Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Ao se propor uma intervenção comporta- mental infantil, é fundamental que se estru- ture uma avaliação funcional. Isso significa fazer um levantamento de comportamentos que serão alvos da intervenção e elaborar hi- póteses sobre as variáveis que evocam ou eli- ciam determinadas respostas e sobre as conse- quências que as mantêm. É importante desta- car, a princípio, uma distinção entre os termos análise funcional e avaliação funcional. En- quanto a análise funcional manipula variáveis antecedentes e consequentes à resposta em questão, para que as hipóteses sejam testadas, a avaliação funcional tem uma abordagem mais hipotética em relação a tais relações. Embora sempre se busque uma manipulação controlada dessas variáveis antes do início da intervenção, nem sempre é possível realizá -la, principalmente quando as respostas investi- gadas são encobertas ou quando variáveis de controle não foram identificadas ou não po- dem ser manipuladas. Nesses casos, o termo avaliação funcional se torna mais adequado. A avaliação funcional, usualmente prio- rizada no início do contato com o cliente, servirá como base para a organização da intervenção. É importante destacar que essa avaliação continuará ao longo de todo o processo terapêutico, a fim de monitorar progressos alcançados, identifi- car novas demandas O uso dos recursos lúdicos 26 na avaliação funcional em clínica analítico - -comportamental infantil Daniel Del Rey ASSunToS do CAPÍTulo > Avaliação funcional no trabalho clínico com crianças. > Estratégias para identificação de comportamentos alvo na clínica infantil. > Estratégias para identificação de possíveis reforçadores na clínica infantil. > Estratégias lúdicas para identificação da história de vida e condições atuais. > Identificação e caracterização de controle por regras pré estabelecidas. A avaliação funcio‑ nal permitirá a for‑ mulação do caso e o planejamento de in‑ tervenções. Ela deve ocorrer ao longo do processo clínico, pois é através dela que se verificará os progressos e/ou ne‑ cessidades de ajuste nos procedimentos. 234 Borges, Cassas & Cols. e ajustar os procedimentos adotados. Stur- mey (1996), ao caracterizar as propostas de avaliações comportamentais recentes, destaca que não há restrição a nenhum método espe- cífico de avaliação ou de setting, mas retoma a utilidade dessa avaliação em sedimentar o processo de geração e teste de hipóteses, além de guiar a intervenção seguinte. A avaliação funcional na terapia infantil tem alguns objetivos bem definidos: a) identificar déficits, excessos comporta- mentais e/ou variabilidade comportamen- tal; b) identificar controle de estímulos deficitá- rios; c) detectar sensibilidade a diferentes conse- quências; d) levantar aspectos relevantes da história de vida pregressa; e) identificar e caracterizar o controle por re- gras pré -estabelecido; f ) identificar estímulos reforçadores ou aver- sivos condicionados, e g) identificar condições de estimulação e aprendizagem propiciadas pelo ambiente em que a criança está inserida. Este capítulo tem como objetivo desta- car diferentes estratégias lúdicas que facilitem ao terapeuta alcançar essas metas, visto a im- portância que o brincar tem na história das crianças e as diferentes funções de estímulo que este pode adquirir. Gil e De Rose (2003) destacam essa importância, uma vez que as brincadeiras parecem ser, ao mesmo tempo, parte do repertório social das crianças e opor- tunidade para exercitá -lo, ampliando e sofis- ticando a competência, as capacidades e as habilidades sociais. Skinner (1989/1995) também destaca a relevância dos jogos e brin- cadeiras, especificamente por propiciarem um contexto com regras arbitrárias e inventa- das a serem seguidas. > ideNtificação de déficit, excesso e/ou vaRiabilidade compoRtameNtal e coNtRole de estímulos Grande parte das questões que os psicólogos são solicitados a analisar em seus consultórios envolvem respostas que não deveriam ser emitidas ou que estão ocorrendo com uma frequência maior do que seria desejável, ou, ao contrário, in- dicam a ausência ou baixa ocorrência de respostas tipicamen- te esperadas. Cabe aos clínicos levantar quais são as variáveis que mantêm ou difi- cultam a ocorrência de tais respostas. Uma fonte de dados acerca do pro- blema é o relato ver- bal de pessoas envolvidas. Em algumas