Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
LUCILENA VAGOSTELLO O EMPREGO DA TÉCNICA DO DESENHO DA PESSOA NA CHUVA: UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO PSICOLÓGICO DE CRIANÇAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Psicologia São Paulo 2007 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. LUCILENA VAGOSTELLO O EMPREGO DA TÉCNICA DO DESENHO DA PESSOA NA CHUVA: UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO PSICOLÓGICO DE CRIANÇAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Psicologia Área de Concentração: Psicologia Clínica Orientadora: Profª Drª Leila Salomão de la Plata Cury Tardivo São Paulo 2007 AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE. Catalogação na publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Vagostello, Lucilena. O emprego da técnica do desenho da pessoa na chuva: uma contribuição ao estudo psicológico de crianças vítimas de violência doméstica / Lucilena Vagostello; orientadora Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo. -- São Paulo, 2007. 185 p. Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Clínica) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. 1. Teste da pessoa na chuva 2. Técnicas projetivas 3. Desenho de figura humana 4. Psicodiagnóstico 5. Violência na família 6. Abuso da criança I. Título. BF698.7 O EMPREGO DA TÉCNICA DO DESENHO DA PESSOA NA CHUVA: UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO PSICOLÓGICO DE CRIANÇAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA LUCILENA VAGOSTELLO BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Instituição Assinatura Prof. Dr. Instituição Assinatura Prof. Dr. Instituição Assinatura Prof. Dr. Instituição Assinatura Prof. Dr. Instituição Assinatura Tese defendida e aprovada em: _____/_____/_____ AGRADECIMENTOS À Profª. Drª. Leila Salomão de la Plata Cury Tardivo, pelo conhecimento proporcionado nesse longo trajeto, pela disponibilidade, atenção, paciência e sensibilidade na orientação do trabalho, sobretudo nos momentos finais, tão extenuantes. Manifesto minha mais sincera gratidão pelo incansável incentivo à pesquisa e pela imensa generosidade que me abriu tantas portas. Ao Prof. Dr. Antonio Augusto Pinto Junior pelas relevantes sugestões e contribuições por ocasião do exame de qualificação e pelo material bibliográfico gentilmente cedido. À Profª Drª. Eda Marconi Custodio pelas contribuições no exame de qualificação. À Profª. Drª. Regina Sonia Gattás do Nascimento pelo conhecimento proporcionado e incentivo para a realização do doutorado. À banca examinadora pela aceitação do convite e, pela leitura, avaliação e discussão do trabalho. Ao Cristiano, pela atenção e dedicação na realização do tratamento estatístico. Às amigas Lílian e Ana Lucia, pelo profissionalismo e pela inestimável (e impagável!) contribuição nas avaliações. Às psicólogas do Tribunal de Justiça, Ana Claudia, Cristina, Enny, Lucimar, Márcia, Marília, Marisa, Patrícia, Regina, Silvia, Yeda, pelas contribuições na seleção das crianças. Obrigada pelo apoio, compreensão e respeito ao meu cansaço nos últimos meses de trabalho. À Andréia, pelo auxílio no contato com as escolas e na coleta de dados. Ao Glauco Bardela, pelo apoio disponibilizado para a realização da pesquisa. À minha família, principalmente minha mãe e irmã, pelo cuidado e preocupação. A todas as crianças que colaboraram com a pesquisa. Aos diretores das escolas e pais ou responsáveis, que permitiram a realização da pesquisa. Ao Dr. Euclides, pela autorização para a realização do trabalho. Aos companheiros do Apoiar, pelo carinho, apoio e incentivo recebido. Ao Christian, pelo acolhimento e pelo “tumulto” que provoca. À Solange pela revisão. A todos os amigos que me incentivam e torcem por mim. i Ou Isto Ou Aquilo Ou se tem chuva e não se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva! Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva! Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares. É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo nos dois lugares! Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro. Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... E vivo escolhendo o dia inteiro! Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranqüilo. (Cecília Meireles) ii RESUMO VAGOSTELLO, L.V. O emprego da Técnica do Desenho da Pessoa na Chuva: uma contribuição ao estudo psicológico de crianças vítimas de violência doméstica. 2007. 185 f. Tese (Doutorado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. Este trabalho tem como objetivo apresentar uma técnica projetiva praticamente desconhecida no Brasil, o teste da Pessoa na Chuva. Por meio de um estudo exploratório, busca-se verificar suas contribuições para a avaliação psicológica de crianças vítimas de violência doméstica. A técnica consiste em solicitar o desenho de uma pessoa na chuva e foi elaborada para verificar como o indivíduo reage a situações de tensão ambiental. No presente trabalho, tal procedimento foi aplicado em 82 participantes de ambos os sexos, com idades entre 6 e 10 anos e residentes em regiões de baixo índice de desenvolvimento humano da periferia da cidade de São Paulo. Dos participantes, 40 são crianças comprovadamente vítimas de violência doméstica (grupo experimental), segundo avaliação na Seção de Psicologia de uma Vara de Infância e Juventude de São Paulo. Os outros 42 sujeitos (grupo de controle) são crianças sem queixa de vitimização. Cada desenho foi classificado de acordo com a presença ou ausência de seis características gráficas gerais: dimensão pequena da figura humana, ausência de pés, ausência de mãos, ausência de detalhes, chuva (chuva como lágrimas, chuva setorizada e raios) e guarda-chuva. As freqüências de cada característica foram calculadas e comparadas nos dois grupos através do teste de Qui-quadrado. Além da pesquisadora, foi realizada análise às cegas por outros dois juízes, por meio do teste de correlação de Pearson. Com isso, verificou-se concordância entre as avaliações, dando confiabilidade à análise realizada. A análise dos dados indicou que três características foram capazes de discriminar o grupo de crianças vitimizadas do grupo de controle: ausência de detalhes, ausência de guarda- chuva e chuva setorizada, todas elas mais presentes nas crianças com a condição de vitimização. O Desenho da Pessoa na Chuva pode auxiliar o psicólogo em sua investigação, a qual, contudo, deve contemplar outras técnicas de avaliação e várias fontes de informação. Como um instrumento projetivo, a Pessoa na Chuva pode ajudar a promover o estabelecimento de vínculos de confiança e favorecer a comunicação entre criança e profissional, permitindo, com isso, melhor compreensão do sofrimento inerente à experiência abusiva. Espera-se, com esse trabalho, incentivar a realização de outros estudos, quantitativos e qualitativos, com vistas à validação da técnica na população brasileira. Palavras-chave: Teste da Pessoa na Chuva, Técnicas projetivas, Desenho de figura humana, Psicodiagnóstico, Violência na família, Abuso da criança.iii ABSTRACT VAGOSTELLO, L.V. The use of the ‘Draw a Person in the Rain’ technique: a contribution to the psychological study of child victims of domestic violence. 2007. 185 f. Thesis (Doctoral) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. The purpose of this study is to present the ‘Draw a Person in the Rain’ test, a projective technique practically unknown in Brazil. By means of a preliminary and investigative study, its contributions to the psychological evaluation of child victims of domestic violence are sought. This technique consists in asking the subject to draw a person in the rain and has been designed to check how sole individuals react to situations of environmental stress. The test was performed in 82 participants, male and female, from 6 to 10 years of age and living in areas of low human development from the suburbs in the city of São Paulo. Among all the participants, 40 were child victims of domestic violence (experimental group), according to evaluations at the department of Psychology of a Childhood and Adolescence Court of Law in São Paulo. The remaining 42 (control group) are children with no claims of victimization. Each drawing was classified according to the presence or absence of six general graphic characteristics: small dimension of the human figure, absence of feet, absence of hands, absence of details, rain (rain as tears, rain in sectors and thunderbolts) and umbrellas. The frequencies of each characteristic were estimated and compared in both groups, using the chi- square significance test. Besides the researcher, two other judges performed blind testing, using the Pearson’s correlation coefficient, which conferred reliability to the present analysis. Data analysis indicated that three characteristics made it possible to discriminate the child victims from the control group: absence of details, absence of umbrella and rain in sectors, all of which were more present in children suffering from victimization. Although the ‘Draw a person in the rain’ test may help the psychologist, his or her investigation must include other evaluation techniques and various sources of information. As a projective tool, this test can help establishing trust relationships and fostering child-psychologist communication, thus making it possible to better understand the suffering connected to the experience of being abused. This work also aims at encouraging the conduction of other studies, both quantitative and qualitative, in order to validate the technique for the brazilian population. Keywords: Draw a Person in the Rain technique, Projective Techniques, Human Figure drawing, Psychodiagnostics, Violence in the Family, Child abuse iv RESUMÉ VAGOSTELLO, L.V. L’emploi de la technique du dessin de la personne sous la pluie: une contribution à l’étude psychologique d’enfants victimes de violences domestiques.2007. 