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APONTAMENTO PARA PENSAR O ENSINO DE HISTÓRIA HOJE Faculdade de Minas 2 Sumário NOSSA HISTÓRIA .......................................................................................... 3 1 - Ensino de história, reformas do ensino e percepções da antiguidade: apontamentos a partir da atual conjuntura brasileira ................................................. 4 2 - Apontamentos para pensar o ensino de História hoje: reformas curriculares, Ensino Médio e formação do Professor. .............................................. 20 3 - Um ministro e suas políticas para a educação ......................................... 22 4 - O Ensino Médio: em busca de um lugar ................................................... 26 5 - O lugar da História nos PCNs e além ....................................................... 30 Referências ................................................................................................... 37 Faculdade de Minas 3 NOSSA HISTÓRIA A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos de Graduação e Pós-Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior. A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação. A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica, excelência no atendimento e valor do serviço oferecido. Faculdade de Minas 4 1 - Ensino de história, reformas do ensino e percepções da antiguidade: apontamentos a partir da atual conjuntura brasileira Reformulações do ensino brasileiro sempre são temas de acirradas discussões e em 2017 ganham um novo contorno com a sanção da Medida Provisória (MP) nº 746 pelo presidente Michel Temer em 16 de fevereiro. O primeiro ponto de discussão é o mecanismo adotado pelo governo para a implementação da reforma do Ensino Médio, utilizando o instrumento da MP, rompendo com o ciclo de debates que se intensificou em 2015 com as discussões em torno da BNCC (Base Nacional Curricular Comum). O que torna tudo ainda mais peculiar no processo é que o texto da Reforma do Ensino Médio remete diretamente à BNCC, uma vez que 60% dos conteúdos obrigatórios serão oriundos da Base. Dessa maneira, nota -se que o texto da reforma está mais preocupado como funcionamento do Ensino Médio e, principalmente, de onde virá o dinheiro para custeá-lo, do que propriamente a respeito dos conteúdos ensinados para os jovens. A implementação da MP se dá mesmo após uma série de protestos protagonizada por estudantes do Ensino Médio no final de 2016, que ocuparam escolas em todo o país. Suas principais reivindicações consistiam na melhoria da educação pública, oposição à condução da reforma do Ensino Médio pelos órgãos governamentais e a solicitação de um maior diálogo com os governos, principalmente na esfera estadual. Apesar das manifestações, a reforma do Ensino Médio continuou a tramitar sob forma de MP no governo federal. Ainda em 2016, antes da onda de protestos estudantis, a segunda versão da BNCC é lançada. Contudo, esta não foi tão discutida e criticada quanto a primeira, divulgada para consulta popular em 2015. A segunda versão da BNCC ainda possui falhas, e o esvaziamento das discussões em torno dela só pode ser entendida a partir de seu contexto político. O primeiro motivo Faculdade de Minas 5 para o esvaziamento foi o processo de impeachment de Dilma Rousse ff, que concentrou a atenção de especialistas das mais variadas áreas, inclusive no campo da educação, e, o segundo, se deu pelo pouco incentivo governamental para fomentar as discussões, alterando, por exemplo, o calendário de discussões até então proposto. Há certo receio de que a BNCC não seja aprovada, ou, então, de que uma versão sem nenhuma discussão prévia passe pelo Congresso. As discussões em torno da BNCC começaram em 2015, na tentativa de cumprir o PNE de 2014, que determinou o prazo de dois anos para a formulação de uma base curricular para todo o Brasil. Na primeira versão, ficou definido que 60% dos conteúdos ensinados na Educação Básica deveriam ser provenientes da BNCC, e que os outros 40% ficariam sob a responsabilidade de estados e municípios, com o objetivo de contemplar toda a pluralidade brasileira. O prazo para a consulta popular terminou em março de 2016, e a mesma foi realizada principalmente por meio eletrônico, através do preenchimento de um formulário, recebendo mais de doze milhões de contribuições, algo inédito no cenário brasileiro. Porém, esse alto número não significa uma efetiva contribuição. Uma das principais críticas foi o caráter restritivo do formulário e a incerteza no processamento de todos os dados coletados, principalmente nos campos em que o cidadão poderia escrever sua opinião. A primeira versão da BNCC recebeu críticas contundentes, e uma das áreas que apresentou o maior número de problemas foi História, a última a ser divulgada. Nesta versão, na descrição dos componentes da História, o exercício da cidadania é utilizado na construção da justificativa da disciplina, bem como aspectos relacionados à pluralidade e ao respeito. A constituição é evocada, com destaque para os benefícios da História para a construção da sociedade democrática brasileira: O estudo da História contribui para os processos formativos de crianças, jovens e adultos inseridos na Educação Básica, considerando suas Faculdade de Minas 6 vivências e os diversos significados do viver em sociedade. Desse modo, favorece o exercício da cidadania, na medida em que estimula e promove o respeito às singularidades e às pluralidades étnico-raciais e culturais, à liberdade de pensamento e ação e às diferenças de credo e ideologia, como requer, constitucionalmente, a construção da sociedade democrática brasileira. (BNCC, 2015, p. 241, grifos nossos). A respeito do componente de História, a primeira versão recebeu inúmeras críticas, e uma síntese dos principais pontos está no documento elaborado pela ANPUH-Nacional intitulado Manifestação Pública da ANPUH sobre a Base Nacional Comum, disponível no site da associação. Dentre as principais críticas, está a predominância de uma história nacional, sem as devidas interlocuções com os outros espaços e tempos; uma crítica má formulada do eurocentrismo; uma tendência a uma formação cívica, pautada apenas nos símbolos nacionais, e não o ensino de uma cidadania crítica e atuante; e, por fim, o objeto de nosso interesse, a forma precária como os conteúdos relativos à História Antiga e História Medieval foi tratada. A única presença da Antiguidade está relacionada a um ensino de uma percepção temporal tratada no início do Ensino Fundamental nos itens CHHI6F0A665, CHHI6F0A716, CHHI6F0A727. Dessa maneira, a História Antiga e Medieval praticamente não existe na BNCC e seu ensino ficaria majoritariamente relegado aos 40% de conteúdos opcionais, a ser definido localmente. Após a divulgação da primeira versão da BCNN vários documentos de manifesto produzidos por universidades, associaçõese instituições foram divulgadas, e alguns encaminhados para o MEC. Destacaremos três deles: Carta aberta dos professores do Norte e Nordeste sobre a BNCC, Carta de repúdio à BNCC produzida pelo Fórum dos profissionais de História Antiga e Medieval e Um manifesto pela História e pelas experiências das culturas da Antiguidade. Em comum na justificativa da defesa da História Antiga e Medieval, todos ressaltam a importância da Faculdade de Minas 7 alteridade no ensino de História e como a Antiguidade e o Medievo podem ser utilizados para esse fim: Destaca-se, igualmente, a importância do exercício da alteridade histórica, elementar a este componente curricular, uma vez que nos permite compreender a formação e a dinâmica de sociedades diferentes da nossa, a partir de suas próprias categorias de pensamento, visões de mundo e expectativas sobre a vida bem como modos de agir e pensar, crenças e percepções de si e do outros particulares, já que construídas no tempo (Carta aberta dos professores do Norte e Nordeste sobre a BNCC). Uma formação plural deve envolver elementos mais heterogêneos, que superem os limites das identidades nacionais e envolvam diversas