par positivo} = {2, 4, 6, 8, …} que são maneiras diferentes de representar o mesmo objeto matemático: o con- junto dos inteiros positivos pares. Geralmente, é possível formar conjuntos da forma X = {x | P(x)} É importante usar a notação de conjuntos corretamente! É necessário, além de abrir e fechar as chaves, separar os elementos do conjunto com vírgula. Importante A notação “:” indica a expressão “tal que”. Também podemos utilizar o símbolo “|”, o qual será adotado nessa obra. Glossário Teoria elementar dos conjuntos 11 que lemos “x tal que P(x)”, sendo P(x) alguma propriedade sobre x. Qualquer objeto x que torne a propriedade P(x) válida fará parte do conjunto X, ou seja, será um elemento de X. A discussão acima será formalizada na definição a seguir. Definição Seja X = {x | P(x)} um conjunto e x um objeto, são válidas as afirmações: I. Se x satisfaz a propriedade P(x), isto é, se P(x) é uma proposição verdadeira, escrevemos x ∈ X e dizemos que x pertence a X. II. Se x não satisfaz a propriedade P(x), isto é, se P(x) é uma proposição falsa, escrevemos x ∉ X e dizemos que x não pertence a X. Mais precisamente, é necessário especificar um universo do qual os objetos x serão retirados. Para enfatizar o universo do qual retiramos os elementos que formam o conjun- to X, podemos escrever X = {x ∈ U | P(x)} sendo U o universo. O universo nada mais é que um conjunto do qual retiramos os elementos para formar conjuntos determinados. Por exemplo, no caso do conjunto X = {x ∈ ℝ | P(x)} está explícito que os elementos de X pertencem ao universo ℝ. Em particular, não teria sentido indagar se a vogal “a” pertence ao conjunto X, dado que a vogal “a” não é um elemento do universo ℝ. Quando ficar claro o universo considerado, ele poderá ser omitido da notação. Vamos ilustrar a relação de pertinência com alguns exemplos. Σxemρlo 1 Seja X = {x | x é vogal do alfabeto latino}. Nessa situação, temos, por exemplo, que a ∈ X, mas b ∉ X, pois “a” é vogal do alfabeto latino, enquanto “b” não é. Nesse caso, o universo natural a ser considerado é o conjunto de vogais do alfabeto lati- no. A escolha do universo pode variar de acordo com o contexto, mas, geralmente, haverá uma escolha mais natural. É imprescindível compreender que dado um conjunto X = {x ∈ U | P(x)} e um objeto x ∈ U, é possível que x seja um elemento de X ou que não seja, conforme satisfaça ou não a propriedade P(x). Na maioria das vezes, é necessário testar a validade da propriedade P(x) para o objeto x dado, pois em grande parte das si- tuações práticas e de maior interesse pode não ser claro que o objeto x cumpre a propriedade P(x) dada. Isso será ilustrado no exemplo a seguir. 12 Aritmética Σxemρlo 2 Considere o conjunto X = {x ∈ ℝ | x2 – 2x – 3 = 0}. Dado o objeto x = 1, não é imediato dizer se x ∈ X ou x ∉ X. É necessário testar se x = 1 satisfaz a propriedade x2 – 2x – 3 = 0. Isso é feito substituindo x = 1 na expres- são x2 – 2x – 3 e verificando se o resultado é igual a 0 (zero). Vejamos, x2 – 2x – 3 ⇒ 12 – 2 ⋅ 1 – 3 = 1 – 2 – 3 = –4 ≠ 0 Sendo assim, 1 ∉ X, já que 1 não satisfaz a propriedade que define X. Agora, note que, por exemplo, se x = 3, temos que x2 – 2x – 3 ⇒ 32 – 2 ⋅ 3 – 3 = 9 – 6 – 3 = 0 e, portanto, 3 ∈ X, pois satisfaz a propriedade que define o conjunto X. É importante habituar-se com a ideia do exemplo anterior para que não ocorra confusão no momento de decidir se dado objeto é elemento de um con- junto ou não. Em muitas situações, é necessário verificar que um dado conjunto é igual a ou- tro. Para isso, devemos definir a igualdade entre conjuntos, que será baseada na relação de inclusão, definida a seguir. Definição Sejam X e Y conjuntos. Dizemos que X está contido em Y e escrevemos X ⊂ Y, se todo elemento de X é um elemento de Y. Caso X não esteja contido em Y, escrevemos X ⊄ Y. Dizer que X não está contido em Y significa que existe pelo menos um elemento de X que não é elemento de Y. O seguinte exemplo ilustra a relação de inclusão. Σxemρlo 3 Considere os conjuntos A = {1, 2, 3, 4} e B = {1, 2}. Nessa situação, B ⊂ A, pois todo elemento de B é elemento de A, mas A ⊄ B, pois, por exemplo, 3 é um elemen- to de A que não é elemento de B. Muitas vezes, é necessário um raciocínio mais elaborado para verificar que um dado conjunto está contido em outro, conforme exemplificamos a seguir. Teoria elementar dos conjuntos 13 Σxemρlo 4 Considere os conjuntos A = {1, 0, –1} e B = {x ∈ ℝ | x2 – 1 = 0}. Nesta situação, A ⊄ B, pois 0 ∉ B, já que 02 – 1 = –1 ≠ 0. Porém, temos que B ⊂ A, pois se x ∈ B, então x satisfaz a equação x2 – 1 = 0, ou seja, (x + 1)(x – 1) = 0 e, portanto, x = 1 ou x = –1. Sendo assim, x ∈ A. Após compreender a noção de inclusão de conjuntos, podemos definir quando dois conjuntos são iguais. Definição Sejam X e Y dois conjuntos com omesmo universo. Dizemos que X é igual a Y caso X ⊂ Y e Y ⊂ X. Neste caso, escrevemos X = Y. Em outras palavras, a definição anterior enuncia que dois conjuntos são iguais se, e somente se, eles possuem os mesmos elementos. Por definição, para demonstrar que um conjunto X é igual a um conjunto Y, devemos verificar duas inclusões: X ⊂ Y e Y ⊂ X. Para verificar que X ⊂ Y, considera- mos um elemento qualquer x ∈ X e mostramos que x ∈ Y. Para mostrar a segunda inclusão, Y ⊂ X, consideramos um elemento qualquer x ∈ Y e verificamos que x ∈ X. Isto será ilustrado no exemplo a seguir. Σxemρlo 5 Considere os conjuntos X = {x ∈ ℝ | x2 + x – 2 = 0} e Y = {–2, 1}. Temos que X = Y Para demonstrar isso, verificamos inicialmente que Y ⊂ X. De fato, se x ∈ Y, então x = –2 ou x = 1. Se x = –2, então x2 + x – 2 ⇒ (–2)2 + (–2) –2 = 4 – 2 – 2 = 0 e se x = 1, então x2 + x – 2 ⇒ 12 + 1 – 2 = 1 + 1 – 2 = 0 Portanto, em qualquer caso x ∈ X. Perceba que partimos de um elemento arbi- trário x ∈ Y e deduzimos que x ∈ X. Essa é a forma geral para mostrar a inclusão de um conjunto em outro. Resta verificar a inclusão contrária X ⊂ Y. Para tanto, tome um elemento x ∈ X. Nesse caso, pela definição do conjunto X, temos que x é um número real que satisfaz a equação x2 + x – 2 = 0 (Continua) 14 Aritmética Essa é uma equação do segundo grau que pode ser resolvida facilmente por meio da fórmula de Bhaskara. Uma aplicação desse dispositivo permite deduzir que x = –2 ou x = 1. Portanto, x ∈ Y, mostrando assim que X ⊂ Y. Uma vez que são válidas ambas as inclusões X ⊂ Y e Y ⊂ X, resulta que X = Y. A seguir, serão apresentadas formas de combinar dois conjuntos de modo a obter um terceiro conjunto. Definição Sejam X e Y conjuntos definidos em um mesmo universo U. Definimos: I. A interseção de X e Y como o conjunto X∩Y = {x ∈ U | x ∈ X e x ∈ Y} Lemos o conjunto X∩Y como “x inter y”. II. A reunião de X e Y como o conjunto X∪Y = {x ∈ U | x ∈ X ou x ∈ Y} III. Caso X ⊂ Y, o complementar de X em relação a Y como o conjunto Y∖X = {x ∈ U | x ∈ Y e x ∉ X} IV. O complementar de X como o conjunto Xc = {x ∈ U | x ∉ X} Em outras palavras, a interseção de dois conjuntos consiste em elementos do universo que são comuns a ambos os conjuntos. Já a reunião de dois conjuntos consiste em todos aqueles elementos do universo que pertencem a um ou a outro conjunto ou a ambos. O complementar de X em relação a Y consiste em todos os elementos do uni- verso que pertencem apenas a Y e não a X. Note que, em geral, X\Y é diferente de Xc, pois esse segundo conjunto consiste em todos os elementos do universo que não pertencem a X. A seguir, serão apresentados alguns exemplos envolvendo a definição exposta anteriormente. Σxemρlo 6 Considere os conjuntos X = {1, 2, 3} e Y = {1, 2, 4}, no universo U = {1, 2, 3, 4, 5}. Nesse caso, temos que • X∩Y = {x ∈ U | x ∈ X e x ∈ Y} = {1, 2}; • X∪Y = {x ∈ U | x ∈ X ou x ∈ Y} = {1, 2, 3, 4}; • Y∖X = {x ∈ U | x ∈ Y e x ∉ X} = {4}; • Xc = {x ∈ U | x ∉ X} = {4, 5}. Teoria elementar dos conjuntos 15 O próximo exemplo envolve um raciocínio mais elaborado. Σxemρlo 7 Considere os conjuntos X = {x ∈ ℕ | x divide 10} e Y = {x ∈ ℕ | x é par}. Nesse caso, temos que • X∩Y = {x ∈ ℕ | x divide 10 e x é par} = {2, 10}; • X∪Y = {x ∈ ℕ | x divide 10 ou x é par} = {0, 2, 4, 5, 6, 8, 10, 12, 14, 16, …}; • X∖Y = {x ∈ ℕ | x divide 10 e x não é par} = {1, 5}; • Yc = {x ∈ ℕ | x não é par} = {1, 3, 5, 7, …}. É importante se familiarizar com o tipo de raciocínio presente nos exemplos anteriores, pois é algo que se repete constantemente ao se estudar qualquer disci- plina que envolva conjuntos. O livro Iniciação à lógica matemática é um clássico utilizado nos cursos de li- cenciatura em Matemática. Nele, podemos encontrar uma exposição detalhada das construções lógicas envolvendo proposições. É um bom complemento para a o estudo da teoria de conjuntos. FILHO, E. A. São Paulo: Nobel, 2002. Livro 1.2 Relações binárias Vídeo Em matemática, ao se estudar determinados tipos de objetos, procuramos com- preender as relações entre eles. Por exemplo, ao se estudar conjuntos, buscamos entender as relações entre conjuntos. Ao se estudar espaços vetoriais, na álgebra linear, tentamos compreender as relações existentes entre espaços vetoriais. Esse tipo de raciocínio permeia toda a matemática. E o que seriam essas relações? Elas podem assumir formas bastante distintas: funções, relações de ordem ou de equi- valência, entre outras possibilidades. Nesta seção, serão discutidos os tópicos necessários para que seja possível compreender plenamente os conceitos de funções, relações de ordem e relações de equivalência. Esses conceitos estarão presentes durante toda sua formação em Matemática. O ponto de partida é a definição de produto cartesiano de conjuntos. Definição Sejam X e Y conjuntos. O produto cartesiano de X por Y é o conjunto X × Y ≔ {(x, y) | x ∈ X e y ∈ Y} Os elementos (x, y) deste conjunto são denominados pares ordenados. Note que, a princípio, um par ordenado (x, y) é apenas um sím- bolo. Não o definimos explicitamente. Embora seja possível fazê-lo, não é conveniente para nossos propósitos. Mas como vai ser pos- sível desenvolver a teoria sem efetivamente definir o que é um par ordenado? O símbolo “≔” significa “igual por definição”. Glossário 16 Aritmética Na prática, será suficiente o entendimento de que os elementos de X × Y são pares (x, y) cuja primeira entrada consiste em um elemento de X e a segunda, em um elemento de Y. Adicionalmente, é necessário também saber quando dois pares ordenados são iguais. Isto é definido a seguir. Definição Dizemos que dois pares ordenados (x, y) e (z, w) de X × Y são iguais e escrevemos (x, y) = (z, w) se, e somente se, x = z e y = w, ou seja, (x, y) = (z, w) ⇔ x = z e y = w Você pode indagar, e com razão: mas X × Y não é simplesmente o conjunto {x, y | x ∈ X, y ∈ Y} de todos os elementos possíveis que se pode tomar de X e Y? Acontece que não. Para compreender isso, note que em X × Y os elementos (x, y) e (y, x) são diferentes, enquanto ambos dão origem aos mesmos elementos do con- junto {x, y | x ∈ X, y ∈ Y}. Para consolidar o entendimento, vamos apresentar alguns exemplos. Σxemρlo 8 Sejam X = {a, b} e Y = {1}. Nesse caso, X × Y = {(a, 1), (b, 1)}. Note que, por exemplo, (a, 1) ∈ X × Y, mas (1, a) ∉ X × Y. De fato, (1, a) não poderia pertencer ao conjunto X × Y, visto que 1 ∉ X. Contudo, note que (1, a) ∈ Y × X = {(1, a), (1, b)} Isso também ilustra o fato geral que X × Y ≠ Y × X. Suponha X e Y dois conjuntos finitos. O raciocínio para obter todos os elementos de X × Y é simples: fixamos um elemento de X na primeira entrada do par ordenado e percorremos todo o conjunto Y, formando todos os pares ordenados possíveis com a primeira entrada que foi fixada. Em seguida, já esgotados os elementos de Y, fixamos o próximo elemento de X na primeira entrada do par ordenado e repetimos o procedimento, variando todos os elementos possíveis de Y na segunda entrada. Prosseguimos com essa ideia até esgotar todos os elementos de X. Obviamente, esse raciocínio é aplicável apenas quando X e Y têm um número finito de elemen- tos. Contudo, também tem sentido formar produtos cartesianos com conjuntos infinitos, conforme será ilustrado a seguir. Teoria elementar dos conjuntos 17 Σxemρlo 9 Sejam X = ℝ e Y = {1, 2}. Note que ℝ é um conjunto infinito. Nessa situação, o produto cartesiano ℝ × Y é dado por ℝ × Y = {(x, 1), (y, 2) | x, y ∈ ℝ} Note que, nesse caso, ℝ × Y também é um conjunto infinito. Naturalmente, é possível formar o produto cartesiano de dois conjuntos infini- tos, conforme verificamos a seguir. Σxemρlo 10 Sejam X = ℝ e Y = ℤ. Nesse caso, tanto ℝ quanto ℤ são infinitos e o produto car- tesiano ℝ × ℤ é dado por ℝ × ℤ = {(x, y) | x ∈ ℝ e y ∈ ℤ} Em particular, ℝ × ℤ também possui infinitos elementos. Mas afinal, qual é a utilidade prática para o produto cartesiano de dois conjun- tos? A grandeutilidade está no fato de que o produto cartesiano permite capturar relações existentes entre dois conjuntos. Para elaborar a respeito, é necessário de- finir o que se entende por relação entre conjuntos. Definição Sejam X e Y conjuntos. Uma relação de X em Y é um subconjunto ℛ ⊂ X × Y Nesse caso, se (x, y) ∈ ℛ, dizemos que x se relaciona com y por meio de ℛ, e escrevemos xℛy (lê-se x “erre” y). Caso X = Y, dizemos que ℛ é uma relação em X. Por definição, uma relação de X em Y é meramente um subconjunto do produ- to cartesiano X × Y, ou seja, uma escolha de certos pares ordenados pertencentes a X × Y. Cabe salientarmos que a notação xℛy significa efetivamente a pertinência (x, y) ∈ ℛ. Em particular, é possível escrever ℛ como o conjunto ℛ = {(x, y) ∈ X × Y | xℛy} 18 Aritmética A razão de introduzir a notação xℛy se dá pela praticidade, principalmente quando estudamos as relações de ordem e de equivalência. Note que, de acordo com nossa definição, qualquer subconjunto do produto cartesiano X × Y é uma relação de X em Y. Sendo assim, a noção de relação ainda não tem qualquer utilidade prática. Para ser útil, é necessário restringir o estudo a relações que tenham propriedades particulares. Isso será feito ao longo desta seção. Mas, antes de prosseguir, vamos observar alguns exemplos. Σxemρlo 11 Sejam X = {a, b} e Y = {1}. Nessa situação, X × Y = {(a,1), (b,1)} Em particular, as relações possíveis de X em Y são: • ℛ1 = ϕ; • ℛ2 = {(a,1)}; • ℛ3= {(b,1)}; • ℛ4 = X × Y. Não existem quaisquer outras relações de X em Y, dado que ϕ, ℛ2, ℛ3 e X × Y são os únicos subconjuntos de X × Y. Conforme ilustrado no exemplo anterior, o conjunto vazio ϕ e o próprio produto cartesiano X × Y sempre são relações de X em Y. Caso um dos conjuntos X ou Y seja infinito não é possível listar todas as rela- ções possíveis de X em Y, dado que, nessa situação, existem infinitos subconjuntos de X × Y. No entanto, é possível trabalhar com relações nessa situação, conforme exemplificado a seguir. Σxemρlo 12 Sejam X = ℝ e Y = ℝ. Considere ℛ ≔ {(x, y) ∈ ℝ × ℝ | x + y = 1} Por definição, ℛ é subconjunto de ℝ × ℝ e, portanto, é uma relação em ℝ. Por exemplo, temos que 0ℛ1, pois (0, 1) ∈ ℝ × ℝ e 0 + 1 = 1. Porém, 0 (zero) não se relaciona com 2 por meio de ℛ, mesmo que (0, 2) ∈ ℝ × ℝ. De fato, temos que 0 + 2 = 2 ≠ 1 e, portanto, (0, 2) ∉ ℛ. É conveniente escrever a relação ℛ como ℛ = {(x, 1 – x) | x ∈ ℝ} pois nesta escrita, é possível determinar diretamente todos os membros da relação ℛ, bastando percorrer todos os x ∈ ℝ. (Continua) Teoria elementar dos conjuntos 19 Em particular, é possível interpretar geometricamente a relação ℛ. Para isso, desenhe dois eixos ortogonais em um plano. O eixo horizontal representará o con- junto das primeiras entradas dos pares pertencentes a ℛ, enquanto o eixo vertical representará o conjunto das segundas entradas dos pares pertencentes a ℛ. A re- lação ℛ corresponde à reta passando pelos pontos (0, 1) e (1, 0), respectivamente, conforme ilustramos na Figura 1. Figura 1 Reta que representa a relação ℛ ℝ ℝ ℛ 1 10 Fonte: Elaborada pelo autor. As relações que aparecem na prática são mais que um mero subconjunto de um produto cartesiano. Em geral, elas costumam ter determinadas propriedades, que podem ser variadas; algumas delas serão apresentadas a seguir, principalmente aquelas que serão úteis em nossos estudos. Definição Seja X um conjunto e ℛ uma relação em X. Dizemos que ℛ é uma relação: I. Reflexiva, se xℛx, para todo x ∈ X. II. Simétrica, se dados x, y ∈ X, tais que xℛy, então yℛx. III. Antissimétrica, se dados x, y ∈ X, tais que xℛy e yℛx, então x = y. IV. Transitiva, se dados x, y, z ∈ X, tais que xℛy e yℛz, então xℛz. Note que as propriedades I, II e III não teriam sentido no caso de uma relação ℛ ⊂ X × Y com X ≠ Y. Essa é a razão pela qual restringimo-nos às relações em X. A seguir, serão apresentados alguns exemplos de relações que tenham as pro- priedades da definição anterior. Σxemρlo 13 Considere o conjunto X = {1, 2, 3} e a relação ℛ = {(1, 1), (1, 3), (2, 2), (2, 3), (3, 3)} Essa relação é reflexiva, pois 1ℛ1, 2ℛ2 e 3ℛ3, ou seja, xℛx, para todo x ∈ X. 20 Aritmética A seguir, temos um exemplo de relação simétrica e de uma relação que não é simétrica. Σxemρlo 14 Considere X = {1, 2, 3, …} o conjunto dos inteiros positivos e defina xℛy ⇔ x + y = 12 Note que é possível escrever ℛ como: ℛ = {(x, y) ∈ X × X | x + y = 12} mas isso não é estritamente necessário para a discussão. Temos que essa relação é simétrica, pois se x, y ∈ X são tais que xℛy, então x + y = 12 e, portanto, y + x = 12 ou seja, yℛx. Contudo, a relação x𝒮y ⇔ x divide y não é simétrica. De fato, temos que, por exemplo, 3𝒮6, já que 3 divide 6, mas 6 não se relaciona com 3 por meio de 𝒮, dado que 6 não divide 3. O próximo exemplo fornece a ilustração de uma relação antissimétrica. Σxemρlo 15 Considere o conjunto dos inteiros positivos X = {1, 2, 3, …} e xℛy ⇔ x divide y Essa relação é antissimétrica, pois, se xℛy e yℛx, temos que x divide y e y divide x. Isso só pode acontecer caso x = y. No exemplo anterior, mostramos que ℛ não é simétrica. Finalmente, o próximo exemplo fornece uma relação que é transitiva. Σxemρlo 16 Seja X o conjunto de triângulos no plano. Definimos ℛ ⊂ X × X da seguinte forma: T1ℛT2 ⇔ T1 é semelhante a T2 (Continua) Teoria elementar dos conjuntos 21 Essa é uma relação transitiva. De fato, se T1, T2 e T3 são triângulos tais que T1ℛT2 e T2ℛT3, então T1 é semelhante a T2 e T2 é semelhante a T3. Logo, utilizando a geo- metria plana, segue que T1 é semelhante a T3, ou seja, T1ℛT3, mostrando assim a transitividade. De fato, ℛ também é reflexiva e simétrica, pois todo triângulo é semelhante a si próprio e, se um triângulo é semelhante a outro, então este é semelhante ao primeiro. Toda relação tem um domínio, um contradomínio e uma imagem. Isso é im- portante, sobretudo, para que possamos discutir funções injetivas, sobrejetivas e bijetivas. A definição do domínio, do contradomínio e da imagem de uma relação é apresentada a seguir. Definição Sejam X e Y conjuntos e ℛ ⊂ X × Y uma relação de X em Y. Então: I. O domínio de ℛ é o conjunto D(ℛ) ≔ {x ∈ X | ∃ y ∈ Y; xℛy}. II. O conjunto de partida de ℛ é o conjunto X. III. O conjunto de chegada ou contradomínio de ℛ é o conjunto Y. IV. A imagem de ℛ é o conjunto I(ℛ) ≔ {y ∈ Y | ∃ x ∈ X; xℛy}. Em outras palavras, o domínio de uma relação é o conjunto de todas as primei- ras entradas dos pares ordenados que pertencem a ℛ, enquanto a imagem é o conjunto de todas as segundas entradas de tais pares. O conjunto de partida é simplesmente o conjunto X do produto cartesiano X × Y, já o contradomínio é o conjunto Y de X × Y. Geralmente, a imagem de uma relação pode ser diferente de seu conjunto de chegada, bem como o domínio pode ser diferente do conjunto de partida. Isso será esclarecido nos próximos exemplos. Σxemρlo 17 Considere os conjuntos X = {1, 2, 3, 4, 5} e Y = {1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10} Definimos a relação ℛ ⊂ X × Y por xℛy ⇔ y = 2x Nessa situação, ℛ = {(x, y) ∈ X × Y | y = 2x} = {(x, 2x) | x ∈ X} = {(1, 2), (2, 4), (3, 6), (4, 8), (5, 10)} (Continua) 22 Aritmética Em particular, temos que D(ℛ) = {1, 2, 3, 4, 5} = X I(ℛ) = {2, 4, 6, 8, 10} Nesse caso, a imagem de ℛ é diferente do contradomínio Y de ℛ. No exemplo anterior, o domínio da relação ℛ ⊂ X × Y coincidia com todo o con- junto X. Isso nem sempre é válido para uma relação, conforme exemplificamos a seguir. Σxemρlo 18 Considere os conjuntos X = {–2, –1, 0, 1, 2} e Y = {–1, 0, 1}. Definimos a relação ℛ ⊂ X × Y por xℛy ⇔ x2 + y2 = 1 Nesse caso, ℛ = {(x, y) ∈ X × Y | x2 + y2 = 1} = {(–1, 0), (0, 1), (0, –1), (1, 0)} Consequentemente, D(ℛ) = {–1, 0, 1} ≠ X enquanto I(ℛ) = {–1, 0, 1} = Y Nessa situação, o conjunto de partida é X, mas o domínio é diferente de X. Toda relação possui uma relação inversa, conforme definimos a seguir. Definição Sejam Xe Y conjuntos e ℛ ⊂ X × Y uma relação. A inversa de ℛ é a relação ℛ–1 ⊂ Y × X definida por yℛ–1x ⇔ xℛy com x ∈ X e y ∈ Y. Em termos de conjuntos, é possível escrever a relação inversa de ℛ como ℛ–1 = {(y, x) ∈ Y × X | (x, y) ∈ ℛ} Em outras palavras, ℛ–1 é obtida por meio de ℛ invertendo-se a ordem dos pares ordenados pertencentes a ℛ. Vamos ilustrar isso com um exemplo. Teoria elementar dos conjuntos 23 Σxemρlo 19 Sejam X = {1, 2, 3} e Y = {a, b}. Considere a relação ℛ = {(1, a), (1, b), (2, a), (3, b)} ⊂ X × Y Neste caso, ℛ–1 = {(a, 1), (b, 1), (a, 2), (b, 3)} ⊂ Y × X Note que, pela definição, • D(ℛ–1) = I(ℛ); • I(ℛ–1) = D(ℛ); • (ℛ–1)–1 = ℛ. ou seja, o domínio da relação inversa coincide com a imagem da relação dada; a imagem da relação inversa coincide com o domínio da relação dada; e, finalmente, a inversa da relação inversa coincide com a relação original dada. No âmbito das relações, há uma operação entre elas que merece destaque. É a operação de composição de relações, definida a seguir. Definição Sejam X, Y e Z conjuntos e ℛ ⊂ X × Y e 𝒮 ⊂ Y × Z relações. Definimos a composta de ℛ e 𝒮, denotada por 𝒮 ∘ ℛ (lê-se “s bola r”) como a relação de X em Z definida por x𝒮 ∘ ℛz ⇔ ∃ y ∈ Y, tal que xℛy e yℛz com x ∈ X e z ∈ Z. Em termos de conjuntos, é possível escrever a relação S ∘ ℛ como 𝒮 ∘ ℛ = {(x, z) ∈ X × Z | ∃ y ∈ Y; (x, y) ∈ ℛ e (y, z) ∈ 𝒮} Note que, por definição, 𝒮 ∘ ℛ é uma relação de X em Z. Além disso, para que te- nha sentido, é necessário que o conjunto de chegada de ℛ coincida com o conjunto de partida de 𝒮. A seguir, exemplificamos a definição de relação composta. Σxemρlo 20 Sejam X = {1, 2, 3, 4}, Y = {m, n, p, q} e Z = {5, 6, 7, 8}. Considere as relações ℛ = {(1, m), (1, n), (2, m), (3, q), (4, q)} ⊂ X × Y 𝒮 = {(n, 5), (n, 6), (p, 8), (q, 7)} ⊂ Y × Z Como o conjunto de chegada de ℛ coincide com o conjunto de partida de 𝒮, é possível formar a composição 𝒮 ∘ ℛ, que é dada por (Continua) 24 Aritmética 𝒮 ∘ ℛ = {(1, 5), (1, 6), (3, 7), (4, 7)} Note que para obter 𝒮 ∘ ℛ basta observar atentamente aqueles pares em ℛ cuja segunda entrada aparece como primeira entrada dos pares em 𝒮. Para finalizar esta seção, vamos introduzir uma relação especial, denominada relação identidade. Ela é importante na discussão de funções. Definição Seja X um conjunto. A identidade de X é a relação em X definida por xℛy ⇔ x = y sendo x, y ∈ X. Em termos de conjuntos, id X = {(x, x) | x ∈ X} Para compreender melhor a definição de relação identidade, acompanhe o exemplo a seguir. Σxemρlo 21 Se X = {a, b}, então idX = {(a, a), (b, b)}. Note que se ℛ ⊂ X × Y é uma relação qualquer, então ℛ ∘ idX = ℛ e idY ∘ ℛ = ℛ Em outras palavras, compor uma relação com a identidade não tem qualquer efeito. 