oca- siões, a topografia das respostas, o contexto onde estas ocorrem e as consequências que as seguem são facilmente identificados: os próprios clientes, seus pais ou a escola são capazes de nos trazer essas informações. Ou- tras vezes, o relato é incompleto, com foco apenas no que a criança faz ou deixa de fa- zer, sem apresentar relação com eventos cir- cunstanciais ou importantes na história de vida do cliente, situação em que o clínico procurará modelar a descrição, a fim de ob- ter informações necessárias à caracterização e análise do caso. Além das informações obtidas através de relato verbal da criança ou dos pais, é necessá- rio também que o clínico obtenha dados dire- tos do comportamento, seja observando -o no ambiente natural (cotidiano), seja criando si- Grande parte das questões que os psi‑ cólogos são solici‑ tados a analisar, em seus consultórios, envolvem respostas que não deveriam ser emitidas ou que estão ocorrendo com uma frequência maior do que seria desejável, ou, ao contrário, indicam a ausência ou baixa ocorrência de res‑ postas tipicamente esperadas. Clínica analítico ‑comportamental 235 tuações no consultó- rio que propiciem a ocorrência de com- portamentos relevan- tes, tais como ativida- des lúdicas.1 Esse tipo de atividade é bastante útil, pois permite ao clínico ter acesso a dados que seriam de difícil obtenção atra- vés de relato verbal, seja porque a criança não dispõe de repertório verbal para fornecê -los, seja porque se esquiva de fazê -lo. Por exemplo, jogos e brincadeiras que envolvam competição, cooperação ou organi- zação permitem que o clínico analise se o cliente tem repertório suficiente para partici- par desses momentos, como lida com situa- ções de frustração, se apresenta variação com- portamental para alcançar o objetivo propos- to e se persiste na atividade quando não é reforçado continuamente. Outras queixas que chegam ao consultó- rio do clínico infantil envolvem respostas que só são classificadas como inadequadas em fun- ção do contexto em que aparecem. Alguns exemplos disso são o cliente conversando em sala de aula, uso de palavrões em ambientes inoportunos, modu- lação inadequada do tom de voz, etc. A maioria das estratégias que po- dem ajudar o clínico a identificar contex- tos e ocasiões onde há controle de estímulos deficitários envolve simulações de situa- ções cotidianas em que esses comportamentos ocorrem, tais como: dramatização, elaboração de histórias e fantasias, desenhos, etc. Em ge- ral, tais situações especialmente arranjadas não só permitem essa identificação como também se tornam recursos importantes para a inter- venção. Eventualmente, pode ser interessante a participação de outras crianças em situações deste tipo, especialmente quando há inade- quações na convivência com colegas (agressi- vidade, timidez, etc.). > ideNtificação de seNsibilidade a difeReNtes coNsequêNcias É fundamental dentro de um processo de in- tervenção comportamental que o clínico, a família, a escola e outros familiares ou profis- sionais que convivem com a criança estejam capacitados a: 1. consequenciar por reforço positivo deter- minados comportamentos cuja frequência se deseja aumentar e 2. não fazê -lo em relação aos comportamen- tos que se pretende eliminar ou ter sua fre- quência reduzida. Para tal finali- dade, não se deve su- por que determina- do elogio, brincadei- ra, passeio, atividade, etc., seja um reforça- dor; é necessário que investiguemos o va- lor funcional de di- ferentes consequên- cias. Muitas vezes,o próprio cliente será ca- paz de descrever o impacto motivacional de tal evento; outras vezes, será preciso avaliar o valor reforçador de determinado estímulo ou atividade. Parte da coleta de dados no trabalho com crianças é feito através de relatos verbais. Todavia, faz ‑se necessário planejar situações em que seja pos‑ sível, também, a observação natural dos comportamentos‑ ‑alvo, seja em am‑ biente natural, seja no contexto clínico. A maioria das estra‑ tégias que podem ajudar o clínico a identificar contextos e ocasiões onde há controle de estí‑ mulos deficitários envolve simulações de situações coti‑ dianas em que esses comportamentos ocorrem. Não se deve supor que determinado elogio, brincadeira, passeio, atividade, etc. seja um refor‑ çador; é necessário que investiguemos o valor funcional de diferentes consequências. 