questões sensíveis aos estudantes. Se, por princípio, as identidades são relacionais, a ausência de variáveis que permitam o contato com as alteridades empobrece de modo significativo a formação humanista dos estudantes (Carta de repúdio à BNCC produzida pelo Fórum dos profissionais de História Antiga e Medieval). O (a) jovem brasileiro (a) tem o direito de possuir uma formação pautada pelo exercício do reconhecimento das diversas experiências/alteridades. Acima de tudo, os jovens brasileiros têm o direito de compartilhar do conhecimento produzido pela humanidade, nem que seja ao menos dos grandes marcos da história mundial a fim de compreender e criticar o mundo em que se inserem, o mundo em que vivem (Um manifesto pela História e pelas experiências das culturas da Antiguidade). O ensino de História Antiga pautado no exercício da alteridade já é tratado por especialistas da área há quase uma década. Gonçalves e Silva (2008, p. 29-30) e Silva e Gonçalves (2015, p. 7), ao analisarem o ensino de História Antiga nos livros didáticos, demonstram o potencial uso da Antiguidade para o ensino da pluralidade cultural e alteridade, aspecto que , de acordo com eles, não é abordado nos livros didáticos. Os livros didáticos Faculdade de Minas 8 ainda possuem problemas no tratamento da Antiguidade, podendo contribuir para a construção de preconceitos, já que continuam adotando uma visão da Antiguidade eurocêntrica, com simplificações, generalizações, erros graves, anacronismos, juízo de valores e, normalmente, estão desatualizados, utilizando uma linha de raciocínio da primeira metade do século passado. Considerando esses aspectos, constata-se o distanciamento da primeira versão das recentes pesquisas acadêmicas e dos esforços realizados por professores universitários para a difusão da História Antiga na Educação Básica. Dessa maneira, a História Antiga permite ao aluno o encontro com o outro, exercitando sua alteridade, permitindo o desenvolvimento da consciência do seu passado e de suas ligações com o presente. As ligações entre a Antiguidade e o Brasil, destacando a presença desta no mundo atual, também foi um argumento em comum nos três documentos. A Carta aberta dos professores do Norte e Nordeste sobre a BNCC destaca o fato das experiências da Antiguidade ultrapassarem os limites geográficos, deixando marcas em todo o Mundo Ocidental, como, por exemplo, as línguas latinas, em particular o português, o cristianismo e a democracia. A História Antiga é essencial para entendermos o processo de construção da identidade brasileira como pertencentes ao Ocidente, uma vez que as identidades são socialmente construídas (Guarinello, 2013, p. 8). Assim, nós nos vemos com ocidentais, e a presença da Antiguidade está em diversos aspectos do nosso cotidiano, como explicita Guarinello (2013, p. 13): Vemo-nos como ocidentais e os textos bíblicos, o Egito, a Mesopotâmia, a Grécia e Roma parecem-nos mais próximos que as Histórias de outros povos e regiões. Não é uma visão falsa em si mesma: falamos uma língua latina, nossa cultura escrita deve muito aos clássicos gregos e latinos, nossas leis e nossa democracia inspiram-se também em textos desse Faculdade de Minas 9 mundo “antigo”, e o cristianismo, que nasceu no Império Romano, é nossa religião dominante. Para além de ressaltar a herança imediata da Antiguidade no Brasil, o documento Um manifesto pela História e pelas experiências das culturas da Antiguidade também destaca acontecimentos contemporâneos que só podem ser plenamente compreendidos a partir do conhecimento da Antiguidade e do Medievo, em particular os atuais discursos políticos, posição da qual concordamos: Ao contrário do que concebem os idealizadores do currículo de História da BNCC, a História Antiga e também a Medieval não estão tão distantes dele. Como podem os jovens brasileiros entender o que representou a entrada dos tanques americanos sobre os vestígios da antiga Babilônia (no atual Iraque) ou mesmo o saque e a destruição do museu do Iraque, se nada sabem a respeito da sociedade da antiga Mesopotâmia? Vale destacar que alguns dos primeiros selos de escrita da humanidade foram roubados durante esse saque. Como podem entender os embates das guerras étnicas da Europa contemporânea sem nenhum conhecimento do Medievo? Como podem entender os usos da Antiguidade e do Medievo nos discursos políticos contemporâneos, se nada conhecem desse passado? (Um manifesto pela História e pelas experiências das culturas da Antiguidade, grifos nossos). Após receber duras críticas uma nova versão da BNCC é lançada em abril de 2016 e inicia uma rodada de discussões nos estados em forma de seminário, integrando principalmente professores da Educação Básica. Depois os seminários avançariam para universidades e demais instituições e associações para a formulação de uma proposta final. No decorrer de 2016, com a mudança de governo, o calendário de discussões é reformulado e mantêm-se apenas os seminários voltados para os profissionais da Educação Básica. Sob o novo governo, há um silêncio com Faculdade de Minas 10 relação à BNCC e não se sabe se a segunda proposta irá ser amplamente discutida como a primeira. Na área de História, a segunda versão difere-se substancialmente da primeira, começando pela formulação dos conteúdos, principalmente no Ensino Fundamental. Na nova versão, na descrição do componente da disciplina, o ensino de História contribui para o exercício da cidadania, a pluralidade, a alteridade, a construção da identidade e a boa convivência, mas desaparecem as referências à constituição e à sociedade democrática brasileira. Tais ausências diante da atual conjuntura brasileira saltam aos olhos, ainda mais frente às diversas propostas que buscam alterar direitos assegurados na constituição. O estudo da História contribui para os processos formativos de crianças, adolescentes, jovens e adultos inseridos na Educação Básica ao ampliar suas vivencias e significados sociais com reflexões sobre os nexos históricos que os constituem. Esse estudo favorecera o exercício da cidadania na medida em que, comprometido com o caráter complexo e plural desses nexos, estimule e promova o respeito as singularidades étnico-raciais e culturais, e a liberdade de pensamento, de ação, de credo religioso, e de opções políticas. Em suma, a partir de procedimentos e temas selecionados, o estudo da História deve contribuir para a consciência de si e do outro, de modo que as identidades sociais possam, compreensivamente, se constituir na relação com outras, dadasem diferentes tempos e espaços sociais, e com elas conviver. (Brasil, 2016, p. 155, grifos nossos) Com a nova versão, inserem-se novamente os conteúdos de História Antiga e Medieval, que se concentram nos primeiros anos do Ensino Fundamental II, mas ainda é possível detectar greves problemas, como demonstra a Nota sobre a Segunda Versão da BNCC: Faculdade de Minas 11 Percebemos mudanças significativas, como a reinserção de história Antiga e Medieval. Entretanto, a maneira como esse conteúdo foi inserido nos desperta curiosidade: afinal, por que a referência exclusiva à Antiguidade Clássica? Quanto ao medievo, o currículo proposto favorece a preservação de estereótipos construídos na historiografia do século XIX, que tende a ver este período histórico a partir de um enfoque teocêntrico. Esta concepção é endossada na Base quando concentra o estudo da Idade Média ao estudo da cristandade, deixando de lado o estudo de realidades plurais existentes no Ocidente europeu, como a cultura islâmica. Consideramos mais grave, no entanto, o fato da Base não mencionar o estudo da história medieval peninsular ibérica, essa sim fundamental para o entendimento da formação do período colonial brasileiro. Em ambos os casos sentimos a grande ausência de referências aos processos históricos vivenciados por outros povos e culturas, sobretudo da África e das Américas (Nota sobre a Segunda Versão da BNCC). Dessa forma, a inserção dos conteúdos relativos à Antiguidade, porém, não assegura sua qualidade no ensino. Além das carências de aspectos importantes