1.3 Funções Vídeo Anteriormente, apresentamos alguns tipos de relações que existem em um mesmo conjunto: reflexiva, simétrica, antissimétrica e transitiva. E quanto ao caso de relações entre conjuntos distintos? Nessa situação, as relações mais relevantes são as funções. Em particular, toda função é uma relação, conforme será definido a seguir. O livro Relações binárias, escrito Edgard de Alencar Filho, é excelente para aprofundar o conhecimen- to a respeito dessas rela- ções. A obra é recheada de exemplos e exercícios, sendo um complemento perfeito para os tópicos estudados nessa seção. FILHO, E. A. São Paulo: Nobel, 1984. Livro Teoria elementar dos conjuntos 25 Definição Sejam X e Y conjuntos. Uma função de X em Y é uma relação f ⊂ X × Y tal que: I. Para todo x ∈ X, existe y ∈ Y tal que xfy. II. Se x ∈ X, y, y’ ∈ Y são tais que xfy e xfy’, então y = y’. Nesse caso, escrevemos y = f(x) para significar xfy e a relação f ⊂ X × Y é denotada por f: X → Y. A definição anterior pode ser resumida ao afirmarmos que uma função f de X em Y é uma relação que associa a cada elemento de X um único elemento de Y. In- tuitivamente, devemos pensar em uma função de X em Y como um dispositivo que pega um elemento x ∈ X e o transforma em um elemento y ∈ Y, sendo y unicamente determinado. A seguir serão apresentados alguns exemplos de funções. Σxemρlo 22 Defina a relação f ⊂ ℝ × ℝ como xfy ⇔ y = x2 Essa relação representa uma função de ℝ em ℝ. De fato, I. Dado x ∈ ℝ, temos que x2 = x2, logo xfx2; II. Se x, y, y’ ∈ ℝ são tais que xfy e xfy’, então y = x2 e y’ = x2, implicando em y = y’. Portanto, as condições I e II da definição anterior estão satisfeitas e, assim, f trata-se de uma função. Perceba que, em termos de conjuntos, temos f = {(x, y) | y = f(x)} = {(x, y) | y = x2} = {(x, x2) | x ∈ ℝ} Note que, por definição, um elemento x ∈ ℝ está relacionado ao elemento x2 ∈ ℝ por meio de f e a nenhum outro. Nesse sentido, observamos que f transforma o elemento x ∈ ℝ no elemento x2 ∈ ℝ. Na seção anterior discutimos a relação identidade. Essa relação é sempre uma função, conforme explicamos a seguir. Σxemρlo 23 Seja X um conjunto e idX a relação identidade. Temos que idX é uma função. De fato, idX = {(x, x) | x ∈ X} e, portanto, D(idX) = X. Além disso, se x, y, y’ ∈ X são tais que (x, y), (x, y’) ∈ idX, então, pela definição de idX, segue que y = x = y’. (Continua) 26 Aritmética Portanto, idX: X → X é uma função. Note que, xidXy ⇔ (x, y) ∈ idX ⇔ y = x ⇔ x = idX(x) Portanto, idX(x) = x, qualquer que seja x ∈ X. É importante ilustrar que nem toda relação constituirá uma função. Isso é feito no exemplo a seguir. Σxemρlo 24 Considere a relação f ⊂ ℝ × ℝ definida por xfy ⇔ x2 + y2 = 1 Nesse caso, f = {(x, y) ∈ ℝ × ℝ | x2 + y2 = 1} É possível ilustrar f no plano cartesiano como um círculo unitário centrado em (0, 0), como na Figura 2. Figura 2 Círculo unitário centrado na origem –1 1 Fonte: Elaborada pelo autor. Embora f seja uma relação em ℝ, f não é uma função. De fato, considerando, por exemplo, x = –2, não existe y ∈ ℝ tal que xfy. Em particular, a definição de função não fica satisfeita. Dentre as funções que aparecem com frequência na matemática, destacamos as funções injetoras, sobrejetoras e bijetoras. Tais classes de funções serão defini- das a seguir. Teoria elementar dos conjuntos 27 Definição Sejam X e Y conjuntos. Dizemos que uma função f: X → Y é: I. Injetora, se para todo x, y ∈ X tais que x ≠ y, temos f(x) ≠ f(y). II. Sobrejetora, se para todo y ∈ Y, existe x ∈ X tal que y = f(x). III. Bijetora, se f é injetora e sobrejetora. Dizer que uma função é injetora significa que ela transforma elementos diferen- tes no domínio em elementos diferentes no contradomínio. Já a sobrejetividade de uma função significa que todo elemento de seu contra- domínio é um elemento de sua imagem. Como a imagem é sempre um subcon- junto do contradomínio, a sobrejetividade significa, precisamente, que a imagem é igual ao contradomínio. Em geral, para mostrar que uma função f: X → Y é injetora, costumamos utilizar a forma contrapositiva da proposição enunciada em I. Em outras palavras, uma função f: X → Y é injetora se, sempre que x, y ∈ X são tais que f(x) = f(y), temos que x = y. Isso é esclarecido com o exemplo a seguir. Σxemρlo 25 Considere a função f: ℝ → ℝ definida por f(x) = 2x – 1. Essa função é injetora, pois se x, y ∈ ℝ são tais que f(x) = f(y), então 2x – 1 = 2y – 1 Portanto, adicionando 1 a ambos os membros e, em seguida, fazendo a divisão por 2, resulta que x = y. No caso de funções numéricas, a sobrejetividade também pode ser verificada resolvendo uma equação, conforme ilustrado a seguir. Σxemρlo 26 A função f: ℝ → ℝ definida por f(x) = 2x – 1 é sobrejetiva. De fato, dado y ∈ ℝ desejamos verificar a existência de x ∈ ℝ tal que y = f(x), ou seja, tal que y = 2x – 1 Resolvendo essa equação para o y dado, temos que x y� �1 2 (Continua) 28 Aritmética Agora, é importante garantir que x pertence ao domínio da função. Neste exem- plo, é o caso, pois x y� �1 2 ∈ ℝ O fato de ter sido possível resolver a equação y = f(x) para um elemento x no domínio de f assegura a sobrejetividadede f. Note que a função utilizada nos últimos dois exemplos é bijetiva, pois demons- tramos que ela é tanto injetora, quanto sobrejetora. Particularmente, as funções bijetoras são de extrema importância para a matemática e, certamente, estarão presentes ao longo de todo nosso estudo. Tais funções possuem a característica de admitirem uma inversa, conforme demonstramos a seguir. Teorema Sejam X e Y conjuntos e f: X → Y uma função. A relação inversa f–1 ⊂ Y × X é uma função se, e somente se, f é bijetora. Demonstração Suponha que f–1 seja uma função. Para verificar a injetividade de f, considere x, y ∈ X tais que f(x) = f(y). Nesse caso, (x, f(y)) ∈ f e, portanto, (f(y), x) ∈ f–1. Porém, (y, f(x)) ∈ f e, portanto, (f(x), y) ∈ f–1. Como f(x) = f(y), temos que z = f(x) = f(y) é tal que (z, x), (z, y) ∈ f–1. Sendo f–1 função, decorre que x = y. Em particular, f é injetora. Resta verificar que f é sobrejetora. Para tanto, considere y ∈ Y. Sendo f–1 uma função e y ∈ D(f–1), existe x ∈ X tal que (y, x) ∈ f–1. Mas isso significa que (x, y) ∈ f, ou seja, y = f(x). Portanto, f é sobrejetora. Por outro lado, suponha que f seja bijetora. Para mostrar que f–1 é função é ne- cessário verificar: • D(f–1) = Y; • Se (y, z1), (y, z2) ∈ f–1, então z1 = z2. A igualdade D(f–1) = Y é imediata, pois como f é sobrejetora, temos que I(f) = Y e, portanto, D(f–1) = I(f) = Y Suponha então que (y, z1), (y, z2) ∈ Y × X são tais que (y, z1), (y, z2) ∈ f–1. Isso sig- nifica que (z1, y), (z2, y) ∈ f, ou seja, y = f(z1) = f(z2). Sendo f injetora, deduzimos que z1 = z2. Portanto, f –1 é função. ∎ ∎: significa que a demonstracao foi encerrada. Isso auxilia a leitura, pois separa o argumento e a demonstracao do restante do texto. Glossário Teoria elementar dos conjuntos 29 Em resumo, sempre que f: X → Y é uma função bijetora, existe a função inversa f–1: Y → X. Cabe destacar que a relação inversa f–1 sempre existe, porém, só é uma função quando f é bijetora. O seguinte resultado é bastante útil na prática. Teorema Uma função f: X → Y é uma função bijetora se, e somente se, existe uma função g: Y → X, tal que f ∘ g = idY e g ∘ f = idX. Neste caso, g = f–1. Demonstração Suponha que f é bijetora. Neste caso, existe a função g ≔ f–1: Y → X. Além disso, g ∘ f = f–1 ∘ f = idY e f ∘ g = f ∘ f–1 = idX Por outro lado, suponha que exista g: Y → X, tal que f ∘ g = idY e g ∘ f = idX É necessário verificar que f é bijetora. Vamos mostrar que g = f–1. Para isso, con- sidere (y, x) ∈ g, ou seja, x = g(y). Nesse caso, temos que f(x) = f(g(y)) = (f ∘ g)(y) = idY(y) = y e, portanto, (x, y) ∈ f, ou seja, (y, x) ∈ f–1. Isso mostra a inclusão g ⊂ f–1. Resta verificar a inclusão contrária f–1 ⊂ g. Para tanto, seja (y, x) ∈ f–1. Isso significa que x = f–1(y), ou seja, y = f(x). Consequentemente, g(y) = g(f(x)) = (g ∘ f)(x) = idX(x) = x Logo, (y, x) ∈ g. Isso mostra a igualdade g = f–1. ∎ O seguinte exemplo mostra como é possível aplicar o resultado anterior. Σxemρlo 27 Considere a função f: ℝ → ℝ definida por f(x) = 2x + 1. Essa função é bijetora. Para demonstrar isso, note que g: ℝ → ℝ definida por g y y( ) � �1 2 é tal que ( )( ) ( ( ))f g y f g y f y y y y � � �� � � � � � � � �� � � � � � � � � � � 1 2 2 1 2 1 1 1 e A Coleção Fundamentos da Matemática Elementar, em seus vários volumes, além de abordar diversos tópicos que são que são contemplados no curso de graduação em Matemáti- ca, apresenta discussões detalhadas com muitos exemplos e exercícios. Para complementar o estudo desse conteúdo, vale conferir o primeiro volume referente a teoria de conjuntos e funções. IEZZI, G.; MURAKAMI, C. São Paulo: Atual, 2004. (Coleção Fundamentos de Matemática Elementar). Livro (Continua) 30 Aritmética ( ) ( ) ( ( ))g f x g f x g x x x x � � �� � � � � � �2 1 2 1 1 2 2 2 Portanto, f ∘ g = idℝ e g ∘ f = idℝ. Em particular, f é bijetora e f y g y y� � � �1 1 2 ( ) ( ) Além das funções, existem outros tipos de relações que são muito relevantes para a aritmética. Dentre estas, destacam-se as relações de ordem, objeto de estu- do da próxima seção. 1.4 Relações de ordem Vídeo Relações de ordem constituem uma abstração da relação “maior que ou igual” entre números. São três as propriedades que configuram uma relação de ordem: reflexividade, antissimetria e transitividade, conforme apresentado a seguir. Definição Seja X um conjunto. Uma relação de ordem em X é uma relação ≼ em X tal que: • ≼ é reflexiva: para todo x ∈ X, vale x ≼ x; • ≼ é antisimetrica: se x, y ∈ X são tais que x ≼ y e y ≼ x, então x = y; • ≼ é transitiva: se x, y, z ∈ X são tais que x ≼ y e y ≼ z, então x ≼ z. Se x ≼ y, dizemos que x precede y. Caso x ≼ y e x ≠ y, escrevemos x ≺ y e dizemos que x precede estritamente y. No lugar de x ≼ y, podemos escrever y ≽ x e dizemos, neste caso, que y sucede x. Analogamente, a notação y ≻ x significa que y sucede x estritamente, ou seja, y ≽ x e y ≠ x. A seguir serão apresentados alguns exemplos de relações de ordem. Σxemρlo 28 Seja X = ℕ o conjunto dos números naturais. Defina ≼ da seguinte forma x ≼ y ⇔ x é menor que ou igual a y Isso define uma relação de ordem em ℕ. De fato, I. Todo número natural x é igual a si próprio e, portanto, x ≼ x. II. Se x e y são dois números naturais, tais que x é menor que ou igual a y e y é menor que ou igual a x, então, necessariamente, x = y. (Continua) Teoria elementar dos conjuntos 31 III. Se um número natural x é menor que ou igual um número natural y e y é menor que ou igual um número natural z, então x é menor que ou igual a z. Essa argumentação não é precisa o suficiente. Para formalizá-la, é necessário dis- cutir a construção dos números naturais com bastante cuidado e, com base nisso, definir o que significa ser “menor que ou igual a” no conjunto dos números naturais. Esse tipo de formalização faz parte do estudo da aritmética dos números naturais. A seguir, será apresentado um exemplo que ilustra que relações de ordem po- dem ser definidas até mesmo para conjuntos não numéricos, isto é, para conjuntos cujos elementos não são números. Σxemρlo 29 Seja X um conjunto e P(X) = {A | A é subconjunto de X}. Definimos em P(X) a relação A ≼ B ⇔ A ⊂ B Essa é uma relação de ordem em X. De fato, I. Para todo A ∈ P(X), isto é, para todo subconjunto de X vale A ⊂ A e, portanto, A ≼ A. II. Se A, B ∈ P(X) são tais que A ≼ B e B ≼ A, então A ⊂ B e B ⊂ A, de modo que A = B. III. Finalmente, se A, B, C ∈ P(X) são tais que A ≼ B e B ≼ C, então A ⊂ B e B ⊂ C, o que implica A ⊂ C, isto é, A ≼ C. O exemplo anterior ilustra o caráter abstrato que uma relação de ordem pode ter. Entretanto, na aritmética, as relações de ordem que aparecem com mais frequên- cia são aquelas definidas em conjuntos numéricos e, portanto, mais manipuláveis. O próximo exemplo ilustra que, além da relação menor que ou igual a, a relação de divisibilidade é de ordem no conjunto dos números naturais. Σxemρlo 30 A relação ℛ definida por: xℛy ⇔ x divide y no conjunto dos números naturais, é uma relação de ordem. De fato: I. Todo número natural x divide a si próprio, ou seja, ℛ é reflexiva. II. Se x e y são números naturais tais que x divide y e y divide x, então, neces- sariamente, x = y. Portanto, ℛ é antissimétrica. O livro Álgebra destaca-se pela abordagem simples, clara e direta. Os principais pontos fortes são os muitos exemplos, os exercícios resolvidos e os exercícios propostos. Vale conferir tanto esse título quanto os demais disponí- veis na mesma coleção. SPIEGEL, M. R.; MOYER, R. E. 4. ed. Porto Alegre: Bookman, 2014. (Coleção Schaum) Livro (Continua) 32 Aritmética III. Se x, y e z são números naturais tais que x divide y e y divide z, então, x divi- de z. Isso mostra que ℛ é transitiva. Novamente, para melhor formalizarmos os argumentos anteriores, é necessá- rio que estudemos de maneira rigorosa a divisibilidade no conjunto dos números naturais. Um dos tipos mais importantesde relações é a de equivalência, que será estu- dada na próxima seção 1.5 Relações de equivalência Vídeo Na matemática existem situações em que dois objetos têm propriedades idên- ticas, tornando-se indistinguíveis na teoria. Por exemplo, na Geometria Analítica te- mos o conceito de vetor. Quaisquer dois segmentos de reta que possuam o mesmo comprimento, a mesma direção e o mesmo sentido representam o mesmo vetor e, portanto, são indistinguíveis do ponto de vista da Geometria Analítica. Isso acontece em diversas outras instâncias na matemática. A formalização des- sa ideia passa pelo conceito de relação de equivalência, objeto de estudo desta seção. Uma relação de equivalência é uma relação em um conjunto que permite iden- tificar elementos que tenham determinada propriedade. De maneira precisa, a de- finição é dada a seguir. Definição Seja X um conjunto. Uma relação ℛ ⊂ X × X em um conjunto X é dita uma relação de equi- valência em X se I. ℛ é reflexiva, ou seja, se x ∈ X, então xℛx. II. ℛ é simétrica, ou seja, se x, y ∈ X são tais que xℛy, então yℛx. III. ℛ é transitiva, ou seja, se x, y, z ∈ X são tais que xℛy e yℛz, então xℛz. Se xℛy dizemos que “x é equivalente a y módulo ℛ”. Por definição, dizer que ℛ é uma relação em X significa que ℛ ⊂ X × X, ou seja, ℛ é um conjunto de pares ordenados de X. Além disso, a notação xℛy significa que (x, y) ∈ ℛ. Em particular, qualquer subconjunto ℛ ⊂ X × X é um candidato a ser uma relação de equivalência em X. Para verificar se ℛ ⊂ X × X é, de fato, uma relação de equivalência, é necessário testar a validade das propriedades I, II e III da definição anterior. Mas qual é a relevância de uma relação de equivalência? Isso ficará claro ao longo do texto, principalmente quando introduzirmos o conjunto dos números in- teiros. Por enquanto, vamos contemplar alguns exemplos. Teoria elementar dos conjuntos 33 Σxemρlo 31 Seja L o conjunto das retas no plano. Definimos a relação ℛ em L da seguinte forma: ℓ1ℛℓ2 ⇔ ℓ1 é paralela à ℓ2 Isso define uma relação de equivalência em L. De fato, toda reta no plano é paralela a si própria, ou seja, ℛ é reflexiva. Além disso, se a reta ℓ1 é paralela à reta ℓ2, então a reta ℓ2 é paralela à reta ℓ1, isto é, ℛ é uma relação simétrica. Finalmente, se uma reta ℓ1 é paralela à uma reta ℓ2 e ℓ2, por sua vez, é paralela a outra reta ℓ3, então, necessariamente, ℓ1 é paralela a ℓ3, mostrando assim, que ℛ é uma relação transitiva. Sendo reflexiva, simétrica e transitiva, ℛ é uma relação de equivalência em L. O exemplo anterior possui caráter geométrico. Em contraste, o próximo exem- plo tem caráter puramente algébrico. Σxemρlo 32 Considere o conjunto ℤ dos números inteiros. Definimos xℛy ⇔ existe k ∈ ℤ tal que y – x = 2k Esta é uma relação de equivalência em ℤ. De fato, se x ∈ ℤ, então x – x = 0 = 2 ⋅ 0 e, portanto, xℛx. Isso significa que ℛ é reflexiva. Suponha então que x, y ∈ ℤ são tais que xℛy. Nesse caso, existe k ∈ ℤ tal que y – x = 2k Consequentemente, x – y = –2 ⋅ k = 2 ⋅ (–k) Como –k ∈ ℤ, temos, em particular, que yℛx. Isso revela a simetria de ℛ. Finalmente, ℛ é transitiva. Para demonstrar isso, suponha que x, y, z ∈ ℤ são tais que xℛy e yℛz. Por definição, existem k, l ∈ ℤ tais que y – x = 2k e z – y = 2l Consequentemente, z – x = (z – y) + (y – x) = 2l + 2k = 2 ⋅ (l + k) Como l + k ∈ ℤ, deduzimos que xℛz, mostrando assim a transitividade. 34 Aritmética Existem inúmeros exemplos de relações de equivalência espalhados por toda a matemática. Por isso, ao longo do texto, alguns exemplos surgirão naturalmente para esclarecer a teoria abordada. Agora, vamos discutir outros aspectos teóricos a respeito das relações de equivalências. São eles: as noções de classe de equivalên- cia e o conjunto quociente. Dada uma relação de equivalência ℛ em um conjunto X e um elemento qualquer x ∈ X, é natural indagar quais são os elementos de X que se relacionam com x mó- dulo ℛ. Esse raciocínio conduz diretamente à definição de classe de equivalência, apresentada a seguir. Definição Seja ℛ uma relação de equivalência em um conjunto X e x ∈ X. O conjunto [x] ≔ {y ∈ X | yℛx} é denominado de classe de equivalência de x módulo ℛ. Nesse caso, dizemos também que x é um representante dessa classe de equivalência. Neste momento, é necessário fazermos um alerta. Por definição, a classe de equivalência [x] representada por x ∈ X é um subconjunto de X, ou seja, não é um elemento de X. Isto será importante posteriormente. Essa definição parece ser bastante abstrata em um primeiro momento e, para esclarecer, vamos discutir isso nos exemplos a seguir. Σxemρlo 33 No Exemplo 31 demonstramos que a relação xℛy ⇔ existe k ∈ ℤ tal que y – x = 2k definida em ℤ, é uma relação de equivalência. Vamos determinar algumas classes de equivalência. Por exemplo, • A classe de equivalência do 0 (zero): [0] = {y ∈ ℤ | yℛ0} = {y ∈ ℤ | ∃ k ∈ ℤ tal que y – 0 = 2k} = {2k | k ∈ ℤ} ou seja, [0] é o conjunto dos inteiros pares. • A classe de equivalência do 1 (um): [1] = {y ∈ ℤ | yℛ1} = {y ∈ ℤ | ∃ k ∈ ℤ tal que y – 1 = 2k} = {2k + 1 | k ∈ ℤ} Portanto, [1] coincide com o conjunto de todos os inteiros ímpares. • A classe de equivalência do 2 (dois): [2] = {y ∈ ℤ | yℛ2} = {y ∈ ℤ | ∃ k ∈ ℤ tal que y – 2 = 2k} = {2 ⋅ (k + 1) | k ∈ ℤ} e este é o conjunto dos inteiros pares, ou seja, [2] = [0]. Teoria elementar dos conjuntos 35 Vamos explorar um exemplo adicional, a fim de fixar o entendimento. Σxemρlo 34 Considere o conjunto ℝ2 = {(x, y) | x, y ∈ ℝ}, sendo ℝ o conjunto dos números reais. Definimos a relação (x, y)ℛ(z, w) ⇔ y = w Temos que ℛ é uma relação de equivalência em ℝ2. Com efeito, a relação ℛ é reflexiva, pois se (x, y) ∈ ℝ2, temos (x, y)ℛ(x, y), uma vez que y = y. A relação ℛ também é simétrica. De fato, se (x, y), (z, w) ∈ ℝ2 são tais que (x, y)ℛ(z, w), então y = w, de forma que w = y e, portanto, (z, w)ℛ(x, y). Finalmente, ℛ é transitiva. Para mostrar isso, considere (x, y), (z, w), (u, v) ∈ ℝ2 tais que (x, y)ℛ(u, v) e (u, v)ℛ(z, w). Nesse caso, y = v e v = w e, por consequência, y = w, mostrando que (x, y)ℛ(z, w). Agora, a título de ilustração, note que [(0, 0)] = {(z, w) ∈ ℝ2 | (z, w)ℛ(0, 0)} = {(z, w) ∈ ℝ2 | w = 0} = {(z, 0) | z ∈ ℝ} Geometricamente, [(0, 0)] corresponde a todo o eixo das abscissas. Em geral, qualquer classe de equivalência da forma [(x, 0)] será igual a [(0, 0)]. Generalizando, qualquer classe de equivalência da forma [(x, y)] será igual ao conjunto {(z, y) | z ∈ ℝ}, ou seja, geometricamente, [(x, y)] é uma reta paralela ao eixo das abscissas cortando o eixo das ordenadas na altura y. Toda relação de equivalência ℛ em um conjunto X dá origem ao conjunto das classes de equivalência representadas pelos elementos de X, definido a seguir. Definição Sejam X um conjunto e ℛ uma relação de equivalência em X. O conjunto X/ℛ ≔ {[x] | x ∈ X} é denominado de quociente de X módulo ℛ. Portanto, por definição, os elementos de X/ℛ são determinados subconjuntos de X. Em particular, X/ℛ não é um subconjunto de X, mas sim um subconjunto do conjunto das partes de X. É necessário esclarecer a definição de conjunto quociente por meio de al- guns exemplos. Verifique que [x] = [0] ou [x] = [1], qualquer que seja o número inteiro x. Desafio 36 Aritmética Σxemρlo 35 Considere a relação de equivalência ℛ em ℤ definida no Exemplo 31, isto é, xℛy ⇔ ∃ k ∈ ℤ tal que y – x = 2k Conforme a discussão apresentada no Exemplo 32, temos que ℤ/ℛ = {[0], [1]} Lembre-se que [0], nesse exemplo, coincide com o conjunto dos inteiros pares, enquanto [1] coincide com o conjunto dos inteiros ímpares. Acompanhe mais um exemplo. Σxemρlo 36 Considere a relação de equivalência ℛ em ℝ2 definida no Exemplo 33, isto é, (x, y)ℛ(z, w) ⇔ y = w Neste caso, conforme a discussão apresentada naquele exemplo, temos ℝ2/ℛ = {{(x, y) | x ∈ ℝ} | y ∈ ℝ} Para evitar confusões, é necessário tratar um pouco a respeito desse conjunto. Primeiro, os elementos de ℝ2/ℛ são subconjuntos de ℝ2da forma {(x, y) | x ∈ ℝ} Segundo, existe um conjunto desse para cada y ∈ ℝ. Em particular, note que ℝ2/ℛ consiste em infinitas classes de equivalência. O próximo resultado teórico resume as principais propriedades das classes de equivalência. Teorema Seja X um conjunto e ℛ uma relação de equivalência em X. São válidas as afirmações I. Se x ∈ X, então x ∈ [x]. II. Se x, y ∈ X, então [x] = [y] se, e somente se, xℛy. III. Se x, y ∈ X, então [x] = [y] ou [x]∩[y] = ϕ. IV. X = ⋃x∈X[x]. Teoria elementar dos conjuntos 37 Demonstração I. Se x ∈ X, então xℛx, pois ℛ é reflexiva. Portanto, x ∈ [x], já que [x] consiste em todos os elementos de X que se relacionam com x por meio de ℛ. II. Se x, y ∈ X são tais que [x] = [y], então x ∈ [x]. Em particular, x ∈ [y] em virtude da igualdade [x] = [y]. Consequentemente, xℛy, pois [y] consiste em todos os elementos de X que se relacionam com y por meio de ℛ. Reciprocamente, suponha que xℛy. O objetivo é demonstrar que vale a igual- dade de conjuntos [x] = [y]. Para tanto, considere z ∈ [x]. Pela definição de [x], temos zℛx. Como, por hipótese, xℛy, segue da transitividade de ℛ que zℛy. Em particular, z ∈ [y]. Isso mostra a inclusão [x] ⊂ [y]. A inclusão contrária é demonstrada de maneira análoga. III. Suponha que [x] ≠ [y] e [x]∩[y] ≠ ϕ. Como [x]∩[y] ≠ ϕ, existe z ∈ [x]∩[y]. Conse- quentemente, z ∈ [x] e z ∈ [y]. Disso, segue que zℛx e zℛy. Pela simetria de ℛ, temos, especialmente, yℛz. Agora, yℛz e zℛx implicam yℛx, já que ℛ é transiti- va. Mas, pelo item II, segue que [x] = [y], contradizendo [x] ≠ [y]. Portanto, não pode valer simultaneamente [x] ≠ [y] e [x]∩[y] ≠ ϕ. Consequentemente, [x] = [y] ou [x]∩[y] = ϕ. IV. Basta mostrar a inclusão X ⊂ ⋃x∈X[x], pois a outra é imediata, dado que cada classe de equivalência [x] é um subconjunto de X. Para verificar a referida inclusão, seja x ∈ X um elemento qualquer. Pelo item I, temos que x ∈ [x]. Mas [x] ⊂ ⋃x∈X[x] e, portanto, x ∈ ⋃x∈X[x]. ∎ O item III do teorema afirma que duas classes de equivalência ou são iguais ou são disjuntas. Já o item IV estabelece que o conjunto quociente de X módulo ℛ forma uma partição do conjunto X, no sentido de que X é uma reunião disjunta dos elementos de X/ℛ. O livro Álgebra moderna, dos autores Hygino H. Do- mingues e Gelson Iezzi, é uma referência clássica no que diz respeito ao ensino de álgebra abstrata. Entre os tópicos abordados, en- contra-se uma exposição detalhada de funções e relações. Em particular, relações de ordem e equi- valência são exploradas com cuidado. DOMINGUES, H. H.; IEZZI, G. 5. ed. São Paulo: Atual, 2003. Livro CONSIDERAÇÕES FINAIS A teoria de conjuntos estabelece os conceitos básicos da matemática. Em particu- lar, deve ser estudada com bastante cuidado e extensivamente. Seu estudo deve ter início tão logo quanto possível para que se possa estabelecer as conexões existentes entre as diversas teorias. Essas conexões estão presentes e são abundantes, acredite! Não é diferente com a aritmética. Desde o início da construção dos números fica evi- dente que os subsídios se encontram na teoria dos conjuntos. Sendo assim, convém dedicar um bom tempo de sua formação para dominar o assunto. Isso possibilitará uma rápida evolução em aspectos como lógica, aritmética, álgebra abstrata etc. ATIVIDADES 1. Qual é a importância do estudo da teoria de conjuntos? 2. Qual é a relevância de se estudar funções? 3. Considere o conjunto X = {1, 2, 3, 4}. Encontre uma relação de equivalência ℛ em X tal que X/ℛ= {{1, 2, 3}, {4}}. Vídeo 38 Aritmética REFERÊNCIAS ALENCAR FILHO, E. Iniciação à lógica matemática. São Paulo: Nobel, 2002. DOMINGUES, H. H.; IEZZI, G. Álgebra moderna. São Paulo: Atual, 2003. IEZZI, G.; MURAKAMI, C. São Paulo: Atual, 2004. (Coleção Fundamentos de Matemática Elementar). HEFEZ, A. Elementos de aritmética. Rio de Janeiro: SBM, 2006. Teoria elementar dos conjuntos 39 40 Aritmética 2 O conjunto dos números naturais A existência dos números naturais é justificada pela necessidade inerente que o ser humano tem de contar. Para a matemática, na quali- dade de ciência, eles desempenham um papel fundamental, pois é com base neles que são construídos os números inteiros e, consequente- mente, os números racionais, reais e complexos. Esse fato explica a necessidade de entender o significado, a natureza e as nuances dos números naturais. Eles estão relacionados à determinada quantidade ou ausência – nú- mero zero –, estando presentes em nosso cotidiano e nossa jornada aca- dêmica. Por isso, neste capítulo, vamos estudar as operações e os axiomas que permitem formalizar esse conjunto numérico. 2.1 Axiomas de Peano Vídeo Como ponto de partida de nosso estudo, questionamos: • O que é um número natural para a matemática? De maneira mais detalhada: • Como se define, rigorosamente, um número natural? • Existe de fato uma definição precisa de um número natural ou os números naturais deveriam ser tratados como conceitos primitivos, isto é, ser aceitos sem definição? • Há um conceito matemático preciso o suficiente para esclarecer a natureza dos números naturais? As respostas para essas perguntas, produtos de esforços no desenvolvimento da matemática ao longo dos séculos, serão fornecidas, de certo modo, ao longo deste capítulo. A matemática é uma das poucas ciências que pode ser desenvolvida de maneira axiomática. Usualmente, o primeiro contato com o processo axiomático é feito no contexto da geometria plana. Embora tenha sido Euclides, em sua obra Elementos, quem desenvolveu parte significativa da geometria euclidiana, foi David Hilbert quem realizou a tarefa de formalizar essa teoria de maneira bastante rigorosa por meio de um processo axiomático. O conjunto dos números naturais 41 O método axiomático tem origem em pressupostos que devem ser claros e convincentes o suficiente para que não sejam contestados. Eles são chamados de axiomas. O método é desenvolvido conforme o esquema a seguir. Vyacheslavikus/Shutterstock Peacefully7/Shutterstock Peacefully7/Shutterstock Escolha Apresentação Resultados A escolha dos axiomas deve ser mínima, no sentido de que deve conter estritamente o necessário para o desenvolvimento da teoria. Depois, cada axioma deve ser apre- sentado como uma verdade além de qualquer dúvida razoável. Se esse não for o caso, a escolha dos axiomas não foi bem feita. Vencida a etapa da escolha dos axiomas, iniciamos a laboriosa e mais fascinante tarefa: a descoberta e a demonstração dos resultados decorrentes dos axiomas. Os resultados obtidos são denominados de proposições ou teoremas e são de- monstrados por meio de métodos de inferência lógica. Uma vez verificados, com todo rigor que a lógica matemática possibilita, esses teoremas e proposições po- dem ser usados em outras demonstrações e, dessa forma, a teoria axiomatizada é construída e evolui sobre suas próprias bases. Não será diferente no estudo dos números naturais. Como essa discussão sobre o método axiomático se relaciona com a temáti- ca proposta nesta seção? A relação é bastante estreita e justificada pelo fato de que, para introduzir o conjunto dos números naturais, é necessário abordar os axiomas de Peano. Estes axiomas fornecem um modelo axiomático para o conjun- to dos números naturais. Como em qualquer teoria axiomática, com base nos axiomas de Peano, obte- mos resultados que naturalmente devem estar de acordo com o entendimento intuitivo de que se tem dos números naturais. Por exemplo, intuitivamente todo mundo concorda com o fato de que quaisquer dois números naturais distintos possuem sucessores distintos ou que existem infinitos números naturais. Para de- monstrar estes resultados, devemos recorrer aos axiomas de Peano. Qualquer propriedade a respeito dos números naturais que se tenha contato no ensino básico pode ser demonstrada por meio dos axiomas de Peano, direta ou indiretamente. Além disso, diversas outras propriedades podem ser derivadas,conforme estudaremos neste capítulo. Para motivar a introdução aos axiomas de Peano, consideremos o conjunto ℕ dos números naturais, estudado durante o ensino básico. Sem qualquer dúvida, é fácil aceitarmos as seguintes observações: I. ℕ é um conjunto. II. o número natural 0 (zero) pertence a ℕ, isto é, 0 ∈ ℕ. III. todo número natural n ∈ ℕ tem um, e só um, sucessor, a saber, o número natural n + 1. 42 Aritmética IV. 0 (zero) não é sucessor de nenhum outro número natural, isto é, não é pos- sível escrever 0 = n + 1 para algum n ∈ ℕ. V. se m, n ∈ ℕ são números naturais diferentes, isto é, se m ≠ n, então, seus sucessores são diferentes, ou seja, m + 1 ≠ n + 1. Para explicar como essas cinco observações dão origem aos axiomas de Peano, precisamos introduzir a função sucessor s: ℕ → ℕ que atribui o sucessor de cada número natural de seu domínio, ou seja, s(n) = n + 1, para todo n ∈ ℕ Note que a observação IV estabelece que 0 (zero) não pertence à imagem da função sucessor. Em particular, a função s não é sobrejetiva, pois em seu contra- domínio existe um elemento que não é imagem de qualquer um dos elementos do domínio. Além disso, a propriedade V significa que s é injetiva, pois se m, n ∈ ℕ são tais que m ≠ n, então s(m) ≠ s(n), isto é, m + 1 ≠ n + 1. As propriedades apresentadas anteriormente dizem respeito ao par (ℕ, s) e po- dem ser resumidas como: (P1) Existe um elemento distinguido 0 ∈ ℕ. (P2) 1 A função s: ℕ → ℕ é injetora e 0 não é um elemento da imagem de s. Uma sexta propriedade evidente, porém menos imediata que aquelas expostas anteriormente, é a seguinte: seja A um conjunto de números naturais, isto é, A ⊂ ℕ. Além disso, suponha que A tenha as seguintes propriedades: (I1) 0 ∈ A. (I2) Se n ∈ A, então s(n) = n + 1 ∈ A. Nessa situação, não há outra conclusão a ser feita a não ser que A = ℕ. A propriedade (I1) significa que o menor número natural possível – 0 (zero) – é um elemento de A. Já (I2) garante que todos os números que sucedem o zero, ou seja, todos os números naturais restantes, também são elementos de A. Em resu- mo, A contém ℕ e, por isso, A = ℕ. Essa argumentação utilizada para mostrar que A = ℕ, com base em (I1) e (I2), é conhecida como princípio da indução finita. Vamos denotar essa propriedade por (P3). Assim, o par (ℕ, s) junto às propriedades (P1), (P2) e (P3) motivam o enunciado a seguir. Definição Axiomas de Peano Existe um par (X, s X ), sendo X um conjunto e s X : X → X uma função que satisfaz: I. Existe um elemento e ∈ X que não é elemento da imagem de s X . II. s X é uma função injetora. III. Princípio da indução finita: se A ⊂ X é um subconjunto tal que: (Continua) As notações (P1) e (P2) significam “Propriedade 1” e “Propriedade 2”, respectivamente. 