185 f. Thèse (Doctoral) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. Ce travail a pour but de présenter une technique projective méconnue au Brésil, le test de la personne sous la pluie, et de vérifier, par le biais d’une étude d’exploration, ses contributions dans l’évaluation psychologique d’enfants victimes de violences domestiques. Cette technique projective, fondée sur la sollicitation de dessiner une personne sous la pluie, a été élaborée pour vérifier comment l’individu réagit à des situations de tension environnementale. Dans ce travail, la technique de la personne sous la pluie a été appliquée sur 82 participants, dont 40, connus pour avoir subis des violences domestiques (groupe expérimental) ont été évalués par la Section de Psychologie d’une Chambre de l’Enfance et de la Jeunesse de São Paulo les 42 restant n’ayant aucune réclamation de persécution (groupe de contrôle) ; les deux sexes étaient représentés à proportion égale, les enfants, âgés de 6 à 10 ans, résidant dans des régions au taux de développement humain bas dans les banlieux de la ville de São Paulo. Chaque dessin a été classé selon la présence ou l’absence de six caractéristiques graphiques générales : petite taille de la figure humaine, absence de pieds, absence de mains, absence de détails, pluie (pluie en forme de larmes, pluie sectorisée et éclairs) et parapluie. La fréquence de chacune des caractéristiques a été calculée et comparée dans les deux groupes par le test khi carré. Une analyse en aveugle a ensuite été effectuée par deux autres juges, outre le chercheur, au moyen du test de corrélation linéaire de Pearson, lequel a avéré la concordance entre les évaluations, rendant ainsi l’analyse confiable. L’analyse des données a indiqué que trois caractéristiques ont permis de distinguer le groupe d’enfants persécutés du groupe de contrôle : absence de détails, absence de parapluie et de pluie sectorisée, des caractéristiques davantage présentes chez les enfants en état de persécution. Le dessin de la personne sous la pluie peut aider le psychologue dans son investigation, celle-ci devant obligatoirement inclure d’autres techniques d’évaluation et diverses sources d’information. La personne sous la pluie peut jouer le rôle d’outil de projection pour aider à promouvoir l’établissement de liens de confiance et favoriser la communication entre l’enfant et le professionnel, permettant, ainsi, une meilleure compréhension de la souffrance inhérente à l’expérience abusive. Nous espérons que ce travail encouragera la réalisation d’autres études, quantitatives et qualitatives, en vue de valider cette technique dans la population brésilienne. Mots-clés: Test de la personne sous la pluie, techniques projectives, dessin de figure humaine, psychodiagnostic, violence dans la famille, abus de l’enfant. v LISTA DE ILUSTRAÇÕES Gráfico 1 - Distribuição do grupo de crianças vitimizadas em função do tipo de violência ........................................................................................................................... 109 Ilustração 1 - Desenho da Pessoa na Chuva (participante nº 17) ...................................... 133 Ilustração 2 - Desenho da Pessoa na Chuva (participante nº 21) ...................................... 137 vi LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Notificações de violência doméstica em cidades brasileiras ............................ 24 Tabela 2 – Notificações de abuso sexual em cidades brasileiras ....................................... 32 Tabela 3 – Efeitos do abuso sexual, em crianças e adolescentes, na literatura especializada ....................................................................................................................... 41 Tabela 4 - Indicadores gráficos da Figura Humana de Koppitz ........................................ 73 Tabela 5 – Escala de avaliação do teste da Pessoa na Chuva para adultos ........................ 92 Tabela 6 - Publicações encontradas na base de dados Psycinfo com a técnica da Pessoa na Chuva ............................................................................................................................ 93 Tabela 7 - Distribuição do grupo experimental em função do sexo e da idade ................. 106 Tabela 8 - Caracterização do grupo experimental em função do sexo, idade, tipo de violência, agressor e situação familiar .............................................................................. 107 Tabela 9 - Distribuição de escolares em função do sexo e da idade (N=371) ................... 110 Tabela 10 - Distribuição do grupo de controle em função do sexo e da idade ................. 111 Tabela 11 - Qui-quadrado e freqüências para o item dimensão da figura humana para o grupo de vítimas de violência e o grupo de controle ......................................................... 120 Tabela 12 - Qui-quadrado e freqüências para os itens mãos e pés para o grupo de vítimasde violência e o grupo de controle ........................................................................ 122 Tabela 13 - Qui-quadrado e freqüências para o item detalhes (complementos) para o grupo de vítimas de violência e o grupo de controle ......................................................... 123 Tabela 14 - Qui-quadrado e freqüências para o item chuva para o grupo de vítimas de violência e o grupo de controle ......................................................................................... 124 Tabela 15 - Qui-quadrado e freqüências para o item guarda-chuva para o grupo de controle e o grupo de vítimas de violência ........................................................................ 127 vii SUMÁRIO Agradecimentos ........................................................................................................................ i Epígrafe .................................................................................................................................... ii Resumo ..................................................................................................................................... iii Abstract .................................................................................................................................... iv Resume ..................................................................................................................................... v Lista de figuras ......................................................................................................................... vi Lista de tabelas ......................................................................................................................... vii Apresentação ........................................................................................................................... 1 Capítulo I - Infância e violência doméstica: a investigação psicológica da vitimização infantil ...................................................................................................................................... 4 1.1. História da infância ou história da violência? ................................................................... 4 O conceito histórico de infância ......................................................................................... 4 1.2. A vitimização infantil dentro da família ........................................................................... 17 A Violência Intrafamiliar contra Crianças e Adolescentes ................................................ 17 Violência Física ou Abuso Físico ....................................................................................... 28 Violência ou Abuso Sexual ................................................................................................ 31 Negligência ......................................................................................................................... 41 Violência Psicológica ou Abuso Psicológico ..................................................................... 43 1.3. O psicólogo judiciário e a infância: entre a proteção e o controle .................................... 48 O Psicólogo no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ............................................ 48 A atuação do Psicólogo em Varas de Infância e Juventude .............................................. 50 A atuação do Psicólogo em Varas de Família e Sucessões ............................................... 52 A Intervenção do Psicólogo Jurídico em Situações de Risco contra Crianças e Adolescentes ..................................................................................................................... 53 O Psicólogo no Poder Judiciário: intervenção ou controle? .............................................. 58 1.4. O desenho da figura humana e a expressão da violência doméstica ................................. 68 Os instrumentos de avaliação psicológica: diagnóstico e intervenção ............................... 68 O Desenho da Figura Humana com crianças vítimas de violência doméstica ................... 78 O Teste da Pessoa na Chuva .............................................................................................. 87 O Teste da Pessoa na Chuva com crianças vítimas de violência doméstica ...................... 