no ensino da Antiguidade e do Medievo e de sua inserção estar construída em modelos historiográficos ultrapassados, a distribuição dos conteúdos sobre Antiguidade também é preocupante, pois pode consolidar determinados estereótipos, como a ideia da superioridade da Antiguidade Clássica. O ensino da Antiguidade está concentrado entre o 5º ano e 6º ano do Ensino Fundamental, o que configura a passagem dos anos iniciais para os anos finais, etapas que possuem objetivos bem diferenciados na BNCC. Nos anos iniciais do Ensino Fundamental, o foco é sensibil izar o aluno para a relação entre vida coletiva e memória, partindo da família até a cidade (Brasil, 2016, p. 298). Também está previsto uma “iniciação à História como forma específica de compreensão da experiência humana e de como ela permite articular e comparar diferentes espaços-tempo, em diferentes sociedades e culturas” (Brasil, 2016, p. 298). Já nos anos finais, o objetivo é apresentar conhecimentos relacionados a processos históricos de maior Faculdade de Minas 12 complexidade, que basicamente é um desenrolar linear que vai da Grécia Antiga até o século XX, no mundo pós-guerra Fria: Nos anos finais do Ensino Fundamental ganha espaço o desenvolvimento dos conhecimentos necessários à lida com processos históricos de progressiva complexidade, exigindo maior capacidade de abstração, a começar pela mobilização do mundo da antiguidade clássica e medieval. A proposta é a de que esse esforço de afastamento do tempo presente seja facilitado pelo estudo da História do Brasil, e que a reflexão sobre o Brasil se faça sempre presente, ora de forma direta, ora indiretamente, integrando recursos de linguagem e procedimentos de pesquisa (Brasil, 2016, p. 460, grifos nossos). Dessa forma, a passagem dos anos inicias para os finais do Ensino Fundamental se dá a partir do ensino da Antiguidade, com o desenvolvimento da agricultura e das primeiras cidades, passando para o estudo dos povos da região do Oriente Médio e Egito, com o objetivo do aluno desenvolver o raciocínio histórico: Por meio da exploração dos primeiros indícios da presença da humanidade na Terra, até as primeiras civilizações, o/a estudante vai, concomitantemente, tomando contato com conhecimentos históricos já consolidados e aprendendo a pensar com a História. A articulação entre objetivos de aprendizagem voltados para o conhecimento e objetivos de aprendizagem voltados para o desenvolvimento da linguagem e de procedimentos históricos constituem um processo único e integrado de desenvolvimento do raciocínio histórico, que prepara o/a estudante para a tomada de contato com um quadro mais abrangente a partir do 6º ano (Brasil, 2016, p. 460). De acordo com a perspectiva adotada na segunda versão, a complexidade dos processos históricos se inicia com a Antiguidade Clássica. Além disso, fica evidente a utilização da divisão da História Antiga em História Antiga do Faculdade de Minas 13 Oriente Próximo e História Antiga Clássica, com a predileção para a segunda, criando na memória coletiva o enquadramento de que pertencemos à história do Ocidente (Guarinello, 2013, 7-15). Egito e a Mesopotâmia estão no campo do exótico, o que reforça uma tendência eurocentrista que a proposta tenta tanto combater, bem como não auxilia na promoção do estudo da alteridade que a proposta tanto almeja. De acordo com a proposta e a disposição dos conteúdos, a histór ia dos povos do Egito e da Mesopotâmia serve apenas de preparação para a história de outros povos mais complexos, como os gregos e os romanos. A estrutura da proposta demonstra uma evolução progressiva e linear de povos mais simples para povos mais complexos, em que os primeiros estão justamente localizados no Oriente (Egito e Mesopotâmia) e os mais “evoluídos” estão no Ocidente e são os herdeiros da tradição greco -romana, com ênfase ao ensino da democracia grega, do direito romano e da ascensão do cristianismo. Os conteúdos são dispostos de forma linear, devendo o professor proceder segundo esta ordem: o ensino da Mesopotâmia, Egito, Grécia, Roma, ascensão do cristianismo, fim do Império Romano e o surgimento da ordem medieval como demonstra o conteúdo EF06HI21: “ Classificar a estrutura da sociedade feudal definida a partir de três ordens, dos oratores, bellatores e laboratores, representadas pelas figuras do sacerdote, do cavaleiro e do camponês” (Brasil, 2016, p. 470). Seguindo a disposição linear da proposta, os estudos sobre a Antiguidade iniciam-se no 5º ano, quando o aluno tem em média 10 anos de idade, com a Mesopotâmia e Egito. No 6º ano, com a idade média de 11 anos, o aluno tem o contato com a história grega, com a ênfase nos aspectos polít icos e na história de Atenas. Segue-se, então, o estudo de Roma, ressaltando também aspectos políticos, como a construção da República, do Império e a questão do Direito, como indicam os conteúdos EF06HI07 e EF06HI08, além de destacar o papel do cristianismo. A Antiguidade se encerra no 6º ano com o estudo da passagem da Antiguidade para o Medievo. Faculdade de Minas 14 Depois do 6º ano, não há qualquer menção à Antiguidade nos 7º, 8º e 9º anos, desaparecendo completamente durante o Ensino Médio, que prioriza o ensino da História do Brasil e da sua relação com o continente americano a partir da época moderna até os dias de hoje. Com relação ao Ensino Médio, a segunda proposta é muito semelhante à primeira, e que deve ser adotada com a implementação da Reforma do Ensino Médio. Com esta disposição dos conteúdos, durante toda a Educação Básica, o aluno terá contato com a história dos povos da Antiguidade na faixa etária média entre 10 e 12 anos, momento em que ainda está em formação seu raciocínio histórico. Ele, assim, terá dificuldades de perceber as complexidades de cada um dos povos antigos, podendo formar vários preconceitos, como vem acontecendo no ensino da Antiguidade na Educação Básica atualmente. Outro ponto problemático na BNCC é a não retomada dos conteúdos da Antiguidade nas séries seguintes, nem mesmo na abordagem sobre o Renascimento, que é o primeiro conteúdo do 7º ano do fundamental (EF07HI01). Sem os estudos sobre a recepção e a reapropriaçãoda Antiguidade, o aluno irá sair da Educação Básica sem consegu ir perceber que a Antiguidade esteve sempre presente no horizonte político e cultural do Ocidente. A forma como a Antiguidade é apresentada na BNCC não se difere das críticas apresentadas há tempos por especialistas no que se refere ao ensino da História Antiga na Educação Básica. Hoje, como é evidente nos livros didáticos, tem-se uma divisão temporal tripartida que vai do Oriente (com o destaque para Mesopotâmia e Egito) para o Ocidente (Grécia e Roma). De acordo com Gonçalves e Silva, essa divisão era o mesmo presente nos currículos da década de 1960, em que os estudos da Antiguidade se concentravam em torno do conceito de civilização, a fim de entender a trajetória da civilização ocidental, que se iniciaria com o Faculdade de Minas 15 surgimento de civilizações na beira dos r ios Tigre e Eufrates até o desenvolvimento das civilizações do Mediterrâneo (Gonçalves e Silva, 2008, p. 25-28). Além disso, os autores ressaltam a predominância de uma visão eurocêntrica sobre a História do Egito, Mesopotâmia, Grécia e Roma, com a valorização dos fatos políticos (Gonçalves e Silva, 2008, p.31), aspecto que também permanece forte na BNCC, que, no que se refere à Antiguidade, parece estar mais próximo de modelos de propostas curriculares já ultrapassadas do que da recente produção científica . Desta forma, a concentração dos conteúdos relacionados à História Antiga no Ensino Fundamental e sua absoluta ausência no Ensino Médio, bem como a proposta de Reforma do Ensino Médio, provocarão um afastamento desses conteúdos na vida dos jovens e, consequentemente, dos cidadãos. Um dos pontos polêmicos da Reforma do Ensino Médio relaciona a formação dos profissionais da educação a partir do notório saber. Como indicado por Funari (1997, 85-86), no passado, a História Antiga no Brasil carecia de profissionais formados na área, atuando profissionais de