1 Nesta etapa, reflitam se a infor- mação A = ℕ é válida com base nas propriedades (I1) e (I2). Para refletir O conjunto dos números naturais 43 • e ∈ A; • x ∈ A ⇒ s X (x) ∈ A. Então, A = X. O par (X, s X ) é denominado conjunto de números naturais, a função s X é chamada de função sucessor e s X (x) é o sucessor de x. Certamente a definição de conjunto de números naturais é uma abstração do par (ℕ, s) obtida ao substituir ℕ por um conjunto qualquer X, s por uma função sX e 0 (zero) por um elemento e ∈ X. As propriedades na definição correspondem à abstração das propriedades (P1), (P2) e (P3) observadas para o par (ℕ, s). De agora em diante, nas discussões teóricas, devemos nos limitar ao que afirmam os axiomas de Peano e não ceder à tentação de utilizar propriedades a respeito dos nú- meros naturais que já conhecemos intuitivamente. Essa abordagem evita “trapaças” para chegar a conclusões sem antes ter desenvolvido a teoria com base nos axiomas de Peano. Uma questão intrigante é que os axiomas de Peano postulam a existência de um conjunto de números naturais, deixando margem para suposições de que po- deria existir mais de um conjunto de números naturais. E, de fato, pode existir mais de um conjunto de número naturais. Do ponto de vista teórico, todos os conjuntos de números naturais modelam o par (ℕ, s) e não há nada, na teoria, que permita dizer que devemos escolher um conjunto de números naturais em detrimento de outro. Em algum sentido, todos os conjuntos de números naturais são indistinguíveis e conduzem às mes- mas conclusões. Fundamentados na exposição do parágrafo precedente, vamos fixar definitiva- mente um conjunto de números naturais (X, sX) e adotar as seguintes notações: • ℕ = X; • s = sX; • 0 = e. Essas notações auxiliam a exposição, pois permitem associar o que está sendo discutido ao conhecimento empírico que se tem do conjunto dos números natu- rais. Qual a razão disso? O par (X, sX) consiste em dois objetos que podem ser bas- tante abstratos: X e sX. Portanto, a teoria é feita de modo que X se comporte como o conjunto ℕ = {0, 1, 2, 3, …} – conforme estudado no ensino básico – e sX se comporte como a função sucessor s(n) = n + 1. Vale destacarmos que, apesar da notação (ℕ, s), ℕ e s são modelos abstratos para o conjunto dos números naturais e para a função sucessor, afinal, interpretan- do os axiomas de Peano com essa notação, temos que ℕ é apenas um conjunto e s é apenas uma função s: ℕ → ℕ. Por enquanto, nada se sabe a respeito da natureza de ℕ ou de s, além do que se enuncia nos axiomas de Peano. Sendo assim, como os 44 Aritmética símbolos 1, 2, 3, ... entram nesse contexto? Eles são definidos por meio da função sucessor da seguinte forma: • 1 = s(0); • 2 = s(1); • 3 = s(2). E assim por diante. Nomeamos cada um dos símbolos 0, 1, 2, 3, ... como zero, um, dois, três etc. Desse modo, pela definição temos que: • um é o sucessor de zero; • dois é o sucessor do um; • três é o sucessor de dois; etc. Entretanto, pode surgir mais uma questão: por que não utilizar a notação x + 1 no lugar de s(x)? Nesse estágio, o emprego do sinal + seria artificial, dado que esse símbolo deve representar a adição de número naturais, a qual ainda não foi defini- da. Em um momento oportuno, a adição de números naturais será definida e, com isso, será o caso que s(x) = x + 1. Uma última observação sobre os axiomas de Peano diz respeito ao princípio da indução finita. Ele é estritamente necessário para que possamos demonstrar as propriedades do par (ℕ, s). Para compreendermos essa questão, suponha- mos que exista uma propriedade P a qual desejamos demonstrar que é válida para todo número natural, isto é, para todo elemento de ℕ. Definimos o conjun- to A = {x ∈ ℕ | x cumpre P}. Se for demonstrado que A = ℕ, então, temos que a propriedade (P) é válida para todo número natural, conforme desejado. Justamente nessa etapa entra o princí- pio da indução finita. Para mostrar que A = ℕ verificamos que: • 0 ∈ A; • A é fechado para sucessores, isto é, x ∈ A ⇒ s(x) ∈ A. Uma vez demonstrados esses dois fatos, aplicamos (P3) para deduzir que A = ℕ. Esse argumento estará presente em toda a nossa discussão e convém nos habi- tuarmos a ele desde o início. Essa ideia será utilizada para demonstrar o primeiro resultado teórico dessa seção e ilustra o potencial dos axiomas de Peano. Proposição ℕ = {0}∪{s(n) | n ∈ ℕ} = {0, 1, 2, 3, …} Demonstração Precisamos demonstrar a seguinte propriedade: (P): se x ∈ ℕ, então x = 0 ou existe n ∈ ℕ tal que x = s(n) O conjunto dos números naturais 45 O conteúdo do enunciado da proposição pode ser traduzido ao afirmarmos que (P) é uma propriedade válida para todo número natural, ou seja, basta verificar que o conjunto A = {x ∈ ℕ | P é válida} = {x ∈ ℕ | x = 0 ou existe n ∈ ℕ tal que x = s(n)} é igual ao conjunto dos números naturais. Para tanto, empregando o princípio da indução finita, resta verificarmos que: • 0 ∈ A; • A é fechado para sucessores, isto é, se x ∈ A, então s(x) ∈ A. Pela definição do conjunto A, temos que 0 ∈ A, logo, precisamos verificar apenas que A é fechado para sucessores. Para tanto, tomemos um elemento arbitrário x ∈ A.Nesse caso, temos que x = 0 ou x = s(n) para algum n ∈ ℕ No primeiro caso, em que x = 0, pela definição de A, temos s(x) = s(0) com 0 ∈ ℕ mas isso significa que existe o número natural n = 0 ∈ ℕ tal que s(x) = s(n), garantin- do, assim, que s(x) ∈ A. No segundo caso, quando x = s(n) para algum n ∈ ℕ, temos que s(x) = s(s(n)) Isso significa que existe o número natural m = s(n) ∈ ℕ tal que s(x) = s(m), de- monstrando que s(x) ∈ A. Portanto, pelo princípio da indução finita, temos que A = ℕ, o que encerra a demonstração. ∎ Perceba que a igualdade ℕ = {0, 1, 2, …}, usualmente apresentada como uma definição, foi demonstrada por meio dos axiomas de Peano. Essa igualdade não era evidente? Acontece que não, pois estes postulam a existência de um conjunto ℕ do qual, até então, nada se sabia a respeito, além do que constava nos próprios axiomas de Peano. Portanto, todas as propriedades que consideramos óbvias a respeito dos números naturais precisam ser demonstradas. Para finalizar essa seção, convém resumirmos algumas propriedades a respeito do par (ℕ, s). Teorema São válidas as seguintes afirmações sobre o (ℕ, s): I. ℕ ≠ ∅, isto é, ℕ tem pelo menos um elemento. (Continua) Uma abordagem bastante agradável para os axiomas de Peano pode ser encon- trada na obra Fundamen- tos de Aritmética, escrita por Hygino Hungueros Domingues. É uma excelente introdução à aritmética para aprofundar os tópicos discutidos em nossos estudos. DOMINGUES, H. H. São Paulo: Atual, 1991. Livro 46 Aritmética II. Se x, y ∈ ℕ e x ≠ y, então s(x) ≠ s(y), ou seja, números naturais diferentes possuem sucessores diferentes. III. s(ℕ) = ℕ \ {0}, em outras palavras, o 0 (zero) não é sucessor de nenhum núme- ro natural. Em particular, s(x) ≠ 0 para todo x ∈ ℕ. Demonstração I. Em virtude do axioma (P1), temos que ℕ tem um elemento distinguido, denotado por 0. Ou seja, 0 ∈ ℕ, garantindo que ℕ não é o conjunto vazio, isto é, ℕ ≠ ∅. II. Pelo axioma (P2), temos que s é injetora. Então, se x ≠ y, temos que s(x) ≠ s(y), conforme enunciado. III. Por definição, s(ℕ) = {s(x) | x ∈ ℕ} e, por (P1), temos que 0 ∉ s(ℕ). Isso significa que s(ℕ) ⊂ ℕ \ {0}. Por outro lado, se x ∈ ℕ \ {0}, então x = s(n) para algum n ∈ ℕ, ou seja, x ∈ s(ℕ). Provando que s(ℕ) = ℕ \ {0}. ∎ Agora que já temos, ao nosso dispor, um conjunto de números naturais, podemos introduzir as operações algébricas de adição e de subtração de números naturais. 2.2 Adição de números naturais Vídeo A grande utilidade de ter números à nossa disposição está no fato de ser possí- vel realizar operações algébricas com eles. Entre elas, a mais simples e básica é a adição. Isso não é diferente com números naturais. Mais precisamente, a operação de adição de números naturais permite combi- nar dois números naturais, cada um representando uma quantidade contável da nossa realidade, e obter um terceiro número natural que representa a quantidade total que se tem. É conveniente pensarmos na adição de números naturais como um dispositivo que recebe dois números naturais, efetua determinado procedimento e devolve outro número natural, conforme ilustrado no seguinte esquema: Em Ba Sy /S hu tte rs to ckaa bb a + ba + b++ Nesse esquema, a e b representam números naturais, assim como a + b. Contudo, como podemos definir a + b? Para motivar a definição, vamos observar algumas adições com o número natural dois: 2 + 0 = 2 2 + 1 = 3 (Continua) O conjunto dos números naturais 47 2 + 2 = 4 2 + 3 = 5 A primeira adição, 2 + 0 = 2, deverá ser aceita como definição. A segunda adição, 2 + 1 = 3, pode ser obtida com base na primeira. De fato, note que 2 + 1 = 3 = s(2) = s(2 + 0) A terceira adição pode ser obtida da anterior: 2 + 2 = 4 = s(3) = s(2 + 1) Finalmente, a última adição também pode ser obtida por meio da anterior: 2 + 3 = 5 = s(4) = s(2 + 2) Note que, neste raciocínio, existem dois tipos de adição envolvidas: uma da for- ma 2 + 0 e outra da forma 2 + s(k), com k ∈ ℕ \ {0}. Sendo assim, 2 + 0 = 2 e 2 + s(k) = s(2 + k) para todo k ∈ ℕ \ {0} Isso motiva a seguinte definição: Definição A adição de números naturais é a função +: ℕ × ℕ → ℕ (x, y) → x + y definida por x + 0 = 0 x + s(k) = s(x + k) para todo x ∈ ℕ e k ∈ ℕ \ {0}. A primeira observação acerca dessa definição é o fato de que ela é coerente com o que conhecemos a respeito dos números naturais. Por exemplo, 1 + 0 = 1 1 + 1 = 1 + s(0) = s(1 + 0) = s(1) = 2 1 + 2 = 1 + s(1) = s(1 + 1) = s(2) = 3 1 + 3 = 1 + s(2) = s(1 + 2) = s(3) = 4 Isso ilustra que a definição de adição de números naturais produz os resul- tados previstos. Embora seja esperado, há uma barreira: até o momento não é possível calcularmos 0 + 2, por exemplo, diretamente. De fato, de acordo com a definição, temos: 0 + 2 = 0 + s(1) = s(0 + 1) Contudo, até então, não sabemos que 0 + 1 = 1. Tudo o que sabemos, por ora, é que 1 + 0 = 1. Esse problema será facilmente resolvido a seguir. 48 Aritmética Proposição Se x ∈ ℕ, então 0 + x = x. Demonstração Defina o conjunto de números naturais A = {n ∈ ℕ | 0 + n = n} Vamos aplicar o princípio da indução finita para mostrar que A = ℕ. Por defini- ção, A ⊂ ℕ. Além disso, pela definição de adição de números naturais, temos que 0 + 0 = 0 ou seja, 0 ∈ A. Finalmente, A é fechado para sucessores, pois se n ∈ A, então 0 + n = n e 0 + s(n) = s(0 + n) = s(n) Como s(n) ∈ ℕ satisfaz 0 + s(n) = s(n), temos s(n) ∈ A. Portanto, que A = ℕ. Sendo assim, se x ∈ ℕ, então x ∈ A, isto é, 0 + x = x. ∎ Com essa demonstração, é possível determinarmos 0 + 2. De fato, 0 + 2 = 0 + s(1) = s(0 + 1) = s(1) = 2 Esse resultado nos possibilita a demonstrar as propriedades comutativa e asso- ciativa – dentre outras – que se conhece a respeito da adição de números naturais. Para isso, precisamos estabelecer o resultado preliminar a seguir. Lema Se x, y ∈ ℕ, então vale s(x) + y = s(x + y) = x + s(y) Demonstração Novamente empregamos o princípio da indução finita. Para isso, considere o conjunto: A = {n ∈ ℕ | ∀ m ∈ ℕ, s(m) + n = s(m + n) = m + s(n)} Por definição, A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, pois 0 ∈ ℕ e s(m) + 0 = s(m) = s(m + 0) = m + s(0), para todo m ∈ ℕ Todas as igualdades correspondem à definição de adição de números naturais. Resta verificarmos que A é fechado para sucessores. De fato, se n ∈ A, então s(m) + n = s(m + n) = m + s(n), para todo m ∈ ℕ Lema é uma proposição auxiliar para a demonstração de outro lema, proposição ou teorema. Glossário (Continua) O conjunto dos números naturais 49 Logo, s(m) + s(n) = s(s(m) + n) = s(s(m + n)) = s(m + s(n)) = m + s(s(n)), para todo m ∈ ℕ Isso nos mostra que s(n) ∈ A. Portanto, A = ℕ. Sendo assim, se y ∈ ℕ, então y ∈ A, ou seja, s(x) + y = s(x + y) = x + s(y), para todo x ∈ ℕ ∎ Para esclarecer o conteúdo do lema anterior, consideremos, por exemplo: s(2) + 1 = 3 + 1 = 4 = s(3) = s(2 + 1) e s(2 + 1) = 2 + s(1) pela própria definição de adição de números naturais. O lema anterior será bastante útil para demonstrarmos algumas proprieda- des da adição de números naturais, sendo as mais básicas a comutatividade e a associatividade. A comutatividade da adição mostra-nos que é possível trocar a ordem dos ter- mos ao se realizar a adição sem, entretanto, alterar o resultado, ou seja, a adição a + b, com a, b ∈ ℕ, produz o mesmo resultado que a adição b + a. A associatividade é a propriedade que nos permite trocar os parênteses ao se fazer a adição envolvendo mais que dois números naturais. Isso é importante, pois, pela definição, sabemos adicionar apenas dois números naturais de cada vez. Sendo assim, quando desejamos adicionar os números naturais a, b e c podemos seguir dois caminhos. O primeiro é efetuar a + b e depois realizar a adição com c, e o segundo é efetuar a adição de a com o resultado de b + c. Portanto, há duas alternativas (a + b) + c e a + (b + c) A associatividade da adição garante que essas duas maneiras de realizar a adi- çãoproduzem o mesmo resultado, ou seja: (a + b) + c = a + (b + c) Embora pareçam triviais, essas propriedades são fundamentais para demons- trar bons resultados dentro da teoria, por isso, vamos formalizá-las a seguir. Teorema Se x, y, z ∈ ℕ, então são válidos os itens a seguir. I. Comutatividade: x + y = y + x. 50 Aritmética II. Associatividade: (x + y) + z = x + (y + z). Demonstração A comutatividade é uma aplicação do princípio da indução finita. Para demons- trarmos o item I, definimos: A = {n ∈ ℕ | ∀ m ∈ ℕ, m + n = n + m} O objetivo novamente é mostrar que A = ℕ. Para tanto, note que A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, pois 0 ∈ ℕ e m + 0 = m = 0 + m, para todo m ∈ ℕ Além disso, A é fechado para sucessores, ou seja, se n ∈ A, então s(n) ∈ A. De fato, se n ∈ A, então n ∈ ℕ e m + n = n + m, para todo m ∈ ℕ de modo que s(n) ∈ ℕ e m + s(n) = s(m + n) = s(n + m) = s(n) + m, para todo m ∈ ℕ Nesse ponto foi utilizado o lema demonstrado anteriormente para garantir que s(n + m) = s(n) + m. Com isso, deduzimos que s(n) ∈ A. O princípio da indução finita garante que A = ℕ, o que é suficiente para mostrar a igualdade x + y = y + x para todo x, y ∈ ℕ. Para demonstrarmos a associatividade (propriedade II), o ponto de partida é definir o conjunto auxiliar A = {k ∈ ℕ | ∀ l, m ∈ ℕ, (k + l) + m = k + (l + m)} Por definição, A ⊂ ℕ e, além disso, 0 ∈ A, pois 0 ∈ ℕ e se l, m ∈ ℕ, então (0 + l) + m = l + m = 0 + (l + m) Finalmente, resta-nos mostrar que A é fechado para sucessores. De fato, se k ∈ A, então (k + l) + m = k + (l + m), para todo l, m ∈ ℕ de maneira que (s(k) + l) + m = s(k + l) + m = s((k + l) + m) = s(k + (l + m)) = s(k) + (l + m) mostrando assim que s(k) ∈ A. Pelo princípio de indução finita, A = ℕ. Em particular, se x, y, z ∈ ℕ, então x + (y + z) = (x + y) + z, conforme o enunciado do teorema. ∎ Além da comutatividade e da associatividade, a adição de números naturais tem outras propriedades interessantes. Dentre elas, podemos citar a Lei do Cancela- mento: sempre que dois números a, b ∈ ℕ são tais que x + a = x + b (Continua) O conjunto dos números naturais 51 para algum x ∈ ℕ, segue que a = b. É como se fosse possível cancelarmos o x de ambos os membros da igualdade. Mas como é possível fazer esse cancelamento sem a noção de subtração? Essa pergunta será respondida a seguir. Teorema Sejam x, a, b ∈ ℕ tais que x + a = x + b então, a = b. Demonstração A ideia novamente é utilizar o princípio da indução finita. Para tanto, definimos A = {k ∈ ℕ | ∀ l, m ∈ ℕ; k + l = k + m ⇒ l = m} Note que, por mais estranho que o conjunto A pareça, faz sentido sua definição. Na pior das hipóteses, A seria o conjunto vazio, embora esteja longe de ser o caso. De fato, A é um subconjunto de ℕ que contém 0, pois 0 ∈ ℕ e se l, m ∈ ℕ são tais que 0 + l = 0 + m, então l = m Resta-nos mostrar que A é fechado para sucessores. Com efeito, se k ∈ ℕ e l, m ∈ ℕ são tais que k + l = k + m segue que l = m. Consequentemente, se l, m ∈ ℕ satisfazem s(k) + l = s(k) + m então, aplicando o lema demonstrado anteriormente, obtemos: s(k + l) = s(k + m) Ao aplicarmos a injetividade de s, temos que k + l = k + m. Como k ∈ A, obtemos a igualdade l = m. Isso mostra que s(k) ∈ A. Pelo princípio da indução finita, segue que A = ℕ, o que nos mostra a propriedade desejada. ∎ As publicações dos colóquios de Matemática pela Sociedade Brasileira de Matemática (SBM) são fonte riquíssima de conhecimento. A publicação A Construção dos Números Reais e suas Extensões, dos autores Ivan Aguilar e Marina Sequeiros Dias, de 2015, aborda o conjunto dos números naturais e pode ser utilizada como complemento para o conteúdo desta seção. Acesso em: 7 mai. 2021. https://www.sbm.org.br/coloquio-centro-oeste-4/wp-content/uploads/sites/2/2016/01/Minicurso_6._A_construcao_dos_Reais.pdf Artigo Após discutirmos a adição de números naturais, é conveniente abordarmos a multiplicação de números naturais. https://www.sbm.org.br/coloquio-centro-oeste-4/wp-content/uploads/sites/2/2016/01/Minicurso_6._A_construcao_dos_Reais.pdf 52 Aritmética 2.3 Multiplicação de números naturais Vídeo Nesta seção, estudaremos a multiplicação de números naturais. Esta é uma operação já conhecida – desde os primeiros anos do ensino básico – que usual- mente é desenvolvida com base em um entendimento algorítmico e intuitivo. Entretanto, em nosso estudo, definiremos a multiplicação de números naturais de maneira bastante rigorosa. Quando definimos a adição de números naturais, utilizamos a seguinte estratégia: Zero Inicialmente definimos a adição de um número natural com o 0 (zero). Sucessor Em seguida, definimos a adição de um número natural com o sucessor de outro. Maulaga/Shutterstock Isso foi suficiente para determinarmos a adição de números naturais. A mesma estratégia será utilizada para introduzir a definição da multiplicação de dois núme- ros naturais, a saber: Zero Definimos a multiplicação de um número natural por 0 (zero). Sucessor Em seguida, definimos a multiplicação de um número natural pelo sucessor de outro. Maulaga/Shutterstock Essa estratégia determinará a multiplicação de quaisquer dois números naturais. É possível chegarmos à definição das multiplicações ao lembrar que um núme- ro natural y só pode ter uma de duas formas: y = 0 ou y = s(k), para algum k ∈ ℕ. O conjunto dos números naturais 53 No primeiro caso, definimos x ⋅ 0 = 0, qualquer que seja o número natural x. Isto garante a coerência com o que sabemos intuitivamente sobre a multiplicação de números naturais. Quanto ao segundo caso, é importante lembrarmos que s(k) = k + 1. Logo, a definição de multiplicação deve satisfazer x ⋅ s(k) = x ⋅ (k + 1) = x ⋅ k + x ⋅ 1 = x ⋅ k + x Até o momento, não demonstramos a propriedade distributiva e que x ⋅ 1 = x, pois a multiplicação não foi sequer definida. Entretanto, deve ficar claro que o ar- gumento realizado tem apenas caráter motivador e está fundamentado em conhe- cimentos empíricos sobre os números naturais. Esse tipo de argumento é bastante comum na matemática, frequentemente usado como ponto de partida para algum tipo de abstração. A abstração almejada encontra-se na definição a seguir. Definição A multiplicação de números naturais é a função ·: ℕ × ℕ → ℕ (x, y) → x ⋅ y sendo x ⋅ y o número natural definido como: x ⋅ 0 = 0 x ⋅ s(k) = x ⋅ k + x para todo x ∈ ℕ e k ∈ ℕ \ {0}. A definição enunciada é coerente com o que conhecemos da multiplicação de números naturais do ensino básico. Por exemplo, 2 ⋅ 0 = 0 2 ⋅ 1 = 2 ⋅ s(0) = 2 ⋅ 0 + 2 = 0 + 2 = 2 2 ⋅ 2 = 2 ⋅ s(1) = 2 ⋅ 1 + 2 = 2 + 2 = 4 2 ⋅ 3 = 2 ⋅ s(2) = 2 ⋅ 2 + 2 = 4 + 2 = 6 Notemos que cada uma das multiplicações do número dois por um número natural não nulo é obtida com base no resultado da linha anterior. Uma vez definida a multiplicação de números naturais, é necessário e conve- niente demonstrarmos as principais propriedades – já conhecidas de modo intuiti- vo – dessa nova operação. Proposição Se x ∈ ℕ, então é válido x ⋅ 0 = 0 = 0 ⋅ x (Continua) 54 Aritmética Demonstração A primeira igualdade é a definição da multiplicação de x pelo número natural 0 (zero). A segunda igualdade deve ser demonstrada. Para tanto, vamos aplicar o princípio da indução finita ao conjunto A = {n ∈ ℕ | 0 ⋅ n = 0} Por definição, A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, já que 0 ⋅ 0 = 0 Além disso, A é fechado para sucessores, pois se n ∈ A, então n ∈ ℕ e 0 ⋅ n = 0 o que implica s(n) ∈ ℕ e 0 ⋅ s(n) = 0 ⋅ n + 0 = 0 + 0 = 0 Pelo princípio da indução finita, A = ℕ, demonstrando a propriedade enunciada. ∎ A fim de apresentarmos outras propriedades de interesse a respeito da multipli- cação de números naturais, convém discutirmos um resultado auxiliar enunciado no lema a seguir. Lema Sejam x, y ∈ ℕ, então é válido s(x) ⋅ y = x ⋅ y + y Demonstração Vamos aplicar o princípio da indução finita ao conjunto A = {m ∈ ℕ | ∀ n ∈ ℕ; s(n) ⋅ m = n ⋅ m + m} Primeiro, A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, já que n⋅ 0 = 0 = 0 + 0 = n ⋅ 0 + 0, para todo n ∈ ℕ Além disso, A é fechado para sucessores. Com efeito, se m ∈ A, então m ∈ ℕ e s(n) ⋅ m = n ⋅ m + m, para todo n ∈ ℕ de modo que s(m) ∈ ℕ e s(n) ⋅ s(m) = s(n) ⋅ m + s(n) = (n ⋅ m + m) + s(n) = n ⋅ m + (m + s(n)) = n ⋅ m + (s(n) + m) = n ⋅ m + (n + s(m)) = (n ⋅ m + n) + s(m) = n ⋅ s(m) + s(m) (Continua) O conjunto dos números naturais 55 Isso mostra que s(n) ∈ A sempre que n ∈ A. Portanto, A é fechado para sucesso- res e, assim, A = ℕ, conforme desejado. ∎ Antes de discutirmos as implicações do lema anterior, notemos que ele apre- senta um resultado coerente. Por exemplo, 3 ⋅ 4 = s(2) ⋅ 4 = 2 ⋅ 4 + 4 = 8 + 4 = 12 Portanto, o lema anterior fornece uma maneira alternativa, mas equivalente, de multiplicar números naturais. A primeira consequência do lema recém demonstrado é o fato de que o núme- ro 1 (um) serve como elemento neutro para a multiplicação de números naturais, como demonstraremos a seguir. Proposição Seja x ∈ ℕ, então é válido x ⋅ 1 = x = 1 ⋅ x Demonstração Vamos aplicar o princípio da indução finita ao conjunto A = {n ∈ ℕ | n ⋅ 1 = n = 1 ⋅ n} Primeiro, A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, pois 0 ⋅ 1 = 0 = 1 ⋅ 0 Além disso, A é fechado para sucessores. Para verificar isso, considere n ∈ A. Desse modo, n ∈ ℕ e n ⋅ 1 = n = 1 ⋅ n Logo, usando o lema demonstrado anteriormente, temos que s(n) ⋅ 1 = n ⋅ 1 + 1 = n + 1 = s(n) Por outro lado, 1 ⋅ s(n) = 1 ⋅ n + 1 = n + 1 = s(n) Portanto, s(n) ∈ A, garantindo assim a igualdade A = ℕ e a validade da afirmação enunciada. ∎ Observemos que o lema utilizado na demonstração foi imprescindível para a validação do resultado. Este também será o caso na demonstração da comutativi- dade da multiplicação. 