96 Capítulo II – Justificativa e objetivo ....................................................................................... 100 Capítulo III – Método ............................................................................................................. 103 viii A. Participantes .................................................................................................................. 104 B. Instrumentos .................................................................................................................. 111 C. Procedimentos ............................................................................................................... 113 Capítulo IV – Apresentação e discussão dos resultados ......................................................... 120 Capítulo V – A Pessoa na Chuva: Ilustração de casos ............................................................ 130 Criança 1 – Violência Física .............................................................................................. 131 Criança 2 – Abuso sexual ................................................................................................... 135 Capítulo IV – Reflexões .......................................................................................................... 140 Referências .............................................................................................................................. 144 Anexo A - Desenhos dos participantes do grupo experimental ............................................... 159 Anexo B – Termos de consentimento ...................................................................................... 180 Anexo C - Correlação entre os juízes ...................................................................................... 184 ix 1 APRESENTAÇÃO Minha trajetória e meus interesses em pesquisa na Graduação (iniciação científica), Pós-Graduação (aperfeiçoamento) e Mestrado sempre foram voltados para temas da Psicologia Social, mais especificamente, preconceito e violência. Em 1998, iniciei minha experiência profissional com crianças vítimas de violência doméstica, como psicóloga de uma Vara de Infância e Juventude localizada na periferia da cidade de São Paulo. O trabalho cotidiano nessa região e o contato diário com impensáveis formas de violência proporcionaram-me crescentes questionamentos sobre as vivências emocionais dessas crianças, assim como as de seus pais, que também foram vitimizados dentro de suas famílias na juventude e, atualmente, estão submetidos a uma forma de violência mais ampla, a exclusão social, que os priva do direito de tornarem-se cidadãos. A idéia de realizar esse trabalho surgiu em 2003, no Congresso Latinoamericano de Rorschach e outros Métodos Projetivos, realizado no Uruguai, onde compartilhei a mesma sessão de comunicação de pesquisa com Barilari, Agosta e Colombo, psicólogas argentinas, que realizam pesquisas com crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica por meio de uma técnica projetiva, até então desconhecida por mim, denominada a Pessoa na Chuva (Querol & Paz, 1997). O teste da Pessoa na Chuva é um instrumento difundido em países sul-americanos como Argentina, Uruaguai, Chile e Peru, que associa o desenho da figura humana (de Karen Machover, 1949) a uma situação de tensão ambiental, representada pela chuva (Querol & Paz, 1997; Hammer, 1991). As psicólogas argentinas Barilari,Agosta e Colombo (2000, p.8), são pioneiras no estudo desse instrumento com crianças e adolescentes vitimizados e fundamentam-se na hipótese de que “em todo menor submetido a maltrato crônico intrafamiliar se produz um 2 dano psíquico que se expressa através de suas representações gráficas e de seu comportamento”. Nosso trabalho se propõe a apresentar à comunidade a técnica expressiva gráfica a Pessoa na Chuva, e verificar as suas contribuições para o estudo de uma população específica, a de crianças vítimas de violência doméstica. Com isso, pretendemos difundir as contribuições do instrumento para o estudo da personalidade, visando estimular a produção científica, uma vez que não existem, no Brasil, estudos estatísticos normativos, de validade e de fidedignidade que permitam sua utilização pelo Conselho Federal de Psicologia. O trabalho divide-se em seis capítulos; o primeiro dedica-se à fundamentação teórica do estudo e é composto por quatro partes. A primeira delas apresenta as diferentes concepções históricas da infância, mostrando que o conceito moderno de criança, como um sujeito de direito e portador de necessidades específicas, é uma construção relativamente recente em nossa sociedade. A segunda parte apresenta as diferentes facetas da violência doméstica contra crianças, um fenômeno de pouca visibilidade social, caracterizado por relações abusivas e assimétricas de poder. Apontamos as diferentes modalidades de violência intrafamiliar (física, sexual, psicológica e negligência), suas peculiaridades e conseqüências para o desenvolvimento infantil. A terceira parte do primeiro capítulo apresenta a trajetória do psicólogo no Tribunal de Justiça de São Paulo e sua atuação na proteção de crianças vulneráveis e/ou submetidas à situação de violência doméstica, visando realizar uma reflexão sobre as contradições e as possíveis intervenções do psicólogo judiciário, cuja atuação se inscreve no limite da promoção de saúde e do controle sociojurídico. Na última parte, discutiremos a importância das técnicas gráficas de avaliação da personalidade, em especial, as que utilizam o desenho da figura humana, e apresentaremos o Teste da Pessoa na Chuva. 3 No segundo capítulo estão explicitados a justificativa os objetivos do presente trabalho, que, pretende apresentar um instrumento de expressão gráfica em nosso meio, A Pessoa na Chuva, como recurso auxiliar para a compreensão do fenômeno da violência doméstica contra crianças. Esse trabalho se justifica pela originalidade do tema, na medida em que é uma técnica projetiva desconhecida no Brasil, e porque pode oferecer contribuições relevantes para o conhecimento da criança vítima de violência. O terceiro é dedicado aos aspectos metodológicos do trabalho, que é um estudo quantitativo, fundamentado nos métodos experimental e estatístico, que comparou características gráficas da técnica da Pessoa na Chuva em 82 crianças, de 6 a 10 anos de idade, 40 com histórico de violência doméstica (grupo experimental) e 42 sem queixas de vitimização (grupo de controle). No quarto capítulo os resultados dos dois grupos, experimental e de controle, são apresentados, discutidos e comparados com o estudo argentino (Barilari et al., 2000) e com outros da literatura especializada. Incluímos um capítulo quinto para apresentarmos duas ilustrações de casos que, embora não seja o objetivo do trabalho, é uma tentativa de integrar as duas facetas da experiência profissional (pesquisadora e psicóloga) e as contribuições dos métodos quantitativo e qualitativo. O último capítulo é dedicado às reflexões derivadas do presente estudo e da experiência profissional da autora com crianças vítimas de violência doméstica. Esperamos que esse trabalho desperte o interesse de outros profissionais para o conhecimento da técnica da Pessoa na Chuva e que sirva de ponto de partida para a realização de estudos quantitativos e clínicos em diferentes segmentos da nossa população. 4 CAPÍTULO I INFÂNCIA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: A INVESTIGAÇÃO PSICOLÓGICA DA VITIMIZAÇÃO INFANTIL 1.1. HISTÓRIA DA INFÂNCIA OU HISTÓRIA DA VIOLÊNCIA? O Conceito Histórico de Infância Quando pensamos na infância como uma fase peculiar do desenvolvimento humano, como uma etapa necessária para a aquisição de recursos biológicos, psicológicos e sociais fundamentais para a constituição do indivíduo, estamos diante de uma compreensão moderna de infância. Isso significa que, em diferentes períodos históricos, as sociedades lançaram diferentes olhares sobre a criança e constituíram diversas concepções de infância. Os estudos sobre a infância e o papel da criança nos diferentes períodos da história são relativamente recentes e foram pouco explorados até a década de cinqüenta. Um dos trabalhos mais conhecidos sobre o tema é a “Hstória Social da Criança e da Família” de Phillipe Áries (1973/1981), que utilizou a pesquisa iconográfica de diferentes épocas – representações artísticas como gravuras e pinturas – para conhecer hábitos e costumes familiares em diferentes momentos históricos, bem como o lugar e a função social da criança na família até o surgimento da sociedade moderna. Nesse trabalho Ariès (1973/1981) revelou que todas as questões e indagações relacionadas à infância são preocupações específicas da modernidade, pois até o século XVII a criança ocupou um papel praticamente insignificante na vida pública e privada. Ariès (1973/1981, p.50) apontou que, com exceção da arte grega, que retratou suas crianças com características infantis, até o final do século XI, somente os adultos foram 5 representados nas artes, como se a figura da criança inexistisse no mundo social e como se “não houvesse lugar para a infância nesse mundo”. Ariès (1973/1981) observou que algumas representações de crianças nas artes apareceram no final do referido século, porém não passavam da reprodução de adultos com tamanho reduzido, de “adultos em miniatura”. As primeiras manifestações artísticas que retrataram crianças com características infantis apareceram somente no século XIII, porém, eram representações fortemente marcadas pela influência religiosa cristã (imagens de anjos e santos), que perdurou até o final do século XVI. A falta de uma clara distinção e separação entre o mundo adulto e o infantil evidencia, para Ariès (1973/1981), a ausência da noção de infância na sociedade medieval, na qual adultos e crianças trajavam-se da mesma maneira, compartilhavam indiscriminadamente as mesmas atividades sociais (jogos de azar, eventos sociais, danças) e mantinham entre si pouco distanciamento corporal, permitindo o contato com partes íntimas do corpo. No final do século XVII, período de transição para o capitalismo, a nascente classe social burguesa passou a almejar uma educação diferenciada para os filhos, o que culminou na retirada da criança da família e na sua inserção no regime disciplinar escolar. A retirada da criança da família moderna representa a separação entre mundo adulto e mundo infantil e marca o que Ariès (1973/1981) chamou de “o surgimento do sentimento de infância”, ou seja, o momento a partir do qual a criança passou a ser vista como um ser diferente do adulto. O final do século XVII representou, para Ariès (1973/1981), a tomada de consciência das especificidades da criança por uma sociedade que, até então, as ignorava. Por outro lado, esse autor destaca que o surgimento da infância promoveu a imposição de limites e de regras educacionais mais rígidos para a criança e incentivou a adoção de castigos corporais para domar os instintos infantis. 