outras, que por vezes utilizavam uma bibliografia ultrapassada, o que poderia levar um desinteresse do aluno em aprofundar os estudos. Atualmente, o cenário está mais favorável, com a atuação de profissionais formados na área em todas as regiões do Brasil, como pode ser verificado no site do Grupo de Trabalho de História Antiga da ANPUH-Brasil. O avanço dessa área de conhecimento também pode ser atestado pelas revistas acadêmicas especializadas e pela atuação de grupos de pesquisa e laboratórios, muitos com parcerias internacionais. Refletindo a partir da própria trajetória da História Antiga no Brasil, não é possível sustentar a possibilidade de atuação por “notório saber” beneficiar o cenário da educação brasileira, gerando uma precarização do ensino e das condições de trabalho do professor, em especial daqueles que buscam uma formação continuada em programas de pós-graduação. A Reforma do Ensino Médio também não especifica como se dará a formação dos itinerários formativos e abre a possibilidade da inserção da Faculdade de Minas 16 modalidade de ensino à distância online (EaD), conforme indica o parágrafo 4. Por isso, não há qualquer garantia de que a Antiguidade seja estudada no Ensino Médio e pode-se até mesmo ser criado um itinerário formativo da área das Humanidades sem qualquer referência à Antigu idade. Há um sério risco de que todo o conhecimento produzido pelas universidades brasileiras neste campo do saber não consiga chegar às salas de aulas da Educação Básica. Dessa forma, as mudanças na área da educação propostas pela Reforma do Ensino Médio e pela BCNN irão impossibilitar ao aluno um conhecimento pleno e crítico da Antiguidade, prejudicando sua formação e capacidade de entender um mundo que os rodeia. A Antiguidade é essencial para entender o campo político, uma vez que nossas instituições políticas e nosso vocabulário político é majoritariamente herança greco-romana, e os jovens, por sua vez, devem entender suas origens, transformações ao longo do tempo e seu funcionamento para atuarem plenamente nelas. Além disso, muitos discursos políticos utilizam a Antiguidade para legitimar seus argumentos, sendo o uso do passado algo comum na retórica. A título de exemplo sobre os usos do passado nos discursos políticos, demonstraremos a utilização de aspectos relacionados à Antiguidade por deputados federais e senadores durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, evento político de grande envolvimento social e com ampla cobertura midiática. No dia 11 de abril de 2016, durante a sessão da Comissão Especial para dar o parecer sobre o crime de responsabilidade fiscal em que se baseou o pedido de impeachment, Weliton Prado (PMB- MG), favorável à instauração do processo, inicia seu discurso evocando Ésquilo, pronunciado como “Esquilo”: Em frase atribuída a Ésquilo, dramaturgo grego nascido no ano 525 antes de Cristo, “Na guerra, a primeira vítima é a verdade”. Pois é o que se tem no momento presente vivido no Brasil: população se divide e se combate, lançando mão dos artifícios mais condenáveis, porque Faculdade de Minas 17 uns entendem haver razão para os denunciantes que acusam a Presidente da República de cometer crime de responsabilidade e outros veem tentativa de golpear a democracia representativa com tal denúncia. (grifos nossos) Logo depois, no dia 15 de abril de 2016, no discurso de Marcos Soares (DEM-RJ) também favorável ao impeachment, a Grécia é novamente evocada, como sendo a precursora da teoria da divisão de poder. Nos dois casos, fica evidente o desconhecimento a respeito da Antiguidade, seja pela pronuncia errada, seja pela informação equivocada a respeito da pólis, pois a aplicação da teoria da divisão de poderes não é possível, já que as esferas políticas, cívica, religiosa, jurídica e legislativa eram profundamente imbricadas: por exemplo, um cidadão ateniense poderia exercer funções judiciárias e legislativas. Na pólis democrática, era valorizado o processo participativo ativo e direto, com decisões coletivas tomadas depois de deliberação mediada pela palavra. Dias depois, em 17 de abril de 2016, Conceição Sampaio (PP-AM) utiliza uma citação de Platão para justificar seu voto, enaltecendo o papel do juiz, equiparando sua ação de votar a favor do impeachment com um ato de justiça, de acordo com as leis. No dia seguinte, Gonzaga Patriota (PSB-PB) com o voto também favorável ao impeachment, fez a equivalência desse procedimento com o ostracismo, informando para a audiência que o afastamento de um presidente remonta aos inícios da República: Hoje em dia, na maioria dos países onde a democracia representativa e o sistema presidencialista estão em vigência, há a possibilidade de o Presidente da República ser afastado do poder em casos de crimes contra o bem público, previstos em suas cartas constitucionais, por meio de um processo de impeachment. Esse tipo de processo remonta à tradição política inglesa e também às mais antigas civilizações. Um caso clássico é o ostracismo, que ocorria no seio da civilização ateniense, na Grécia Antiga. Faculdade de Minas 18 Esta fala é sintomática sobre a percepção da Antiguidade no Brasil, principalmente no que se refere à Grécia e Roma, que são vistas como indissociáveis, principalmente no campo político. Não há uma separação entre a prática republicana romana e a democracia ateniense, remetendo o processo de impeachment à Antiguidade, o que é equivocado. O uso retórico do ostracismo não permite espaço para descrever seu funcionamento, pois, dessa forma, todo o argumento seria derrubado. O ostracismo era uma medida legal em que qualquer cidadão poderia perder seus direitos cívicos, e não apenas aquele que é alvo do processo, como é no caso do impeachment. No Senado, ainda encontramos mais dois exemplos do uso da Antiguidade.O senador Pedro Chaves (PSC-MS) inicia seu discurso afirmando que os gregos antigos estabeleceram os mecanismos de representação popular, e cabe ao político ter a missão de escolher o que é o mais correto e melhor para o povo, o que no seu argumento, é o impeachment de Dilma Rousseff. Já o senador José Pimentel (PT-CE), para repudiar o impeachment, utiliza a imagem do Império Romano, destacando sua “exploração” aos mais pobres. A utilização de referências da Antiguidade na Câmara dos deputados e no Senado apresenta algumas diferenças, que são intrínsecas à própria natureza do discurso, já que no Senado o tempo de fala é maior, permitindo a construção de argumentos mais elaborados. Dessa forma, a Antiguidade entra como um dentre outros componentes do passado listado para demonstrar o valor do político na sociedade, ressaltando principalmente sua missão e que suas ações estão em sintonia com a vontade popular. Na Câmara, apesar dos discursos serem menores, a Antiguidade é majoritariamente evocado de forma errada, demonstrando pouco conhecimento sobre o assunto e falta de preparo do discurso. Em comum, o uso da Antiguidade por deputados federais e senadores não corrobora significativamente nenhum ponto da argumentação e poderia ser facilmente omitido do discurso sem prejuízo para o entendimento das ideias. Mas por que razão a insistência em utilizar a referência aos Antigos? Uma hipótese Faculdade de Minas 19 é a de que isso demonstraria certa erudição. O conhecimento da Antiguidade sempre esteve relacionado a domínio de uma erudição e por muito tempo o acesso a esse conhecimento era restrito a membros da elite. A pretensa erudição se descontrói com uma educação de qualidade, no qual os conteúdos ensinados sejam significativos e partes integrantes da vida dos cidadãos. A utilização de exemplos do passado por partes dos políticos brasileiros demonstra a importância do estudo de História para a sociedade, pois dependendo da forma como a História é ensinada, colaborará para a continuidade dessa pretensa erudição, principalmente se for ensinada uma História enquanto uma narrativa única e verdadeira do passado. O que deve ser ensinado é a História enquanto ciência, capaz de produzir um discurso científico passível de ser discutido igualmente por termos