56 Aritmética Essa propriedade afirma que é possível trocar a ordem dos fatores na multipli- cação de números naturais sem alterar o resultado. Acompanhemos a demonstra- ção dessa propriedade a seguir. Teorema Sejam x, y ∈ ℕ, então é válido x ⋅ y = y ⋅ x Demonstração Vamos, mais uma vez, aplicar o princípio da indução finita. Para isso, definimos A = {n ∈ ℕ | ∀ m ∈ ℕ, n ⋅ m = m ⋅ n} Com essa definição, A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, pois 0 ⋅ m = 0 = m ⋅ 0, para todo m ∈ ℕ Além disso, A é fechado para sucessores. Para verificar isso, considere n ∈ A. Dessa forma, n ∈ ℕ e n ⋅ m = m ⋅ n, para todo m ∈ ℕ. Consequentemente, s(n) ∈ ℕ e, aplicando o mesmo lema usado na demonstra- ção anterior, temos que s(n) ⋅ m = n ⋅ m + m = m ⋅ n + m = m ⋅ s(n) Portanto, s(n) ∈ A, permitindo concluir que A = ℕ. ∎ A propriedade comutativa da multiplicação é utilizada constantemente quando se faz um produto de dois números naturais na prática. Por exemplo, quando dese- jamos multiplicar dois por três, fazemos diretamente 2 ⋅ 3 ou 3 ⋅ 2, sem preferência de uma escolha sobre a outra. A próxima propriedade a ser demonstrada, seguindo a lógica do que discutimos com a adição de números naturais, deveria ser a associatividade da multiplicação, ou seja, a capacidade de trocar parênteses de lugar quando realizamos a operação envolvendo mais de dois números naturais. Contudo e, interessantemente, é necessário demonstrarmos primeiro a distri- butividade da multiplicação em relação à adição. Essa propriedade é utilizada para justificar, por exemplo, o seguinte raciocínio: 2 ⋅ (3 + 1) = 2 ⋅ 3 + 2 ⋅ 1 O conjunto dos números naturais 57 Ela representa uma relação de compatibilidade entre as duas operações algébri- cas definidas no conjunto dos números naturais: a adição e a multiplicação. Teorema Sejam x, y, z ∈ ℕ, então vale x ⋅ (y + z) = x ⋅ y + x ⋅ z e (x + y) ⋅ z = x ⋅ z + y ⋅ z Demonstração Será demonstrada apenas a primeira igualdade. A segunda pode ser deduzida de maneira similar. O ponto de partida para demonstrarmos a primeira igualdade é considerar o conjunto A = {k ∈ ℕ | ∀ l, m ∈ ℕ, k ⋅ (l + m) = k ⋅ l + k ⋅ m} Por definição, A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, pois 0 ⋅ (l + m) = 0 = 0 + 0 = 0 ⋅ l + 0 ⋅ m, quaisquer que sejam l, m ∈ ℕ Adicionalmente, A é fechado para sucessores. Para verificarmos isso, considere- mos k ∈ A, ou seja, k ∈ ℕ e k ⋅ (l + m) = k ⋅ l + k ⋅ m, para todo l, m ∈ ℕ Consequentemente, s(k) ∈ ℕ e s(k) ⋅ (l + m) = k ⋅ (l + m) + (l + m) = (k ⋅ l + k ⋅ m) + (l + m) = (k ⋅ l + l) + (k ⋅ m + m) = s(k) ⋅ l + s(k) ⋅ m A penúltima igualdade foi obtida ao utilizarmos a associatividade e a comutativi- dade da adição de números naturais. Em resumo, foi demonstrado que k ∈ A impli- ca s(k) ∈ A, conforme desejado. Pelo princípio da indução finita, A = ℕ, garantindo a validade da afirmação enunciada. ∎ Conforme já mencionado, a distributividade da multiplicação em relação à adi- ção permite demonstrar que a multiplicação de números naturais é associativa. Esse é o conteúdo do próximo resultado. Teorema Sejam x, y, z ∈ ℕ, então é válido 58 Aritmética x ⋅ (y ⋅ z) = (x ⋅ y) ⋅ z Demonstração A ideia é definirmos o conjunto de números naturais: A = {m ∈ ℕ | ∀ k, l ∈ ℕ, k ⋅ (l ⋅ m) = (k ⋅ l) ⋅ m} e mostrarmos que A = ℕ. Para tanto, notemos que 0 ∈ A, pois k ⋅ (l ⋅ 0) = k ⋅ 0 = 0 = (k ⋅ l) ⋅ 0 quaisquer que sejam k, l ∈ ℕ. Adicionalmente, A é fechado para sucessores. Para apontarmos isso, sejam m ∈ A, isto é, m ∈ ℕ e k ⋅ (l ⋅ m) = (k ⋅ l) ⋅ m para todo k, l ∈ ℕ. Consequentemente, s(m) ∈ ℕ e, k ⋅ (l ⋅ s(m)) = k ⋅ (l ⋅ m + l) = k ⋅ (l ⋅ m) + k ⋅ l = (k ⋅ l) ⋅ m + k ⋅ l = (k ⋅ l) ⋅ s(m) Portanto, s(m) ∈ A, mostrando, assim, que A é fechado para sucessores. Consequentemente pelo princípio da indução finita, A = ℕ. ∎ Assim como para a adição de números naturais foi possível demonstrarmos a regra do cancelamento, mesmo sem definirmos uma subtração, também é possí- vel demonstrarmos a regra de cancelamento para a multiplicação, mesmo sem ter sido definida uma divisão. Para enunciarmos e apresentarmos essa regra, é neces- sário estabelecermos o resultado auxiliar a seguir. Lema Sejam m, n ∈ ℕ. Se m ⋅ n = 0, então m = 0 ou n = 0. Demonstração Pela forma contrapositiva, temos que mostrar que se m ≠ 0 e n ≠ 0, então m ⋅ n ≠ 0. Para tanto, escrevemos m = s(k) e n = s(l), com k, l ∈ ℕ. Isso é possível pois m ≠ 0 e n ≠ 0. Consequentemente, m ⋅ n = s(k) ⋅ s(l) = s(k) ⋅ l + s(k) = (k ⋅ l + l) + s(k) = s((k ⋅ l + l) + k) ≠ 0 A última afirmação é consequência do fato de que a imagem de s não contém o número natural 0 (zero), conforme já demonstrado. ∎ Fazendo uso desse lema, é possível demonstrarmos a Lei do Cancelamento para a multiplicação de números naturais a seguir. (Continua) O conjunto dos números naturais 59 Proposição Sejam x, y, ℕ e z ∈ ℕ \ {0}, tais que x ⋅ z = y ⋅ z. Então, x = y. Demonstração O primeiro passo é aplicarmos o princípio da indução finita ao conjunto A = {n ∈ ℕ | ∀ m ∈ ℕ, p ∈ ℕ \ {0}; m ⋅ p = n ⋅ p ⇒ m = n} Por definição, A ⊂ ℕ e, adicionalmente, 0 ∈ A, pois se m ∈ ℕ e p ∈ ℕ \ {0}, são tais que m ⋅ p = 0 ⋅ p e, portanto, m ⋅ p = 0, o que implica, pelo lema anterior, m = 0 ou p = 0. Mas p ≠ 0 e, portanto, m = 0. Sendo assim, temos m = 0 = n, mostrando que 0 ∈ A. Resta-nos veri- ficar que A é fechado para sucessores. Para tanto, consideremos n ∈ A. Isso significa que n ∈ A, e se m ⋅ p = n ⋅ p, para alguns m ∈ ℕ e p ∈ ℕ \ {0}, então m = n. Suponhamos, então, que m ⋅ p = s(n) ⋅ p com m ∈ ℕ e p ∈ ℕ \ {0}. Como s(n) ≠ 0 e p ≠ 0, pelo lema anterior, s(n) ⋅ p ≠ 0. Em particular, m ≠ 0. Consequentemente, existe k ∈ ℕ tal que m = s(k). Logo, k ⋅ p + p = s(k) ⋅ p = m ⋅ p = s(n) ⋅ p = n ⋅ p + p Pela Lei do Cancelamento da adição, resulta que k ⋅ p = n ⋅ p Mas, como n ∈ A, k ∈ ℕ e p ∈ ℕ \ {0}, deduzimos que k = n. Portanto, m = s(n). O que nos mostra que n ∈ A. Pelo princípio da indução finita, A = ℕ, e a propriedade enunciada é válida. ∎ Com respeito ao conteúdo da proposição anterior, é necessário tecermos um aler- ta. Diante da igualdade x ⋅ z = y ⋅ z, com x, y ∈ ℕ e z ∈ ℕ – {0}, é muito tentador efetuar- mos a divisão por z em ambos os membros dessa igualdade. Porém, cuidado, esse argumentonão é aplicável, pois, até o momento, nada se falou de divisão de números naturais. A argumentação correta encontra fundamentos na proposição anterior. A Construção dos Números, escrito por Jamil Ferreira, apresenta de maneira rigorosa e precisa a cons- trução dos conjuntos nu- méricos, desde o conjunto dos números naturais até o conjunto dos números complexos. É uma leitura que pode complementar os estudos a respeito da teoria explorada nesta seção. FERREIRA, J. 3. ed. Rio de Janeiro: SBM, 2013. Livro 2.4 A relação de ordem no conjunto dos números naturais Vídeo No conjunto dos números naturais, além da adição, é possível definirmos a subtração. Contudo, essa operação é definida apenas parcialmente, ou seja, não é definida para todos os números naturais. Isso é esperado, visto que, por exemplo, 60 Aritmética não teria sentido efetuarmos 1 – 2 no conjunto dos números naturais, dado que o resultado não seria um número natural. Geralmente só é possível efetuarmos uma subtração da forma x – y, no conjunto dos números naturais, se x for maior ou igual a y. Isso pressupõe a existência de uma relação de ordem em ℕ e é justamente o conteúdo desta seção. Dados números naturais x, y ∈ ℕ, como decidir se x é maior que ou igual a y? O que permite tomar essa decisão é a existência da adição. Para ilustrarmos esse fato, consideremos os números naturais dois e cinco. Sabemos que cinco é maior que dois. O raciocínio implícito é que uma quantidade representada pelo número natural cinco representa uma quantidade maior que aquela representada pelo nú- mero natural dois. Além disso, para obtermos a maior quantidade, podemos partir da menor e acrescentar unidades. De maneira precisa, consideremos a quantidade dois; é ne- cessário acrescentar três unidades a fim de obtermos cinco, ou seja, 2 + 3 = 5. Portanto, o fato do cinco representar um número natural maior que o número natural dois, fica evidente na igualdade 2 + 3 = 5, a qual revela que é necessário acrescentar uma quantidade positiva ao dois para resultar o cinco. Isso é generali- zado na definição a seguir. Definição Sejam x, y ∈ ℕ, definimos: • x é menor que ou igual a y se existe um número natural p ∈ ℕ tal que y = x + p Nesse caso, escrevemos x ≤ y e podemos dizer que y é maior que ou igual a x. • x é estritamente menor que y se x ≤ y e x ≠ y. Nesse caso, escrevemos x < y e podemos dizer que y é estritamente maior que x. Outra forma de descrevermos x ≤ y é denotarmos y ≥ x. Uma forma distinta de representarmos x < y é escrevermos y > x, nesse caso, dizemos que y é estritamente maior que x. Sempre que se faz alguma definição em matemática, é esperada a dedução de propriedades a partir dela. Essas propriedades devem corroborar com o conheci- mento empírico. Se a definição da relação ≤ (menor que ou igual a) foi feita adequa- damente, será possível, por exemplo, demonstrarmos que todo número natural é maior que ou igual a zero – fato conhecido desde o ensino básico. Além disso, espera-se que todo número natural não nulo seja estritamente maior que 0 e, também, que a ordenação seja preservada a nível de sucessores, ou seja, se x ≤ y, então s(x) ≤ s(y). Essas são as propriedades mais imediatas que decorrem da definição de relação de ordem e serão enunciadas e demonstradas com algumas outras a seguir. O conjunto dos números naturais 61 Proposição Sejam x, y ∈ ℕ, então são válidas as afirmações a seguir: I. x ≥ 0. II. Se x ≠ 0, então x > 0. III. Se x ≤ y, então s(x) ≤ s(y). IV. Se x < y, então s(x) < s(y). V. Vale x < y se, e somente se, existe p ∈ ℕ \ {0} tal que y = x + p. Demonstração I. Se x ∈ ℕ, então x = x + 0. Logo, por definição, 0 ≤ x. II. Suponhamos que x ≠ 0. Por (a), tem-se 0 ≤ x e como x ≠ 0, resulta, por defini- ção, que 0 < x. III. Se x ≤ y, então existe p ∈ ℕ tal que y = x + p. Portanto, s(y) = s(x + p) = s(x) + p. Logo, por definição, s(x) ≤ s(y). VI. Se x < y, então x ≤ y e x ≠ y. Por (c) segue que s(x) ≤ s(y), e como a função suces- sor é injetora, temos que s(x) ≠ s(y). Ao combinarmos essas duas informações, temos que s(x) < s(y). V. Se x < y, então x ≠ y e existe p ∈ ℕ tal que y = x + p. Mas, então, p ≠ 0, pois, do contrário, teríamos y = x + 0 = x, contradizendo x ≠ y. Reciprocamente, su- ponhamos que y = x + p, para algum p ∈ ℕ \ {0}. Por definição da relação “≤”, segue que x ≤ y. Agora, y = x + p com p ≠ 0 implica x ≠ y. Mas, x ≤ y juntamente com x ≠ y significam que x < y. ∎ Vencida essa etapa, é natural indagarmos qual a natureza da relação ≤ (menor que ou igual a), ou seja, que tipos de propriedades são inerentes a essa relação? Evidentemente essa relação deveria ser de ordem, dado que sua definição captura a ordenação dos números naturais que se conhece empiricamente. De fato, esse é o caso, conforme demonstramos a seguir. Teorema A relação ≤ (menor que ou igual a) é uma relação de ordem em ℕ, ou seja, são válidas as propriedades: I. Reflexiva: x ≤ x para todo x ∈ ℕ. II. Antissimétrica: se x, y ∈ ℕ são tais que x ≤ y e y ≤ x, então x = y. III. Transitiva: se x, y, z ∈ ℕ são tais que x ≤ y e y ≤ z, então x ≤ z. (Continua) 62 Aritmética Demonstração I. De fato, se x ∈ ℕ, então x = x + 0, portanto, x ≤ x, pela definição. II. Suponhamos que x ≤ y e y ≤ x. Pela definição, existem p, q ∈ ℕ tais que y = x + p e x = y + q Consequentemente, x + 0 = x = (x + p) + q = x + (p + q) Pela Lei do Cancelamento para a adição, segue que p + q = 0 Mas isso implica p = q = 0. Portanto, y = x + 0 = x. III. Suponhamos que x ≤ y e y ≤ z. Pela definição, existem p, q ∈ ℕ tais que y = x + p e z = y + q Consequentemente, z = y + q = (x + p) + q = x + (p + q) Como p + q ∈ ℕ, deduzimos que x ≤ z. ∎ A relação de ordem ≤ (menor que ou igual a) é denominada de ordem natural de ℕ. Essa terminologia se justifica pelo fato de que ela está de acordo com a forma empírica com a qual comparamos números naturais. Com base no conteúdo desta seção, podemos elaborar um resultado funda- mental: o princípio da tricotomia. Esse princípio tem um enunciado óbvio, afir- mando que dados dois números naturais x, y ∈ ℕ, uma, e apenas uma coisa pode acontecer: x = y, x < y ou y < x. Embora ele pareça bastante simplório, costuma ser usado com frequência na aritmética de números naturais. Sua demonstração baseia-se no resultado auxiliar a seguir. Lema Sejam x, y ∈ ℕ, então são válidas: I. s(x) > x. II. Se y > x, então y = s(x) ou y > s(x). Demonstração I. A igualdade s(x) = x + 1 revela que s(x) ≥ x, então resta verificarmos que s(x) ≠ x. Por contradição, suponhamos que s(x) = x. Nessa situação, teríamos que x + 1 = x + 0. Mas, a Lei do Cancelamento para a adição permitiria deduzir que 1 = 0, ou seja, s(0) = 0. Isto é impossível, pois 0 (zero) não pertence à imagem de s. Portanto, temos que s(x) > x. Na demonstração da propriedade antissimétrica (item II), verifique que p = q = 0. Desafio (Continua) O conjunto dos números naturais 63 II. Suponhamos que y > x, isto é, y ≠ x, e existe p ∈ ℕ \ {0}, tal que y = x + p. Mas como p ≠ 0, é possível escrevermos p = s(q) com q ∈ ℕ. Consequentemente, y = x + p = x + s (q) = s(x) + q Se q = 0, então y = s(x), e se q ≠ 0, tem-se y > s(x). ∎ Utilizando esse resultado, é possível demonstrarmos o princípio da tricotomia, como a seguir. Teorema Sejam x, y ∈ ℕ. Então, uma, e apenas uma das seguintes afirmações é válida: I. x > y II. x = y III. x < y Demonstração A primeira parte da demonstração consiste em verificar que quaisquer duas das afirmações não podem ocorrer simultaneamente. Todas as verificações são realizadas por contradição. • Se fosse possível ocorrer I e II simultaneamente: Existiria p ∈ ℕ \ {0}, tal que x = y + p, e considerando que x = y, resultaria em: x + 0 = x = y + p = x + p Mas pela Lei do Cancelamento para a adição, seguiria que p = 0, uma contradição. • Se fosse possível ocorrer II e III simultaneamente: Existiria p ∈ ℕ \ {0}, tal que y = x + p, e considerandoque x = y, resultaria em: y + 0 = y = x + p = y + p Novamente, pela Lei do Cancelamento para a adição, seguiria que p = 0, uma contradição. • Se fosse possível ocorrer I e III simultaneamente: Existiriam p, q ∈ ℕ \ {0}, tais que y = x + p e x = y + q. Consequentemente, y + 0 = y = x + p = (y + q) + p = y + (p + q) Então, pela Lei do Cancelamento para a adição, seguiria que p + q = 0, desse modo, p = q = 0. Logo, uma contradição. (Continua) 64 Aritmética Em seguida, resta-nos verificar que pelo menos uma das opções entre I e III ocorre. A ideia é proceder por meio do princípio de indução finita. Para tanto, defi- ne-se o conjunto A = {x ∈ ℕ | ∀ y ∈ ℕ, x > y, x = y ou x < y} Por definição, A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, pois para qualquer y ∈ ℕ temos que y > 0. Para fina- lizar, temos que verificar que A é fechado para sucessores. Para tanto, seja x ∈ A, ou seja, x ∈ ℕ e dado y ∈ ℕ, temos: x > y, x = y ou x < y Considerando essa informação, demonstraremos que s(x) > y, s(x) = y ou s(x) < y: • Se y < x, então y < s(y) < s(x), portanto s(x) ∈ A. • Se x = y, então, pelo lema da multiplicação do sucessor de x por y já demons- trado, temos que s(x) = s(y) > y. Logo, s(x) ∈ A. • Se x < y, então, pelo lema da multiplicação do sucessor de x por y já demons- trado, temos que y = s(x) ou y > s(x). Assim, s(x) ∈ A. Isso nos mostra que A é fechado para sucessores. Pelo princípio da indução finita, deduzimos que A = ℕ, demonstrando, desse modo, a propriedade enunciada. ∎ A relação de ordem estudada nessa seção será fundamental em outros está- gios do estudo da aritmética. Por exemplo, ela servirá como ponto de partida para definirmos uma relação de ordem no conjunto dos inteiros. Além disso, é possível demonstrarmos uma das propriedades fundamentais do conjunto dos números naturais: o princípio da boa ordenação, nosso objetivo de estudo a partir de agora. 2.5 Princípio da boa ordenação Vídeo Finalmente, apresentamos agora um resultado teórico que tem diversas aplica- ções, chamado de princípio da boa ordenação. Embora a demonstração desse princípio seja elaborada, seu enunciado é sim- ples de ser compreendido. Apesar de ser um argumento que não precise de de- monstração, a título de rigor, vamos demonstrar. Isso é importante pois lhe confere maturidade e segurança ao tratar do assunto. Para motivar a discussão, observemos que qualquer número natural x satisfaz x ≥ 0. Nesse sentido, e considerando que ≤ (menor que ou igual a) é uma relação de ordem, podemos dizer que 0 (zero) é o menor elemento do conjunto dos números naturais. Em outras palavras, o conjunto dos números naturais possui um menor elemento. Acontece que isso é válido para qualquer subconjunto não vazio de nú- meros naturais. Por exemplo, se A = {2k + 1 | k ∈ ℕ}, então A é um conjunto não vazio de nú- meros naturais que tem 1 (um) como o menor elemento, dado que A = {1, 3, 5, …}. De maneira geral, todo subconjunto não vazio A ⊂ ℕ possui um menor elemento. Esse é o conteúdo do princípio da boa ordenação. O conjunto dos números naturais 65 A demonstração do princípio da boa ordenação é um tanto complexa e, para simplificar, convém estabelecermos o resultado auxiliar enunciado e demons- trado a seguir. Lema Sejam x, y ∈ ℕ, então x < y se, e somente se, s(x) ≤ y. Demonstração Suponhamos que x < y. Nesse caso, existe p ∈ ℕ \ {0}, tal que y = x + p. Mas como p ≠ 0, é possível escrevermos p = s(q), para algum q ∈ ℕ. Consequentemente, y = x + p = x + s(q) = s(x) + q. Portanto, s(x) ≤ y. Por outro lado, suponhamos que s(x) ≤ y. Diante disso, existe p ∈ ℕ tal que y = s(x) + p. De modo consequente, y = x + s(p). Como s(p) ≠ 0, deduzimos que x < y. ∎ Como aplicação desse resultado auxiliar, vamos demonstrar o princípio da boa ordenação para o conjunto dos números naturais. Teorema – O princípio da boa ordenação Se A é um subconjunto não vazio de ℕ, então existe r ∈ A, tal que r ≤ a para todo a ∈ A. Demonstração Inicialmente, definimos o conjunto auxiliar X = {x ∈ ℕ | ∀ a ∈ A; x ≤ a} Então X ≠ ℕ. Para vermos isso, tomemos a0 ∈ A. É possível encontrarmos a0, pois A ≠ ∅. Mas, então, s(a0) ∉ X, pois, do contrário, seguiria que s(a0) ≤ a0 e, pelo lema demonstrado anteriormente, resultaria em a0 < a0, contradizendo o princípio da tricotomia, já que sempre é válido a0 = a0. Agora, o conjunto X não é fechado para sucessores. Para verificarmos, suponha- mos que X fosse fechado para sucessores: nesse caso, teríamos, pelo princípio da indução finita, que X = ℕ, pois X também contém o 0 (zero), uma vez que 0 ≤ a, para todo a ∈ A. Mas isso contradiz X ≠ ℕ. Portanto, existe r ∈ X, tal que s(r) ∉ X. Em particular, r ≤ a para todo a ∈ A. A ideia é mostrarmos que r ∈ A. Para isso, se r ∉ A, então r ≠ a para todo a ∈ A. Logo, pela tricotomia, r < a ou r > a, qualquer que seja a ∈ A. Combinando isso com o fato que r ≤ a, deduzimos que r < a. Mas, r < a para todo a ∈ A, junto ao lema demonstrado anteriormente, implicam s(r) ≤ a, para todo a ∈ A, o que significa que s(r) ∈ X, uma contradição. (Continua) 66 Aritmética Portanto, a afirmação r ∉ A é falsa, ou seja, r ∈ A. Logo, r é o menor elemento de A, conforme queríamos demonstrar. ∎ O princípio da boa ordenação costuma ser usado para mostrar que alguma pro- priedade P é falsa para todo número natural. A estratégia é supor que ela é válida para alguns números naturais. Em particular, o conjunto A = {x ∈ ℕ | x satisfaz P} é um subconjunto não vazio de números naturais. Consequentemente, pelo princípio da boa ordenação, existe um menor elemen- to x0 ∈ A. Usando-se esse x0 será obtido uma contradição. Isso demonstrará que a suposição de que P era válida para alguns números naturais é falsa, ou seja, a propriedade P é falsa para todo número natural. CONSIDERAÇÕES FINAIS O conjunto dos números naturais, embora seja conhecido desde o ensino básico, não pode ser compreendido de maneira completa sem a discussão de seus aspectos teóricos. Essa discussão permite um diálogo com veracidade e precisão quando o assunto é o conjunto dos números naturais. Além disso, a teoria abordada neste capítulo ilustra como a matemática se desenvolve sobre suas próprias bases, um resultado derivado de outro e todos alcançados dos pressupostos iniciais. Esse tipo de desenvolvimento faz com que a intuição seja aprimorada, visto que é por meio da observação de elementos concretos que chegamos à abstração da teoria. Nesse caminho, muitas habilidades são desenvolvidas, inicialmente com o aperfeiçoamento do raciocínio abstrato e culminando com a sofisticação na argu- mentação. Todos esses elementos, além de serem úteis, são necessários para um bom domínio do assunto. ATIVIDADES 1. Qual seria a estratégia para demonstrar que todo número natural n ≠ 0 é sucessor de outro natural? 2. Quais são os ganhos propiciados pela abordagem axiomática do conjunto dos números naturais? 3. Comente a respeito da importância do princípio da indução finita no desenvolvimento da teoria deste capítulo. REFERÊNCIAS DOMINGUES, H. H. Fundamentos de aritmética. São Paulo: Atual, 1991. DOMINGUES, H. H.; IEZZI, G. Álgebra Moderna. São Paulo: Atual, 1982. FERREIRA, J. A Construção dos Números. Rio de Janeiro: SBM, 2011. O Olimpédia é um site que aborda assuntos de olimpíadas científicas. Nele é possível encontrar- mos uma aplicabilidade interessante do princípio da boa ordenação. A exposição é clara, rigorosa e interessante. Vale a pena conferir! Disponível em: https://olimpedia. fandom.com/pt-br/wiki/Princ%- C3%ADpio_da_Boa_Ordena%- C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 7 mai. 2021. Site Vídeo https://olimpedia.fandom.com/pt-br/wiki/Princ%C3%ADpio_da_Boa_Ordena%C3%A7%C3%A3o https://olimpedia.fandom.com/pt-br/wiki/Princ%C3%ADpio_da_Boa_Ordena%C3%A7%C3%A3o https://olimpedia.fandom.com/pt-br/wiki/Princ%C3%ADpio_da_Boa_Ordena%C3%A7%C3%A3o https://olimpedia.fandom.com/pt-br/wiki/Princ%C3%ADpio_da_Boa_Ordena%C3%A7%C3%A3o O conjunto dos números inteiros 67 3 O conjunto dosnúmeros inteiros Uma vez que conhecemos o conjunto dos números naturais, percebemos que muitos problemas não podem ser resolvidos por meio desse conjunto. Por exemplo, a simples equação x + 2 = 1 não pode ser resolvida em . Então, é necessário introduzirmos os números que permitem resolver esse tipo de equação: os números inteiros. O conjunto dos números inteiros é nosso objeto de estudo neste capítulo. Por meio do conjunto dos números naturais e de sua adição, definiremos o conjunto dos números inteiros com base em determinada relação de equiva- lência. Com essa definição, é possível demonstrar rigorosamente as proprieda- des da adição, subtração e multiplicação de números inteiros. 3.1 O conjunto ℤ Vídeo A motivação para estender o conjunto dos números naturais vem da necessida- de de resolver equações do tipo x + b = a com a, b ∈ ℕ. Por exemplo, a equação x + 1 = 0 não tem solução no conjunto dos números naturais. Entretanto, em muitas situa- ções é desejável resolvê-la. Para sair desse impasse, é necessário introduzirmos “números” não pertencentes ao conjunto dos números naturais. Esses novos nú- meros serão todas as soluções de quaisquer equações da forma x + b = a possíveis de formar variando a, b ∈ ℕ. O ponto de partida é notar que equações da forma x + b = a com a, b ∈ ℕ são parametrizadas por pares de números naturais (a, b) em ℕ × ℕ, ou seja, uma equa- ção do tipo x + b = a corresponde ao par (a, b), e, reciprocamente, um par (a, b) corresponde à equação x + b = a. Por exemplo, temos a correspondência entre a equação x + 2 = 1 e o par (1, 2) de números naturais. Agora, relembrando o que aprendemos na educação básica, a solução para a equação x + 2 = 1 é x = –1. Em particular, seria tentador definir –1 = (1, 2) 68 Aritmética já que o par (1, 2) está associado a uma equação cuja solução deveria ser –1. Isso tem sentido, pois o objeto (1, 2) é bem definido, ou seja, satisfaz a equação. Embora a ideia seja boa, há um problema de ambiguidade: por que não definir –1 = (2, 3) ou –1 = (3, 4) dado que as equações correspondentes x + 3 = 2 e x + 4 = 3 também teriam –1 como solução? De fato, não haveria nenhuma razão para es- colher (1, 2) em prejuízo dos pares (2, 3) e (3, 4) para representar o –1. A solução para resolver esse problema de ambiguidade é a mais simples possível. Em vez de definir –1 como um par ordenado em particular, que corresponde a uma equação com solução –1, definimos –1 como o conjunto de todos os pares ordenados de nú- meros naturais que dão origem a uma equação de solução –1. Mais precisamente, definimos –1 = {(k, k + 1) | k ∈ ℕ} = {(0, 1), (1, 2), (2, 3), …} É possível formalizar essa discussão por meio do emprego de relações de equiva- lência. De fato, o problema da ambiguidade levantado anteriormente é resolvido ao identificarmos todos os pares ordenados de números naturais que dão origem a uma equação da forma x + b = a com a mesma solução. Contudo, note que dois pares (a, b) e (c, d) em ℕ x ℕ dão origem a equações com a mesma solução se, e somente se, a + d = b + c De fato, se (a, b) e (c, d) fornecem a solução k para as equações x + b = a e x + d = c então k + b = a e k + d = c o que implica a + d = (k + b) + d = b + (k + d) = b + c Por outro lado, suponha que os pares (a, b) e (c, d) são tais que a + d = b + c Então, nesse caso, as equações x + b = a e x + d = c têm a mesma solução. Com efeito, x + b = a ⇒ (x + b) + c = a + c ⇒ x + (b + c) = a + c ⇒ x + (a + d) = a + c ⇒ a + (x + d) = a + c ⇒ x + d = c Portanto, a solução de x + b = a é solução de x + d = c. Analogamente, toda solu- ção de x + d = c é solução de x + b = a. Essa discussão motiva a proposição a seguir. O conjunto dos números inteiros 69 Proposição A relação ℜ ⊂ ℕx ℕ definida por (a, b) ℜ (c, d) ⇔ a + d = b + c é uma relação de equivalência. Além disso, [(a, b)] = {(x, y) ∈ ℕ × ℕ| (x, y) ℜ (a, b)} = {(x, y) ∈ ℕ × ℕ| x + b = y + a} Demonstração É necessário demonstrar que ℜ é reflexiva, simétrica e transitiva. Com efeito: • ℜ é reflexiva. Se (a, b) ⊂ ℕ x ℕ, então a + b = b + a já que a operação adição (+) é comutativa em ℕ. Isso nos mostra que (a, b) ℜ(a, b), ou seja, ℜ é reflexiva. • ℜ é simétrica. Se (a, b) e (c, d) são elementos de ℕ x ℕ tais que (a, b) ℜ (c, d), então temos que a + d = b + c o que implica, pela comutatividade de + em ℕ, c + b = d + a ou seja, (c, d) ℜ (a, b). • ℜ é transitiva. Suponha que (a, b), (c, d) e (e, f) são elementos de ℕ x ℕ tais que (a, b) ℜ (c, d) e (c, d) ℜ (e, f) Por definição, isso significa que a + d = b + c e c + f = d + e Logo, a + f + (c + d) = (a + d) + (c + f) = b + c + d + e = (b + e) + (c + d) Pela lei do cancelamento da adição em , temos que a + f = b + e Portanto, (a, b) ℜ (e, f). Finalmente, chegamos à principal definição desta seção. 70 Aritmética Definição O conjunto dos números inteiros é o quociente � � �= x R sendo ℜ ⊂ ℕ × ℕ a relação de equivalência (a, b) ℜ (c, d) ⇔ a + d = b + c Note que todo (a, b) ∈ ℕ x ℕ determina a classe de equivalência [(a, b)] dada por [(a, b)] = {(x, y) ∈ ℕ x ℕ | (x, y) ℜ(a, b)} = {(x, y) ∈ ℕ x ℕ | x + b = y + a} Por exemplo, [(2, 1)] = {(x, y) | x + 1 = y + 2} = {(1, 0), (2, 1), (3, 2), …} e [(1, 2)] = {(x, y) | x + 2 = y + 1} = {(0, 1), (1, 2), (2, 3), …} Note que [(1, 2)] coincide com o conjunto com o qual definimos o número –1 na discussão introdutória desta seção. Existe uma maneira simples de representar as classes de equivalência [(a, b)]. Para compreender isto, note que sempre que dois números naturais a, b ∈ ℕ sa- tisfazem a ≥ b, é possível definir a subtração a – b. De fato, a ≥ b, por definição, significa que a = b + k para algum k ∈ ℕ. Assim, temos que esse elemento k ∈ ℕ é o único número natural que cumpre a = b + k. De fato, se l ∈ ℕ também satisfaz a = b + l, então, pela lei do cancelamento da adição, teríamos que k = l. Em particular, é possível definir a – b ≔ k Note que estamos definindo a subtração de a com b como o único número inteiro k que satisfaz a = b + k. Novamente, devemos enfatizar que isso apenas tem sentido quando a ≥ b. Em particular, essa operação de subtração está definida apenas no subconjunto {(a, b) ∈ ℕ x ℕ| a ≥ b} ⊂ ℕ x ℕ e não em ℕ x ℕ, como é o caso da adição. Mas, afinal, qual é a razão dessa discus- são? Ela permite demonstrar que qualquer classe de equivalência [(a, b)] ∈ ℤ, isto é, qualquer número inteiro, pode ser representada de uma forma bastante particular, como demonstrado a seguir. Teorema Se (a, b) ∈ ℕ x ℕ, então existe um único c ∈ ℕ, de modo que [(a, b)] = [(c, 0)] ou [(a, b)] = [(0, c)] O conjunto dos números inteiros 71 Demonstração Se (a, b) ∈ ℕ xℕ, então a ≥ b ou b ≥ a. • Se a ≥ b, então temos que [(a, b)] = [(a – b, 0)] pois a + 0 = b + (a – b) Logo, basta tomar c := a – b ∈ℕ. Agora, se b ≥ a, então temos que [(a, b)] = [(0, b – a)] pois a + (b – a) = b + 0 Nesse caso, basta tomar c := b – a ∈ℕ. Finalmente, resta mostrar a unicidade. Para isso, se d ∈ℕ é tal que [(a, b)] = [(d, 0)] então a + 0 = b + d ⇔ a = b + d ⇒ d = a – b Analogamente, é demonstrada a outra situação. Para ilustrar o resultado anterior, note que: • [(1, 2)] = [(0, 2 – 1)] = [(0, 1)] • [(2, 1)] = [(2 – 1, 0)] = [(1, 0)] • [(3, 1)] = [(3 – 1, 0)] = [(2, 0)] • [(1, 3)] = [(0, 3 – 1)] = [(0, 2)] Com isso, temos que, por exemplo: [(1, 2)] = [(0, 1)] = {(x, y) ∈ ℕ x ℕ | (x, y) ℜ (0, 1)} = {(x, y) ∈ ℕ x ℕ | x + 1 = y + 0} = {(x, x + 1) | x ∈ ℕ} Analogamente, [(2, 1)] = [(1, 0)] = {(x, y) ∈ ℕ x ℕ | (x, y) ℜ (1, 0)} = {(x, y) ∈ ℕ x ℕ | x + 0 = y + 1} = {(y + 1, y) | y ∈ ℕ} 72 Aritmética Novamente, note que o conjunto [(1, 2)] coincide com o conjunto com o qual de- finimos o –1 no início da seção. A propósito, para esclarecer alguns detalhes, vamos introduzir as seguintes notações: O número inteiro zero é definido como 0ℤ = [(0, 0)]. Se k ∈ ℕ, definimos o inteiro positivo k como kℤ = [(k, 0)]. Se k ∈ ℕ, definimoso inteiro negativo k como –kℤ = [(0, k)]. Por exemplo: • 1ℤ= [(1, 0)] • –1ℤ = [(0, 1)] • 2ℤ = [(2, 0)] • –2ℤ = [(0, 2)] Com isso, podemos denotar ℤ = {…, –2ℤ, –1ℤ, 0ℤ, 1ℤ, 2ℤ, …} Geralmente, como é inconveniente carregar a notação kℤ, escrevemos apenas k em vez de kℤ. Entretanto, devemos ter em mente que kℤ e k são objetos diferentes. Então, por que no ensino básico ensinam que todo número natural é um número inteiro? Isso ocorre pelo fato de existir uma “cópia” do conjunto dos números natu- rais dentro do conjunto dos números inteiros. Isso significa que existe um subcon- junto de ℤ que está em bijeção comℕ, como mostra o teorema a seguir. Teorema A função f: ℕ → ℤ definida por f(x) = [(x, 0)] é injetora. Em particular, ℕ está em bijeção com a imagem de f, isto é, com o conjunto ℕℤ= {[(x, 0) | x ∈ℕ} Demonstração De fato, se x, y ∈ ℕ são tais que f(x) = f(y), então [(x, 0)] = [(y, 0)] Pela definição, vale essa igualdade se, e somente se, x + 0 = y + 0 ou seja, x = y. Portanto, f é injetora. O conjunto dos números inteiros 73 Portanto, quando escrevemos ℕ ⊂ ℤ, isso significa, efetivamente, ℕℤ ⊂ ℤ. Contu- do, conjuntos em bijeção são indistinguíveis do ponto de vista da teoria de conjun- tos, logo, não há razão para qualquer confusão a respeito da escrita ℕ ⊂ ℤ. Além disso, será demonstrado posteriormente que f é compatível com as ope- rações algébricas de ℕ e de ℤ– estas ainda serão introduzidas. 