6 O trabalho de Ariès (1973/1981) é muito conhecido e citado nas áreas de Psicologia e de Ciências Sociais, mas suas teses encontraram oposicionismo por parte de outros historiadores como DeMause (1975), Postman (1999) e Heywood (2004) por diferentes razõesque serão apresentadas a seguir. DeMause (1975) realizou uma investigação histórica, da Antigüidade ao século XX, sobre as atitudes e as práticas educativas de pais em relação aos filhos e constatou que os cuidados infantis melhoraram ao longo do tempo, uma vez que, em séculos remotos, o número de crianças mortas, abandonadas, espancadas, aterrorizadas e sexualmente abusadas era muito maior. DeMause (1975) opõe-se à tese de Ariès (1973/1981) de que a família moderna intensificou os castigos corporais da criança, uma vez que este último baseou-se, predominantemente, em registros do século XVII, enquanto que documentos mais antigos revelam que o espancamento de crianças, com os mais diversos tipos de objetos, era uma prática socialmente tolerada antes do século XIII. Além disso, DeMause (1995) também observa, criticamente, que muitos historiadores encaram com naturalidade a prática social do infanticídio em períodos remotos e que até mesmo Ariès (1973/1981), que pontuou a perda da liberdade da criança e a imposição de castigos mais rigorosos na família burguesa, tratou as brincadeiras sexuais entre adultos e crianças como uma “tradição da época” e não como abuso sexual. Portanto, enquanto Ariès (1973/1981) sinaliza que os maus-tratos infantis iniciaram-se a partir do surgimento da infância, DeMause (1975) localiza o período mais sombrio da vitimização infantil em séculos cada vez mais distantes, onde o infantício era socialmente aceito. Para este último, ao longo da história, a relação entre pais e filhos modificou-se e evoluiu para formas mais socializadas de educar os filhos. 7 Ariès (1973/1981) também recebeu críticas de historiadores que questionaram sua metodologia e suas fontes de pesquisa. Entre eles encontramos Heywood (2004), que contesta a ausência de um sentimento ou consciência de infância no período medieval e defende a existência de alguma forma de reconhecimento das especificidades da infância no período que precedeu o século XVII. Para Heywood (2004, p.29), a infância, na Idade Média, “não passou tão ignorada, mas foi antes definida de forma imprecisa, e por vezes, desdenhada”. Heywood (2004) entende que nas diversas sociedades – inclusive na medieval – sempre existiu alguma consciência de que crianças e adultos não são pessoas propriamente iguais e, reportando-se a David Archard, fala na existência de diferentes “concepções de infância” que sofreram transformações nos diversos momentos históricos David Archard sugere que todas as sociedades, em todas as épocas, tiveram o ‘conceito’ de infância, ou seja, a noção de que as crianças podem ser diferenciadas dos adultos de várias formas. O ponto em que elas diferem é em suas ‘concepções’ de infância... elas terão idéias contrastantes sobre questões fundamentais relacionadas à duração da infância, às qualidades que diferenciam os adultos das crianças e à importância vinculada às suas diferenças (Heywood, 2004, p. 22). Postman (1999) considera que as primeiras preocupações com a criança originaram-se na Grécia antiga e que, embora o infanticídio tenha sido uma prática socialmente tolerada naquela sociedade, os gregos foram os primeiros a criar escolas para educar crianças, ensinar- lhes os ofícios da guerra e transformá-las em cidadãos. A criança era encarada como um cidadão em potencial pela sociedade grega e, por isso, essa concepção pode ser considerada como o “prenúncio da idéia de infância”. Segundo Postman (1999, p.22), os gregos “certamente não inventaram a infância, mas chegaram suficientemente perto para que dois mil anos depois, quando ela foi inventada, pudéssemos reconhecer-lhes as raízes.” Sabe-se que a sociedade romana foi profundamente influenciada pelos ideais de educação e de escolarização gregos, mas, Postman (1999) acredita que os romanos superaram a concepção grega de infância, porque foram os pioneiros a inserir a noção de vergonha. A idéia de vergonha é importante para a concepção de infância, pois representa a adoção de uma 8 atitude moral do adulto em relação à criança e porque insere o segredo como um limite necessário para impedir o acesso da criança ao universo adulto Aqui nos defrontamos com uma visão inteiramente moderna, que define a infância, em parte, reclamando para ela a necessidade de ser protegida dos segredos adultos, especialmente os segredos sexuais (Postman, 1999, p.23). No que se refere ao período da Antigüidade, especificamente, não verificamos divergências significativas entre idéias de Ariès (1973/1981) e de seus críticos, na medida em que todos convergem para a existência de uma distinção entre os mundos infantil e adulto na Grécia e em Roma, apesar de as crianças serem consideradas propriedades dos pais e vulneráveis ao (abuso de) poder do adulto. Postman (1999) recorda que no ano de 374 dC, o infanticídio foi proibido por lei em Roma, fato que poderia ser considerado o prenúncio histórico de uma preocupação com a proteção da infância, porém, destaca que eventos como a queda do império romano (476 dC), o fim da cultura clássica e a entrada na Idade Média impossibilitaram o desenvolvimento do interesse pela criança. Observamos e lembramos que muitos séculos se passaram até a criação de dispositivos legais de proteção à criança na sociedade, conforme veremos mais adiante. Postman (1999) introduziu uma análise interessante sobre a situação da criança na sociedade medieval e, ao contrário de Ariès (1973/1981), não considera a Idade Média como um período caracterizado pela ausência ou inexistência da noção de infância, mas como um momento histórico marcado pelo desaparecimento dessa idéia. Para Postman (1999, p.66), a infância representou “coisas diferentes para pessoas diferentes em épocas diferentes”. Em sua análise, Postman (1999) associa o desaparecimento da infância ao desaparecimento da capacidade da leitura e da escrita nas relações sociais mais amplas, que, na Idade Média, restringiu-se somente aos representantes da Igreja Católica. O autor lembra que a escrita é uma produção cultural de uma sociedade e que o acesso ao mundo letrado ocorre somente após o desenvolvimento e o amadurecimento de certas habilidades do 9 indivíduo. A leitura e a escrita restringem a informação a um grupo específico de indivíduos (adultos letrados), o que confere a este saber um caráter de segredo. A sociedade medieval promoveu, aos poucos, o desaparecimento da capacidade de ler e escrever e, com isto, os segredos do mundo adulto tornaram-se mais acessíveis ao mundo infantil, diluindo as fronteiras entre ambos. Assim, a Idade Média representa o período do desaparecimento da educação, da vergonha, do segredo e, conseqüentemente, do desaparecimento da infância (Postman, 1999). Apesar de contemplarem diferentes visões, Postman (1999) considera a contribuição de Ariès (1973/1981) importante, pois foi o primeiro autor a chamar a atenção para a pequena distância que separava a infância da vida adulta na Idade Média; contudo, para o primeiro, a infância desapareceu nesse período e, para o último, ela simplesmente não existiu. A despeito das divergências sobre a infância, observamos que os autores parecem concordar que, na sociedade medieval, a infância foi, no mínimo, pouco valorizada. Elizabeth Badinter (1985), por exemplo, mostra que a entrega dos filhos de famílias abastadas para as amas-de-leite foi uma prática comum desde o século XIII na França, uma vez que as atividades domésticas e o cuidado dos filhos eram atribuições desvalorizadas pelas mulheres das camadas sociais mais elevadas. Gradativamente, essa prática foi incorporada por mulheres de outras classes sociais, cujos filhos eram entregues para amas cada vez menos qualificadas. A entrega de filhos às amas-de-leite perdurou até o século XVIII e a taxa de mortalidade infantil na França chegou a atingir 25% das crianças no primeiro ano de vida, o queé considerado por Badinter (1985) um “infanticídio disfarçado”. Além disso, o período compreendido