236 Borges, Cassas & Cols. Em geral, o clínico infantil tem um vas- to “arsenal” de brinquedos, jogos, materiais para atividades plásticas ou gráficas (desenho, pintura, modelagem, recortes, dobraduras, etc.), propostas de fantasias, histórias, drama- tizações, bonecos, animais e personagens es- pecialmente selecionados para aumentar a responsividade do cliente a atividades mais monótonas, formais ou aversivas, ou, ainda, para evocar respostas importantes que não vi- nham aparecendo de outra forma. A esco- lha ou solicitação verbal do cliente por determinado item, na maioria das vezes, já sinaliza que essa seria uma boa conse- quência para reforçar respostas -alvo. Em outras situações, especial- mente com crianças com desenvolvimento atípico ou repertório verbal muito limitado, teremos que observar a frequência de respos- tas emitidas a fim de inferir quais consequên- cias tiveram valor reforçador. Ou seja, se a apresentação sistemática de determinado estí- mulo aumentou sua frequência após a emis- são de uma resposta escolhida, pode -se supor que este teve um efeito reforçador sobre a mesma. É importante, também, relembrar que o valor reforçador de determinados estímulos é afetado diretamente por operações motiva- doras, que alteram o valor reforçador de estí- mulos consequentes. Um exemplo disso é a privação de determinado item (jogo, brin- quedo, livro infantil, etc.): se tal atividade for restrita ao ambiente da terapia e for disponi- bilizada apenas em situações específicas (por exemplo, após uma resposta de alto custo), provavelmente, a motivação para conquistá- -la será maior.2 Tais operações são mais facil- mente manipuladas em situações que envol- vem reforçamento primário, por exemplo, quando se trabalha com crianças com desen- volvimento atípico, caso tais crianças ainda não se mostrem sensíveis a reforçadores con- dicionados. > levaNtameNto de aspectos RelevaNtes da HistóRia de vida e de coNdições atuais Muitas vezes, o contexto de interação verbal (conversar) é aversivo para a criança, princi- palmente se o relato esperado envolver uma situação muito desagradável ou se o relatar for passível de punição. Nessas situações, o clínico pode usar estratégias, tais como fanta- sia, sonhos, histórias e fantoches, para evocar situações reveladoras sobre a história pas- sada ou sobre o mo- mento atual da crian- ça. São ocasiões em que respostas rele- vantes podem ser evocadas e eliciadas, sem que o cliente se esquive de respondê- -las. Provavelmente, se tal levantamento fosse rea lizado através de questionamento, a crian- ça não responderia ou poderia vir a distorcer os fatos em função da aversividade ou ameaça envolvida. Por exemplo, se a criança foi puni- da por determinado comportamento na esco- la ou em casa, dificilmente ela traria essa in- formação espontaneamente na sessão, princi- palmente se o contato com o clínico for recente ou se este houver punido alguma ou- tra resposta sua em outra ocasião. > ideNtificação e caRacteRização do coNtRole poR RegRas pRé estabelecido Grande parte das queixas que acompanham as crianças diz respeito ao não seguimento de A escolha ou solicitação verbal do cliente por determinado item, na maioria das vezes, já sinaliza que esta seria uma boa consequência para reforçar respostas‑ ‑alvo. O clínico pode usar estratégias como fantasia, sonhos, histórias e fantoches para evocar situa‑ ções reveladoras sobre a história passada ou sobre o momento atual da criança. Clínica analítico ‑comportamental 237 instruções. Tal problema pode ter origens dis- tintas: a) as regras passadas às crianças não condi- ziam com as consequências apres entadas em sua vida, isto é, a relação entre a des- crição de eventos para a criança não cor- respondeu ao que sua história de vida mostrava na prática; b) as regras esperadas socialmente não foram ensinadas, a criança não teve essa parte da aprendizagem por falta de bons instruto- res; ou c) ocorreu dificuldade de discriminação em função de ambiente caótico, que não apre- sentava consistência entre o seguimento de instruções e as consequências que se se- guiam. Em todos os casos anteriormente lista- dos, podemos avaliar o repertório de seguir instruções destas crianças de duas formas dis- tintas. A primeira seria criar situações de inte- ração com regras específicas bem definidas e observar como a criança se comporta, como, por exemplo, em situação de jogos