3.2 Adição e subtração de números inteiros Vídeo Agora que você sabe que números inteiros são classes de equivalência, surge uma pergunta natural: como somar e subtrair números inteiros? A resposta deve ser fundamentada no conjunto dos números naturais, dado que os inteiros foram construídos com base nesse conjunto. Além disso, uma vez presente a adição de números naturais, deve ser possível “estendê-la” ao conjunto dos números inteiros, de modo que quando adicionamos dois inteiros não negativos, produzimos o mesmo resultado que obtemos ao adi- cionar os dois números naturais correspondentes. Para elaborar a respeito, lembre-se de que se x, y ∈ ℕ, então os inteiros não negativos correspondentes são xℤ = [(x, 0)] e yℤ = [(y, 0)] respectivamente. Gostaríamos que xℤ + yℤ = (x + y) ℤ Mas isso vale se, e somente se, [(x, 0)] + [(y, 0)] = [(x + y, 0)] Logo, isso define a adição de inteiros para todos aqueles inteiros da forma [(x, 0)]. Porém, relembre que um inteiro também pode ter o formato [(0, x)]; por isso, também é necessário definirmos [(x, 0)] + [(0, y)] e [(0, x)] + [(0, y)] com x, y ∈ℕ. Seguindo o raciocínio que foi discutido anteriormente, parece natural colocarmos [(x, 0)] + [(0, y)] = [(x, y)] e [(0, x)] + [(0, y)] = [(0, x + y)] Dessa forma, chegamos à definição a seguir. Definição A adição de dois números inteiros [(a, b)] e [(c, d)] é o número inteiro [(a, b)] + [(c, d)] = [(a + c, b + d)] É necessário verificar se a adição está, de fato, bem definida. Como assim? Lembre-se de que uma classe de equivalência pode ter mais de um represen- tante. Suponha então que (a, b) e (a’, b’) representam a mesma classe de equiva- 74 Aritmética lência e que (c, d) e (c’, d’) também são representantes dessa classe. Isso pode ser resumido por meio das igualdades [(a, b)] = [(a’, b’)] e [(c, d)] = [(c’, d’)] Mas será que [(a, b)] + [(c, d)] = [(a’, b’)] + [(c’, d’)]? Se esse não fosse o caso, teríamos que [(a, b)] + [(c, d)] ≠ [(a’, b’)] + [(c’, d’)] ainda que [(a, b)] = [(a’, b’)] e [(c, d)] = [(c’, d’)] isto é, +: ℤ × ℤ → ℤ não seria uma função, já que um mesmo elemento do domínio teria duas imagens distintas. Felizmente, isso não ocorre, conforme será demons- trado a seguir. Teorema Se [(a, b)] = [(a’, b’)] e [(c, d)] = [(c’, d’)], então [(a, b)] + [(c, d)] = [(a’, b’)] + [(c’, d’)] Demonstração De fato, por hipótese, a + b’ = b + a’ e c + d’ = d + c’ e, consequentemente, (a + c) + (b’ + d’) = (a + b’) + (c + d’) = b + a’ + d + c’ = (b + d) + (a’ +c’) Essa igualdade significa, precisamente, que [(a + c, b + d)] = [(a’ + c’, b’ + d’)] Vejamos na prática que a definição de adição de vetores está coerente com o que se conhece da adição de inteiros. Lembre-se de que se k ∈ ℕ, então k = [(k, 0)] e –k = [(0, k)] Assim, temos que, por exemplo, • 1 + 2 = [(1, 0)] + [(2, 0)] = [(1 + 2, 0 + 0)] = [(3, 0)] = 3 • 1 + (–2) = [(1, 0)] + [(0, 2)] = [(1 + 0, 0 + 2)] = [(1, 2)] = [(0, 1)] 1 = –1 A princípio, é cansativo trabalhar com as classes de equivalência. Porém, consi- dere que isso acontece apenas no início da teoria. Assim que demonstrarmos a va- lidade das propriedades algébricas da adição, não vamos mais lidar com as classes de equivalência, pois são as propriedades que serão utilizadas efetivamente nos cálculos e nas demonstrações posteriores. A igualdade [(1, 2)] = [(0, 1)] ocorre pelo fato de que 1 + 1 = 2 + 0. 1 O conjunto dos números inteiros 75 Para fechar a discussão teórica da definição de adição de inteiros, vamos de- monstrar a compatibilidade da adição dos números naturais com a adição dos nú- meros inteiros não negativos. Proposição A função f: ℕ → ℤ definida por f(x) := [(x, 0)] satisfaz f(x + y) = f(x) + f(y) para todo x, y ∈ℕ. Demonstração De fato, f(x + y) = [(x + y, 0)] = [(x, 0)] + [(y, 0)] = f(x) = f(y) para todo x, y ∈ℕ. Escrevendo xℤ = f(x), a proposição anterior informa apenas que (x + y)ℤ = xℤ + yℤ como queríamos. No ensino básico você aprendeu que a adição de inteiros tem diversas proprie- dades: associatividade, comutatividade etc. Para demonstrar essas propriedades e outras, vamos formalizar alguns conceitos. Definição I. O inteiro zero é o número inteiro 0 = [(0, 0)]. II. O oposto de um número inteiro x = [(a, b)] é o número inteiro –x = [(b, a)]. Com essa definição, podemos prosseguir e demonstrar um dos principais resul- tados desta seção. Teorema Sobre a adição de números inteiros, são válidas as propriedades: I. Associatividade: x + (y + z) = (x + y) + z. II. Comutatividade: x + y = y + x. 76 Aritmética III. 0 (zero) é o único inteiro tal que x + 0 = x = 0 + x. IV. –x é o único inteiro tal que x + (–x) = 0 = –x + x. V. –(–x) = x. VI. –0 = 0. Demonstração Denotamos x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f)] para demonstrar as afirmativas. I. Pela associatividade da adição em ℕ, temos que x + (y + z) = [(a, b)] + ([(c, d)] + [(e, f)]) = [(a, b)] + [(c + e, d + f)] = [(a + (c + e), b + (d + f))] = [((a + c) + e, (b + d) + f)] = [(a + c, b + d)] + [(e, f)] = ([(a, b)] + [(c, d)]) + [(e, f)] = (x + y) + z II. Aplicando a comutatividade da adição em ℕ: x + y = [(a, b)] + [(c, d)] = [(a + c, b + d)] = [(c + a, d + b)] = [(c, d)] + [(a, b)] = y + x III. De fato, 0 + x = [(0, 0)] + [(a, b)] = [(0 + a, 0 + b)] = [(a, b)] = x Analogamente, x + 0 = x. Resta verificar a unicidade. Se 0’ ∈ ℤ é tal que 0’ + x = x = x + 0’ então 0’ = 0’ + 0 = 0 evidenciando, assim, a unicidade. IV. Como x = [(a, b)], temos –x = [(b, a)] e, portanto, x + (–x) = [(a, b)] + [(b, a)] = [(a + b, b + a)] = [(0, 0)] = 0 A igualdade [(a + b, b + a)] = [(0, 0)] ocorre pelo fato de que a + b = b + a já que a adição de números naturais é comutativa. Analogamente, é possível demonstrar que –x + x = 0. Resta mostrar a unicidade: suponha que x’ ∈ ℤ é tal que x + x’ = 0 = x’ + x O conjunto dos números inteiros 77 Nesse caso, –x = –x + 0 = –x + (x + x’) = (–x + x) + x’ = 0 + x’ = x’ V. Com efeito, –(–x) = –[(b, a)] = [(a, b)] = x VI. De fato, –0 = –[(0, 0)] = [(0, 0)] = 0. Até o momento temos a definição precisa do conjunto dos números inteiros e da adição nesse conjunto. Resta discutirmos a razão para definirmos o conjunto dos inteiros: a subtração. Definição Se x, y ∈ ℤ, definimos a subtração x – y como o inteiro x – y = x + (–y) Portanto, por definição, para efetuar a subtração x – y, devemos fazer a adição de x com o oposto de y. Em termos de classes de equivalência, se x = [(a, b)] e y = [(c, d)] então x – y = x + (–y)= [(a, b)] + (–[(c, d)]) = [(a, b)] + [(d, c)] = [(a + d, b + c)] Por exemplo, 3 – 2 = [(3, 0)] + (–[(2, 0)]) = [(3, 0)] + [(0, 2)] = [(3, 2)] = [(1, 0)] = 1 já que 3 + 0 = 2 + 1 em ℕ. Novamente, a teoria está coerente com o que conhecemos. Para finalizar esta seção, vamos demonstrar as propriedades da subtração de inteiros. Teorema A subtração de números inteiros satisfaz as propriedades a seguir. 78 Aritmética I. x – 0 = x. II. 0 – x = –x. III. x – x = 0. IV. A equação x + b = a em ℤ possui como única solução x = b – a. V. –(x + y) = – x – y. Demonstração I. De fato, x – 0 = x + (–0) = x + 0 = x. II. Com efeito, 0 – x = 0 + (–x) = –x. III. Realmente, x – x = x + (–x) = 0. IV. Somando –b a ambos os membros da igualdade x + b = a e utilizando o que já se demonstrou para a adição de inteiros: (x + b) + (–b) = a + (–b) ⇔ x + (b + (–b)) = a – b ⇔ x + 0 = a – b ⇔ x = a – b Isso mostra também a unicidade, já que com a equação x + b = a sempre chega- mos ao mesmo inteiro a – b. V. Escrevendo x = [(a, b)] e y = [(c, d)], temos: –x – y = –x + (–y) = [(b, a)] + [(d, c)] = [(b + d, a + c)] = –[(a + c, b + d)] = –([(a, b)] + [(c, d)]) = –(x + y) Note que, no teorema anterior, as propriedades de I a V foram demonstradas sem o uso de classes de equivalência. Isso ilustra que à medida que a teoria é de- senvolvida deixamos de usar as classes de equivalência e utilizamos efetivamente as propriedades que já foram demonstradas anteriormente. 3.3 Multiplicação de números inteiros Vídeo Depois da adição e da subtração, a principal operação algébrica que podemos realizar com números inteiros é a multiplicação. Esse será o nosso objeto de estudo. O conjunto dos números inteiros 79 Motivados pela maneira como definimos a adição de números inteiros, seria tentador buscar definir a multiplicação por meio da igualdade [(a, b)] ⋅ [(c, d)] = [(a ⋅ c, b ⋅ d)] Embora essa igualdade defina um número inteiro, essa “multiplicação” não teria as propriedades bem conhecidas dessa operação com números inteiros. A título de ilustração, não valeria 1 ⋅ x = x para todo número inteiro x como mostrado em 1 ⋅ (-1) = [(1, 0)] ⋅ [(0, 1)] = [(1 ⋅ 0, 0 ⋅ 0)] = [(0, 0)] = 0 Sendo assim, será necessário definir de outra maneira a operação de multiplica- ção no conjunto ℤ. Isso é feito a seguir. Definição Sejam [(a, b)] e [(c, d)] número inteiros. A multiplicação de [(a, b)] por [(c, d)], denotada [(a, b)] ⋅ [(c, d)], é definida por [(a, b)] ⋅ [(c, d)] = [(a ⋅ c + b ⋅ d, a ⋅ d + b ⋅ c)] Note que a multiplicação (⋅) é definida em termos dos representantes das clas- ses de equivalência. Como é de praxe nessas situações, é necessário verificar que a definição não depende da escolha do representante. No entanto, a verificação será omitida, já que envolve extensos e trabalhosos cálculos. O importante é compreen- der a necessidade de fazer esse tipo de verificação. Agora que definimos a multiplicação de números inteiros, é necessário demonstrar que a definição é coerente com o que aprendemos no ensino elementar. Por exemplo: • 2 ⋅ 3 = [(2, 0)] ⋅ [(3, 0)] = [(2 ⋅ 3 + 0 ⋅ 0, 2 ⋅ 0 + 0 ⋅ 3)] = [(6, 0)] = 6 • 2 ⋅ (–1) = [(2, 0)] ⋅ [(0, 1)] = [(2 ⋅ 0 + 0 ⋅ 1, 2 ⋅ 1 + 0 ⋅ 0)] = [(0, 2)] = –2 Perceba que as multiplicações produzem os resultados esperados. Vejamos um caso de um produto de dois números inteiros negativos: • (–2) ⋅ (–3) = [(0, 2)] ⋅ [(0, 3)] = [(0 ⋅ 0 + 2 ⋅ 3, 0 ⋅ 3 + 2 ⋅ 0)] = [(6, 0)] = 6 Agora que você compreendeu que a definição de multiplicação não é muito complicada, vamos demonstrar as principais regras operacionais envolvendo essa operação. Teorema Sejam x, y, z ∈ℤ. Então, são válidas as afirmações: VI. 1 ⋅ x = x = x ⋅ 1 VII. 0 ⋅ x = 0 = x ⋅ 0 VIII. (–1) ⋅ x = –x = x ⋅ (–1) IX. (–x) ⋅ y = –(x ⋅ y) = x ⋅ (–y) X. x ⋅ y = y ⋅ x 80 Aritmética XI. x ⋅ (y + z) = x ⋅ y + x ⋅ z e (x + y) ⋅ z = x ⋅ z + y ⋅ z XII. x ⋅ (y – z) = x ⋅ y – x ⋅ z e (x – y) ⋅ z = x ⋅ z – y ⋅ z Demonstração Denotamos x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f)]. Então: I. 1 ⋅ x = [(1, 0)] ⋅ [(a, b)] = [(1 ⋅ a + 0 ⋅ b, 1 ⋅ b + 0 ⋅ a)] = [(a, b)] = x II. 0 ⋅ x = [(0, 0)] ⋅ [(a, b)] = [(0 ⋅ a + 0 ⋅ b, 0 ⋅ b + 0 ⋅ a)] = [(0, 0)] = 0 Analogamente, é possível verificar que x ⋅ 0 = 0. III. –1 ⋅ x = [(0, 1)] ⋅ [(a, b)] = [(0 ⋅ a + 1 ⋅ b, 0 ⋅ b + 1 ⋅ a)] = [(b, a)]= –x Analogamente, é possível verificar que x ⋅ (–1) = –x. IV. Se x = [(a, b)], então –x = [(b, a)] e, portanto, (–x) ⋅ y = [(b, a)] ⋅ [(c, d)] = [(b ⋅ c + a ⋅ d, b ⋅ d + a ⋅ c)] Por outro lado, x ⋅ y = [(a, b)] ⋅ [(c, d)] = [(a ⋅ c + b ⋅ d, a ⋅ d + b ⋅ c)] Então, temos que –(x ⋅ y) = [(a ⋅ d + b ⋅ c, a ⋅ c + b ⋅ d)] = (–x) ⋅ y Analogamente, é possível verificar que x ⋅ (–y) = –(x ⋅ y). V. Com efeito, x ⋅ y = [(a, b)] ⋅ [(c, d)] = [(a ⋅ c + b ⋅ d, a ⋅ d + b ⋅ c)] enquanto y ⋅ x = [(c, d)] ⋅ [(a, b)] = [(c ⋅ a + d ⋅ b, c ⋅ b + d ⋅ a)] Encontramos o resultado quando observamos que pelas propriedades de mul- tiplicação e adição em ℕ temos a ⋅ c + b ⋅ d = c ⋅ a + d ⋅ b e a ⋅ d + b ⋅ c = c ⋅ b + d ⋅ a VI. De fato, x ⋅ (y + z) = [(a, b)] ⋅ ([(c, d) + (e, f)]) = [(a, b)] ⋅ [(c + e, d + f)] = [(a ⋅ (c + e) + b ⋅ (d + f), a ⋅ (d + f) + b ⋅ (c + e)] Por outro lado, note que x ⋅ y + x ⋅ z = [(a, b)] ⋅ [(c, d)] + [(a, b)] ⋅ [(e, f)] = [(a ⋅ c + b ⋅ d, a ⋅ d + b ⋅ c)] + [(a ⋅ e + b ⋅ f, a ⋅ f + b ⋅ e)] = [(a ⋅ c + b ⋅ d) + (a ⋅ e + b ⋅ f), (a ⋅ d + b ⋅ c) + (a ⋅ f + b ⋅ e)] A igualdade desejada ocorre ao observarmos que (a ⋅ c + b ⋅ d) + (a ⋅ e + b ⋅ f) = a ⋅ (c + e) + b ⋅ (d + f) e (a ⋅ d + b ⋅ c) + (a ⋅ f + b ⋅ e) = a ⋅ (d + f) + b ⋅ (c + e) = (d + f) ⋅ a + b ⋅ (c + e) Demonstre os trechos indicados como análogos nas demonstrações dos itens II, III, IV e VII. Ou seja, mostre que: • x ⋅ 0 = 0 • x ⋅ (–1) = –x • x ⋅ (–y) = –(x ⋅ y) • (x – y) ⋅ z = x ⋅ z – y ⋅ z Desafio O conjunto dos números inteiros 81 VII. De fato, combinando as propriedades IV e VI, temos x ⋅ (y – z) = x ⋅ (y + (–z)) = x ⋅ y + x ⋅ (–z) = x ⋅ y + [–(x ⋅ z)] = x ⋅ y – x ⋅ z Analogamente, é possível verificar que (x – y) ⋅ z = x ⋅ z – y ⋅ z. Assim como ocorre com a adição de números inteiros, a regra do cancelamento também vale para a multiplicação. Isso é demonstrado a seguir. Teorema Sejam x, y, z ∈ ℤ, de modo que z ≠ 0. Se x ⋅ z = y ⋅ z, então x = y. Demonstração Inicialmente, suponha que x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, 0)]. Em particular, e ≠ 0 pois, do contrário, z = 0. Agora, note que x ⋅ z = y ⋅ z ⇔ [(a, b)] ⋅ [(e, 0)] = [(c, d)] ⋅ [(e, 0)] ⇔ [(a ⋅ e + b ⋅ 0, a ⋅ 0 + b ⋅ e)] = [(c ⋅ e + d ⋅ 0, c ⋅ 0 + d ⋅ e)] ⇔ [(a ⋅ e, b ⋅ e)] = [(c ⋅ e, d ⋅ e)] ⇔ a ⋅ e + d ⋅ e = b ⋅ e + c ⋅ e ⇔ (a + d) ⋅ e = (b + c) ⋅ e Utilizando o cancelamento para a multiplicação de números naturais, temos que a + d = b + c ou seja, x = y. Analogamente, é possível demonstrar o caso em que z = [(0, e)]. Vale destacar que é convidativo justificarmos a implicação x ⋅ z = y ⋅ z ⇒ x = y expressando que realizamos a divisão de ambos os membros da igualdade por z. Entretanto, isso não é correto, dado que sequer foi definida uma operação de divisão no conjunto ℤ. Uma consequência do teorema anterior é o fato de que ℤ, junto com a multipli- cação, é um domínio de integridade, como é demonstrado no corolário a seguir. Corolário Sejam x, y ∈ ℤ. Se x ⋅ y = 0, então x = 0 ou y = 0. Demonstração Comprove a forma análoga da demonstração do teorema do cancelamento da multiplicação, ou seja, demonstre o caso em que z = [(0, e)]. Desafio Colorário: é uma proposição que decorre logicamente de outra já demonstrada. Glossário 82 Aritmética Suponha que x ⋅ y = 0 e y ≠ 0. Nesse caso, x ⋅ y = 0 = 0 ⋅ y Aplicando o teorema demonstrado anteriormente, temos que x = 0 Analogamente, é possíveldemonstrar o caso em que x ⋅ y = 0 e x ≠ 0. Neste momento, podemos operar com números inteiros, na maioria das vezes, sem utilizar classes de equivalência, pois o que utilizamos na prática são as regras operacionais – comutatividade, associatividade etc. Contudo, agora temos pleno entendimento das razões de funcionamento daquelas regras. 3.4 Relação de ordem em ℤ Vídeo Lembre-se de que em ℕ existe a relação de ordem menor que ou igual a, de- notada por ≤ e definida como a ≤ b ⇔ ∃ p ∈ ℕ| b = a + p Será que é possível estender essa relação de ordem ao conjunto dos números inteiros? Sim! Esse é o conteúdo do nosso estudo agora. Definição Sejam [(a, b)] e [(c, d)] dois números inteiros. • Dizemos que [(a, b)] é menor que ou igual a [(c, d)] e escrevemos [(a, b)] ≤ℤ [(c, d)], caso a + d ≤ b + c • Caso [(a, b)] ≤ℤ [(c, d)] e [(a, b)] ≠ [(c, d)], escrevemos [(a, b)] <ℤ [(c, d)] e dizemos que [(a, b)] é – estritamente – menor que [(c, d)]. • Em vez de [(a, b)] ≤ℤ [(c, d)] e [(a, b)] <ℤ [(c, d)], podemos escrever [(c, d)] ≥ℤ [(a, b)] e [(a, b)] >ℤ [(c, d)] No primeiro caso, dizemos que [(c, d)] é maior que ou igual [(a, b)]; no segundo caso, dize- mos que [(a, b)] é – estritamente – maior que [(c, d)]. Note que a relação ≤ℤ foi definida em termos da relação ≤ existente no conjunto dos números naturais. Agora, vamos exemplificar a definição da relação ≤ . Σxemρlo 1 Considere os números inteiros –1 = [(0, 1)] e 4 = [(4, 0)]. Nesse caso, temos que –1 <ℤ 4 pois 0 + 0 = 0 < 5 = 1 + 4 (I) Comprove a forma análoga da demonstração do corolário do domínio de integridade, ou seja, demonstre o caso em que x ⋅ y = 0 e x ≠ 0. Desafio O conjunto dos números inteiros 83 e, além disso, [(0, 1)] ≠ [(4, 0)], já que 0 + 0 ≠ 1 + 4. É convidativo afirmarmos a evidência de que –1 <ℤ 4, porém devemos ter cuida- do, já que isso é consequência do raciocínio (I), e não de considerações informais. Contudo, a teoria é feita para que coincida com nosso entendimento empírico da ordenação de números inteiros. Agora que ≤ℤ foi definida, cabe o seguinte questionamento: será que ≤ℤ é uma relação de ordem em ℤ, assim como ≤ é uma relação de ordem em ℕ? A resposta é afirmativa, conforme demonstramos a seguir. Teorema A relação ≤ℤ é uma relação de ordem em ℤ. Demonstração É necessário demonstrar que ≤ℤ é reflexiva, antissimétrica e transitiva. • Reflexiva. Seja x = [(a, b)] ∈ ℤ . Nesse caso, a + b = b + a pois essa soma é realizada em ℕ e a operação de adição (+) é comutativa neste conjunto. Mas, por definição, a igualdade a + b = b + a revela que [(a, b)] ≤ℤ [(a, b)], ou seja, x ≤ℤ x. • Antissimétrica. Sejam x = [(a, b)] e y = [(c, d)] em ℤ tais que x ≤ℤ y e y ≤ℤ x. Nesse caso, a + d ≤ b + c e b + c ≤ a + d Pela antissimetria da relação ≤ em ℕ, temos a + d = b + c Essa igualdade revela que x = [(a, b)] = [(c, d)] = y. • Transitiva. Sejam x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f)] em ℤ tais que x ≤ℤ y e y ≤ℤ z. Isso significa que a + d ≤ b + c e c + f ≤ d + e No entanto, a + f + c + d ≤ b + e + c + d Cancelando c + d nessa desigualdade, temos que a + f ≤ b + e, mostrando, as- sim, que x = [(a, b)] ≤ℤ [(e, f)] = z. 84 Aritmética Lembre-se de que uma das principais propriedades da relação ≤ em ℕ é a tricotomia: se x, y ∈ ℕ, então x < y, x = y ou x > y, valendo uma, e apenas uma, des- sas proposições. O mesmo vale para o conjunto dos números inteiros, conforme demonstramos a seguir. Teorema Sejam x, y ∈ ℤ. Então, vale uma, e somente uma, das afirmações: I. x < y II. x = y III. x > y Demonstração Denotamos x = [(a, b)] e y = [(c, d)], com a, b, c e d ∈ ℕ. Pela tricotomia válida em ℕ, vale uma, e somente uma, das proposições: I. a + d < b + c II. a + d = b + c III. a + d > b + c Na situação I, por definição, temos que x = [(a, b)] <ℤ [(c, d)] = y Na segunda situação, novamente por definição, vale x = [(a, b)] = [(c, d)] = y Finalmente, se vale III, então, por definição, x = [(a, b)] >ℤ [(c, d)] = y Perceba que, embora a demonstração da tricotomia para o conjunto dos natu- rais tenha sido bastante elaborada, para o conjunto dos inteiros a tarefa foi signifi- cativamente simplificada. Isso ilustra muito bem o fato de que o princípio de uma teoria matemática tende a ser mais complicado, tendo em vista a existência de poucas ferramentas teóricas para solucionar os problemas. A seguir, demonstraremos as relações de compatibilidade entre ≤ℤ e as opera- ções de adição e multiplicação de números inteiros. Proposição A relação ≤ℤ tem seguintes propriedades: O conjunto dos números inteiros 85 I. Se x ≤ℤ y ⇒ x + z ≤ℤ y + z, para todo x, y, z ∈ ℤ. II. Se x ≤ℤ y e z ≥ 0, então x ⋅ z ≤ℤ y ⋅ z. III. Se x ≤ℤ y e z < 0, então x ⋅ z ≥ℤ y ⋅ z. Demonstração Denotamos x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f)], com a, b, c, d, e, f ∈ ℕ. I. Se x ≤ℤ y, então a + d ≤ b + c Consequentemente, (a + d) + (e + f) ≤ (b + c) + (e + f) o que pode ser escrito como (a + e) + (d + f) ≤ (b + f) + (c + e) Mas isso significa que [(a + e, b + f)] ≤ℤ [(c + e, d + f)] ou seja, x + y = [(a, b)] + [(e, f)] ≤ℤ [(c, d)] + [(e, f)] = y + z Para que você pratique as demonstrações, com base na verificação da proprie- dade I, deixaremos como atividade a prova de II e III. Esta seção será concluída com a apresentação de um critério bastante útil e simples para verificar se um número inteiro é maior que ou igual a outro. Proposição Sejam x, y ∈ ℤ. Temos: I. x ≤ℤ y se, e somente se, 0 ≤ℤ x – y. II. x <ℤ y se, e somente se, 0 <ℤ x – y. Demonstração Denotamos x = [(a, b)] e y = [(c, d)]. I. Suponha que x ≤ℤ y. Nesse caso, a + d ≤ b + c Mas x – y = x + (–y) = [(a, b)] + [(d, c)] = [(a + d, b + c)] Como a + d ≤ b + c, temos que 0 ≤ℤ x – y, pois 86 Aritmética a + d + 0 ≤ b + c + 0 Por outro lado, suponha que 0 ≤ℤ x – y. Isso significa que a + d + 0 ≤ b + c + 0 Ou seja, a + d ≤ b + c e, portanto, x ≤ℤ y. II. A demonstração é análoga ao item I. De agora em diante, para simplificar a escrita, o símbolo ≤ denotará tanto a relação de ordem dos inteiros quanto a dos naturais, por isso, utilizaremos apenas os símbolos sem expressar o índice referente ao conjunto. Consideração análoga vale para os símbolos ≥, < e >. 3.5 Valor absoluto Vídeo Nesta seção, será definido o valor absoluto de um número inteiro. Muito possi- velmente, esse conteúdo é familiar para você. Entretanto, a exposição será feita de maneira bastante rigorosa, para que se desenvolva o domínio do assunto em todos os seus aspectos. O ponto de partida é a definição clássica de valor absoluto de um número intei- ro, apresentada a seguir. Definição Seja x ∈ ℤ. O valor absoluto de x é o número inteiro |x|, definido por |x| = x se x ≥ 0 –x se x < 0 Por exemplo: • |2| = 2, pois 2 > 0. • |0| = 0, pois 0 = 0. • |–2| = – (–2) = 2, pois –2 < 0. Note que, pela própria definição, o valor absoluto de um número inteiro é sem- pre um inteiro não negativo. Como não poderia deixar de ser, o objetivo desta seção é fazer uma discussão teórica a respeito das principais propriedades do valor absoluto de números intei- ros. Isso é extremamente importante para a aritmética, dado que o valor absoluto aparece frequentemente na discussão da teoria. As principais propriedades do valor absoluto são enunciadas e demonstradas a seguir. Demonstre o item II da proposição, ou seja, mostre que x < y se, e somente se, 0 < x – y. Desafio O conjunto dos números inteiros 87 Teorema Se x, y, z ∈ ℤ, então são válidas as afirmações: I. |x| = |–x|. II. –|x| ≤ x ≤ |x|. III. |x ⋅ y| = |x| ⋅ |y|. IV. |x| ≤ y se, e somente se, –y ≤ x ≤ y. V. |x + y| ≤ |x| + |y|. VI. |x – y| = |y – x|. VII. |x| – |y| ≤ |x – y|. Demonstração Caso x = 0 ou y = 0, as propriedades valem imediatamente. Sendo assim, vamos supor, inicialmente, que x ≠ 0 e y ≠ 0. I. Se x > 0, então |x| = x, enquanto |–x| = –(–x) = x, já que –x < 0. Portanto, |x| = |–x| II. Se x > 0, então –|x|= x = |x|. Se x > 0, então –x < 0 < x Mas –|x| = –x e |x| = x. Consequentemente, –x < x significa que –|x| < x = |x| Agora, se x < 0, então –x > 0, logo x < 0 < –x Como –|x| = –(–x) = x e |x| = –x, temos que x < –x equivale a –|x| = x < –x = |x| III. Este é o item mais trabalhoso, pois é necessário testar muitas possibilida- des; apesar disso, o raciocínio é simples. • Se x > 0 e y > 0, então x ⋅ y > 0 e, portanto, |x ⋅ y| = x ⋅ y = |x| ⋅ |y| • Se x > 0 e y < 0, então x ⋅ y < 0 e, portanto, |x ⋅ y| = –(x ⋅ y) = x ⋅ (–y) = |x| ⋅ |y| • Se x < 0 e y > 0, então x ⋅ y < 0 e, portanto, |x ⋅ y| = –(x ⋅ y) = (–x) ⋅ y = |x| ⋅ |y| • Finalmente, se x < 0 e y < 0, então x ⋅ y > 0 e, portanto, |x ⋅ y| = x ⋅ y = (–x) ⋅ (–y) = |x| ⋅ |y| IV. Suponha que |x| ≤ y. Se x > 0, então |x| = x e, portanto, x ≤ y 88 Aritmética Em particular, y ≥ 0 e, por consequência, –y < 0. Sendo assim, –y < 0 < x ≤ y Agora, se x < 0, então |x| = –x e, portanto, –x ≤ y Isso implica x ≤ –y e y ≥ –x > 0. Consequentemente, –y ≤ x < 0 < –x ≤ y Portanto, –y ≤ x ≤ y em qualquer caso. Por outro lado, suponha que –y ≤ x ≤ y. Se x > 0, então x ≤ y equivale a |x| ≤ y. Se, porém, x < 0, então –y ≤ x implica –x ≤ y, o que equivale a |x| ≤ y. Em resumo, |x| ≤ y sempre que –y ≤ x ≤ y. V. Utilizando o que demonstramos em II, temos que –|x| ≤ x ≤ |x| –|y| ≤ y ≤ |y| Fazendo uso da compatibilidade da relação ≤ com a adição, temos que –|x| + (–|y|) ≤ x + y ≤ |x| + |y| Mas note que –|x| + (–|y|) = –(|x| + |y|) e, portanto, –(|x| + |y|) ≤ x + y ≤ |x| + |y| Pelo que demonstramos em III, essa desigualdade equivale a |x + y| ≤ |x| + |y| VI. De fato, ao notarmos que y – x = –1 · (x – y), temos que |y – x| = |(–1) · (x – y)| = |–1| · |x – y| = |x – y| VII. Essa propriedade é uma consequência direta das duas anteriores. A fim de demonstrá-la, note que x = y + (x – y) implica |x| = |y + (x – y)| ≤ |y| + |x – y| Consequentemente, |x| – |y| ≤ |x – y| Trocando a ordem de x e y, temos y = x + (y – x), de modo que |y| = |x + (y – x)| ≤ |x|+ |y – x| Portanto, –|x – y| = –|y – x| ≤ |x| – |y| Logo, –|x – y| ≤ |x| – |y| ≤ |x – y| Pelo que demonstramos em IV, temos que |x| – |y| ≤ |x – y| A propriedade |x + y| ≤ |x| + |y|, válida para todo x, y ∈ ℤ, é uma das mais im- portantes e recebe o nome de desigualdade triangular. O conjunto dos números inteiros 89 CONSIDERAÇÕES FINAIS O surgimento do conjunto dos inteiros veio da necessidade natural de se resolver equações da forma x + b = a. Filosoficamente, os números inteiros consistem em todas as possíveis soluções desse tipo de equação, em que se permite que a, b ∈ ℕ assumam todos os valores possíveis. A teoria é desenvolvida de maneira que os resultados sem- pre estejam de acordo com o entendimento intuitivo que se tem dos números inteiros. De fato, a teoria é bastante coerente e modela a realidade. Esse tipo de desen- volvimento permite expandir o entendimento pleno das nuances da teoria. Isso, em particular, conduz a uma maior maturidade e a uma visão mais ampla a respeito do assunto, o que traz maior segurança para tratar de tópicos mais avançados da aritmé- tica, conforme o estudo avance. ATIVIDADES 1. Demonstre que se x ≤ℤ y e z ≥ 0, então x ⋅ z ≤ℤ y ⋅ z. 2. Demonstre que se x ≤ℤ y e z < 0, então x ⋅ z ≥ℤ y ⋅ z. 3. Mostre que (–x) · (–y) = x · y. REFERÊNCIAS ALENCAR FILHO, E. Iniciação à lógica matemática. São Paulo: Nobel, 2002. DOMINGUES, H. H.; IEZZI, G. Álgebra moderna. São Paulo: Atual, 2003. HEFEZ, A. Elementos de aritmética. Rio de Janeiro: SBM, 2006. IEZZI, G.; MURAKAMI, C. Fundamentos de matemática elementar: conjuntos e funções. São Paulo: Atual, 2004. v. 1. Vídeo 90 Aritmética 4 Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros Boa parte da aritmética discute a relação de divisibilidade tanto no conjunto dos números naturais quanto no conjunto dos números inteiros. Abordá-la de maneira rigorosa é o objetivo principal deste capítulo. Entre os assuntos que serão aqui desenvolvidos, destacamos o algoritmo de divisão de Euclides e o teorema fundamental da aritmética. Compreendê-los efetivamente propiciará uma visão abrangente de técnicas bastante utilizadas dentro e fora da aritmética. Daremos um destaque especial aos números pri- mos, em particular à existência de infinitos deles, com base na demonstração do teorema fundamental da aritmética. Um ponto interessante que surgirá repetidas vezes ao longo de nossos es- tudos é a possibilidade de utilizarmos na prática os argumentos teóricos de- senvolvidos, pois muitas das demonstrações apresentadas serão construtivas. Em outras palavras, trata-se de algoritmos que podem ser implementados na prática, inclusive computacionalmente, como as noções de máximo divisor co- mum e mínimo múltiplo comum. Por fim, cabe ressaltar que a compreensão da relação de divisibilidade é imprescindível para o ensino apropriado da Aritmética na educação básica – embora nesse ambiente o formalismo exigido seja diferente –, em que o enten- dimento das estruturas lógico-formais da teoria possibilita o desenvolvimento de uma visão mais ampla e completa a respeito do assunto, fornecendo ferra- mental teórico para que façamos discussões mais ricas e claras em sala de aula. 4.1 Divisibilidade Vídeo Nesta seção, daremos início à discussão de um dos conceitos centrais da aritmé- tica: a divisão. O ponto de partida será a divisão de números naturais na definição a seguir e, posteriormente, a divisão dos números inteiros. Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 91 Definição Sejam a, b ∈ ℕ. Dizemos que a divide b se existe c ∈ ℕ tal que b = a ⋅ c Nesse caso, escrevemos a|b e lemos a divide b. Se a|b, dizemos também que: • a é um divisor de b; • b é divisível por a; • b é múltiplo de a. Se a não divide b, escrevemos a∤b. Notamos que a definição anterior coincide com a que conhecemos desde o en- sino básico. Contudo, vamos ilustrá-la. Σxemρlo 1 O número natural 2 divide o número natural 6, pois existe o número natural 3 tal que 6 = 2 · 3 Sendo assim, é possível escrevermos 2|6. Contudo, 2∤3, pois não existe um nú- mero natural c tal que 3 = 2 · c. O número natural 1 tem uma característica específica, pois é divisor de todo número natural, conforme ilustrado a seguir. Σxemρlo 2 Se a ∈ ℕ, 1|a. De fato, sempre podemos escrever a = 1 ⋅ a Isso nos mostra que 1|a para todo a ∈ ℕ. O próximo exemplo demonstra um ponto importante: ser divisor é uma pro- priedade referente à multiplicação. 92 Aritmética Σxemρlo 3 Se b ∈ ℕ é tal que b ≠ 0, então, 0∤b, pois para todo número natural c ∈ ℕ temos que 0 = 0 ⋅ c Portanto, b ≠ 0 ⋅ c qualquer que seja c ∈ ℕ. Contudo, se b = 0, então, 0|b, isto é, 0|0. De fato, é possível escrevermos– 0 = 0 ⋅ 1 Isso nos mostra que 0 é um divisor de 0. Ainda sobre o exemplo anterior, não devemos confundir a relação a|b com a fra- ção a b . Enquanto 0|0 tem um sentido bem definido, 0 0 é uma forma indeterminada. De fato, | (divide) é uma relação de ordem no conjunto dos números naturais por ser reflexiva, antissimétrica e transitiva, conforme demonstrado a seguir. Proposição A relação | em ℕ tem as seguintes propriedades I. | reflexiva: a|a para todo a ∈ ℕ. II. | antissimétrica: se a, b ∈ ℕ são tais que a|b e b|a, logo, a = b. III. | transitiva: Se a, b, c ∈ ℕ são tais que a|b e b|c, então, a|c. Demonstração I. Se a ∈ ℕ, então, a = a ⋅ 1 e, portanto, a|a. II. Suponhamos que a, b ∈ ℕ são tais que a|b e b|a. Então, existem c, d ∈ ℕ tais que b = a ⋅ c e a = b ⋅ d Se a = 0, b = 0, pois b = a ⋅ c. Admitamos a ≠ 0. Nesse caso, aplicamos a lei do cancelamento para a multiplicação em ℕ na igualdade a ⋅ 1 = a = b ⋅ d = (a ⋅ c) ⋅ d = a ⋅ (c ⋅ d) Segue que c ⋅ d = 1. Logo, necessariamente, c = d = 1. Ou seja a = b ⋅ d = b ⋅ 1 = b III. Suponhamos que a, b, c ∈ ℕ são tais que a|b e b|c. Nesse caso, existem c, d ∈ ℕ, de modo que: b = a ⋅ c e c = b ⋅ d (Continua) Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 93Consequentemente, pela associatividade da multiplicação em ℕ temos que c = b ⋅ d = (a ⋅ c) ⋅ d = a ⋅ (c ⋅ d) Considerando e = c ⋅ d ∈ ℕ, temos c = a ⋅ e com e ∈ ℕ, ou seja, a|c. ∎ Além de ser uma relação transitiva, antissimétrica e transitiva, | tem outras pro- priedades que costumamos utilizar com frequência. Elas estão enunciadas e de- monstradas a seguir. Teorema Sejam a, b, c ∈ ℕ, são válidas as seguintes afirmações: I. Se a|b e a|c, então, a|(bx + cy) quaisquer que sejam x, y ∈ ℕ. II. Se a|b, então, a|bx para todo x ∈ ℕ. III. Se a|b e a|c, então, a|(b + c). IV. Se c|a e c|b e a ≤ b, então, c|(b – a). V. Suponha b ≤ a e d|b, então, d|a se, e somente se, d|(a – b). VI. Se a|b e b ≠ 0, então, a ≤ b. Demonstração I. Aceitemos que b = a ⋅ k e c = a ⋅ ℓ. Se x, y ∈ ℕ: b ⋅ x + c ⋅ y = (a ⋅ k) ⋅ x + (a ⋅ ℓ) ⋅ y = a ⋅ (k ⋅ x + ℓ ⋅ y) Como k ⋅ x + ℓ ⋅ y ∈ ℕ, resultam em a|(b ⋅ x + c ⋅ y). II. Essa propriedade é uma decorrência imediata de I. Basta aplicarmos a pro- priedade I com y = 0. III. Também é uma consequência imediata da afirmação I. Basta aplicarmos a propriedade I com x = y = 1. IV. Se a ≤ b, b = a + u para algum u ∈ ℕ. Como c|a e c|b, é possível escrevermos a = c ⋅ k e b = c ⋅ ℓ Notamos que a ≤ b implica, particularmente, k ≤ ℓ. Como b – a = u, segue que u = b – a = c ⋅ ℓ – c ⋅ k = c ⋅ (ℓ – k) Isso significa que c|u = (b – a). V. Consideremos que d|b e d|a com b ≤ a. Por IV, segue que d|(a – b). No en- tanto, suponhamos que d|b com b ≤ a e d|(a – b). Aplicando III, temos que d|b e d|(a – b) ⇒ d|(b + (a – b)) = b|a Demonstre as propriedades que são decorrência da propriedade I, ou seja, mostre que: • Se a|b, então, a|bx para todo x ∈ ℕ, aplicando a propriedade I com y = 0. • Se a|b e a|c, então, a|(b + c), aplicando a propriedade I com x = y = 1. Desafio (Continua) 94 Aritmética VI. Por hipótese, b = a ⋅ k para algum k ∈ ℕ. Em particular, k > 0; do contrário, seguiria que b = 0, contradizendo b ≠ 0. Então, k ≥ 1 e, portanto, k = 1 + ℓ para algum ℓ ∈ ℕ. Logo, b = a ⋅ k = a ⋅ (1 + ℓ) = a ⋅ 1 + a ⋅ ℓ = a + a ⋅ ℓ Isso nos mostra que a ≤ b. ∎ A definição de divisibilidade nos números inteiros é semelhante à que discuti- mos para números naturais, conforme apresentado a seguir. Definição Dizemos que um número inteiro a divide um inteiro b e escrevemos a|b quando b = a · c para algum c ∈ ℤ. Nesse caso, afirmamos que a é um divisor de b ou que b é divisível por a, ou ainda que b é múltiplo de a. Se a não divide b, escrevemos a∤b. Essa definição é a mesma presente no ensino básico. Entretanto, vamos exemplificá-la para melhor compreendê-la. Σxemρlo 4 O número inteiro –2 divide o inteiro 6, pois 6 = (–2) ⋅ (–3). Porém, o inteiro 2 não divide o inteiro –5, pois não existe um número inteiro c tal que –5 = 2 ⋅ c A seguir apresentamos as principais propriedades da relação | em ℤ. Teorema A relação | em ℤ tem as seguintes propriedades: I. | é reflexiva: a|a para todo a ∈ ℤ. II. Se a, b ∈ ℤ são tais que a|b e b|a, então, a = ±b. III. | é transitiva: se a, b, c ∈ ℤ são tais que a|b e b|c, então, a|c. IV. Se a, b, c ∈ ℤ são tais que a|b e a|c, então, a|(b + c). V. Se a, b ∈ ℤ, então, a|b ⇔ |a| |b|. Demonstração As propriedades I, III e IV são análogas àquelas válidas para a relação | em ℕ e, portanto, não serão demonstradas. Resta demonstrar II e V. O livro Números: uma introdução à matemática, de Francisco César Polcino Milies e Sonia Pitta Coelho, possibilita um excelente aprofundamento do tema da divisibilidade. A leitura é bastante rica e agradável, valendo a pena conferir. POLCINO MILIES, F. C.; COELHO, S. P. 3. ed. São Paulo: Edusp, 2013. Livro (Continua) Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 95 II. Por hipótese, a = b ⋅ k e b = a ⋅ ℓ para determinados k, ℓ ∈ ℤ. Se a = 0, então, b = 0 e não há o que provar. Admitamos a ≠ 0. Nesse caso, a = b ⋅ k = (a ⋅ ℓ) ⋅ k = a ⋅ (ℓ ⋅ k) Isso implica ℓ ⋅ k = 1. Consequentemente, ℓ = k = 1 ou ℓ = k = –1. Portanto, a = b ou a = –b. V. Por hipótese, b = a ⋅ k com k ∈ ℕ. Como consequência, |b| = |a ⋅ k| = |a| ⋅ |k| Em particular, |a|│|b|. Por outro lado, suponhamos que |b| = |a| ⋅ k para algum k ∈ ℕ. Como |a| ≥ 0 e |b| ≥ 0, k ≥ 0. Dessa forma, k = |k| e, portanto, |b| = |a| ⋅ k = |a| ⋅ |k| = |a ⋅ k| Mas b = ±b e |a ⋅ k| = ±(a ⋅ k) = a ⋅ (±k). Consequentemente, b = a ⋅ (±k), isto é, a|b. ∎ Até o momento discutimos a relação de divisibilidade no conjunto dos naturais e dos inteiros. O próximo passo é verificarmos de modo mais aprofundado o caso em que dois números naturais ou inteiros não se relacionam pela relação |. Esse é um aspecto bastante importante da teoria que veremos em detalhes a seguir. Para verificar que as afirmativas I, III e IV são análogas àquelas dos números naturais, demonstre essas propriedades, ou seja, mostre que: • | é reflexiva: a|a para todo a ∈ ℤ. • | é transitiva: se a, b, c ∈ ℤ são tais que a|b e b|c, então, a|c. • Se a, b, c ∈ ℤ são tais que a|b e a|c, então, a|(b + c). Desafio 4.2 Divisão euclidiana Vídeo Em muitos casos, um número natural ou inteiro não é divisível por outro. Isso pode ser verificado em situações cotidianas. Suponha que você e dois amigos encomendaram uma pizza e ela está dividida em sete fatias. A princípio, cada um poderia ficar com duas fatias e restaria uma para ser dividida entre os três. Matematicamente, descrevemos essa situação por meio da seguinte igualdade: 7 = 2 · 3 + 1 No ensino básico, aprendemos que 7 é o dividendo, 3 é o divisor, 2 é o quociente e 1 é o resto. É exatamente esse o processo de divisão euclidiana que estudaremos de maneira aprofundada. A seguir enunciamos e demonstramos o notável algoritmo da divisão euclidiana. Teorema da divisão euclidiana Sejam a, b ∈ ℕ e b ≠ 0. Existe um único par de números naturais q e r tal que a = b · q + r e r < b (Continua) 96 Aritmética Demonstração Definimos o seguinte conjunto: X ≔ {n ∈ ℕ | b ⋅ n > a} Note que X ≠ ϕ, pois a + 1 ∈ X, já que b ≥ 1 ⇒ a ⋅ b ≥ a ⇒ a ⋅ b + b ≥ a + b ⇒ b ⋅ (a + 1) ≥ a + b > a Se a ∈ ℕ, a é múltiplo de b ou está entre dois múltiplos consecutivos de b, isto é: b ⋅ q ≤ a < b ⋅ (q + 1) Em particular, q + 1 é o menor elemento do conjunto X. Mas b ⋅ q ≤ a implica a existência de r ∈ ℕ tal que a = b ⋅ q + r Resta verificarmos que r < b. Se r = a – b ⋅ q ≥ b, então (a – b ⋅ q) + b ⋅ q ≥ b + b ⋅ q Consequentemente, a ≥ b ⋅ (q + 1), o que não é possível. Dessa forma a = b ⋅ q + r com r < b. Por fim, devemos checar a unicidade, isto é, suponhamos que a = b ⋅ q + r = b ⋅ q1 + r1 com r < b e r1 < b. Admitamos que seja possível r ≠ r1, ou seja, 0 < r – r1 < b Mas a igualdade b ⋅ q + r = b ⋅ q1 + r1 implica b ⋅ q + (r – r1) = b ⋅ q1 Portanto, b|(r – r1). Como consequência, b ≤ r – r1, um absurdo. Logo, r = r1 e, dessa forma, q = q1. ∎ O teorema anterior conduz naturalmente à definição a seguir. Definição Sejam a, b, q, r ∈ ℕ tais que a = b ⋅ q + r com r < b. Os elementos a, b, q e r são denominados, respectivamente, de divisor, dividendo, quociente e resto da divisão de a por b. Vemos que a demonstração do teorema da divisão euclidiana fornece de maneira explícita e prática como obter o quociente e o resto, conforme ilustrado a seguir. Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 97 Σxemρlo 5 Consideremos os números naturais a = 25 e b = 7. Percebemos que 25 está en- tre os múltiplos 21 e 28 de 7, ou seja, 7 ⋅ 3 < 25 < 7 ⋅ (3 + 1) Logo, q = 3 e r = 25 – 7 ⋅ 3 = 25 – 21 = 4. Portanto, 25 = 7 ⋅ 3 + 4 Essa discussão da divisão euclidiana pode ser estendida para o conjunto dos números inteiros, conforme discutiremos na sequência de nossos estudos. O algoritmo da divisão euclidiana válido em ℕ ainda vale em ℤ, conforme de- monstrado a seguir. Teorema do algoritmo de Euclides Para quaisquer a, b ∈ ℤ, b > 0, existe um único par de inteiros q e r, de maneira que a = b ⋅ q + r, em que 0 ≤ r < b. Demonstração Definimos o conjunto: X ≔ {n ∈ ℕ | n ≠0, n ⋅ b > a} Percebemos que X ≠ ϕ. De fato, considerando n = |a| + 1 e usando b ≥ 1, temos que n ⋅ b ≥ n = |a| + 1 > a Portanto, n ∈ X. Sendo X um subconjunto não vazio de ℕ, existe um menor intei- ro p ∈ X. Em particular, p ≠ 0 e p = q + 1. Consequentemente, q ⋅ b ≤ a < (q + 1) ⋅ b Somando –(qb) em cada parcela das desigualdades, temos 0 ≤ a – q ⋅ b < b Definimos r ≔ a – q ⋅ b. Com isso, a = q ⋅ b + r e 0 ≤ r < b Analogamente à demonstração feita no caso do conjunto ℕ, é possível demons- trarmos que q e r são unicamente determinados. ∎ Demonstre que q, r ∈ ℤ são únicos no algoritmo de divisão de Euclides, como feito de modo semelhante no conjunto dos números naturais. Desafio 98 Aritmética Novamente, a demonstração do teorema anterior permite obtermos os inteiros q e r explicitamente, conforme ilustramos a seguir. Σxemρlo 6 Consideremos os inteiros a = −25 e b = 7. Note que o primeiro múltiplo de 7 que supera −25 é −21, portanto, −21 = (q + 1) ⋅ 7 o que implica q = −4. Consequentemente, r = a – q ⋅ b = −25 – (−4) ⋅ 7 = −25 + 28 = 3 Portanto, −25 = 7 ⋅ (−4) + 3, sendo −4 o quociente e 3 o resto. Além do algoritmo da divisão euclidiana, existem alguns tópicos relacionados à divisão de números naturais e inteiros muito presentes no currículo do ensino bá- sico. Entre eles, destacamos o máximo divisor comum e o mínimo múltiplo comum, que serão os próximos temas abordados. 4.3 Máximo divisor comum Vídeo O máximo divisor comum de dois números naturais é o maior número natural que divide ambos os números com resto zero. Uma maneira de o determinarmos é listando todos os divisores de cada um e encontrando, se houver, o maior que divide ambos. Por exemplo, os divisores de 12 são 1, 2, 3, 4, 6 e 12, enquanto os divisores de 28 são 1, 2, 4, 7, 14 e 28. Analisando essas duas listas, percebemos que o número 4 é o maior divisor comum entre 12 e 28. Portanto, o máximo divisor comum entre eles é 4. Embora seja bastante simples esse procedimento, não é aconselhável, pois se os núme- ros forem muito grandes, é trabalhoso listar todos os seus divisores. Felizmente, conforme vamos estudar na sequência, decorre da divisão euclidiana um método relativamente simples para a determinação do máximo divisor comum. O ponto de partida da discussão desta seção é a própria formalização da ideia de máximo divisor comum. Definição Sejam a, b ∈ ℕ. O máximo divisor comum de a e b é um número d ∈ ℕ tal que I. d|a e d|b. II. Se c é um número natural tal que c|a e c|b, então, c|d. A seguir vemos um exemplo no intuito de ilustrar essa definição. O livro Introdução à teoria dos números, do autor José Plínio de Oliveira Santos, é impecável quanto à exposição e ao rigor desse tema. É uma fonte interessante para aprofundamentos, cuja leitura pode ser feita em paralelo com os tópicos aqui discutidos. SANTOS, J. P. O. 3. ed. [s.l.]: Impa, 2018. Livro Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 99 Σxemρlo 7 Sejam a = 6 e b = 8. Os divisores de a são 1, 2, 3 e 6, enquanto os divisores de b são 1, 2, 4 e 8. Portanto, os divisores comuns de a e b são 1 e 2. Note que: I. 2|6 e 2|8. II. Se c|6 e c|8, então, c = 1 ou c = 2 e, portanto, c|2. Desse modo, 2 é máximo divisor comum de 6 e 8. Nesse estágio surgem dois questionamentos naturais: 1. Será que sempre existe o máximo divisor comum de dois números naturais? 2. Se existe o máximo divisor comum de a e b, ele é unicamente determinado por a e b? Essas questões têm resposta afirmativa. A primeira delas é solucionada na pro- posição demonstrada a seguir. Proposição Sejam a, b ∈ ℕ e d e d’ máximos divisores comuns de a e b, então, d = d’. Demonstração Suponhamos que d e d’ sejam máximos divisores comuns de a e b. Neste caso, d’|d, pois d’|a e d’|b. Além disso, d|d’, pois d|a e d|b, e d’ é, por hipótese, máximo divisor comum de a e b. Mas d’|d e d|d’ implicam d = d’. ∎ O máximo divisor comum de a e b em ℕ será denotado por: mdc (a, b) É necessário mostrar que mdc (a, b) efetivamente existe. Para tanto, será de- monstrado um resultado preliminar que, por sua importância, deve ser categori- zado como teorema. Teorema Sejam a, b ∈ ℕ. São válidas as afirmações: I. Se a|b, então, mdc (a, b) = a. (Continua) 100 Aritmética II. Se a = b ⋅ q + r, então d = mdc (a, b) se, e somente se, d = mdc (b, r). Demonstração I. De fato, sempre a|a e, por hipótese, a|b. Em particular, a cumpre a primeira condição para ser máximo divisor. Agora, resta verificar que c é um divisor de a e b, ou seja, c|a. De fato, se c|a e c|b, então, em particular, c|a. Espe- cialmente, a cumpre a segunda condição para ser o máximo divisor comum de a e b. Sendo assim, mdc (a, b) = a. II. Se d = mdc (a, b), logo, d|a e d|b. Em particular, d|b ⋅ q. Consequentemente, d|(a – b ⋅ q) = r. Portanto, d|b e d|r. Agora suponhamos que c|b e c|r. Assim, c|(b ⋅ q + r) = a. Portanto, c|a e c|b, o que implica c|d, isto é, d = mdc (b, r). A recíproca é análoga. ∎ É possível demonstrar a existência do máximo divisor comum, como a seguir. Teorema Se a, b ∈ ℕ, existe mdc (a, b). Demonstração Se a = 0 e b é um número qualquer, b é o máximo divisor comum de 0 e b, pois: I. b|0 e b|b. II. Se c|0 e c|b, então, c|b. Aceitemos que a ≠ 0 e b ≠ 0. Aplicando o algoritmo da divisão euclidiana, temos a = b ⋅ q1 + r1 (r1 < b) É possível aplicarmos novamente o mesmo algoritmo usando b e r1. Isso produz b = r1 ⋅ q2 + r2 (r2 < r1) Podemos prosseguir com r1 e r2 para obtermos r1 = r2 ⋅ q3 + r3 (r3 < r2) Com isso, chegamos à seguinte sequência: b > r1 > r2 > r3 > .... Porém, existe n ∈ ℕ tal que rn+1 = 0, pois do contrário o subconjunto não vazio {b, r1, r2, …} ⊂ ℕ não teria um menor elemento. Assim, para algum n temos rn–2 = rn–1 ⋅ qn + rn rn–1 = rn ⋅ qn+1 Usando o teorema demonstrado anteriormente, temos rn = mdc (rn–1, rn) = mdc (rn–2, rn–1) = ... = mdc (b, r1) = mdc (a, b) Ou seja, rn = mdc (a, b). ∎ Demonstre que se d = mdc (b, r) com a = b ⋅ q + r, então, d = mdc (a, b). Desafio Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 101 Percebemos que a demonstração do teorema anterior é construtiva, ou seja, fornece uma maneira de obter o máximo divisor comum de modo explícito. Isso é ilustrado no exemplo a seguir. Σxemρlo 8 Consideremos os números naturais 51 e 14. Nesse caso, para encontrarmos o máximo divisor comum, fazemos: 51 = 14 ⋅ 3 + 9 14 = 9 ⋅ 1 + 5 9 = 5 ⋅ 1 + 4 5 = 4 ⋅ 1 + 1 4 = 4 ⋅ 1 + 0 Portanto, mdc (51, 14) = 1, pois o último valor de r (resto) antes de obtermos o resto 0 é o número 1 em destaque. Vamos ilustrar uma situação em que o máximo divisor comum é diferente de 1. Σxemρlo 9 Tomemos os números naturais 55 e 22. Para encontrarmos o máximo divisor comum, fazemos: 55 = 22 ⋅ 2 + 11 22 = 11 ⋅ 2 + 0 Logo, mdc (55, 22) = 11. A seguir vamos demonstrar algumas propriedades adicionais e importantes do máximo divisor comum de números naturais. Teorema Se d = mdc (a, b), mdc (c ⋅ a, c ⋅ b) = c ⋅ d para todo c ∈ ℕ. (Continua) 102 Aritmética Demonstração Aplicando o algoritmo da divisão, obtemos a sequência a = b ⋅ q1 + r1 b = r1 ⋅ q2 + r2 r1 = r2 ⋅ q3 + r3 ⋮ rn–2 = rn–1 ⋅ qn + rn rn–1 = rn ⋅ qn+1 Agora multiplicamos por c cada uma dessas igualdades para termos c ⋅ a = (c ⋅ b) ⋅ q1 + c ⋅ r1 c ⋅ b = (c ⋅ r1) ⋅ q2 + c ⋅ r2 c ⋅ r1 = (c ⋅ r2) ⋅ q3 + c ⋅ r3 ⋮ c ⋅ rn-2 = (c ⋅ rn-1) ⋅ qn + c ⋅ rn c ⋅ rn-1 = (c ⋅ rn) ⋅ qn+1 Mas, c ⋅ d = c ⋅ rn = mdc (c ⋅ rn-1, c ⋅ rn) = ⋯ = mdc (c ⋅ b, c ⋅ r1) = mdc (c ⋅ a, c ⋅ b) ∎ O teorema anterior tem consequências importantes, as quais são demonstra- das no corolário a seguir. Corolário I. Se a, b ∈ ℕ \ {0} e d = mdc (a, b), então,mdc a ,b d =1 d � � � � � � . II. Se a|b ⋅ c e mdc (a, b) = 1, então, a|c. III. Se a e b são divisores de c ≠ 0 e mdc (a, b) = 1, então, a ⋅ b|c. Demonstração I. Note que d = mdc (a, b) = mdc d · a d , d · b d = d · mdc a d , b d � � � � � � �� � � � � � Como d ≠ 0, segue que mdc a d, b d = 1� � � � � � II. Sabemos que mdc (a, b) = 1, logo, (Continua) Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 103 mdc (a ⋅ c, b ⋅ c) = c Mas, por hipótese, a|b ⋅ c. Como também vale a|a ⋅ c, temos a|mdc (a ⋅ c, b ⋅ c) = c III. Como mdc (a, b) = 1, temos que mdc (a ⋅ c, b ⋅ c) = c. Mas, a ⋅ b|a ⋅ c, pois b|c e a ⋅ b|b ⋅ c, dado que a|c. Portanto, a ⋅ b|mdc (a ⋅ c, b ⋅ c) = c ∎ A discussão do máximo divisor comum também pode ser feita para o conjunto dos inteiros, conforme explicado a seguir. Definição Sejam a e b dois números inteiros. O máximo divisor comum de a e b, denotando mdc (a, b), é definido por mdc (a, b) ≔ mdc (|a|, |b|) Vemos que o máximo divisor comum de dois números inteiros é definido em termos do máximo divisor comum dos inteiros positivos |a| e |b|. Em particular, mdc (a, b) com a, b ∈ ℕ existe e é único, pois isso ocorre no máximo divisor comum em ℕ. Também: mdc (a, b) = mdc (|a|, |b|) = mdc (|b|, |a|) = mdc (b, a) para todo a, b ∈ ℤ. Vamos ilustrar a definição do máximo divisor comum no conjunto dos inteiros no exemplo a seguir. Σxemρlo 10 Temos que: • mdc (–8, 2) = mdc (|–8|, |2|) = mdc (8, 2) = 2. • mdc (0, –5) = mdc (|0|, |–5|) = mdc (0, 5) = 5. Em muitas situações é necessário recorrer à caracterização do máximo divisor comum em ℤ que vamos demonstrar na sequência. Para conhecer mais a respeito do máximo divisor comum entre o número 0 e outro número inteiro, su- gerimos a leitura do artigo O algoritmo euclidiano, da plataforma Khan Academy. Disponível em: https://pt.khanaca- demy.org/computing/computer-scien- ce/cryptography/modarithmetic/a/ the-euclidean-algorithm. Acesso em: 6 maio 2021. Leitura https://pt.khanacademy.org/computing/computer-science/cryptography/modarithmetic/a/the-euclidean-alg https://pt.khanacademy.org/computing/computer-science/cryptography/modarithmetic/a/the-euclidean-alg https://pt.khanacademy.org/computing/computer-science/cryptography/modarithmetic/a/the-euclidean-alg https://pt.khanacademy.org/computing/computer-science/cryptography/modarithmetic/a/the-euclidean-alg 104 Aritmética Proposição Um inteiro d é o máximo divisor comum de a e b em ℤ se, e somente se: I. d ≥ 0; II. d|a e d|b; III. c|a e c|b ⇒ c|d. Demonstração (⇒) 1 Inicialmente, supomos que d é o máximo divisor comum de a e b em ℤ para validar os itens I, II e III. Por definição, temos que d = mdc (a, b) = mdc (|a|, |b|) Portanto, d ≥ 0. Agora, por hipótese, d│|a| e d│|b|. Em particular, d|a e d|b, pois |a| e |b| diferem de a e b, respectivamente, apenas por um sinal. Supomos, então, que c|a e c|b. Logo, |c|│|a| e |c|│|b| e, portanto, |c|│mdc (|a|, |b|) = d. (⇐) 2 Agora consideramos que vale I, II e III para comprovar que d é o máximo divisor comum de a e b em ℤ. Como d|a e d|b, resulta em d│|a| e d│|b|. Admitamos que c│|a| e c│|b|. Logo, c|a e c|b. Consequentemente, em III, c|d. Isso mostra que d = mdc (|a|, |b|) = mdc (a, b) ∎ O máximo divisor comum no conjunto dos inteiros tem outras propriedades inte- ressantes, conforme demonstramos a seguir. Proposição Sejam a, b ∈ ℤ, são válidas as seguintes afirmações: I. Se a|b, então, mdc (a, b) = |a|. II. Se a = b ⋅ q + r, então, mdc (a, b) = mdc (b, r). Demonstração I. Vamos utilizar a proposição anterior. Para tanto, vemos que |a| ≥ 0 e que a é múltiplo de |a|, uma vez que a = |a| ⋅ (±1). Em particular, |a||a. Além disso, como a|b, decorre |a||b. Finalmente, se c|a e c|b, logo, c||a|. Isso mostra que mdc (a, b) = |a|. Nas demonstrações com a propo- sição “se, e somente se”, o símbolo (⇒) ou ⇒ indica que a prova será feita considerando a hipótese (se) para validar a tese (então). 1 Nas demonstrações com a propo- sição “se, e somente se”, o símbolo (⇐) ou ⇐ indica que a prova será feita considerando a tese (então) para validar a hipótese (se). 2 (Continua) Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 105 II. A demonstração é completamente análoga ao resultado já obtido para o máximo divisor comum em ℕ. ∎ O próximo resultado apresentado costuma surgir frequentemente em discussões teóricas. Teorema Se d = mdc (a, b), existem x0, y0 ∈ ℤ tais que d = a ⋅ x0 + b ⋅ y0 Demonstração Inicialmente, se a = b = 0, logo, d = 0 e quaisquer x0, y0 ∈ ℤ cumprem a igualdade desejada. Suponhamos que a ≠ 0 ou b ≠ 0 e definamos o conjunto X ≔ {a ⋅ x + b ⋅ y | x, y ∈ ℤ} como a ⋅ a + b ⋅ b = a2 + b2 ∈ X e a2 + b2 > 0 Assim, X contém elementos estritamente positivos. Ao considerarmos d o me- nor desses inteiros, demonstramos que d = mdc (a, b). Com efeito, como d ∈ X, existem x0, y0 ∈ ℤ tais que d = a ⋅ x0 + b ⋅ y0 Mas pelo algoritmo da divisão a = d ⋅ q + r sendo 0 ≤ r < d. Consequentemente, a = (a ⋅ x0 + b ⋅ y0) ⋅ q + r o que implica r = a – (a ⋅ x0 + b ⋅ y0) ⋅ q = a ⋅ (1 – x0 ⋅ q) + b ⋅ (q ⋅ (–y0)) Em particular, r ∈ X. Como r > 0 e d é menor inteiro positivo em X, deduzimos r = 0, mas a = d ⋅ q mostrando, assim, que d|a. Com um argumento análogo é possível demonstrar que d|b. Finalmente, como d = a ⋅ x0 + b ⋅ y0, todo divisor c de a e b é divisor de d. Isso mostra que d = mdc (a, b). ∎ Finalizamos esta seção com uma consequência direta do teorema anterior. De modo semelhante ao que fizemos no conjunto dos números naturais, demonstre que se a = b ⋅ q + r, então, mdc (a, b) = mdc (b, r) com a, b ∈ ℤ. Desafio Considere o seguinte teorema: se d = mdc (a, b), existem x 0 , y 0 ∈ ℤ tais que d = a ⋅ x 0 + b ⋅ y 0 . Agora demonstre que q|b utilizando o argumento análogo usado para demonstrar que d|a. Desafio 106 Aritmética Corolário Se a|b ⋅ c e mdc (a, b) = 1, então, a|c. Demonstração Pelo teorema anterior, existem x0, y0 ∈ ℤ tais que a ⋅ x0 + b ⋅ y0 = 1 Consequentemente, (a ⋅ c) ⋅ x0 + (b ⋅ c) ⋅ y0 = c Como a|(a ⋅ c) ⋅ x0 e a|(b ⋅ c), segue que a|(a ⋅ c) ⋅ x0 + (b ⋅ c) ⋅ y0 = c. ∎ Agora que desenvolvemos um entendimento aprofundado a respeito do má- ximo divisor comum, é possível prosseguirmos com o estudo do mínimo múltiplo comum, assunto importante e que está no currículo da educação básica. 