entre o final do século XVIII e início do século XIX caracterizou-se por imenso índice de abandono infantil e de institucionalização de crianças. Volnovich (1993) e Heywood (2004) destacam que até o século XVIII o conceito de infância predominante baseou-se nas idéias de Santo Agostinho, que concebia a criança como 10 um ser naturalmente impuro, fruto e herdeiro do pecado original, dotado de atributos negativos como a imoralidade e a impulsividade. Para esta concepção, a educação da criança deve ser orientada para a sua contenção e para a sua transformação em adulto. Os autores apontam que nos séculos XVII e XVIII, o pensamento de Locke, herdeiro do racionalismo cartesiano, defendeu a submissão da criança a um processo educacional que impusesse primazia da razão sobre seus instintos. Diferente de Santo Agostinho, Locke não concebeu a criança como um ser impuro e pecador, mas como um representante do erro e do engano, ou seja, a antítese da razão. Com sua idéia de tábula rasa, Locke delegou a responsabilidade sobre o futuro da criança ao adulto, sendo a função deste conduzi-la para a racionalidade (Volnovich, 1993; Postman,1999; Heywood, 2004). Heywood (2004) mostra que a concepção moderna de infância sofreu, no século XVIII, grande influência do pensamento de Rousseau, que, em oposição às concepções de Santo Agostinho e Locke, valorizou as virtudes naturais da criança, considerada o “bom selvagem”. A perspectiva rousseauniana defende uma “educação natural” que preserve a expressão de virtudes infantis como pureza, inocência e espontaneidade até a imposição da razão, que deve ocorrer somente quando o jovem estiver preparado, ou seja, a partir dos 12 anos, aproximadamente. Rousseau recomendava (1999, p.92-3, apud Heywood, 2004, p.38): “Respeitai a infância... deixai a natureza agir bastante tempo antes de resolver agir em seu lugar”. Norteada por Rousseau, na transição dos séculos XVIII e XIX, a concepção romântica de infância predominou, sobretudo, nas famílias da classe média, valorizando e enaltecendo a criança e sua inocência infantil. Neste mesmo período, o amor materno apareceu como um novo valor social, despertando o interesse de moralistas e médicos para estimulação e valorização dos cuidados maternos (Heywood, 2004, Badinter, 1985). 11 Destacamos que a valorização da maternidade e do amor materno não encontraram receptividade entre as mulheres até que circunstâncias históricas, econômicas e sociais facilitaram o aparecimento de condições favoráveis para um convívio mais estreito entre mãe e filho. No século XVIII, um vasto número de publicações médicas, preocupadas com a preservação da criança, introduziu novos usos e costumes na vida da mulher e da família como, por exemplo, o fim da entrega dos filhos aos cuidados das amas-de-leite e aos criados (Donzelot, 1980; Badinter, 1985). Assim, o despertar do interesse pela infância no final do século XVIII não foi decorrente da reprovação moral do abandono materno, mas da crescente assimilação da maternidade pelas próprias mulheres. Tal assimilação não ocorreu espontaneamente, mas às custas de interesses econômicos (a criança como força potencialmente produtiva) e da intervenção direta do Estado nas condições de vida da população (saúde, alimentação, moradia, hábitos de higiene), por meio da introdução de práticas médico-sociais na vida privada da família (Donzelot, 1980; Badinter, 1985). Donzelot (1980) ressalta que a intervenção do Estado na vida privada, através dos médicos de família, introduziu o saber médico na esfera doméstica no século XVIII e promoveu transformações viscerais na vida familiar. A aliança entre médico e família inaugurou as bases da família moderna, que, regida por princípios educacionais, colocou as crianças sob a supervisão direta da família e, ao retirar este poder das amas, concedeu à mulher uma autoridade sem precedentes na vida doméstica. Ao fechar-se em si mesma, a família moderna também se organizou em torno da criança e transformou-se em reduto de privacidade. Donzelot (1980) destaca que esta aliança entre o médico e a família, ao mesmo tempo em que favoreceu o fechamento desta última, permitiu a sua invasão pelo poder público, que, por meio de “pedagogias médico-sociais” 12 relativas à higiene, saúde e sexualidade, transformou a família em um dispositivo de controle da criança, responsável por sua “criação e vigilância”. A ampliação das responsabilidades da figura materna, na transição entre os séculos XIX e XX, colocou a mulher no centro da família, tornando-a responsável pelo êxito ou fracasso de seus filhos. Em oposição à concepção romântica de infância vigente, surgiu, nesse momento, a concepção freudiana de infância, que rompeu com a idéia de ingenuidade e inocência infantis, uma vez que de acordo com o pensamento psicanalítico, a criança é precocemente dotada de desejo e de sexualidade. Para Postman (1999, p.77), a concepção de infância de Freud confirma e, ao mesmo tempo, refuta as idéias de Locke e Rousseau Freud refuta Locke e confirma Rousseau: a mente da criança não é uma tábula rasa;... se aproxima de um ‘estado de natureza’... Mas ao mesmo tempo Freud refuta Rousseau e confirma Locke: as primeiras relações entre criança e os pais são decisivas para determinar o tipo de adulto que a criança será. Volnovich (1993, p.25) destaca que a psicanálise introduziu uma nova concepção de criança, como um ser ativo em seu desenvolvimento, dotada de desejo, dotada de um “saber”, um saber inconsciente: “A Psicanálise deste século terá a indigna missão de subverter o mito da infância ingênua e bondosa, retornando à imagem da criança perversa, embora em outro contexto, não do erro, mas o do saber.” Postman (1999) e Heywood (2004) lembram que se, por um lado, a criança passou a assumir uma importância social dentro da família e da sociedade em meados do século XVII, o processo de industrialização do século XIX representou um retrocesso para a infância. O trabalho infantil das famílias pobres foi absorvido como mão-de-obra pela indústria e pela mineração de carvão, sobretudo na Inglaterra. Nessa época muitas crianças ingressaram precocemente no mercado de trabalho, para auxiliar no sustento de suas famílias e esta situação perdurou até o início do século XX, quando surgiram as primeiras legislações para proibir o trabalho infantil. 13 O registro sobre a infância no Brasil iniciou-se no período de colonização, embora já existissem crianças indígenas em terras brasileiras antes do descobrimento. Em virtude da necessidade de povoar a Colônia e, diante da escassez de mão-de-obra adulta, os navios que transportaram os colonizadores para o Brasil utilizaram o trabalho de crianças portuguesas recrutadas voluntariamente de famílias pobres e de crianças judias raptadas de suas famílias em Portugal (Ramos, 2004). Segundo Ramos (2004), havia quatro categorias distintas de crianças e adolescentes nas embarcações portuguesas: os passageiros (acompanhadas por pais ou parentes), os grumetes1, os pajens da nobreza e as “órfãs do Rei”. Os grumetes eram os que viviam em piores condições, pois executavam os trabalhos físicos mais árduos, tinham alimentação escassa e, com freqüência, eram violentados sexualmente por marinheiros. Os pajens, geralmente protegidos pela nobreza, executavam atividades mais amenas, como servir as refeições, arrumar os camarotes, entre outras. As órfãs eram jovens pobres, muitas vezes órfãs somente de pai, brancas, praticamente raptadas de suas famílias e enviadas às colônias (sobretudo para a Índia) para constituir família com colonizadores portugueses. A colonização portuguesa empreendeu grande investimento na formação das crianças locais, oferecendo educação e doutrinação cristã às criançasindígenas, mestiças e portuguesas, através da Companhia de Jesus no Brasil. O batismo tornou-se um grande acontecimento, que abarcou crianças de todas as famílias, desde as portuguesas, até as indígenas e as escravas. Mais do que um ritual, Góes & Florentino (2004, p.182) lembram que o batismo representava uma ampliação dos laços familiares e sociais, na medida em que a figura dos padrinhos incorporava-se à família, visando fornecer apoio à criança, sobretudo na falta dos 1 Marinheiros iniciantes, escalão mais baixo da Marinha. 