científicos (Guarinello, 2013, p. 11). É a História como ciência que possibilitará uma educação pautada em valores cidadãos, no respeito e na pluralidade, objetivos presentes nos componentes da História nas duas versões da BNCC. Porém quando analisamos a descrição dos conteúdos, principalmente na segunda versão da BNCC, nota-se a predomínio da História enquanto verdade, numa discussão linear e com a apresentação evolucionista dos fatos. A maneira como está sendo conduzida a Reforma do Ensino Médio e a construção da proposta da BNCC pode limitar o acesso do aluno ao conhecimento histórico científico, prejudicando sua formação. Nota -se que com essas medidas o ensino de História Antiga na Educação Básica será prejudicado, podendo gerar a construção de uma imagem da Antiguidade mais ligada ao campo do mítico do que do real, com a caracterização dos personagens sendo feita principalmente na imagem de deuses e heróis e o conhecimento adquirido através de filmes e outros suportes. Quais os riscos de se ter uma Antiguidade na esfera do fantasioso e utilizado no campo da pretensa erudição? O principal risco é a incapacidade de criticar aspectos importantes da esfera política, como os discursos acima apresentados, Faculdade de Minas 20 além do desconhecimento de elementos básicos relacionados ao vocabulário político atual e a teoria das formas de governo. Assim, a partir da experiência política recente brasileira, nota-se que a Antiguidade é majoritariamente utilizada para legitimar uma ordem social, um determinado status quo, sob um viés conservador. Tal uso é referendando com a proposta da BNCC e da reforma do Ensino Médio ao apresentar uma Antiguidade pouco crítica, factual e restrita. Diante desse cenário, o principal desafio do especialista em Antiguidade é transformar o ensino deste conteúdo em algo que seja significativo (Funari, 2004, p. 5), presente na vida do aluno, fazendo sentido para as preocupações do agora (Guarinello, 2004, p. 5), e potencializando o exercício da cidadania. É inegável o papel fundamental do ambiente escolar no desenvolvimento de uma consciência crítica, que é essencial para um cidadão atuante e participativo na esfera política. O Brasil atual precisa da História Antiga e de seu ensino em todos os níveis da educação, para que nos permita encontrar novas leituras de mundo e, com esse novo olhar, possamos encarar os desafios futuros, principalmente no campo da política. 2 - Apontamentos para pensar o ensino de História hoje: reformas curriculares, Ensino Médio e formação do Professor. As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas por reformulações curriculares no Brasil, promovidas por estados e municípios, que não necessariamente surtiram efeito na modificação de práticas docentes. Estas reformulações têm relação direta com a transição da ditadura civil-militar para um período democrático, em um mundo em processo de globalização. Faculdade de Minas 21 Após 1982, os governos estaduais eleitos rediscutiram o que se ensinava nas escolas, em meio a uma reação dos educadores brasileiros contra os currículos mínimos estabelecidos a partir da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação de 1971 (no 5.692, de 11/08/71). A LDB reforçava a tradição herdada dos anos 1930, de centralização das tomadas de decisão sobre a escola. Atribuía aos Conselhos Federal e Estadual de Educação as definições do núcleo comum de conteúdos e da parte diversificada do ensino, respectivamente. Em tese, o planejamento era feito fora da escola, por órgãos de governo criados para tal fim. Isto provocou a resistência dos professores às propostas curriculares, quase sempre vistas como “pacotes” externos, distantes da realidade escolar. As reformulações curriculares dos anos 1980 e 1990 tentaram romper com a ideia de impor um “pacote” diretivo à escola. Em função disto, as Secretarias de Educação procuraram construir suas propostas pela via do diálogo com os professores das redes, através de reuniões e de escolhas de representantes docentes. Esta mudança foi significativa, já que o professor, em alguns casos, deixou de ser entendido apenas como transmissor de conhecimento e passou a desempenhar o papel de co-autor, apesar da impossibilidade de mobilizar todos os docentes. Em meados da década de 1990, este movimento de reformulação curricular trilhou um novo rumo. Pela primeira vez após a ditadura, a União tomou para si a responsabilidade de rever os currículos existentes, estabelecendo parâmetros básicos. As propostas então desenvolvidas sofreram inúmeras críticas, sendo algumas rejeitadas pelos docentes, como foi o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o Ensino Médio. Divulgados em 1999, os PCNs buscavam superar a lógica disciplinar presente nas escolas. Entre outras coisas, propunham reorganizar o Ensino Faculdade de Minas 22 Médio em três áreas: Linguagens, códigos e suas tecnologias, Ciências da Natureza, Matemática e suas tecnologias e Ciências Humanas e suas tecnologias. No último ano de governo de Fernando Henrique Cardoso, foram publicados os PCNs, contendo um volume para cada área de conhecimento. Esta versão mais detalhada das áreas surgiu como resposta às críticas feitas ao primeiro documento, havendo um significativo investimento no sentido de convencer o professor da qualidade da proposta e da vantagem em adotá-la. Em 2004, agora sob o governo de Luis Inácio Lula da Silva, voltou-se a discutir estes PCNs. Depois deidas e vindas, o MEC finalmente reconheceu a pouquíssima recepção que a proposta teve entre os professores do Ensino Médio. A retomada da discussão se deu a partir da divulgação de documentos preliminares, escritos por especialistas, acerca do papel de cada disciplina no interior das áreas de conhecimento. A fim de compreender sua restrita recepção, tendo como foco o ensino escolar da História, propõe-se realizar três movimentos: 1. Situar os PCNs em meio a um conjunto de políticas públicas de educação, implementadas a partir de meados dos anos 1990; 2. Recuperar aspectos da história do Ensino Médio, para compreender o projeto de reforma deste nível contido nos PCNs; 3. Apontar alguns limites desta proposta, a partir de uma reflexão sobre o ensino da História e a formação do professor. 3 - Um ministro e suas políticas para a educação Ao ler textos de educadores que analisam as políticas públicas de educação implementadas pelo MEC, durante a gestão de Paulo Renato Faculdade de Minas 23 Souza, é difícil chegar a qualquer conclusão. Tem-se a impressão de não existir consenso acerca dos benefícios destas políticas. Por vezes, alguns aspectos são elogiados. Outras vezes, todas as ações implementadas são criticadas, sendo acusadas de estarem distantes dos projetos formulados por educadores brasileiros e próximos da agenda para a educação proposta por órgãos internacionais, tais como: a UNESCO, o BID e o BIRD. Os órgãos internacionais são frequentemente vistos como defensores de interesses externos à sociedade brasileira, muito ligada a grandes corporações transnacionais. A ausência de um consenso mínimo acerca dos benefícios destas políticas públicas é um sinal do quanto às questões relacionadas à educação eram, na época, como são até hoje, alvos de intensas disputas, em que diversos grupos, com seus projetos políticos, concorrem entre si. Reconhecendo a complexidade do tema, busca-se aqui apenas situar os PCNs como parte de um conjunto mais largo de ações. Durante a gestão do ministro, pode-se claramente perceber uma marca. O MEC, em conjunto com o Conselho Nacional de Educação (CNE), se dedicou muito à tarefa de planejamento educacional, através de uma intensa produção de propostas curriculares, então denominadas de diretrizes. Em dois anos, 1998 e 1999, a Câmara de Educação Básica (CEB) emitiu pareceres e aprovaram resoluções sobre as diretrizes curriculares nacionais para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental, o Ensino Médio, a Educação Profissional de Nível Técnico e a Formação de Docentes, em nível médio, na modalidade Normal. Por sua vez, nos anos 2000, a Câmara de Ensino