4.4 Mínimo múltiplo comum Vídeo Nesta seção, vamos definir o mínimo múltiplo comum de dois números intei- ros e apresentar suas principais propriedades. Esse tema, junto do máximo divi- sor comum, é bastante relevante no contexto do ensino básico, por isso merece especial atenção. Definição Sejam a, b ∈ ℕ. Um mínimo múltiplo comum de a, b ∈ ℕ é um número m ∈ ℕ tal que I. a|m e b|m. II. Se a|m’ e b|m’ ⇒ m|m’. Na definição anterior, a condição I significa que m é múltiplo de a e b simultanea- mente. Já II enuncia que todo múltiplo simultâneo de a e b também é múltiplo de m. Naturalmente, surgem as mesmas perguntas levantadas para o máximo divi- sor comum: será que o mínimo múltiplo comum sempre existe? Se existe, será que é único? Novamente, as respostas para essas perguntas são afirmativas, con- forme demonstramos a seguir. Inicialmente, temos a unicidade. Teorema Sejam a, b ∈ ℕ, a e b admitem, no máximo, um mínimo múltiplo comum. Fundamentos de aritmética, escrito por Hygino H. Domingues, é um excelente livro para quem busca inúmeros exemplos e exer- cícios da teoria do máximo divisor comum e outros conteúdos da aritmética. Sua leitura é indicada para reforçar a compressão da teoria aqui desenvolvida. DOMINGUES, H. H. São Paulo: Atual, 1991. Livro (Continua) Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 107 Demonstração Suponha que m1 e m2 são mínimos múltiplos comuns de a e b. Nesse caso, m1|m2 pois m2 é múltiplo de a e b. Além disso m2|m1 pois m1 é múltiplo de a e b e m2 é mínimo múltiplo comum de a e b. Sendo assim, m1 = m2 ∎ O mínimo múltiplo comum de a e b será denotado: mmc (a, b) O teorema anterior mostra que não há qualquer ambiguidade ao introduzir essa notação, dado que o mínimo múltiplo comum é único. A seguir demonstramos que mmc (a, b) existe para quaisquer que sejam a, b ∈ ℕ. Para tanto, verificamos um resultado auxiliar. ProposiçãoSejam a, b ∈ ℕ não nulos e d = mdc (a, b), então, m a b d � � é o mínimo múltiplo comum de a e b. Demonstração Inicialmente, observamos que d| ⋅ (a ⋅ b), uma vez que d|a e d|b. Em particular, m ∈ ℕ. Agora notamos que a b d a b d m� � � � Em particular, a|m. De maneira análoga, deduzimos que b|m. Em seguida, su- pomos que m’ é múltiplo de a e b. Em virtude disso, é possível escrevermos m’ = a ⋅ k e m’ = b ⋅ ℓ Consequentemente, a ⋅ k = b ⋅ ℓ o que implica a d k b d � � � Essa igualdade revela que a d k b d � � � divide a d k b d � � � . Mas, (Continua) 108 Aritmética mdc a d b d ,� � � � � � � 1 Portanto, a d | . Logo, é possível escrevermos � � a d t para algum t ∈ ℕ. Como m’ = b ⋅ ℓ, resulta em m b a d t a b d t m t' � � � � � � � � Isso mostra que m|m’ e, portanto, mdc (a, b) = m = (a ⋅ b)|d. ∎ A proposição anterior mostra que mmc (a, b) existe sempre que a ≠ 0 e b ≠ 0. Se a = 0 ou b = 0, mdc (a, b) = 0. De fato, se a = 0 e b é qualquer, por exemplo, então: I. 0|0 e b|0, pois 0 = b ⋅ 0; II. 0|m’ e b|m’ ⇒ 0|m’. Sendo assim, mmc (0, b) = 0. Analogamente, mmc (a, 0) = 0, significando que existe mmc (a, b) para quaisquer que sejam a, b ∈ ℕ. A proposição anterior mostra como obter o mínimo múltiplo comum explici- tamente por meio do máximo divisor comum, procedimento que ilustramos no exemplo a seguir. Σxemρlo 11 Para determinarmos o mmc (40, 16), observe que mdc (40, 16) = 8 Consequentemente, mmc (40, 16) = 40 16 8 80� � Lembre-se de que para o máximo divisor comum é válida a propriedade mdc (c ⋅ a, c ⋅ b) = c ⋅ mdc (a, b) Ela é análoga para o mínimo múltiplo comum, conforme demonstramos a seguir. Proposição Se m = mmc (a, b), então mmc (c ⋅ a, c ⋅ b) = c ⋅ m = c ⋅ mmc (a, b) (Continua) Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 109 para todo c ∈ ℕ. Demonstração Se a = 0 ou b = 0, m = 0 e c ⋅ a = 0 ou c ⋅ b = 0. Mas, mmc (c ⋅ a, c ⋅ b) = 0 = c ⋅ m Se c = 0, então, mmc (0, 0) = 0. Suponhamos que a ≠ 0, b ≠ 0 e c ≠ 0. Nessa situa- ção, temos que mmc ( (c c a c b c a c b mdc a c b c a b c mdc a b c� � � � � � � � � � � � � �, ) , ) ( , ) 2 aa b mdc c mmc� � � (a, b) (a, b) ∎ Assim como feito para o máximo divisor comum, é possível estendermos o mí- nimo múltiplo comum para o conjunto dos números inteiros. Comecemos com a definição do mínimo múltiplo comum nesse conjunto. Definição Sejam a, b ∈ ℤ. O mínimo múltiplo comum de a e b é mmc (a, b) ≔ mmc (|a|, |b|) Percebemos que na definição anterior o mínimo múltiplo comum dos inteiros a e b é definido em termos do mínimo múltiplo comum dos inteiros não negativos |a| e |b|. Em particular, mmc (a, b) existe e é único para quaisquer que sejam a, b ∈ ℤ. Além disso, mmc (a, b) = mmc (|a|, |b|) = mmc (|b|, |a|) = mmc (b, a) A seguir descrevemos uma caracterização para o mínimo múltiplo comum de dois inteiros que costuma ser útil em demonstrações teóricas. Teorema Um inteiro m é o mínimo múltiplo comum de a e b em ℤ se, e somente se: I. m ≥ 0; II. a|m e b|m; III. a|m’ e b|m’ ⇒ m|m’. Demonstração (⇒) Supomos que m = mmc (a, b) = mmc (|a|, |b|). Em particular, m ≥ 0. Como m é múltiplo de |a| e |b|, m também é múltiplo de a e b, pois a e b diferem de |a| e |b|, respectivamente, apenas por um sinal. (Continua) 110 Aritmética Finalmente, admitimos que m’ é múltiplo de a e b. Desse modo, m’ também é múltiplo de |a| e |b|, já que |a| e |b| diferem de a e b, respectivamente, apenas por um sinal. Consequentemente, m’ é múltiplo de m, pois m = mmc (|a|, |b|) em ℕ. (⇐) Supomos que m é um inteiro não negativo e múltiplo de a e b, tal que todo múltiplo de a e b também é múltiplo de m. Mas, então, m é múltiplo de |a| e |b|. Se m’ é múltiplo de |a| e |b|, m’ é múltiplo de a e b e, portanto, é múltiplo de m. Logo, m = mmc (|a|, |b|) em ℕ e, como consequência, m = mmc (a, b) em ℤ. ∎ A seguir expomos como é possível calcular mmc (a, b) em termos do máximo divisor comum de a e b quando a ≠ 0 e b ≠ 0. Proposição Sejam a, b ∈ ℤ: mdc (a, b) ⋅ mmc (a, b) = |a| ⋅ |b| = |a ⋅ b| Em particular, se a ≠ 0 e b ≠ 0: mmc (a, b) = (a, b) | |a b mdc ⋅ Demonstração Com efeito, usando mmc (|a|,|b|) = (|a|,|b|) | | | |a b mdc ⋅ temos que mmc (|a|,|b|) (|a|,|b|) = mdc (|a|,|b|) |a| |b| ( � � �mmc mdc ||a|,|b|) = |a b|� � �| | | |a b Com mdc (|a|, |b|) = mdc (a, b) e mmc (|a|, |b|) = mmc (a, b) temos que mdc (a, b) ⋅ mmc (a, b) = |a ⋅ b| Em particular, se a ≠ 0 e b ≠ 0, por divisão, obtemos mmc ( (a,b) a b a b mdc , ) | |� � ∎ A proposição anterior fornece uma maneira explícita de calcular o mínimo múl- tiplo comum entre dois inteiros, conforme ilustramos a seguir. Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 111 Σxemρlo 12 Para calcularmos o mínimo múltiplo comum entre os inteiros –52 e 16, fazemos: mdc (–52, 16) = mdc (|–52|, |16|) = mdc (52, 16) = 4 Consequentemente, mmc mdc ( 52, 16) = ( 52,16) � � � � � � � | | | |52 16 52 16 4 208 Boa parte da aritmética ocupa-se da compreensão da estrutura e do funcio- namento dos sistemas numéricos dos conjuntos dos números naturais e inteiros. Uma parte importante da teoria é aquela que diz respeito aos números primos, temática que será nosso objeto de estudo na próxima seção. A obra Elementos de aritmética, muito bem es- crita por Abramo Hefez, é uma leitura essencial para complementar e aprofun- dar os tópicos desenvolvi- dos em nossos estudos. HEFEZ, A. Rio de Janeiro: SBM, 2005. (Coleção Profmat). Livro 4.5 Números primos e o teorema fundamental da aritmética Vídeo Nesta seção, vamos discutir os números primos no conjunto dos números na- turais. A definição é a mesma que encontramos no ensino básico e será incluída a seguir, a título de formalização. Definição Um número p ∈ ℕ é denominado primo se I. p ≠ 0 e p ≠ 1; II. os únicos divisores de p forem 1 e p. Um número a ∈ ℕ tal que a ≠ 0 e a ≠ 1, que não é primo, é dito composto. Notamos que se a ∈ ℕ é um número composto, logo, é sempre possível escrever a = b · c com b ≠ 1 e c ≠ 1. Vemos que os números 0 e 1 não são primos nem compostos. Ilustramos a definição de número primo no exemplo a seguir. 112 Aritmética Σxemρlo 13 • O número 2 é primo. De fato, se a|2, então, 0 < a ≤ 2 e, portanto, a = 1 ou a = 2. • O número 2 é o único primo par. De fato, se a > 2 é par, é possível escrevermos a = 2k, com k > 1. Em particu- lar, 1, 2 e k são divisores de a, todos distintos. Os números primos têm propriedades interessantes. Uma delas, e de grande importância teórica, é apresentada a seguir. Proposição Se p é um número primo e p|a ⋅ b, então, p|a ou p|b. Demonstração Se a = 0 ou b = 0, o resultado é imediato. Supomos que a ≠ 0 e b ≠ 0 e que p não divide a. Nesse caso, mdc (a, p) = 1 De fato, se c|a e c|p, c = 1 ou c = p, devido ao fato de p ser primo. Entretanto, como p não divide a, decorre c = 1. Aplicando o corolário com as consequências importantes do teorema da multiplicação do mdc por algum número natural, deduzimos que p|b encerrando, assim, a demonstração. ∎ A proposição anterior pode ser estendida da seguinte maneira: se p é um núme- ro primo e p|(a1 · ... · an) com n ≥ 1, assim, p|aj para algum j ∈ {1, …, n}. A demons- tração pode ser feita usando o princípio da indução. A seguir demonstramos um dos fatos mais importantes da aritmética: todo nú- mero natural pode ser escrito como um produto de números primos. Além disso, essa decomposição em fatores primos é única. Para demonstrar o resultado, é ne- cessário mostrarmos o resultado auxiliar. Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 113 Lema Seja a ∈ ℕ tal que a ≠ 0 e a ≠ 1. Então, o menor inteiro do conjunto X = {x ∈ ℕ | x > 1, x|a} é um número primo. Demonstração Percebemos que a ∈ X, pois a > 1 e a|a. Pelo princípio da boa ordenação dos naturais, X tem um menor elemento p. Em particular, p ≠ 0 e p ≠ 1. Se p não fosse primo, existiriam b, c ∈ ℕ tais que b ≠ 1 e c ≠ 1, de modoque p = b ⋅ c Mas, nesse caso, teríamos b < p. Porém, b sendo divisor de p, também divide a. Logo, b ≠ 1 seria um divisor de a menor que p, e isso é um absurdo. Portanto, p é primo. ∎ Em posse do resultado anterior, é possível demonstrarmos o conhecido teore- ma fundamental da aritmética, o qual afirma que qualquer número natural maior que 1 pode ser fatorado como um produto finito de números primos e, além disso, o número de fatores é unicamente determinado e a fatoração é única, a menos na reordenação dos fatores. Teorema fundamental da aritmética Para todo número natural a > 1 existem números primos p1, …, pn, n ≥ 1 tais que a = p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pn Além disso, se a = q1 ⋅ q2 ⋅ ... ⋅ qm, m ≥ 1 com q1, …, qm primos, então m = n e {p1, …, pn} = {q1, …, qn} Demonstração Vamos usar o princípio da indução: • Se a = 2, a é primo e a afirmação é verdadeira. • Suponhamos que a > 2 e que o teorema seja válido para todo b tal que 2 ≤ b < a Pelo lema anterior, existe um divisor primo p1 para a, ou seja, (I) a = p1 ⋅ a1 para algum a1 ∈ ℕ \ {0}. (Continua) 114 Aritmética Se a1 = 1 ou a1 é primo, a demonstração está finalizada. Do contrário, como 2 ≤ a1 < a, pela hipótese de indução, existem n – 1 primos p2, …, pn com n – 1 ≥ 1, de maneira que a1 = p2 ⋅ p3 ⋅ ... ⋅ pn Mas, então, substituindo em (I), obtemos a = p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pn Resta verificarmos que se a = p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pn = q1 ⋅ q2 ⋅ ... ⋅ qm com p1, …, pn, q1, …, qm primos, logo, m = n e {p1, …, pn} = {q1, …, qm}. A igualdade p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pn = q1 ⋅ q2 ⋅ ... ⋅ qm implica p1 |(q1 ⋅ q2 ⋅ ... ⋅ qm) e, portanto, p1|qi para algum i. Analisando a numeração, é possível deduzirmos que i = 1, ou seja, p1|q1. Mas como 1 e q1 são os únicos divi- sores de q1 e p1 ≠ 1, segue que p1 = q1. Cancelando p1 e q1 na igualdade, obtemos p2 ⋅ p3 ⋅ ... ⋅ pn = q2 ⋅ q3 ⋅ ... ⋅ qn Prosseguindo esse raciocínio, chegamos à unicidade da afirmação do enuncia- do. Vemos que não pode ocorrer algo como 1 = qm ⋅ ... ⋅ qn, pois implicaria qn|1, o que é impossível, afinal, q1 é primo. ∎ Há um processo prático para determinar a fatoração de números primos forne- cida no teorema anterior. Isso é ilustrado no próximo exemplo. Σxemρlo 14 Para encontrar a decomposição de fatores primos, na decomposição de a = 60, por exemplo, fazemos: 60 2 30 2 15 3 5 5 1 Assim, 60 = 2 ⋅ 2 ⋅ 3 ⋅ 5 = 22 ⋅ 3 ⋅ 5 Na decomposição em fatores primos a = p1 ⋅ p2 ... pn, nem sempre todos os fatores são diferentes entre si. Em particular, é possível agrupar aqueles repe- tidos e escrever: a p p pr r k rk� � � � �1 1 2 2 Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 115 em que ri conta o número de vezes que o fator pi se repete. Observamos que 1 ≤ k ≤ n e pi ≠ pj sempre que i ≠ j e ri ≥ 1 para i = 1, …, k. Quando p1 < p2 < ⋯ < pk, obtemos a decomposição canônica de a. Por exemplo: 60 = 22 ⋅ 3 ⋅ 5 é a decomposição canônica de 60. Em algumas situações, ao considerarmos a decomposição em fatores primos de dois números naturais a e b, é conveniente escrevermos a e b como potências dos mesmos números primos. Isso é possível porque podemos utilizar expoentes nulos, como: 60 = 22 ⋅ 3 ⋅ 5 ⋅ 70 e 350 = 2 ⋅ 30 ⋅ 52 ⋅ 7 O teorema fundamental da aritmética tem algumas consequências importan- tes, as quais enunciamos e demonstramos a seguir. Corolário I. Se a p p pr r k rk� � � �1 1 2 2 ... , então, b|a se, e somente se, b p p ps s k sk� � � �1 1 2 2 ... com 0 ≤ si ≤ ri para todo i ∈ {1, …, k}. II. Se a, b ∈ ℕ \ {0} são tais que a p p p p p pr r k rk s s k sk� � � � � � � �1 1 2 2 1 1 2 2... ... e b então, mdc p p pt t k sk (a, b) = 1 1 2 2⋅ ⋅ ⋅... sendo ti = min {ri, si} para todo i ∈ {1, …, k}. III. Se a, b ∈ ℕ \ {0} são tais que a p p p p p pr r k rk s s k sk = e b = 1 1 2 2 1 1 2 2⋅ ⋅ ⋅ ⋅ ⋅ ⋅... ... então, mdc a b p p pt t k tk = ( , ) ...1 1 2 2⋅ ⋅ ⋅ sendo ti = max {ri, si} para todo i ∈ {1, …, k}. Demonstração I. Se b|a, pelo teorema fundamental da aritmética, a não possui fatores pri- mos de b que não sejam fatores primos de a. Contudo, nem todos os fato- res primos de a precisam estar na decomposição de fatores primos de b. Por outro lado, considerando c p p pt t k tk= 1 1 2 2⋅ ⋅ ⋅... com ti = ri – si para todo i ∈ {1, …, n}, temos c ∈ ℕ e c ⋅ b = a. Portanto, b|a. O termo min é a abreviação de mínimo, ou seja, t i é o elemento mínimo do conjunto {r i , s i }. Glossário O termo max é a abreviação de máximo, ou seja, t i é o elemento máximo do conjunto {r i , s i }. Glossário (Continua) 116 Aritmética II. Com efeito, d|a e d|b. Agora, se c ∈ ℕ é um divisor de a e b, então c p p pu u k uk= 1 1 2 2⋅ ⋅ ⋅... com 0 ≤ ui ≤ ri e 0 ≤ ui ≤ si para todo i ∈ {1, …, k}. Mas para cada índice i temos 0 ≤ ui ≤ min{ri, si} = ti uma vez que min {ri, si} = ri ou min {ri, si} = si. III. Pelo que discutimos, m é múltiplo de a e b. Além disso, se m' = p p pu u k uk 1 1 2 2⋅ ⋅ ⋅... é múltiplo de a e b, logo, ui ≥ ri ≥ 0 e ui ≥ si ≥ 0 para todo i ∈ {1, …, k}. Desse modo, ui ≥ max {ri, si} = ti para todo i ∈ {1, … k}. Portanto, m|m’. ∎ O corolário anterior fornece uma maneira simples de encontrar o máximo di- visor comum e o mínimo múltiplo comum de dois inteiros positivos. Esse procedi- mento está exemplificado a seguir. Σxemρlo 15 Para determinar o máximo divisor comum entre 36 e 52, fazemos: 36 = 22 ⋅ 32 ⋅ 130 e 52 = 22 ⋅ 30 ⋅ 131 Consequentemente, mdc (36, 52) = 22 ⋅ 30 ⋅ 130 = 4 Analogamente, mmc (36, 52) = 22 ⋅ 32 ⋅ 131 = 468 Finalmente, utilizando o teorema fundamental da aritmética é possível demons- trar que o conjunto dos números primos é infinito. Esse teorema é conhecido como teorema de Euclides, e será demonstrado a seguir. Teorema de Euclides O conjunto dos números primos é infinito. Demonstração Suponhamos, por absurdo, que o conjunto P dos números primos é finito. Nesse caso, seria possível escrevermos: P = {p1, p2, …, pr} O teorema de Euclides enuncia que o conjunto dos números primos é infinito, porém podemos questionar: qual é o maior número primo? Até o momento, o maior já des- coberto tem quase 25 mi- lhões de dígitos! Para saber mais a respeito, sugerimos duas matérias: • Maior número primo do mundo é descoberto por engenheiro voluntário nos EUA. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/ noticia/maior-numero-primo-do- -mundo-e-descoberto-por-enge- nheiro-voluntario-nos-eua.ghtml. Acesso em: 6 maio 2021. • Descoberto número primo com quase 25 milhões de dígitos. Dispo- nível em: https://impa.br/noticias/ descoberto-numero-primo-com- -quase-25-milhoes-de-digi- tos/#:~:text=H%C3%A1%20 menos%20de%20quatro%20me- ses,de%20aproximadamente%20 R%24%2011%20mil. Acesso em: 6 maio 2021. Curiosidade (Continua) Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 117 para algum r ∈ ℕ. Definimos: n ≔ p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pr + 1 Como n admite um divisor primo p e p1, …, pr são primos, segue que p = pi para algum i ∈ {1, …, r}. Sendo assim p|n e p|(p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pi ⋅ ... ⋅ pr) Entretanto, isso implica p|1, pois 1 = n – p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pr O que é um absurdo. Portanto, o conjunto P dos números primos é infinito. ∎ A discussão a respeito dos números primos e do teorema fundamental da aritmética também pode ser feita para o conjunto dos números inteiros. Esse é o objetivo do nosso estudo a partir de agora. O ponto de partida é a definição de número primo no conjunto dos inteiros. Definição Um número p ∈ ℤ é um inteiro primo (ou simplesmente primo) se |p| é primo em ℕ. Vejamos a exemplificação da definição anterior. Σxemρlo 16 Os números –2, –3, –5, –7 são inteiros primos, pois os números naturais 2, 3, 5 e 7 são primos em ℕ. Assim como é possível saber se um número natural é primo observando seus divisores, também é viável fazer o mesmo para os inteiros primos, conforme explicado a seguir. Teorema Seja p ∈ ℤ. Então, p é um inteiro primo se, e somente se: I. p ≠ 0 e p ≠ 1; II. os únicos divisores de p sejam ±1 e ±p. (Continua)118 Aritmética Demonstração (⇒) Se p é primo em ℤ, então, |p| é primo em ℕ. Em particular, |p| ≠ 0 e |p| ≠ 1. Portanto, p ≠ 0 e p ≠ ±1. Agora, suponhamos que a|p. Logo, |a|│|p|, e como |a| = 1 ou |a| = p, temos a = ±1 ou a = ±p. (⇐) Admitamos p ≠ 0 e p ≠ ±1. Então, |p| ≠ 0 e |p| ≠ 1. Se c ∈ ℕ e c│|p|: |p| = c ⋅ q com q ∈ ℕ. Em particular, |p| = |c ⋅ q| Então, p = ±c ⋅ q = c ⋅ (±q) e, portanto, c|p em ℤ. Por hipótese, c = ±1 ou c = ±p. Como c ∈ ℕ, só podemos ter c = 1 ou c = |p|. Desse modo, |p| é primo em ℕ, ou seja, p é primo em ℤ. ∎ O teorema fundamental da aritmética continua válido para o conjunto dos nú- meros inteiros e pode ser enunciado como a seguir. Teorema fundamental da aritmética em ℤ Seja a ∈ ℤ tal que a ≠ 0 e a ≠ ±1. Então, existem números primos p1, p2, …, pn ∈ ℤ com n ≥ 1, todos maiores que 1, tais que a = p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pn ou a = –p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pn conforme a > 0 ou a < 0. Além disso, essa decomposição é única, a menos na ordem dos fatores. Demonstração Basta considerarmos que a = ±|a| e aplicarmos o teorema fundamental da aritmética válido para ℕ. É possível, ainda, demonstrarmos a unicidade com o mesmo argumento utilizado na demonstração da unicidade no teorema funda- mental da aritmética válido para ℕ. ∎ A seguir apresentamos um exemplo que ilustra o emprego do teorema anterior. Σxemρlo 17 O número inteiro –120 decompõe-se em fatores primos da seguinte forma: –102 = –2 ⋅ 3 ⋅ 17 Demonstre a unicidade da de- composição a = p 1 ⋅ p 2 ⋅ ... ⋅ p n ou a = –p 1 ⋅ p 2 ⋅ ... ⋅ p n , enun- ciada no teorema fundamental da aritmética no conjunto dos números inteiros. Desafio O livro Introdução à teoria dos números, escrito por Ana Maria Amarillo Bertone, traz uma exposi- ção da teoria dos números muito próxima da maneira com a qual desenvolve- mos nossos estudos até o momento. Fica o convite para conferir, sobretudo, a exposição a respeito dos números primos. BERTONE, A. M. A. Uberlândia UFU, 2014. Livro Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 119 O teorema fundamental da aritmética é um dos principais resultados da aritmética, merecendo, portanto, atenção especial. Certifique-se de que todo o con- teúdo que estudamos está claro e consulte as referências indicadas ao longo do capítulo para ampliar seus conhecimentos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Grande parte da aritmética é dedicada ao estudo de tópicos relacionados à divisão de números naturais e/ou inteiros. Nesse contexto, destacam-se as noções de máxi- mo divisor comum, mínimo múltiplo comum e números primos. O estudo desses conceitos permite melhor compreender a estrutura dos nú- meros naturais e inteiros e a álgebra elementar como um todo. De modo adicio- nal, diversas aplicações, tanto teóricas quanto práticas, decorrem do estudo aqui apresentado. Ainda existem muitos problemas e mistérios a serem explorados, por exemplo qual é o maior número primo. Basta uma pesquisa rápida na internet para descobrimos muitas conjecturas en- volvendo a teoria dos números. Diante disso, destacamos que este capítulo pode e deve servir como ponto de partida para o estudo de tópicos adicionais. ATIVIDADES 1. É verdade que se a e b são números naturais não nulos, mdc (a, b) = mdc (a, b – a)? Justifique sua resposta. 2. Encontre o mdc (600, 252) usando a decomposição em fatores primos. 3. Se mdc (a, b) = 1, o que podemos afirmar sobre mmc (a, b)? REFERÊNCIAS ALENCAR FILHO, E. de. Iniciação à lógica matemática. São Paulo: Nobel, 2002. DOMINGUES, H. H.; IEZZI, G. Álgebra moderna. São Paulo: Atual, 2003. HEFEZ, A. Elementos de aritmética. Rio de Janeiro: SBM, 2006. IEZZI, G.; MURAKAMI, C. Conjuntos/funções. São Paulo: Atual, 2004. (Coleção Fundamentos de Matemática Elementar, v. 1). Vídeo 120 Aritmética 5 Congruências Neste capítulo, serão apresentados alguns tópicos que pertencem à inter- seção da aritmética com a teoria dos números. De forma mais precisa, vamos conhecer o pequeno teorema de Fermat, o teorema chinês dos restos, as con- gruências lineares e os inteiros módulo m. Esses dois últimos tópicos estão pre- sentes em cursos de álgebra abstrata. Portanto, agora é um ótimo momento para consolidar suas bases para as teorias que estão por vir. Os assuntos foram escolhidos com o intuito de complementar sua formação e de apresentar conceitos que podem, e certamente, surgirão em outras dis- ciplinas. Além de serem interessantes por si próprios, os resultados discutidos neste capítulo ilustrarão como podemos aplicar a teoria em problemas de di- versas naturezas. Nesta etapa, você está pronto a investigar tópicos adicionais; sendo assim, sinta-se convidado a buscar conhecer outras exposições, refe- rências e abordagens. Manter vivo o desejo pelo conhecimento é fundamental. 5.1 O pequeno teorema de Fermat Vídeo Pierre de Fermat (1601-1665) é considerado o mais notável matemático francês do século XVII. Tornou-se famoso por ter enunciado um resultado chamado o últi- mo teorema de Fermat. O conteúdo desse resultado é simples: se n ≥ 3, não existem inteiros positivos a, b, c que sejam solução para a equação xn + yn = zn. A demonstração, notavelmente não trivial, obtida apenas trezentos e cinquen- ta anos após o enunciado levantado por Fermat, deve-se ao matemático Andrew Wiles. Outro resultado famoso devido a Fermat é o chamado pequeno teorema de Fermat, nosso objeto de estudo. O enunciado é simples: se p é um número primo e a é um inteiro não divisível por p, então, ap –1 – 1 é múltiplo de p. A título de ilustra- ção, aplicando esse resultado com p = 11 e a = 3 deduzimos que 311 – 1 – 1 = 310 – 1 = 59.048 é múltiplo de 11. De fato, temos que 59.048 = 11 ⋅ 5.368 Com o que discutimos até o momento, é possível demonstrar o pequeno teore- ma de Fermat sem grandes dificuldades. M sc hl in dw ei n/ W ik im ed ia C om m on s Pierre de Fermat Congruências 121 Teorema – Pequeno teorema de Fermat Se p é um número primo e a é um inteiro não divisível por p, então ap – 1 é múl- tiplo de p. Demonstração Aplicando o algoritmo da divisão com os dividendos a, 2a, 3a, …, (p – 1)a e p sendo o divisor, obtemos a = p ⋅ q1 + r1 (0 < r1 < p) 2a = p ⋅ q2 + r2 (0 < r2 <p) ⋮ (p – 1)a = p ⋅ qp – 1 + rp – 1 (0 < rp – 1 < p) Note que, se i ≠ j, então ri ≠ rj. De fato, suponha que existam i, j ∈ {1, …, p – 1} tais que i ≠ j e r = ri = rj. Nesse caso, subtraindo as igualdades i ⋅ a = p ⋅ qi + r e j ⋅ a = p ⋅ qj + r temos que (i – j) ⋅ a = i ⋅ a – j ⋅ a = p ⋅ qi + r – p ⋅ qj – r = p ⋅ (qi – qj) Isso mostra que p é um divisor de i – j, pois p é primo e não divide a. Mas isso é possível apenas se i = j, pois |i – j| < p. Logo, r1, …, rp – 1 ∈ {1, …, p – 1} e ri ≠ rj para todo i ≠ j. Mas, multiplicando as p – 1 igualdades dadas pelo algoritmo da divisão, temos a ⋅ (2 ⋅ a) ⋅ ... ⋅ (p – 1) ⋅ a = p ⋅ k + r1 ⋅ r2 ⋅ ... ⋅ rp – 1 sendo k a soma dos fatores de p do segundo membro. Mas é possível reescrever essa igualdade como 1 ⋅ 2 ⋅ ... ⋅ (p – 1) ⋅ ap – 1 = p ⋅ k + 1 ⋅ 2 ⋅ ... ⋅ (p – 1) Isso implica que 1 ⋅ 2 ⋅ ... ⋅ (p – 1) ⋅ (ap – 1 – 1) = p ⋅ k Portanto, p é um divisor de 1 ⋅ 2 ⋅ ... ⋅ (p – 1) ⋅ (ap – 1 – 1). Como p é primo e não divide nenhum dos fatores em 1 ⋅ 2 ⋅ ... ⋅ (p – 1), pois p é menor que cada um desses fatores, segue que p divide ap – 1 – 1. Isso significa que p é múltiplo de ap – 1 – 1. ∎ A seguir, mostramos como é possível aplicar o pequeno teorema de Fermat na prática. Entretanto, esta notação será explicada em detalhes adiante, no momento em que será explicada sua definição e propriedades. A dissertação de mestra- do intitulada Sobre várias demonstrações do pequeno teorema de Fermat e as inter-relações entre as áreas da matemática apresenta diversas demonstrações para o pequeno teorema de Fermat. É uma leitura essencial para conhecer di- versas formas de verificação do teorema. OLIVEIRA, F. E. F. 2019. Dissertação (Mestrado em Matemática) – Centro de Ciências, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza.Disponível em: http:// www.repositorio.ufc.br/bitstream/ riufc/44231/1/2019_dis_fefoliveira. pdf. Acesso em: 28 abr. 2021. Leitura http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/44231/1/2019_dis_fefoliveira.pdf http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/44231/1/2019_dis_fefoliveira.pdf http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/44231/1/2019_dis_fefoliveira.pdf http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/44231/1/2019_dis_fefoliveira.pdf 122 Aritmética Σxemρlo 1 Aplicando o pequeno teorema de Fermat, é possível determinar o resto da di- visão de 2100.000 por 17. De fato, como 17 é primo e não divide 2, pelo pequeno teorema de Fermat, 216 ≡ 1 (mod 17) Mas, note que 100.000 = 6.250 · 16 de forma que 2100.000 = (216)6.250 ≡ 16.250 (mod 17) ≡ 1 (mod 17) Portanto, o resto da divisão de 2100.000 por 17 é 1. Acompanhe mais um exemplo. Σxemρlo 2 Utilizando o pequeno teorema de Fermat é possível verificar que 250 + 350 é divi- sível por 13. De fato, 250 = 24 · 12 + 2 = (214)4 · 2 de modo que 250 ≡ 22 (mod 13) Analogamente, 350 = 34 · 12 + 2 = (312)4 · 32 e, portanto, 350 ≡ 32 (mod 13) Logo, 250 + 350 ≡ 22 + 32 (mod 13) Concluímos que 250 + 350 ≡ 0 (mod 13) ou seja, 250 + 350 é divisível por 13. Pierre de Fermat trouxe muitas grandes contribuições para a teoria dos núme- ros. Cabe destacar que foi ele quem introduziu sistemas de eixos perpendiculares, ideia geralmente atribuída a René Descartes. De fato, as coordenadas cartesia- nas deveriam ser chamadas de coordenadas fermatianas. Além disso, atribui-se a Congruências 123 Fermat a descoberta das equações da circunferência, da reta, bem como as mais simples equações das seções cônicas: elipse, parábola, hipérbole. 