14 pais, o que era comum entre escravos: “Os laços de compadrio uniam, sobretudo, escravos e este era o costume entre os cativos do Rio de Janeiro, em áreas rurais e urbanas.” As crianças escravas, quando pequenas, compartilhavam alguns espaços com as crianças brancas, mas aos poucos, iniciam o trabalho em atividades domésticas ou de pastoreio. Quanto melhor o seu desempenho, maior o seu valor no mercado da escravidão; por volta dos 14 anos de idade, os jovens negros já realizavam as mesmas atividades de escravos adultos (Góes & Florentino, 2004). No Brasil do século XIX, a pobreza e as dificuldades de sobrevivência da população no período do Império e da República já levavam muitas famílias pobres a abandonar seus filhos em instituições como as rodas, os orfanatos e internatos, mesmo após o fim da escravidão Uma história de internações para crianças e jovens provenientes das classes sociais mais baixas, caracterizados como abandonados e delinqüentes pelo saber filantrópico privado e governamental... deve ser anotada como parte da história da caridade com os pobres e a intenção de integrá-los à vida normalizada. Mas também deve ser registrada como componente da história contemporânea da crueldade (Passetti, 2004, p. 350). No início do século XX, a mão-de-obra de crianças também foi explorada pelo crescente processo de industrialização da sociedade brasileira, aumentando cada vez mais a institucionalização de crianças, seja por abandono, seja pela exposição à criminalidade dos grandes centros urbanos. Nesse século, a exploração do trabalho infantil e a exposição da criança à violência privada e social alertaram a sociedade para a necessidade de iniciativas de proteção à infância e juventude No início do século XX, as políticas públicas passaram a ser vistas como um veículo de bem-estar. Mais recentemente difundiu-se a idéia de que também as crianças deveriam ser alvos dessas políticas com a concepção de que a criança é um ‘sujeito a ser protegido’ (Passeti, 2004, p.366). De acordo com Passeti (2004), no Brasil, um decreto (nº 16.272) foi criado, em 1923, para regulamentar a proteção de menores abandonados e delinqüentes. O primeiro Código de Menores (decreto 17343/A de 10/10/1927) foi publicado em 1927 e, através dele, o Estado 15 responsabilizou-se por esses jovens e instaurou a internação para órfãos e infratores, atividades até então realizadas por instituições filantrópicas. Em 1924, pela primeira vez, foram declarados, mundialmente, os direitos da criança, que se tornaram conhecidos como Declaração de Genebra e, em 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em 1959, a Organização das Nações Unidas criou a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e a Declaração dos Direitos da Criança, que priorizou a família e a comunidade para a proteção da criança contra “quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração”, o que resultou na eclosão de programas de apoio à família, para assegurar a permanência dos filhos no seio familiar e evitar o seu abandono ou a sua institucionalização (Passeti, 2004). No Brasil, em 1979, foi publicado o Código de Menores, Lei Federal nº 6697, com o objetivo de tutelar os então chamados “menores em situação irregular”, ou seja, jovens em condições de privação material, submetidos a condições de perigo ou abandono, infratores ou deficientes. O termo “menor” tornou-se pejorativo, associado à pobreza e delinqüência infantil e foi abolido, após aproximadamente uma década, com a substituição do Código de Menores pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 O Código de Menores de 1979 atualizou a Política Nacional do Bem-Estar do Menor... e explicitou a estigmatização das crianças pobres como “menores” e delinqüentes em potencial através da noção de situação irregular (Passeti, 2004, p. 364). A Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança de 19892 enfocou a proteção da criança contra abuso e exploração, o que levou vários países, inclusive o Brasil, a tornar obrigatória a notificação de ocorrências ou de suspeitas de abuso contra crianças por órgão de saúde e de educação. A partir dessa convenção, os programas sociais de intervenção à família passaram a focalizar também a identificação de situações de violência contra crianças e adolescentes dentro do lar. 2 - Nações Unidas no Brasil - Convenção sobre os Direitos da Criança, recuperado em 12 dez. 2006: http://www.onu-brasil.org.br/doc_crianca.php. http://www.onu-brasil.org.br/doc_crianca.php 16 Ratificando os princípios da Convenção de 1989, o Estatuto da Criança e do Adolescente, publicado em 1990, representou um grande avanço legal e social para a proteção da infância e da adolescência contra “qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (Del Campo & Oliveira, 2006). O Estatuto da Criança e do Adolescente introduziu uma nova concepção de proteção à infância e juventude, concedendo voz aos seus sujeitos, que passaram a ser concebidos como pessoas em condições peculiares de desenvolvimento e sujeitos de direitos fundamentais - direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte e lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária - que devem ser protegidos pelo Estado, pela família e pela sociedade. A partir dessa perspectiva, todas as intervenções de natureza protetora (quando os direitos de crianças e adolescentes são violados) ou de natureza socioeducativa (quando o adolescente viola o direito alheio por meio de um ato infracional) privilegiam a manutenção dos vínculos da criança e do adolescente com o seu grupo familiar e com a comunidade na qual estão inseridos, buscando realizar uma intervenção que integre o indivíduo e seu grupo social. Apesar dos recentes esforços empenhados pela sociedade para a proteção da infância e, das mudanças ocorridas na família nuclear moderna, que se organizou em torno das necessidades da criança, a história de violência infantil continua, inclusive no local onde ela mais deveria estar protegida: a família. 17 1.2. A VITIMIZAÇÃO INFANTIL DENTRO DA FAMÍLIA A Violência Intrafamiliar contra Crianças e Adolescentes O capítulo anterior mostrou que a concepção de infância é uma produção histórica que depende dos diferentes olhares sobre a criança em diferentes períodos. Do incômodo, a criança tornou-se uma força potencialmente produtiva para a sociedade e, ao mesmo tempo, um meio de apropriação de poder para o adulto no universo familiar patriarcal (Ariès, 1973/1981; Badinter, 1985; Volnovich, 1993; Postman, 1999; Heywood, 2004). Observamos, portanto, que a organização da família moderna em torno da criança, se, por um lado, a protegeu, por outro, permitiu que a privacidade familiar se tornasse um lugar privilegiado para exercer e ocultar as mais diversas possibilidades de violência contra crianças e adolescentes. Os estudos sobre violência intrafamiliar contra crianças originaram-se na medicina. Azevedo e Guerra (1995) encontraram os primeiros registros sobre esse assunto em 1860, quando o médico legista francês Ambrosie Tardieu verificou umnúmero significativo de óbitos de crianças em decorrência de lesões físicas. Contudo, a literatura especializada considera o século XX e, mais especificamente, a década de 60, como o marco da investigação da violência doméstica infantil (Azevedo & Guerra, 1995; Gonçalves, 2003). De acordo com Gonçalves (2003), o primeiro estudo brasileiro sobre violência foi publicado em 1973 por Coates, Ribeiro, Hercowitz e Keiserman e relata o caso de uma criança de um ano e três meses de idade espancada e abandonada pela mãe na Santa Casa de São Paulo. No Brasil, o volume de pesquisas na área de violência doméstica ainda é considerado tímido, quando comparado à relevância e à gravidade do problema. Grande parte da produção 18 científica nacional sobre esta temática menciona os estudos de Maria Amélia Azevedo e Viviane Nogueira Guerra, pesquisadoras e fundadoras do Laboratório da Criança (LACRI) na USP, que, além de produzir e agregar estudos científicos, capacita profissionais de todas as partes do Brasil para atuar na identificação, acompanhamento e prevenção de violência doméstica contra crianças e adolescentes. Azevedo e Guerra (1989, 1995, 1998, 2001a, 2001b) abordam o fenômeno da violência doméstica a partir de um referencial teórico “interativo, multicausal e histórico- crítico”, determinado pela interação de fatores sociais, econômicos, históricos, culturais e psicológicos. Este modelo supõe que as relações sociais se constituem a partir de um movimento de determinações recíprocas entre indivíduo e sociedade, no qual o indivíduo determina a sociedade e também é determinado por ela. Assim, as relações de poder que se estabelecem dentro das instituições sociais e, mais especificamente, dentro da família, são reproduções das relações sociais de poder. As autoras destacam a existência de dois processos de violência intimamente relacionados à estrutura de poder: a vitimação e a vitimização. A vitimação é o processo de violência inerente à desigualdade social da sociedade capitalista, resultante da exclusão social, e suas vítimas são todos aqueles que não conseguem ter acesso aos bens e recursos socialmente produzidos. Já a vitimização é um fenômeno que incide nas relações interpessoais, independentemente de classe social, e que se apresenta sob diferentes formas de maus-tratos (físico, sexual e psicológico). Muitas vezes, os indivíduos vitimados tendem a reproduzir o mesmo padrão de relacionamento abusivo de poder em suas relações interpessoais da esfera familiar ou profissional, como uma forma compensatória de exercer nestes espaços o poder social que lhes falta. Saffiotti (1989) denomina este mecanismo “Síndrome do Pequeno Poder”, que 19 geralmente é exercido, sob alguma forma de violência (não necessariamente física), contra mulheres, crianças e pessoas que ocupam cargos profissionais considerados subalternos. Azevedo e Guerra (1989, 1995, 1998) consideram os termos “abuso” e “vitimização” os mais adequados para se referir ao fenômeno da violência doméstica, pois, como vimos, partem do princípio da existência de um “padrão abusivo” no relacionamento entre adultos e crianças ou adolescentes, no qual estão em jogo condições históricas objetivas e subjetivas de todos os envolvidos ...as características psicológicas dos pais, bem como sua posição de classe e sua visão de mundo (ideário). Por outro lado esse padrão abusivo entra, por vezes, em interação com ‘condições concretas de vida familiar’ e com ‘características particulares da criança e do adolescente. (Azevedo & Guerra, 1998, p.90) Uma das definições utilizadas na literatura especializada sobre a violência doméstica no Brasil é a de Azevedo e Guerra (1995, p.36), que a concebem como uma manifestação interpessoal de violência, pautada na desigualdade e no abuso de poder dos pais e/ou responsáveis e que reduz a vítima (criança ou adolescente) à condição de objeto de satisfação do adulto Todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica de um lado, numa transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, numa coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. Na literatura especializada sobre violência doméstica, encontramos outras abordagens teóricas que se ocupam deste tema, como a chamada perspectiva ecológica- desenvolvimentista (Developmental-Ecological), que se destaca, principalmente, nas publicações internacionais. A perspectiva ecológica propõe um modelo multicausal a partir do qual a violência é compreendida como um produto de múltiplos fatores (econômicos, sociais, emocionais) que, isoladamente, não são determinantes, mas, quando associados em condições desfavoráveis, podem predispor muitas famílias à violência. 