ou ativida- des que exijam combinação prévia em relação à sua dinâmica. Outra abordagem seria a par- tir da exposição a diferentes histórias infantis, dramatizações ou desenhos, questionar a criança sobre partes específicas dessas ativida- des, escolhidas especialmente por apresenta- rem um conteúdo polêmico (p. ex., criança desobedecendo à professora). > ideNtificação de estímulos aveRsivos coNdicioNados Ao longo de sua vida, as crianças, assim como todo indivíduo, são expostas a situações aver- sivas, de intensidade variável. Em alguns ca- sos, esses “traumas” acabam se estendendo para além da situação específica em que ocor- reram, e estímulos particulares acabam ad- quirindo valor aversivo condicional. Tal pro- cesso acontece por uma relação de condicio- namento respondente, em que um evento inicialmente neutro passa a eliciar respostas reflexas por ter sido pareado com um estímu- lo eliciador aversivo.3 Além desse processo respondente, é muito comum que respostas operantes de esquiva e fuga também se esta- beleçam, com a função de eliminar a estimu- lação aversiva. Em geral, a esquiva desses estímulos é tão evidente ou topograficamente atípica que a família recorre ao clínico para tentar eliminá -la. Durante a avaliação funcional, é possível levantarem -se algumas informações importantes: a) quais são esses estímulos; b) se eles formam uma classe de estímulos equivalentes entre si; e c) qual seria a hierarquia de aversividade en- tre eles. Filmes, livros, fotos, músicas, etc., po- dem ser estímulos usados nessa investigação. > coNsideRações fiNais O intuito deste capítulo foi destacar a impor- tância de alguns tópicos recorrentes dentro da clínica analítico -comportamental infantil, apontando para possibilidades do uso de re- cursos lúdicos na avaliação funcional. Não foi objetivo esgotar as possibilidades técnicas, nem definir regras para a atuação profissio- nal. Todo caso merece ser analisado individu- almente, cabendo ao bom profissional usar os recursos apropriados. Os recursos lúdicos têm outras funções importantes que não foram abordadas neste capítulo. Por exemplo, o seu papel sobre a motivação das crianças. Regra (2001) descre- ve esse recurso como uma operação motiva- dora a qual, momentaneamente, altera a efe- 238 Borges, Cassas & Cols. tividade de outros eventos, além de alterar a probabilidade de comportamentos relevantes relacionados àquelas consequências. Em ou- tras situações, a própria atividade, identifica- da como estímulo reforçador, pode ser utili- zada como consequência para determinadas respostas que apareceram ao longo da sessão, a fimde aumentar a frequência destas. Além da avaliação lúdica, é fundamen- tal que outros recursos sejam utilizados para a identificação de variáveis relevantes, tais como: a) entrevista e observação da relação entre os pais com a criança; b) contato com a escola; c) instrumentos destinados à avaliação de re- pertórios específicos (por exemplo, reper- tório acadêmico); d) contato com outros profissionais que acompanham a criança (por exemplo: psi- quiatra, neurologista, fonoaudiólogo, fi- sioterapeuta, psicopedagogo e terapeuta ocupacional) e outros recursos necessários ao caso em questão. > Notas 1. Estamos utilizando o termo “lúdico” de forma bas- tante abrangente, englobando atividades plásticas e gráficas, jogos, brincadeiras, dramatizações, etc. 2. Para maior compreensão sobre operações motiva- doras, sugere -se ler o Capítulo 3. 3. Para maior aprofundamento, sugere -se a leitura do Capítulo 1. > RefeRêNcias Gil, M. S. A., & De Rose, J. C. C. (2003). Regras e contin- gências sociais na brincadeira de crianças. In M. Z. S. Bran- dão (Org.), Sobre comportamento e cognição (vol. 11, pp. 383-389). Santo André: ESETec. Regra, J. A. G. (2001). A integração de atividades múltiplas durante o atendimento infantil, numa análise funcional do comportamento. In H. J. Guilhardi (Org.), Sobre comporta‑ mento e cognição (vol. 8, pp. 373-385). Santo André: ESE- Tec. Skinner, B. F. (1995). Questões recentes na análise comporta‑ mental. Campinas: Papirus. (Trabalho original publicado em 1989) Sturmey, P. (1996). Functional analysis in clinical psycho- logy. Chichester: John Wiley & Sons. PARTE III - Especificidades da clínica analítico‑comportamental 26. O uso dos recursos lúdicos na avaliação funcional em clínica analítico-comportamental infantil
Compartilhar