5.2 Congruências módulo m Vídeo Agora, vamos apresentar uma importante relação de equivalência no conjunto dos números inteiros: a relação de congruência módulo m. Resumidamente, essa relação identifica inteiros cuja divisão por m resulta no mesmo resto. Essa relação dará origem ao conjunto dos inteiros módulo m, importante mode- lo conceitual de um grupo aditivo abeliano que pode ser encontrado na teoria de grupos estudada em outras disciplinas de álgebra. O ponto de partida da discussão é a definição de congruência módulo m, forne- cida a seguir. Definição Sejam a, b ∈ ℤ e m ∈ ℤ \ {0}. Dizemos que a é congruente a b módulo m e escrevemos a ≡ b (mod m) se m|(a – b) A notação a ≡ b (mod m) significa, portanto, que existe um inteiro q tal que a – b = m ⋅ q ou, de modo equivalente, a = b + m ⋅ q A título de ilustração, temos 7 ≡ 3 (mod 2) pois 2|(7 – 3) = 4 Também, 7 ≡ 3 (mod 4) pois 4|(7 – 3) = 4 A relação congruência (≡) é de equivalência em ℤ, conforme demonstramos a seguir. Teorema Se m ∈ ℤ \ {0}, a relação de congruência (≡) módulo m é uma relação de equiva- lência em ℤ. (Continua) 124 Aritmética Demonstração É necessário verificar que ≡ é reflexiva, simétrica e transitiva. Para isso, temos que: • ≡ é reflexiva. De fato, se a ∈ ℤ, então m|0 = (a – a) Portanto, a ≡ a (mod m). • ≡ é simétrica. Suponha que a, b ∈ ℤ são tais que a ≡ b (mod m). Isso significa que m|(a – b) Mas então, m| –(a – b) = (b – a) Portanto, b ≡ a (mod m). • ≡ é transitiva. Sejam a, b, c ∈ ℤ tais que a ≡ b (mod m) e b ≡ c (mod m). Nesse caso, m|(a – b) e m|(b – c) Consequentemente, m|(a – b) + (b – c) = a – c ou seja, m|(a – c) e, portanto, a ≡ c (mod m). ∎ Note que m|(a – b) se, e somente se, |m|│(a – b), logo basta desenvolver a teo- ria para o caso em que m > 0. Em virtude disso, de agora em diante, será suposto que m > 0 sempre que se tratar da congruência módulo m. A seguir, demonstramos uma caracterização interessante da congruência mó- dulo m. Teorema Dois inteiros a e b são congruentes módulo m se, e somente se, têm o mesmo inteiro como resto da divisão por m. Demonstração Aplicando o algoritmo da divisão por m, segue que a = m ⋅ q1 + r1 e b = m ⋅ q2 + r2 com 0 ≤ r1 < m e 0 ≤ r2 < m. (Continua) Congruências 125 Consequentemente, a – b = m ⋅ (q1 – q2) + (r1 – r2) Dessa forma, m|(a – b) ⇔ m|(r1 – r2) Mas, como 0 ≤ |r1 – r2| < m, temos que m|(r1 – r2) se, e somente se, r1 – r2 = 0, ou seja, r1 = r2. Portanto, a ≡ b (mod m) se, e somente se, r1 = r2. ∎ A seguir, vamos demonstrar que a congruência módulo m é compatível com a adição, a multiplicação e a potenciação dos inteiros. Teorema Sejam m > 0 um inteiro e a, b, c, d ∈ ℤ. I. Se a ≡ b (mod m), então a + c ≡ b + c (mod m). II. Se a ≡ b (mod m) e c ≡ d (mod m), então a ⋅ c ≡ b ⋅ d (mod m). III. Se a ≡ b (mod m), então an ≡ bn (mod m), para todo inteiro positivo n. Demonstração I. Suponha que m|(a – b). Observe que a – b = (a + c) – (b + c) Logo, m|(a + c) – (b + c), então a + c ≡ b + c (mod m). II. Suponha que m|(a – b) e m|(c – d). Então é possível escrever a = b + q1 ⋅ m e c = q + q2⋅ m para certos q1, q2 ∈ ℤ. Mas então, a ⋅ c = (b + q1 ⋅ m) ⋅ (d + q2 ⋅ m) = b ⋅ d + b ⋅ q2 ⋅ m + q1 ⋅ m ⋅ d + q1 ⋅ q2 ⋅ m = b ⋅ d + (b ⋅ q2 + q1 ⋅ d + q1 ⋅ q2) ⋅ m Portanto, m|(a ⋅ c – b ⋅ d), ou seja, a ⋅ c ≡ b ⋅ d (mod m). III. Decorre de II usando indução sobre n. Para verificar isso, defina o conjunto X = {n ∈ ℕ | an ≡ bn (mod m) ∀ a, b ∈ ℤ} Nessa situação, é direito que n = 0 ou n = 1 são elementos de X, portanto, deve- mos começar o procedimento indutivo com n = 2. Para esse valor de n, a afirmação é válida, pois a ≡ b (mod m) e a · a ≡ b · b (mod m) ⇒ a2 ≡ b2 (mod m) (Continua) 126 Aritmética Considere n ∈ X, ou seja, n ∈ ℕ e an ≡ bn (mod m) Mas, an ≡ bn (mod m) e a ≡ b (mod m) ⇒ an + 1 ≡ bn + 1 (mod m) e, portanto, n + 1 ∈ X. Pelo princípio da indução, temos que X = ℕ. ∎ A congruência módulo m tem a propriedade do cancelamento para a adição, conforme demonstramos a seguir. Proposição Sejam m > 0 um inteiro e a, b ∈ ℤ. Se a + c ≡ b + c (mod m), então a ≡ b (mod m) Demonstração De fato, se a + c = b + c (mod m), então m|[(a + c) – (b + c)] = (a – b) Portanto, a ≡ b (mod m). ∎ Será que vale uma propriedade análoga para a multiplicação? Em outros ter- mos, se a ⋅ c ≡ b ⋅ c (mod m), será que a ≡ b (mod m)? Não, pois, um contraexem- plo seria 3 ⋅ 3 ≡ 3 ⋅ 5 (mod 6) Não é verdade que 3 ≡ 5 (mod 6). Contudo, o cancelamento para a multiplica- ção é válido quando adicionamos uma hipótese conforme explicamos a seguir. Proposição Sejam m > 0 um inteiro e a, b, c ∈ ℤ. Se mdc (c, m) = 1, então a ⋅ c = b ⋅ c (mod m) implica a ≡ b (mod m). Demonstração Com efeito, se a ⋅ c ≡ b ⋅ c (mod m), então m|(a – b) ⋅ c Logo, m|(a – b) ou m|c. Como mdc (c, m) = 1, segue que m|(a – b), ou seja, a ≡ b (mod m). ∎ Congruências 127 A seguir, apresentamos um exemplo de natureza prática de um problema que pode ser resolvido facilmente usando congruências lineares. Σxemρlo 3 Qual é o resto da divisão de 560 por 26? Aplicando o algoritmo da divisão temos que 560 = 26 ⋅ q + r sendo 0 ≤ r ≤ 25. Em particular, 560 ≡ r (mod 26) Como 52 = 25, segue que 52 ≡ –1 (mod 26) Mas então, elevando ao quadrado ambos os lados da congruência anterior, temos 54 ≡ (–1)2 (mod 26) ou seja, 54 ≡ 1 (mod 26) Agora, notando que 560 = (54)15, podemos fazer 560 ≡ 115 (mod 26) e, portanto, o resto da divisão de 560 por 26 é 1. Na próxima seção, discutiremos como a relação de congruência no conjunto dos números inteiros dá origem ao conjunto dos inteiros módulo m. A obra Introdução à teoria dos números, escrito por Ana Maria Amarillo Bertone, é uma excelente opção para complementar os tópicos estudados sobre congruências. A autora faz uma exposição clara, rigo- rosa e rica em exemplos. BERTONE, A. M. A. Uberlândia: UFU, 2014. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/ bitstream/123456789/25317/1/ Introdu%C3%A7%C3%A3o%20 a%20Teoria%20dos%20 N%C3%BAmeros.pdf. Acesso em: 17 maio 2021. Livro 5.3 Inteiros módulo m Vídeo Vamos estudar, de maneira aprofundada, o quociente módulo a relação de con- gruência módulo m definida na seção anterior. Esse conjunto quociente, denotado por ℤm, é denominadode conjunto dos inteiros módulo m. Esse conjunto ℤm está do- tado de uma operação de adição e de uma de multiplicação. Nosso objetivo central é explorar as propriedades de ℤm e de suas operações algébricas. Na seção anterior demonstramos que se m > 0 é um inteiro, então a ≡ b (mod m) é uma relação de equivalência em ℤ. Em particular, cada inteiro a ∈ ℤ possui uma classe de equivalência associada módulo a relação ≡. 128 Aritmética Explicitamente, [a] = {b ∈ ℤ | b ≡ a (mod m)} = {b ∈ ℤ | m|(b – a)} = {b ∈ ℤ | b – a = q ⋅ m, q ∈ ℤ} = {b ∈ ℤ | b = a + q ⋅ m, q ∈ ℤ} = {a + q ⋅ m | q ∈ ℤ} Essa discussão nos conduz à definição a seguir. Definição Seja m > 0 um inteiro e a ∈ ℤ , a classe de congruência de a módulo m é o conjunto [a] = {a + q ⋅ m | m ∈ ℤ } Em particular, se a, b ∈ ℤ, então a ≡ b (mod m) ⇔ [a] = [b] A seguir, ilustramos algumas classes de congruência. Σxemρlo 4 Se m > 0 é um inteiro, então são exemplos de classes de equivalência: [0] = {0, ± m, ± 2 ⋅ m, ± 3 ⋅ m, …} [1] = {1, 1 ± m, 1 ±2 ⋅ m, 1 ± 3 ⋅ m, …} [2] = {2, 2 ± m, 2 ± 2 ⋅ m, 2 ± 3 ⋅ m, …} ⋮ [m – 1] = {m –1,m –1 ± m, m – 1 ± 2 ⋅ m, …} Agora, [m] = {m, m ± m, m ± 2 ⋅ m, …} = [0] [m + 1] = {m + 1,m + 1 ± m, m + 1 ± 2 ⋅ m, …} = [1] e assim por diante. Em particular, existe apenas um número finito de classes de equivalência as- sociadas à congruência módulo m. Se, por exemplo, m = 6, então as classes de congruência associadas são [0] = {0, 6, –6, 12, –12, …} [1] = {1, 7, –5, 13, –11, …} [2] = {2, 8, –4, 14, –10, …} [3] = {3, 9, –3, 15, –9, …} [4] = {4, 10, –2, 16, –8, …} [5] = {5, 11, –1, 17, –7, …} (Continua) Congruências 129 Geralmente, para qualquer m fixado haverá apenas um número finito de clas- ses de inteiros módulo m. Isso é uma consequência do teorema da divisão euclidia- na conforme explicaremos posteriormente. Toda relação de equivalência dá origem a um conjunto quociente e, portanto, o mesmo acontece com a congruência módulo m. Definição Seja m > 0 um inteiro, o conjunto dos inteiros módulo m, denotado ℤm, é o conjunto quociente de ℤ módulo a relação ≡. A seguir, será demonstrado que ℤm sempre possui um número finito de elementos. Teorema Seja m > 0 um inteiro. Então ℤm = {[0], [1], …, [m – 1]} Demonstração Considere [a] ∈ ℤm. Vamos aplicar o algoritmo da divisão euclidiana com a ∈ ℤ sendo o dividendo e m o divisor. Dessa forma, a = q ⋅ m + r com 0 ≤ |r| < m. Em particular, m|(a – r), ou seja, a ≡ r (mod m) Essa igualdade revela que [a] = [r] Resta deduzir que [r] = [x] com x ∈ {0, ..., m}. Mas |r| < m ⇔ r ∈ {–(m – 1), –(m – 2), …, –1, 0, 1, …, m – 2, m – 1} Como [–(m – 1)] = [1] [–(m – 2)] = [2] ⋮ [-2] = [m – 2] [-1] = [m – 1] Decorre a igualdade, [a] = [r] ∈ {[0], [1], …, [m – 1]} (Continua) 130 Aritmética Isso mostra a inclusão ℤm ⊂ {[0], [1], …, [m – 1]}. A inclusão contrária é direta, pois [0], [1], …, [m – 1]} são elementos de ℤm. Isso encerra a demonstração. ∎ O conjunto ℤm pode ser dotado de uma adição e de uma multiplicação. A manei- ra natural de se fazer isso é definindo [a] + [b] ≔ [a + b] [a] ⋅ [b] ≔ [a ⋅ b] em que as operações de adição e multiplicação no lado direito das igualdades ocor- rem em ℤ. Naturalmente, é necessário verificar que essas definições não dependem da es- colha dos representantes, ou seja, vamos demonstrar que + e ⋅ são únicos. Proposição Sejam a, b, a’, b’ ∈ ℤ. Se [a] = [a’] e [b] = [b’], então [a] + [b] = [a’] + [b’] [a] ⋅ [b] = [a’] ⋅ [b’] Demonstração Se [a] = [a’] e [b] = [b’], então a ≡ a’ (mod m) e b ≡ b’ (mod m) Mas, a ≡ a’ (mod m) e b ≡ b’ (mod m) ⇒ a + b ≡ a’ + b’ (mod m) Agora, a’ ≡ a’ (mod m) e b ≡ b’ (mod m) ⇒ a’ + b ≡ a’ + b’ (mod m) Finalmente, pela transitividade da relação de congruência, a + b ≡ a’ + b (mod m) e a’ + b ≡ a’ + b’ (mod m) ⇒ a + b ≡ a’ + b’ (mod m) Isso mostra que [a] + [b] = [a + b] = [a’ + b’] = [a’] + [b’] De maneira análoga, é possível demonstrar que [a] ⋅ [b] = [a’] ⋅ [b’] ∎ É bastante comum apresentar as operações de adição e multiplicação módulo m por meio de tábuas. Por exemplo, a tábua de adição em ℤ3 pode ser consultada na Tabela 1 a seguir. Demonstre que se [a] = [a’] e [b] = [b’], então [a] ⋅ [b] = [a’] ⋅ [b’]. Desafio Congruências 131 Tabela 1 Tábua de adição em ℤ3 + [0] [1] [2] [0] [0] [1] [2] [1] [1] [2] [0] [2] [2] [0] [1] Fonte: Elaborada pelo autor. Note que existe uma simetria em relação à diagonal dessa tabela. Isso ocorre pelo fato de a adição ser comutativa. Analogamente, podemos construir a tábula da multiplicação em ℤ3 conforme a tabela a seguir. Tabela 2 Tábua de multiplicação em ℤ3 · [0] [1] [2] [0] [0] [0] [0] [1] [0] [1] [2] [2] [0] [2] [1] Fonte: Elaborada pelo autor. Novamente, observe a presença da simetria em relação à diagonal dessa tabela. Isso ocorre porque a multiplicação é comutativa. Uma pergunta natural é: o quão similar a adição em ℤm é da adição de inteiros? Vamos demonstramos a seguir que é muito similar. Teorema A adição (+) em ℤm tem as seguintes propriedades: I. Associatividade: [a] + ([b] + [c]) = ([a] + [b]) + [c]. II. Comutatividade: [a] + [b] = [b] + [a]. III. Existência do elemento neutro: [0] é único elemento de ℤm tal que [a] + [0] = [a] para todo [a] ∈ ℤm. IV. Existência do oposto: [–a] é o único elemento de ℤm tal que [a] + [–a] = [0] Demonstração I. De fato, se a, b, c ∈ ℤ, então usando a associatividade da adição em ℤ resulta que [a] + ([b] + [c]) = [a] + [b + c] = [a + (b + c)] = [(a + b) + c] = [a + b] + [c] = ([a] + [b]) + [c] Construa as tábuas da adição e da multiplicação em ℤ5. Desafio (Continua) 132 Aritmética II. Se a, b ∈ ℤ, então usando a comutatividade da adição em ℤ resulta que [a] + [b] = [a + b] = [b + a] = [b] + [a] III. Inicialmente, se a ∈ ℤ, então [a] + [0] = [a + 0] = [a] Se [x] ∈ ℤm satisfaz [a] + [x] = [a] então [a + x] = [a] e, portanto, 0 + a ≡ x + a (mod m) Pela lei do cancelamento, 0 ≡ x (mod m) Portanto, [x] = [0]. Isso mostra a unicidade. IV. Se a ∈ ℤ, então [a] + [–a] = [a + (–a)] = [0] Agora, suponha que [x] ∈ ℤm satisfaz [a] + [x] = [0] Nesse caso, [a + x] = [0] e, portanto, a + x ≡ 0 (mod m). Mas, isso equivale a x + a ≡ x + (–x) (mod m) Pela lei do cancelamento, decorre que a ≡ –x (mod m) Logo, –a ≡ x (mod m) Consequentemente, [x] = [–a]. Isso mostra a unicidade. ∎ Assim como ocorre com a adição em ℤm, a multiplicação tem propriedades aná- logas às da multiplicação em ℤ, conforme enunciado a seguir. Teorema A multiplicação (⋅) em ℤm tem as propriedades a seguir. (Continua) Congruências 133 I. Associatividade: [a] ⋅ ([b] ⋅ [c]) = ([a] ⋅ [b]) ⋅ [c]. II. Comutatividade: [a] ⋅ [b] = [b] ⋅ [a]. III. Existência do neutro: [1] é o único elemento de ℤm tal que [a] ⋅ [1] = [a] para todo [a] ∈ ℤm. IV. Distributividade: [a] ⋅ ([b] + [c]) = [a] ⋅ [b] + [a] ⋅ [c]. Demonstração As demonstrações decorrem imediatamente da definição da multiplicação e das respectivas propriedades válidas para a multiplicação em ℤ. Por exemplo: I. Associatividade: [a] ⋅ ([b] ⋅ [c]) = [a] ⋅ [b ⋅ c] = [a ⋅ (b ⋅ c)] = [(a ⋅ b) ⋅ c] = [a ⋅ b] ⋅ [c] = ([a] ⋅ [b]) ⋅ [c] Note que foi utilizado a associatividade da multiplicação em ℤ para escrever a igualdade [a ⋅ (b ⋅ c)] = [(a ⋅ b) ⋅ c] Comutatividade: Utilizando a comutatividade da multiplicação em ℤ para escrever [a ⋅ b] = [b ⋅ a] Temos que [a] ⋅ [b] = [a ⋅ b] = [b ⋅ a] Com o auxílio dessas demonstrações, é possível verificar a existência do neutro e a propriedade distributiva da multiplicação (⋅) em ℤm. ∎ A seguir, vamos demonstrar propriedades específicas da multiplicação em ℤm. No conjunto dos inteiros, se x, y ∈ ℤ são tais que x ⋅ y = 0, então x = 0 ou y = 0. Em ℤm não vale uma propriedade análoga. Para introduzir essa discussão, vamos definir o que são divisores do zero em ℤm. Definição Um elemento [a] ∈ ℤm não nulo, isto é, [a] ≠ [0], é um divisor do zero se existe [b] ∈ ℤm tal que [a] ⋅ [b] = [0]. A seguir, apresentamos uma caracterizaçãopara os divisores do zero em ℤm. Demonstre as propriedades da multiplicação (⋅) em ℤm a seguir: • Existência do neutro: [1] é o único elemento de ℤm, tal que [a] ⋅ [1] = [a] para todo [a] ∈ ℤm. • Distributividade: [a] ⋅ ([b] + [c]) = [a] ⋅ [b] + [a] ⋅ [c]. Desafio 134 Aritmética Proposição Um elemento não nulo [a] ∈ ℤm é um divisor do zero se, e somente se, mdc (a, m) ≠ 1 Demonstração Suponha que [a] seja um divisor do zero e considere [b] ∈ ℤm não nulo, tal que [a] ⋅ [b] = [0] Mas [a ⋅ b] = [a] ⋅ [b] = [0] significa que a ⋅ b ≡ 0 (mod m) ou seja, m|(a ⋅ b). Supondo por absurdo que mdc (a, m) = 1, segue que m|b e, portanto, [b] = [0], uma contradição. Por outro lado, suponha que mdc (a, m) = k > 1. Queremos encontrar [b] ≠ [0] em ℤm, tal que [a] ⋅ [b] = [0]. Como k divide a e divide m, podemos escrever a = q1 ⋅ k e m = q2 ⋅ k sendo 0 < q2 < m, pois k > 1. Em particular, [q1] ≠ [0]. Agora, note que a ⋅ q2 = q1 ⋅ k ⋅ q2 = q1 ⋅ m Consequentemente, [a ⋅ q2] = [q1 ⋅ m] = [0] Basta considerar b = q2. ∎ O resultado anterior tem uma consequência importante. Corolário I. Se p > 1 é um inteiro primo, então ℤp não contém divisores de zero. II. Se ℤm não contém divisores de zero, então m é um inteiro primo. (Continua) Congruências 135 Demonstração I. Decorre diretamente do teorema anterior. II. Suponha, por absurdo, que m não seja primo. Então é possível escrever m = k ⋅ l com 1 < k < m e 1 < l < m Mas então [0] = [m] = [k] ⋅ [l] Porém, [r] ≠ [0] e [s] ≠ [0], uma contradição. ∎ No conjunto dos números inteiros, é válida a propriedade do cancelamento para a multiplicação. Entretanto, isso nem sempre é válido para ℤm, conforme de- monstramos a seguir. Teorema Vale a lei do cancelamento para a multiplicação em ℤm se, e somente se, m é primo. Demonstração Suponha que m seja primo e sejam [a], [b], [c] ∈ ℤm com [a] ≠ [0] tais que [a] ⋅ [b] = [a] ⋅ [c] Mas então [a] ⋅ ([b] – [c]) = [0] Como [a] ≠ [0] e ℤm não têm divisores de zero, segue que [b] – [c] = [0] e, portanto, [b] = [c]. Por outro, basta demonstrar que ℤm não contém divisores do zero. Para tanto, sejam [a], [b] ∈ ℤm tais que [a] ⋅ [b] = [0]. Se [a] ≠ [0], então aplicando a lei do cance- lamento à igualdade [a] ⋅ [b] = [a] ⋅ [0] segue que [b] = [0]. ∎ Antes de prosseguir a discussão a respeito da multiplicação em ℤm, vamos escla- recer o que são elementos invertíveis em ℤm na definição a seguir. Demonstre que se p > 1 é um inteiro primo, então ℤp não contém divisores de zero. Desafio 136 Aritmética Definição Dizemos que um elemento [a] ∈ ℤm é invertível se existe [b] ∈ ℤm tal que [a] ⋅ [b] = [1]. Nesse caso, dizemos que [b] é um inverso de [a]. Por exemplo, [1] e [–1] são invertíveis em ℤm, pois [1] ⋅ [1] = [1 ⋅ 1] = [1] e [–1] ⋅ [–1] = [(–1) ⋅ (–1)] = [1] Contudo, existem outros elementos de ℤm que são invertíveis. Por exemplo, em ℤ5 temos [2] ⋅ [3] = [6] = [1] e [4] ⋅ [4] = [16] = [1] Entretanto, note que [0] não é invertível em ℤm, qualquer que seja m. De fato, para qualquer [a] ∈ ℤm temos [0] ⋅ [a] = [0] ≠ [1]. A seguir, apresentamos uma caracterização dos elementos invertíveis em ℤm. Teorema Seja [a] um elemento não nulo em ℤm. Então, [a] é invertível se, e somente se, mdc (a, m) = 1. Demonstração Suponha que [a] seja invertível e que mdc (a, m) ≠1. Em particular, [a] é divisor do zero. Logo, existe [b] ≠ [0] tal que [a] ⋅ [b] = [0]. Nesse caso, [a] não pode ser in- vertível. De fato, se existisse [c] ∈ ℤm tal que [a] ⋅ [c] = [1], então teríamos que [b] = [b] ⋅ [1] = [b] ⋅ ([a ⋅ c]) = ([a] ⋅ [b]) ⋅ [c] = [0] ⋅ [c] = [0] uma contradição. Por outro lado, se mdc (a, m) = 1, então existem k e l tais que a ⋅ k + m ⋅ l = 1 Consequentemente, [1] = [a ⋅ k + m ⋅ l] = [a ⋅ k] + [m ⋅ l] = [a] ⋅ [k] + [m] ⋅ [l] = [a] ⋅ [k] + [0] ⋅ [l] = [a] ⋅ [k] Portanto, [k] é o inverso de [a]. ∎ Congruências 137 Note que a demonstração do teorema anterior fornece uma maneira explícita de obter o inverso de um elemento em ℤm. Por exemplo, para achar o inverso de [4] em ℤ37, encontramos a, b ∈ ℤ tais que a ⋅ 4 + b ⋅ 37 = 1 Nesse caso, a = –9 e b = 1. Logo, em ℤ37 temos que [–9] ⋅ [4] = [1] ou seja, o inverso de [4] é [–9] = [37 – 9] = [28]. Uma consequência importante e direta do último teorema é apresentada a seguir. Corolário Se p > 0 é um inteiro primo, então todo elemento não nulo de ℤp é invertível. Demonstração Considere [a] ∈ ℤ p um elemento não nulo. Como ℤp = {[0], [1], ..., [p – 1]} e [a] ≠ 0, podemos supor que 1 ≤ a ≤ p – 1. Porém os únicos divisores de p são 1 e p. Isso, jun- tamente com a desigualdade 1 ≤ a ≤ p – 1, mostra que os únicos divisores comuns de a e p é 1 e, portanto, mdc (a, p) = 1. Pelo teorema anterior, [a] é invertível em ℤ p. ∎ Teoria elementar dos nú- meros, escrito por Edgard de Alencar Filho, é um excelente livro para quem deseja conhecer mais sobre inteiros módulo m. ALENCAR FILHO, E. T. São Paulo: Nobel, 1992. Livro 5.4 O teorema chinês dos restos Vídeo Finalmente, vamos apresentar um resultado clássico da teoria de números: o teorema chinês dos restos. Esse teorema diz respeito à existência de solução de um sistema de congruências lineares. A demonstração é feita construtivamente e, portanto, possibilita sua aplicação de maneira concreta. Teorema chinês dos restos Sejam n1, n2, …, nk inteiros positivos tais que mdc (ni, nj) = 1, para todo i ≠ j. Então, o sistema de congruências lineares x a x a x ak k � � �� � � � � �� � � 1 1 2 2 (mod n ) (mod n ) (mod n )�� (Continua) 138 Aritmética admite uma solução simultânea, que é única módulo o inteiro n = n1 ⋅ n2 ⋅ ... ⋅ nk, ou seja, se x e x’ são soluções para o sistema, então x ≡ x’ mod (n1 · n2 · ... · nk) Demonstração Seja n = n1 ⋅ n2 ⋅ ... ⋅ nk. Para cada r = 1, 2, …, k definimos N n n n n n n nr r r r k� � � � � � � �� �1 2 1 1... ... Como mdc (ni, nj) = 1, segue que Nr ⋅ x ≡ 1 (mod nr) admite uma única solução, digamos xr, já que mdc (Nr, nr) = 1. A solução para o sistema será x = a1 N1 x1+ a2 N2 x2 + ⋅⋅⋅ + ak Nk xk Para verificar isso, primeiro note que Ni ≡ 0 (mod nr) para i ≠ j, pois nr|Nr. Além disso, x = a1 N1 x1+ a2 N2 x2 + ⋅⋅⋅ +ak Nk xk ≡ ar Nr xr (mod nr) Como xr cumpre Nr ⋅ xr ≡ 1(mod nr), segue que x = ar ⋅ 1 = ar (mod nr) Resta mostrar que a solução é única e módulo n = n1 ⋅ n2 ⋯ nk. Para tanto, seja x’ outra solução, ou seja, x ≡ ar (mod nr) ≡ x’ para r ∈ {1, …, k}. Consequentemente, nr divide x – x’, para todo r. Como mdc (ni, nj) = 1, temos, necessariamente, que n = n1 ⋅ n2 ⋅ … ⋅ nk |x -x’ Portanto, x ≡ x’ (mod n) , o que encerra a demonstração. ∎ A seguir, ilustramos na prática como empregar o teorema chinês dos restos. Σxemρlo 5 Considere o seguinte sistema de congruências lineares x x x � � � � � � �� 2 3 3 2 5 7 (mod ) (mod ) (mod ) (Continua) Congruências 139 A solução x para esse sistema de congruências lineares é um inteiro cuja divisão por 3, 5 e 7 tem como resto 2, 3 e 2 respectivamente. A solução será obtida seguin- do o procedimento descrito no teorema chinês dos restos. Para tanto, sejam • a1 = 2; • a2 = 3; • a3 = 2. E • n1 = 3; • n2 = 5; • n3 = 7. De acordo com a demonstração, n = n1 ⋅ n2 ⋅ n3 = 3 ⋅ 5 ⋅ 7 = 105 enquanto • N1 = 5 ⋅ 7 = 35; • N2 = 3 ⋅ 7 = 21; • N3 = 3 ⋅ 5 = 15. Com isso, as congruências N1 ⋅ x1 ≡ 1 (mod 3) N2 ⋅ x2 ≡ 1 (mod 5) N3 ⋅ x3 ≡ 1 (mod 7) são 35 ⋅ x1 ≡ 1 (mod 3) 21 ⋅ x2 ≡ 1 (mod 5) 15 ⋅ x3 ≡ 1 (mod 7) Essas congruências, por sua vez, equivalem a 2 ⋅ x1 ≡ 2 (mod 3) x2 ≡ 1 (mod 5) x3 ≡ 1 (mod 7) Portanto, a solução do sistema é dada por x = 2 ⋅ 35 ⋅ 2 + 3 ⋅ 21 ⋅ 1 + 2 ⋅ 15 ⋅ 1 = 233 (mod 105) A título de curiosidade, o teorema chinês dos restos recebe esse nome pelo fato de sua descoberta ser atribuída ao matemático chinês Tzu Suan Ching, aparecendo na obra Manual de aritmética do Mestre Sun, livro datado entre 287 d.C. e 473 d.C. A obra Números: uma introdução à matemática, escritapor César Polcino Milies e Sônia Pitta Coelho, traz diversos exemplos e aplicações do teorema chinês dos restos. MILIES, F. C. P.; COELHO, S. P. 3. ed. São Paulo: USP, 2001. Livro 140 Aritmética CONSIDERAÇÕES FINAIS A aritmética é uma ferramenta teórica que possibilita a compreensão, principal- mente, de questões relacionadas aos números naturais e inteiros. Nesse contexto, uma variedade de problemas e aplicações podem ser encontrados. Isso ficou eviden- ciado em nosso estudo. Além de aplicações, existem diversos problemas em aberto envolvendo os números inteiros, sobretudo, em relação aos números primos. Pode- mos destacar, por exemplo, a conjectura de Goldbach e a hipótese de Riemann. Além disso, há vários outros aspectos da teoria dos números que podem ser in- vestigados, cujos tópicos abordados neste capítulo podem servir de base. Encare esse texto como o ponto de partida para construir outros conhecimentos e aprofundar seu entendimento das questões teóricas e práticas relacionadas aos números. ATIVIDADES 1. Encontre um contraexemplo para mostrar que a recíproca “se an – 1 ≡ 1 (mod n) para todo inteiro a, tal que mdc (a, n) = 1, então n é primo” do pequeno teorema de Fermat não é válida. 2. Quais são os elementos de ℤ6 que apresentam inverso multiplicativo? 3. Existe solução para a equação [2] · [x] = [1] em ℤ4? Justifique. REFERÊNCIAS ALENCAR FILHO, E. Teoria elementar dos números. São Paulo: Nobel, 1992. HEFEZ. A. Elementos de aritmética. Rio de Janeiro: SBM, 2006. MILIES, F. C. P. Números: uma introdução à matemática. 3. ed. São Paulo: USP, 2001. Vídeo Gabarito 141 GABARITO 1 Teoria elementar dos conjuntos 1. Qual é a importância do estudo da teoria de conjuntos? A teoria de conjuntos possibilita o entendimento dos fundamentos da matemática. Ela permite desenvolver o formalismo necessário para demonstrar rigorosamente os resultados, além de possibilitar a definição de conceitos que antes eram aceitos sem esta. Conjuntos permeiam toda a matemática, estando presentes, por exemplo, na axiomatização da geometria plana e na construção dos números. 2. Qual é a relevância de se estudar funções? Funções permitem entender transformações de objetos ou quantidades de um conjunto em objetos ou quantidades de outros conjuntos. Além disso, funções modelam diversas situações práticas da realidade, como o crescimento de capital na poupança, o crescimento populacional, o número de pessoas infectadas por uma doença em cada unidade de tempo etc. Além disso, funções possibilitam a quantificação de objetos, no sentido de que é possível atribuir números a objetos abstratos. Esse tipo de raciocínio encontra-se bastante presente na geometria, por exemplo. 3. Considere o conjunto X = {1, 2, 3, 4}. Encontre uma relação de equivalência ℛ em X tal que X/ℛ= {{1, 2, 3}, {4}}. Para construir ℛ, cada elemento dos conjuntos {1, 2, 3} e {4} deve estar relacionado com todos os demais do mesmo conjunto. Portanto, basta tomar ℛ = {(1, 1), (1, 2), (1, 3), (2, 1), (2, 2), (2, 3), (3, 1), (3, 2), (3, 3), (4, 4)}. 2 O conjunto dos números naturais 1. Qual seria a estratégia para demonstrar que todo número natural n ≠ 0 é sucessor de outro natural? A estratégia é definir o conjunto: X = {x ∈ ℕ | x = 0 ou ⱻ y ∈ ℕ, tal que x = s (y)} Em seguida, demonstrar que 0 ∈ ℕ e que se x ∈ X, então, s(x) ∈ X. Finalmente, aplicar o princípio da indução finita. 2. Quais são os ganhos propiciados pela abordagem axiomática do conjunto dos números naturais? Os axiomas de Peano fornecem um modelo sólido sobre o qual toda a teoria a respeito dos números naturais pode ser desenvolvida. Por meio deles, é possível demonstrar todas as propriedades que supomos serem válidas com relação aos números naturais. Além disso, os axiomas permitem que sejam deduzidos resultados sofisticados, os quais podem ser utilizados em todas as áreas da matemática, quando necessários. 142 Aritmética 3. Comente a respeito da importância do princípio da indução finita no desenvolvimento da teoria deste capítulo. O princípio da indução finita permite demonstrar os resultados fundamentais a respeito da adição, da multiplicação e da ordenação de números naturais. Todas as resoluções que decorrem desses resultados estão indiretamente embasadas nesse princípio. 3 O conjunto dos números inteiros 1. Demonstre que se x ≤ y e z ≥ 0, então x ⋅ z ≤ y ⋅ z. Sejam x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f)]. Como x ≤ y, vale a + d ≤ b + c Agora, como [(0, 0)] = 0 ≤ z = [(e, f)], vale f = 0 + f ≤ e + 0 = e Em particular, existe p ∈ tal que e = f + p Multiplicando a desigualdade a + d ≤ b + c por p, temos que a ⋅ p + d ⋅ p ≤ b ⋅ p + c ⋅ p Adicionando os termos af, bf, cf e df a ambos os membros, obtemos: af + ap + bf + cf + df + dp ≤ cf + cp + df + af + bf + bp Isso equivale a a ⋅ (f + p) + bf + cf + d ⋅ (f + p) ≤ c ⋅ (f + p) + df + af + b ⋅ (f + p) ou seja, a ⋅ e + b ⋅ f + c ⋅ f + d ⋅ e ≤ c ⋅ e + d ⋅ f + a ⋅ f + b ⋅ e Mas isso significa precisamente que x ⋅ z ≤ y ⋅ z pois x ⋅ z = [(a ⋅ e + b ⋅ f, a ⋅ f + b ⋅ e)] e y ⋅ z = [(c ⋅ e + d ⋅ f, c ⋅ f + d ⋅ e)] 2. Demonstre que se x ≤ y e z < 0, então x ⋅ z ≥ y ⋅ z. Sejam x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f)]. Como x ≤ y, vale a + d ≤ b + c Agora, como z = [(e, f)] < [(0, 0)] = 0, vale e = e + 0 < 0 + f = f Em particular, existe p ∈ \ {0} tal que f = e + p Multiplicando a desigualdade a + d ≤ b + c por p, temos que Gabarito 143 a ⋅ p + d ⋅ p ≤ b ⋅ p + c ⋅ p Adicionando os termos ae, be, ce e de a ambos os membros, obtemos: ce + de + dp + ae + ap + be ≤ ae + be + bp + ce + cp + de Isso equivale a ce + d ⋅ (e + p) + a ⋅ (e + p) + be ≤ ae + b ⋅ (e + p) + c ⋅ (e + p) + de ou seja, c ⋅ e + d ⋅ f + a ⋅ f + b ⋅ e ≤ a ⋅ e + b ⋅ f + c ⋅ f + d ⋅ e Mas isso significa precisamente que y ⋅ z ≤ x ⋅ z pois x ⋅ z = [(a ⋅ e + b ⋅ f, a ⋅ f + b ⋅ e)] e y ⋅ z = [(c ⋅ e + d ⋅ f, c ⋅ f + d ⋅ e)] 3. Mostre que (–x) · (–y) = x · y. Escrevendo x = [(a, b)] e y = [(c, d)], temos que (-x) ⋅ (-y) = [(b, a)] ⋅ [(d, c)] = [(b ⋅ d + a ⋅ c, b ⋅ c + a ⋅ d)] = [(a ⋅ c + b ⋅ d, a ⋅ d + b ⋅ c)] = x ⋅ y 4 Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 1. É verdade que se a e b são números naturais não nulos, mdc (a, b) = mdc (a, b – a)? Justifique sua resposta. Sim. Para verificarmos isso, temos que um divisor de a e b também é um divisor de b – a. Agora, como b = a + (b – a), segue que um divisor de a e b – a também é um divisor de b. Sendo assim, os pares (a, b) e (a, b – a) têm os mesmos divisores e, portanto, o mesmo mdc. 2. Encontre o mdc (600, 252) usando a decomposição em fatores primos. A decomposição em fatores primos é: 600 = 2³ · 31 · 5² 252 = 2² · 32 · 7 Logo, considerando os fatores comuns, segue que: mdc (600, 252) = 2² · 31 = 12 3. Se mdc (a, b) = 1, o que podemos afirmar sobre mmc (a, b)? Podemos afirmar que mmc (a, b) = a · b, pois é válida a relação: mmc (a, b) = a b mdc (a, b) · Se mdc (a, b) = 1, temos que: 144 Aritmética mmc (a, b) = a b 1 = a · b· 5 Congruências 1. Encontre um contraexemplo para mostrar que a recíproca “se an – 1 ≡ 1 (mod n) para todo inteiro a, tal que mdc (a, n) = 1, então n é primo” do pequeno teorema de Fermat não é válida. Por exemplo, o inteiro 561é tal que a560 ≡ 1 (mod 561) para todo a inteiro, tal que mdc (a, 561) = 1. Contudo, 561 não é primo. 2. Quais são os elementos de ℤ6 que apresentam inverso multiplicativo? Os únicos elementos de ℤ6 que apresentam inverso multiplicativo são [1] e [5], pois a = 1 e a = 5 são os únicos inteiros entre 0 e 5 que satisfazem mdc (a, 6) = 1. 3. Existe solução para a equação [2] · [x] = [1] em ℤ4? Justifique. Não existe, pois mdc (2, 4) = 2 não divide 1. DION PASIEVITCH DION PASIEVITCH ARITMÉTICA ISBN 978-65-5821-028-3 9 7 8 6 5 5 8 2 1 0 2 8 3 Código Logístico I000043 Página em branco Página em branco