20 Belsky (1993), um importante expoente desse modelo teórico, considera que a incidência de maus-tratos domésticos associa-se a uma série de fenômenos contemporâneos, como características de personalidade dos pais (dificuldade de controle dos impulsos, auto- estima rebaixada, escassa capacidade de empatia, depressão, ansiedade), características psicológicas dos pais (maior irritabilidade frente a estímulos aversivos), padrões de comportamento agressivos incorporados no processo de aprendizagem, pobreza e falta de planejamento familiar. A perspectiva ecológica destaca que as famílias predispostas à violência apresentam duas características básicas. A primeira delas é o isolamento social, geralmente provocado pela ausência de redes sociais de apoio (instituições de saúde, educacionais e sociais, programas sociofamiliares) ou ainda pelo limitado relacionamento social com familiares e/ou vizinhos. A outra característica é o ambiente sociocultural em que essas famílias estão inseridas, geralmente receptivo e tolerante à violência, e que utiliza a punição física como principal modelo de controle do comportamento dos filhos (Belsky, 1993). A abordagem sistêmica considera a violência doméstica como uma manifestação de disfunção familiar que incide diretamente sobre as relações de parentalidade e/ou conjugalidade. Assim, na incidência de abuso intrafamiliar, todos os membros da família estão implicados psicologicamente na dinâmica relacional, seja quem pratica a agressão, seja quem sofre a agressão, seja quem se omite, seja quem se rebela frente à violência (Furniss, 1993; Linares, 2002). Nessa perspectiva, todos, inclusive a vítima, têm participação no processo de vitimização, do ponto de vista interacional, o que não significa atribuir a ela a responsabilidade pelo abuso (Furniss, 1993; Linares, 2002). A seguinte definição, empregada por Linares (2002, p.58), parece traduzir a concepção de violência intrafamiliar da abordagem sistêmica: 21 a violência é a manifestação de um fenômeno interacional em que todos os que participam são psicologicamente responsáveis. Sob este critério, qualquer um pode vir a ser violento, sendo a violência uma resposta a uma ordem em que os atores podem especializar-se como emissores, receptores ou participantes. Os autores que se apoiam nessa abordagem defendem a realização de intervenções que incidam sobre as esferas familiar, individual e social da violência e não apenas uma atuação profissional que privilegie o indivíduo e seu ambiente doméstico (Furniss, 1993; Linares, 2002). Quando pensamos no enfoque psicanalítico para a compreensão da violência doméstica, costumamos nos remeter às falhas no desempenho das funções parentais, imprescindíveis para o desenvolvimento da criança e para o de seus relacionamentos interpessoais ulteriores. A criança, ao nascer, experiencia a vida instintiva em completa dependência do ambiente. Deacordo com Winnicott (1983), uma mãe suficientemente boa funciona como um ego auxiliar da criança, apresenta-se como objeto de satisfação de seus impulsos e de suas necessidades, o que permite o estabelecimento de uma confiança que leva o bebê a sentir-se capaz de criar os objetos e a realidade. A segurança no ambiente é fundamental para a integração do bebê como unidade somática e psíquica, pois essa experiência de “eu”, capaz de criar objetos, possibilita o desenvolvimento de uma relação que não seja insuportavelmente ameaçadora com o “não eu”. Para Winnicott (1983), a mãe (ou substituta), quando se identifica com as necessidades de seu filho, é capaz de proporcionar a ele a segurança necessária para lidar com as suas demandas instintivas e com ameaças do mundo interno e externo. A presença de uma mãe suficientemente boa, portanto, protege a criança dos ataques da realidade externa e da crueldade dos seus próprios impulsos destrutivos, possibilitando integrar impulsos eróticos e agressivos (conservação do objeto bom juntamente com a fantasia de sua destruição) 22 O indivíduo só pode atingir o estado do “eu sou” porque existe um meio que é protetor; o meio protetor é a mãe preocupada com sua criança e orientada para as necessidades do ego infantil através da sua identificação com a própria criança. (Winnicott, 1983, p.35) A presença de uma mãe confiável e disponível permite que, após as vivências de ataque e de destruição, a ansiedade decorrente da ambivalência (culpa) seja experimentada e tolerada, permitindo que esta ansiedade não seja experimentada como culpa, mas retida para uma posterior reparação, que é a base da capacidade de se preocupar com o outro A esta culpa que é retida, mas não sentida como tal, denominamos ‘preocupação’. Nos estágios iniciais do desenvolvimento, se não há uma figura materna de confiança para receber o gesto de reparação, a culpa se torna intolerável e a preocupação não pode ser sentida. (Winnicott, 1983, p. 78) A partir dessa perspectiva, podemos considerar que a presença de qualquer tipo de experiência de violência de pais contra filhos - física, psicológica, sexual ou de negligência - representa um obstáculo à capacidade de identificação com necessidades da criança e, conseqüentemente, de proporcionar um ambiente positivo, seguro e confiável, que possa ser internalizado pela criança. Se para Winnicott (1983) a capacidade de estabelecer vínculos afetivos é uma característica de personalidade intimamente relacionada à capacidade de buscar e de receber cuidados, podemos pensar que crianças expostas à situação de violência doméstica estariam muito mais vulneráveis a desajustes de natureza relacional do que outras pessoas. Conforme veremos mais adiante, a violência doméstica, de fato, tende a produzir efeitos prejudiciais nessa área, pois, com muita freqüência, observamos que pessoas submetidas à violência apresentam mais dificuldade para se identificar e se preocupar com as necessidades dos próprios filhos ou, ainda, tendem a reproduzir nos relacionamentos sociais e/ou familiares o padrão abusivo do qual foram vítimas. Os diferentes enfoques teóricos apresentados oferecem contribuições muito importantes para o estudo da violência doméstica, porém, não podemos deixar de demarcar 23 que são maneiras completamente diferentes de abordar o fenômeno da violência doméstica, uma vez que partem de premissas e de determinações distintas para explicar a ocorrência do fenômeno. Não podemos deixar de apontar que o enfoque histórico-crítico é o mais completo, porque abarca uma dimensão sociocrítica da produção da violência doméstica que não está presente nos demais, que privilegiam intervenções focadas no grupo familiar, ainda que reconheçam a multiplicidade de fatores socioculturais envolvidos na questão da violência doméstica. Os números da violência contra crianças e adolescentes no mundo são assustadores. Em 2002, segundo a Organização Mundial da Saúde (apud Gonçalves, 2003), foram notificados 57 mil homicídios de jovens menores de 15 anos, com maior incidência entre crianças de zero a quatro anos de idade. Pesquisas realizadas a partir de diversas fontes oficiais (Boletins de Ocorrência, Laudos do IML, Varas de Infância e Juventude, FEBEM) revelam que as vítimas de violência doméstica de São Paulo são predominantemente do sexo feminino e que os agressores são, na maioria das vezes, pais e mães biológicos (Azevedo e Guerra, 1995). Segundo publicação do Centro de Referência às Vítimas de Violência do Instituto Sedes Sapientiae, “três entre dez crianças de zero a doze anos sofrem algum tipo de maus- tratos dentro da própria casa, perpetrados por pais, padrastos ou parentes”. (Sousa & Vecina, 2002, p.73) Dados internacionais recentes (Sanmartín, 2002; Linares, 2002) e levantamentos realizados pelo LACRI em todo o Brasil, entre 1996 e 2004, apontam que a negligência e a violência física são as modalidades de violência doméstica mais notificadas e que o abuso 24 sexual encontra-se entre os menos registrados, conforme a tabela a seguir (Azevedo & Guerra, 2006)3: Tabela 1 – Notificações de violência doméstica em cidades brasileiras (LACRI, 2006) Ano Violência Física Violência Sexual Violência Psicológica Negligência Violência Fatal Total de Notificações 1.996 525 95 0 572 0 1.192 1.997 1.240 315 53 456 0 2.064 1.998 2.804 578 2.105 7.148 0 12.635 1.999 2.620 649 893 2.512 0 6.674 2.000 4.330 978 1.493 4.205 135 11.141 2.001 6.675 1.723 3.893 7.713 257 20.261 2.002 5.721 1.728 2.685 5.798 42 15.974 2.003 6.497 2.599 2.952 8.687 22 20.757 2.004 6.066 2.573 3.097 7.799 17 19.552 2.005 5.109 2.731 3.633 7.740 32 19.245 2.006 4.954 2.456 3.501 7.617 17 18.545 46.541 16.425 24.305 60.247 522 148.040 Estatísticas do Centro de Referência de Infância e Adolescência (CRIA) do município de Guatinguetá, no estado de São Paulo, apontam que as crianças que recebem atendimento especializado em decorrência de maus-tratos domésticos são, predominantemente, do