Superior (CES) desempenhou papel importante na aprovação de resoluções acerca das diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação. Os PCNs para os ensinos Fundamental e Médio fazem parte deste esforço de planejamento do MEC, tendo, certamente, relação direta com o fim da ditadura civil-militar e, além disto, com a LDB de 1996, que atribuiu à União Faculdade de Minas 24 o papel de formular diretrizes para o Ensino Superior e para a Educação Básica, em conjunto com os estados e os municípios. As diretrizes curriculares, bem como os PCNs para o Ensino Médio, possuem uma característica comum: foram organizados a partir da definição de competências e habilidades a serem desenvolvidas pelos alunos ao longo do processo de ensino-aprendizagem. Logo, tanto para as diretrizes curriculares como para os PCNs, mais importante do que aprender um conteúdo relativo a uma área de conhecimento é desenvolver procedimentos que permitam ao aluno aprender a conhecer. Grande parte das diretrizes não faz qualquer menção aos conteúdos a serem trabalhados, listando apenas as tais competências e as habilidades. Esta forma de organizar os currículos, presente em outros países, tornou-se hegemônica na produção legal do governo brasileiro desde o final dos anos 1990. O importante a ressaltar é que não há consenso entre os educadores brasileiros no que diz respeito à organização de curr ículos a partir de competências e habilidades. Há fortes dúvidas acerca de como, consensualmente, defini-las em áreas menos procedimentais, como é o caso de História. Em disciplinas como Português e Matemática, é mais fácil chegar a um consenso sobre as competências e as habilidades. Em Matemática, por exemplo, ao final de certo tempo de estudo, é possível avaliar se o aluno será capaz de realizar as quatro operações: adição, subtração, multiplicação e divisão. Criticando a estruturação dos currículos a partir de competências e habilidades, pesquisadores alertam que tais termos estão comprometidos com certo aprender a fazer, muito relacionado ao mundo da produção. Além do planejamento, houve um investimento significativo do MEC na construção de instrumentos de avaliação capazes de realizar um diagnóstico qualitativo do sistema educacional brasileiro. Tarefa que também foi definida como uma atribuição da União na LDB de 1996. Porém, Faculdade de Minas 25 neste caso, a montagem de instrumentos de avaliação é anterior e decorre de pressões externas, feitas por órgãos internacionais, como a UNESCO. Na gestão de Paulo Renato Souza, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) foi aperfeiçoado e outras avaliações foram criadas: o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o Exame Nacional de Cursos (ENC), todos sob a responsabilidade do INEP. O SAEB e o ENEM, da mesma forma que as diretrizes curriculares e os PCNs para o Ensino Médio, são organizados com vistas a aferir se os alunos desenvolveram, ou não, as competências e as habilidades de cada nível de ensino. Estes instrumentos de avaliação, produtores de uma série de indicadores estatísticos, não são uma especificidade do caso brasileiro, muito pelo contrário, vão ao encontro de um movimento maior, de formulação de instrumentos de avaliação internacional da educação. Por exemplo, o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), implementado pela Organização para a Coordenação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), avalia alunos na faixa dos 15 anos, construindo indicadores sobre a efetividade dos sistemas educacionais, dentro de uma perspectiva comparada. Além do planejamento e da avaliação, os PCNs se fazem presentes, também, na produção de materiais didáticos. Desde 1995, o Ministério da Educação retomou a distribuição do livro didático no Ensino Fundamental, para todas as escolas públicas brasileiras. No ano seguinte, pela primeira vez, ocorre o processo de avaliação pedagógica dos livros inscritos no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), de 1997. A partir de 1996, o MEC exclui de suas compras livros que apresentam erros conceituais, indução a erros, desatualização e preconceito ou discriminação de qualquer tipo. Posteriormente, ao invés de livros avulsos, são avaliadas somente coleções didáticas, e os critérios de exclusão são aperfeiçoados. Com o lançamento dos PCNs, passa a ser muito recorrente a presença de selos nas capas dos livros didáticos anunciando suas adequações aos Parâmetros. Logo, há um movimento de revisão dos materiais didáticos Faculdade de Minas 26 feitos pelas editoras, tanto para se adequar à nova proposta curricular, como para se adaptar aos critérios de avaliação do PNLD. A divulgação dos Parâmetros também se faz bastante presente pela via da TV Escola, criada em 1995, cujo sinal é transmitido para todas as escolas brasileiras de porte médio. Sua grade de programação é bastante vinculada aos PCNs. Os programas apresentados são classificados de acordo com o nível de ensino (infantil, fundamental e médio) e a área de conhecimento a que se destinam. Com isto, sugerem formas de trabalhar com temas ou conceitos presentes nos Parâmetros.Apesar de eles serem apresentados como auxiliares, a análise das políti cas públicas de educação de Paulo Renato Souza demonstra todo o investimento feito pelo MEC em transformar o proposto nos PCNs em realidade, seja adotando-os como um dos critérios de avaliação do sistema de ensino brasileiro, seja incorporando-os à produção de materiais didáticos. Mesmo após todos os investimentos, os PCNs para o Ensino Médio continuam tendo poucos ecos nas escolas; resta saber o porquê. Uma das respostas encontra-se na história do Ensino Médio no Brasil. 4 - O Ensino Médio: em busca de um lugar Desde a década de 1990, grande parte dos documentos produzidos pelo governo federal acerca da situação da educação brasileira utiliza dados estatísticos elaborados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para demonstrar que o Ensino Médio passa, desde o final dos anos 1980, por um processo de expansão significativo de matrículas. Quanto ao Ensino Fundamental, o processo teve início nos anos 1970, sendo que, na atualidade, praticamente vivenciamos a universalização de seu acesso. Faculdade de Minas 27 A expansão das matrículas e a distância da universalização são os argumentos utilizados nos PCNs para justificar a necessidade de uma reforma do Ensino Médio. Em menos de 10 anos, de 1988 a 1997, as matrículas cresceram em mais de 90%. Apesar da expansão, ao se considerar a população de 15 a 17 anos, idade adequada para frequentar tal nível, constata-se que o índice de escolarização não ultrapassa 25%. Bem abaixo dos países do Cone Sul, em que o índice alcança de 55% a 60%. Ao mesmo tempo em que se verifica uma explosão na demanda, constata- se uma concentração das matrículas nas redes públicas estaduais e no período noturno. Estudos do INEP, feitos em nove estados, com concluintes do Ensino Médio, demonstram que 54% são originários de famílias com renda mensal de até 6 salários mínimos. Com base nestes dados, o texto dos Parâmetros conclui que, pela primeira vez, existe uma incorporação de jovens e adultos de classes sociais que nunca participaram deste nível de ensino, tão voltado, na sua história, para a formação das elites brasileiras. A história do ensino secundário no Brasil , não muito diferente de nossos vizinhos da América Latina, é marcada pela existência de uma dualidade entre os tipos de formação: a profissionalizante, endereçada aos trabalhadores, e a propedêutica, com vistas ao ensino superior, d irecionada para as elites. Esta dualidade se faz presente desde o início da República. À época, a formação profissional era tida como uma maneira ef iciente de moralizar os pobres, ensinando-lhes um ofício. Em 1909, 19 escolas de artes e ofícios foram criadas por todo o Brasil. Além destas escolas, aos trabalhadores era dada a opção de frequentar o curso rural ou o curso profissional, com duração de 4 anos. Para os egressos de tais cursos, no nível ginasial, só havia opções de ensino para o mundo do trabalho: o curso