sexo feminino (61%). As meninas são as maiores vítimas de violência física (27 - 45%) e sexual (26 - 43%), enquanto que os meninos são alvos mais freqüentes de violência física (61%). (Pinto Junior et al., 2003a). A despeito do crescimento do número de notificações no decorrer dos anos, conforme mostram os dados do LACRI (2006), a violência doméstica é sempre considerada, no Brasil e 3- Fonte: Laboratório de Estudos da Criança (LACRI) da USP, http://www.ip.usp.br/laboratorios/lacri/iceberg.htm#2, recuperado em 14 de dezembro de 2006. http://www.usp.br/ip/laboratorios/lacri 25 em outros países, um fenômeno subnotificado, porque se manifesta em um ambiente fechado, que favorece sua ocultação e dificulta o registro fidedigno de sua ocorrência. No Brasil e em vários países, a violência doméstica é aceita com certa complacência social, porque encontra apoio em nossa cultura, que valoriza e banaliza práticas violentas, irrefletidamente assimiladas e incorporadas aos costumes quotidianos como “práticas naturais”. O emprego de castigos físicos, como surras ou “palmadas”, é aceito por muitas famílias, porque ainda é considerada uma prática educativa, assim como outras punições físicas como torturas e pena de morte também são meios defendidos para a solução de problemas sociojurídicos pela sociedade (Azevedo & Guerra, 1995, 2001a). É consenso na literatura nacional e internacional que os maus-tratos domésticos ocorrem, invariavelmente, em todas as classes sociais, porém, a maioria dos casos notificados concentra-se na população de baixa renda. Apesar do caráter sigiloso e privado da violência doméstica, a própria configuração do ambiente físico nesses segmentos sociais facilita a exposição e a denúncia das ocorrências, uma vez que a sociografia da pobrezaapresenta fronteiras muito diluídas entre público e privado. Nos estratos sociais mais elevados, as fronteiras da intimidade conseguem ser muito mais preservadas e o acesso às mazelas domésticas por terceiros, muito mais limitado e controlado. Deslandes (1994) lembra que a vida privada da população de baixa renda acaba sendo exposta também pela intervenção de poderes de diversas naturezas, – “públicos, locais e paralelos” -, enquanto que os serviços privados desfrutados pelas classes média e alta supõem discrição e silêncio em relação à privacidade familiar. Além disso, os autores também reconhecem que os sentimentos de medo, vergonha e culpa inerentes às conseqüências de uma possível revelação sobre a violência sofrida fortalecem o silêncio das vítimas e favorecem movimentos de resistência entre os outros 26 membros da família (Azevedo & Guerra, 1989, 1995; Sanmartín, 2002; Linares, 2002; Gonçalves, 2003). Outro aspecto característico da violência doméstica encontrado por autores nacionais e internacionais é o de que, ao contrário do que se imagina, são poucos os casos nos quais os agressores apresentam algum distúrbio psiquiátrico. Dados recentes apresentados por Sanmartín (2002) indicam que isso ocorre em apenas 10 % dos casos. Observamos que os efeitos da violência doméstica sobre crianças e adolescentes dependem do interjogo de variáveis de diferentes naturezas como a idade da vítima, freqüência, tempo de duração e severidade da violência, além das características pessoais da vítima (Gonçalves, 2003; Sanmartín, 2002; Linares, 2002; Azevedo & Guerra, 1989 e 1995). Verificamos que, em todas as modalidades de violência doméstica, a capacidade de concentração e, conseqüentemente, de aprendizagem de crianças e adolescentes torna-se prejudicada. É muito comum a presença de manifestações comportamentais agressivas, incluindo condutas anti-sociais em adolescentes (furtos, agressividade gratuita contra terceiros, entre outros), associadas a correlatos emocionais como ansiedade, baixa auto- estima, insegurança, medo e desamparo (Azevedo & Guerra, 1989 e 1995; Sanmartín, 2002; Linares, 2002;). Pesquisas internacionais e brasileiras também apontam que cerca de 50% das famílias com histórico de violência contra crianças e adolescentes contam apenas com a mãe como chefe de família. Parece haver consenso entre os pesquisadores da área: estressores sociais como desemprego, baixa-renda e má qualidade de vida, freqüentemente, aparecem associados à violência doméstica (Gonçalves, 2003, Deslandes, 1994; Azevedo & Guerra, 1989). Autores nacionais e internacionais concordam que a violência doméstica tende a se perpetuar por várias gerações dentro de uma família, estabelecendo-se um ciclo de transmissão de padrões de relacionamento violentos que pode atravessar várias gerações de 27 pais e filhos. Na história de vida do adulto que pratica violência existe, quase que invariavelmente, algum tipo de vivência de maus-tratos, porém, jamais se pode afirmar que uma vítima será um futuro agressor, embora possa vir a sê-lo (Gonçalves, 2003, Sanmartín, 2002; Linares, 2002; Azevedo & Guerra, 1989, 1995). Se o primeiro grande paradoxo que envolve a violência intrafamiliar é o fato de a criança ser vitimizada na instituição social incumbida de educá-la e protegê-la, o segundo paradoxo é a constatação de que a violência doméstica contra crianças e adolescentes é ainda menos notificada pelos profissionais que, por força da lei (ECA, 1990) e da ética profissional, estariam obrigados a registrá-la. Azevedo e Guerra (1995) constataram, em pesquisas realizadas em São Paulo e Campinas, no início da década de 90, que as maiores fontes de denúncias são predominantemente vizinhos e/ou telefonemas anônimos e que os profissionais das instituições de saúde e de educação são as fontes menos freqüentes de notificação. Em duas pesquisas de nossa autoria (Vagostello, Oliveira, Silva, Moreno & Donofrio, 2003, 2006), com a participação de 159 professores e diretores de escolas públicas e privadas, observamos um despreparo generalizado de profissionais da educação para lidar com suspeitas de maus-tratos domésticos. Nesses estudos constatamos que a denúncia aos órgãos competentes, como Conselhos Tutelares ou Varas de Infância e Juventude, é uma prática pouco comum entre esses profissionais, que tendem a abordar a violência intrafamiliar da mesma maneira pela qual resolvem os problemas pedagógicos, ou seja, por meio da convocação dos pais ou responsáveis para comparecimento na escola. Gonçalves e Ferreira (2002) também observaram dificuldades entre alguns profissionais da saúde para notificar suspeitas de violência doméstica contra crianças e adolescentes. As autoras destacam fatores profissionais (despreparo para identificação de casos, temor da quebra de sigilo e ameaças recebidas pelo agressor), dificuldades estruturais (falta de estrutura para atuação dos Conselhos Tutelares) e barreiras familiares (manipulação 28 de informações para impedir a identificação de abusos) como obstáculos que interferem substancialmente na realização de denúncias por profissionais da área de saúde. As autoras destacam, com pertinência, que a própria legislação prejudica e dificulta o seu cumprimento, pois, ao mesmo tempo em o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) obriga a denúncia por parte dos profissionais, ele não define objetivamente o que são maus- tratos ou suspeita de maus-tratos. A imprecisão e falta de clareza desses conceitos deixam os profissionais à mercê de uma compreensão subjetiva (e muitas vezes equivocada) da violência doméstica. Gonçalves e Ferreira (2002) ressaltam, ainda, que a lei também não prevê a capacitação profissional dos membros dos Conselhos Tutelares, o que prejudica a realização de um trabalho integrado com as diferentes instituições de atendimento à criança e ao adolescente. A Violência Física ou Abuso Físico Conforme vimos anteriormente, a década de 60 representa o período de florescimento dos estudos sobre violência doméstica, embora existissem alguns estudos precedentes. Em 1962, nos Estados Unidos, foi publicado um trabalho denominado “A Síndrome da Criança Espancada” (The Battered Child Syndrome), de Kempe, Silverman e Steele, que se tornou um estudo clássico sobre violência física contra crianças, citado por diferentes autores da área como Azevedo e Guerra (1995, 2001a) e Gonçalves (2003). Esse trabalho teve reconhecimento internacional e tornou-se referência para a definição de abuso físico, porque despertou a atenção dos profissionais da saúde para a presença de indicadores clínicos (fraturas, lesões, hematomas, entre outros) incompatíveis com as causas supostamente acidentais relatadas pela família 29 Azevedo e Guerra (1995) esclarecem que somente no final da década de 60 a violência física saiu do domínio médico e se tornou objeto de investigação das ciências humanas, o que permitiu a introdução de outros aspectos, como a intencionalidade do ato e a intensidade dos danos físicos, nas definições de violência física doméstica. A definição de Monteiro Filho e Phebo (1977, p.10 apud Gonçalves, 2003, p.146) ilustra essa tendência é o uso da força física de forma intencional, não acidental, ou atos de omissão intencionais, não acidentais, praticados por parte de pais ou responsáveis pela criança ou adolescente, com o objetivo de ferir, danificar ou destruir esta criança ou adolescente, deixando ou não marcas evidentes. A partir da década de 80, autores como Nowell (1989 apud Azevedo & Guerra, 2001a) ampliaram o conceito de violência física, redefinindo-o não mais em função da lesão, mas da dor. Desde então, considera-se agressão e violência qualquer punição física que provoque dor à criança, independentemente de produzir algum ferimento visível. Apoiadas em Nowell, Azevedo e Guerra (2001a, p.26) adotam
Compartilhar