normal, o curso técnico comercial e o técnico agrícola. Faculdade de Minas 28 Outro percurso escolar era planejado para os filhos das elites. Distantes dos trabalhos manuais, suas escolas contemplavam uma formação de cunho geral, iniciando no ensino primário, passando pelo secundário propedêutico e terminando no superior. Esta dualidade na formação escolar obteve reforço na década de 1940. Por iniciativa de Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Saúde de Getúlio Vargas, entre 1942 e 1946, entraram em vigência as Leis Orgân icas de Ensino. Para os alunos egressos das classes trabalhadoras, foram criados vários cursos técnicos de 2º ciclo, o ensino agrícola (Decreto-lei no 9.613/46), o comercial (Decreto-lei no 6.141/43), o industrial (Decreto-lei no 4.073/42) e o curso normal (Decreto-lei no 8.530/46). Além destes, foram criados dois sistemas privados para a formação profissional: o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC). Os diplomas de tais cursos não eram aceitos para entrar no ensino superior. No caso das elites, mais uma vez a trajetória escolar era distinta. Através do Decreto-lei no 4.244, de 9 de abril de 1942, foram criados o científico e o clássico, dois cursos médios de 2o ciclo, com duração de 3 anos. Estes eram os cursos que mantinham o caráter propedêutico, dando acesso ao ensino superior. Em 1961, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (nº 4.024, de 20/12/61) integrou o ensino profissional ao sistema regular, equiparando os cursos profissionalizantes e propedêuticos, para fins de acesso ao ensino superior. Passados 10 anos, em 1971, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação propôs a superação da dualidade, através da obrigatoriedade do ensino profissionalizante. Tal medida sofreu enorme resistência de setores da sociedade, que lutaram pela manutenção do caráter propedêutico deste nível de ensino. Em 1975, o Parecer nº 76 eliminou a obrigatoriedade da Faculdade de Minas 29 profissionalização e restabeleceu a formação geral no Ensino Médio, sendo reafirmado pela Lei nº 7.044/82. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 estabeleceu ser o Ensino Médio a etapa final da Educação Básica. Pela primeira vez na educação brasileira, o Ensino Médio adquiriu uma função formativa em si, rompendo com as diretrizes propedêutica e profissional izante. Neste sentido, a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, busca distanciar-se da dualidade que marca este nível de ensino desde o início do século XX. Os PCNs para o Ensino Médio foram formulados tendo como horizonte este distanciamento da dualidade. Trata-se de um nível de ensino que, atualmente, ao menos do ponto de vista legal, possui um lugar em si, e não mais voltado para preparar para um ofício ou para ascender ao ensino superior. Como etapa final da Educação Básica, o Ensino Médio adquire o papel de finalização de uma formação que se inicia, pelo menos, 8 anos antes. No entanto, é preciso lembrar que existe uma grande diferença entre o lugar proposto pela LDB de 1996 para o Ensino Médio, reafirmado nos PCNs, e o papel que tal nível desempenha na prática. Como professor da disciplina Prática de Ensino de História, na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, trabalhando há 4 anos com colégios públicos estaduais de Ensino Médio, situados no município de São Gonçalo, é possível perceber algumas das lacunas deste nível de ensino. O Ensino Médio parece pouco contribuir para a formação dos alunos, muitos possuindo problemas bastante significativos de letramento, algo que se verifica com os resultados das provas do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Tudo indica que, em muitas escolas, o Ensino Médio nada mais é do que um lugar de certificação, no qual é possível obter um diploma mais valorizado no mercado de trabalho do que o do Ensino Fundamental. Faculdade de Minas 30 Atualmente, o Ensino Médio parece distante tanto da profissionalização, quanto da formação para acessar o ensino superior. No entanto, muitos de seus alunos querem tentar o vestibular. De alguma forma, a perspectiva de lugar de passagem para outro nível ainda é bastante presente e tende a ser reforçada, pois vivemos um momento em que se adota como política pública de educação a bandeira da universidade para todos. Não é por acaso que, na década de 1990, se espalham, ao menos pelo Rio de Janeiro, os pré-vestibulares comunitários, que possuem a tarefa de preparar os alunos carentes para prestarem, com mínimas chances, os concursos de acesso a diversas universidades. Não custa lembrar que o apoio financeiro a estes pré-vestibulares ganhou status de políticapública durante a gestão de Paulo Renato Souza. Não deixa de ser um paradoxo, se pensarmos que tal política foi implementada justamente na gestão do ministro que propôs um lugar próprio para o Ensino Médio, para além do caráter propedêutico e profissionalizante. 5 - O lugar da História nos PCNs e além Nos PCNs referentes aos dois primeiros ciclos do Ensino Fundamental, publicados em 1997, a disciplina Estudos Sociais, marca das reformas curriculares dos anos 1970, é substituída por História e Geografia, sinalizando ao professor a necessidade de trabalhar noções introdutórias destas disciplinas com os alunos. Além desta substituição, os PCNs organizam os conteúdos de História por eixos temáticos: História local e do cotidiano (1º ciclo) e História das organizações populacionais (2º ciclo). A opção de organizar os conteúdos por eixos temáticos também se manteve nos PCNs voltados para os ciclos finais do Ensino Fundamental, editados em 1998. Ao professor da disciplina escolar História é sugerida trabalhar Faculdade de Minas 31 com a História das relações sociais, da cultura e do trabalho, no 3º ciclo, e a História das representações e das relações de poder, no 4º ciclo. Além de organizarem os conteúdos por eixos temáticos, os PCNs para o Ensino Fundamental traçam objetivos gerais para o ensino de História, visando que os alunos, ao longo de 8 anos, possam ampliar a compreensão de sua realidade. Ao analisar os currículos de História produzidos no Brasil para o Ensino Fundamental na década de 1990, Circe Bittencourt conclui que, quanto aos conteúdos, à disciplina Estudos Sociais continuava a ser hegemônica entre a 1ª e a 4ª séries; no entanto, da 5ª série em diante, a separação entre História e Geografia era um fato. A partir da 5ª série, constata ainda que grande parte dos currículos ordenava os conteúdos, utilizando a terminologia marxista dos modos de produção. Para a história do Brasil, tenderam a reparti-la pelos eixos políticos (Colônia, Império e República) ou pelos ciclos econômicos (da borracha, da cana-de-açúcar, do ouro e do café). Eram minoritários os currículos que organizavam os conteúdos por temas geradores ou eixos temáticos. Logo, as opções feitas nos PCNs para o Ensino Fundamental trilharam o caminho do que não era hegemônico, eliminando os Estudos Sociais de todas as séries e ordenando os conteúdos por eixos temáticos. Os PCNs para o Ensino Fundamental foram construídos, de alguma maneira, no diálogo com a produção curricular dos estados e municípios das décadas de 1980 e 1990. Quanto à História, é possível, inclusive, perceber inspirações em certas propostas curriculares, como no caso do currículo formulado pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, na segunda metade dos anos 1980. Distante desta produção curricular, os PCNs para o Ensino Médio foram organizados de modo muito diferente, tendo como base a definição das competências e das habilidades que o aluno deveria desenvolver durante este nível de ensino. Esta forma de Faculdade de Minas 32 organização de currículo, como visto, foi bastante utilizada pelo MEC no início dos anos 2000. Na primeira versão dos PCNs, de 1999, é feita uma argumentação acerca do sentido da área de Ciências Humanas e suas Tecnologias no Ensino Médio, baseada na retomada e na atualização da educação humanista. Esta argumentação associa os princípios estéticos, políticos e éticos – previstos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio como fundamentais para a organização escolar e curricular – com os princípios propostos pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, da UNESCO, fundamentados no aprender a conhecer, a fazer, a conviver e a ser. A área adquire sentido a partir da construção de uma estética da sensibilidade, “que supera a padronização e estimula a criatividade e o espírito inventivo”, de uma política da igualdade, “que consagra o Estado de Direito e a democracia”, e de uma ética da identidade, “desafio de uma educação voltada para a constituição de identidades responsáveis e solidárias”. Os PCNs para o Ensino Médio compartilham da interpretação de que o mundo do século XXI está em constante e acelerada transformação, fruto da globalização. Ao longo do texto, surgem termos como sociedade do conhecimento ou sociedade tecnológica para classificar este mundo, que, supostamente, tende a fragmentar identidades. Dentro desta perspectiva de mudanças aceleradas, o aprenderem a conhecer, ganha destaque dentre os demais princípios, pois pressupõe uma educação permanente para todos, fundada não mais na quantidade de informações, mas na capacidade de lidar com elas. Daí a opção por uma formação baseada no desenvolvimento de competências e habilidades, estruturadas em três eixos: 1. Representação e comunicação; 2. Investigação e compreensão; 3. Contextualização sociocultural. Faculdade de Minas 33 A contribuição dos conhecimentos de História para a área de Ciências Humanas e suas Tecnologias, assim como de Geografia, Sociologia, Antropologia, Política e Filosofia, é tratada nos PCNs de forma bastante superficial. O texto procura responder por que ensinar História, o que ensinar e como fazê-lo. A construção dos laços de identidade e a consolidação da formação da cidadania são as principais contribuições dos conhecimentos de História, além de ensinar o aluno a ler o mundo nas entrelinhas. A construção da identidade é abordada no texto dos PCNs a partir de uma extensa discussão sobre as noções de tempo histórico, referenciadas na cultura. A discussão de tempo histórico acaba levando a uma reflexão sobre a sociedade atual, vista como um presente contínuo, “que tende a esquecer e anular a importância das relações que o presente mantém com o passado”. Nesta sociedade, cabe à História, junto com o seu ensino, livrar “as novas gerações da ‘amnésia social’ que compromete a constituição de suas identidades individuais e coletivas”. Logo, à identidade se junta a memória como mais um direito de cidadania, que implica pensar no significado de “lugares de memória”, ou seja, festas, monumentos , museus, arquivos e áreas preservadas. No volume dedicado à área de Ciências Humanas e suas Tecnologias do PCN, de 2002, há um investimento no sentido de tentar convencer os professores das vantagens de se reformular o Ensino Médio. De forma menos superficial do que a versão de 1999, o texto expl ica a opção por romper a lógica de organização disciplinar dos conhecimentos tão presente no nível médio. Nos PCNs, a contribuição dos conhecimentos de História – assim como de Filosofia, Geografia e Sociologia – é valorizada na medida em que os professores busquem construir aulas baseadas em “competências e habilidades”. Basta citar os títulos referentes aos conhecimentos de História para perceber o tom de diretivo desta versão complementar: Os conceitos Faculdade de Minas 34 estruturadores da História, O significado das competências específicas de História, A articulação dos conceitos estruturadores com as competências específicas da História e, por fim, Sugestões de organização de eixos temáticos em História. Diferente da versão de 1999 há uma preocupação em adequar a proposta curricular, com seu discurso das competências e habilidades, a uma linguagem mais familiar aos professores, dos conceitos e eixos temáticos. O texto dos PCNs comporta uma clara dicotomia entre o velho e o novo Ensino Médio, que se quer construir. O atual Ensino Médio é visto como despreparado para dar uma formação adequada aos alunos que vivem num mundo em constante transformação, pois, ao invés de ensinar a conhecer, está bastante comprometido com um ensino portador de um caráter informativo. Ao final de cada volume dos PCNsexiste um item intitulado de Formação profissional permanente dos professores, que se divide em: A escola como espaço de formação docente e As práticas do professor em permanente formação. Este item, que não costuma estar presente em propostas curriculares, assim como não esteve na versão de 1999, é indício de que o MEC atribui à formação dos professores uma parte, talvez significativa, das dificuldades encontradas em implementar a reforma no Ensino Médio, presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Logo, o problema encontra-se no professor, cuja formação ainda não está adequada a uma prática de ensino fundamentada em “competências e habilidades”. Apontar a formação profissional do professor como um problema permite concluir o texto, retornando à análise das políticas públicas de educação. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, de 2001, a proposta de uma identidade profissional para o professor sai vitoriosa. Tal proposta critica claramente o modelo aplicacionista do conhecimento. De acordo com este modelo, durante um certo tempo, os alunos assistem a aulas baseadas em disciplinas e, em Faculdade de Minas 35 seguida, estagiam, aplicando os conhecimentos aprendidos. Somente ao terminar a formação inicial é que, de fato, aprenderão o ofício na prática. Maurice Tardif, pesquisador canadense da área de Educação, aponta que o principal problema do modelo aplicacionista é ser “idealizado segundo uma lógica disciplinar e não segundo uma lógica profissional centrada no estudo das tarefas e realidades do trabalho dos professores”. Na perspectiva do autor, ao construir uma aula na escola, os saberes profissionais dos professores são muito mais importantes, diria até decisivos, do que os conhecimentos universitários adquiridos na formação inicial , quase sempre esquecidos. Esta pouca importância dos conhecimentos adquiridos na formação inicial pode ser colocada em dúvida através da própria resistência dos professores do Ensino Médio à proposta contida nos PCNs. Mais do que não ser implementado por um problema de formação, a proposta vai de encontro a anos de experiências formativas acumuladas, tanto na universidade como nas escolas. Gerações de professores se formaram pensando na especificidade do ensino de suas disciplinas. No caso de História, a luta pelo fim da licenciatura curta, implantada nos anos 1970, e o desenvolvimento da pós-graduação geraram o pressuposto, até hoje válido, de que a formação do professor é indissociável da formação do pesquisador. Neste modelo, o professor de História adquire autonomia em sua prática docente ao saber, dentre outras coisas, como se constrói conhecimento na área. Isto permite que o professor e o pesquisador de História compartilhem uma linguagem comum, apesar da especificidade de suas práticas. O caminho trilhado neste artigo demonstra que as críticas aos PCNs, sobretudo os do Ensino Médio, e as dificuldades surgidas na sua utilização não podem ser unicamente compreendidas a partir do problema da formação dos professores, que, inegavelmente, existem. É preciso considerar que a construção de uma proposta que se quer fundadora de um novo Ensino Médio não pode estar dissociada das práticas docentes Faculdade de Minas 36 desenvolvidas neste nível de ensino, das experiências formativas existentes até então e da história deste ensino no Brasil. Faculdade de Minas 37 Referências Arnason, J. P., Raaflaub, K. A., Wagner, P. (eds). The Greek polis and the invention of democracy: a political-cultural transformation and its interpretation. Oxford, Wiley- Blackweel, 2013. Brasil. Base Nacional Curricular Comum. Brasília, 2015. Brasil. Base Nacional Curricular Comum. Brasília, 2016. Chevitarese, André L.; Cornelli, Gabriele; Silva, Maria Aparecida de Oliveira (orgs.). 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