Prévia do material em texto
F R E N T E 2 229 As cantigas trovadorescas As cantigas trovadorescas são tradicionalmente divididas entre líricas – classificadas como cantigas de amor e de amigo – e satíricas – subdivididas em cantigas de escárnio e de maldizer. Vejamos, a seguir, as características de cada uma delas. Fig. 2 Cena da Piazza del Duomo, em Florença, durante uma festividade da nobreza. G io v a n n i d i S e r G io v a n n i d e tt o l o S c h e g g ia , C a s s o n e A d im a ri , s é c u lo X V G a lle ri a d e ll’ A c c a d e m ia , F lo re n ç a , It á lia ./ W ik im e d ia C o m m o n s ( D o m ín io p ú b lic o ) Cantigas líricas Cantigas de amor y Vassalo trovador: o eu lírico é masculino. y Vassalagem amorosa: o amor declarado é servil e respeitoso. y O amor cortês (declaração à mulher amada): a mia se- nhor é superior, virtuosa, casta e adorada como uma santa. y Coita de amor: o amor medieval é sinônimo de sofri- mento e sujeição; há a consciência de que ele nunca será correspondido fisicamente. O eu lírico sofre. y O ambiente é palaciano. y A linguagem é mais elaborada. Atenção Observe a cantiga do trovador palaciano Diogo Brandão, escrita em um período tardio do Trovadorismo em Portugal: empre m’a fortuna deu tristezas com que não posso des que deixei de ser meu polo ser de todo vosso. Que depois que vos servi com tal firmeza, senhora, nunca de vós até’gora nenhum bem já recebi. Des então padeci eu mil males com que não posso porque deixei de ser meu polo ser de todo vosso. BRANDÃO, Diogo. “Outra sua”. In: História e antologia da literatura portuguesa: século XVI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. p. 37. Cantigas de amigo y O eu lírico é feminino, geralmente uma camponesa. y Há a presença de interlocução: o eu lírico dirige-se ao amante nobre (o amigo) ou a um confidente (suas companheiras, sua mãe ou mesmo a natureza). y O poema apresenta, supostamente, a perspectiva da mulher sobre a relação amorosa, sobretudo reclaman- do da ausência do amado. y As cantigas são próprias para serem acompanhadas por danças, pois têm uma linguagem mais simples que a de cantigas amor e de mais fácil memorização, com ritmo mais rápido e com a presença de refrãos. y O ambiente é campestre, idílico. y A linguagem é mais simples, com a presença de para- lelismo e refrão. O meu amigo que mi dizia que nunca mais migo viveria, par Deus, donas, aqui é ja Que muito m’el avia jurado que me non visse mais, a Deus grado, par Deus, donas, aqui é ja O que jurava que me non visse por non seer todo quant’el disse, par Deus, donas, aqui é ja Melhor o fezo ca o non disse: par Deus, donas, aqui é ja TAVEIRÓS, Paio Soares de. In: História e antologia da literatura portuguesa: séculos XIII-XIV. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 10. m’a: minha; des: desde; polo: para; mi: me; migo: comigo; par: por; m’el avia jurado: ele havia me jurado; non: não; seer: ser; quant’el: quanto LÍNGUA PORTUGUESA Capítulo 2 Trovadorismo, Humanismo e Classicismo: as origens da Literatura em Língua Portuguesa230 O amor cortês A u to r d e s c o n h e c id o ( d o m ín io p ú b lic o ) Fig. 3 Autor desconhecido, A oferta do coração, 1400-10, tapeçaria, Museu do Louvre, Paris, França. Tapeçaria francesa que tematiza o amor cortês. Apesar dos diferentes tipos de cantigas e variados modos de trovar, o amor cortês é, sem dúvida, a principal temática da poesia trovadoresca. No tratado poético de Gaia Sevencia, prescreve-se que essa temática só deve ser em- pregada pelo sujeito que realmente sente um amor intenso. O seu vocabulário amoroso é todo extraído do servi ço de vassalagem feudal: “mia senhor”, “midone”, “servir” (amar), “fidelidade” (relação de poderio). Além disso, deter- mina-se um conjunto de regras e configura-se que o amor cortês precisa respeitar uma série de graus de proximidade entre o trovador e a sua amada. Nas cantigas de amor, a mulher amada em geral é uma senhora casada, socialmente reconhecida e dotada de ex- trema beleza (perfeição). Assim, ela não precisa do amor do trovador – é ele quem não pode viver sem amá-la. Nessas cantigas, quem ama vive em sofrimento e está sempre em estado de espera, enquanto o ser amado é uma entidade quase divina, merecedora de adoração; por essa razão, tal amor nunca se concretiza. Portanto, o mais importante no amor cortês seria cantá-lo e suspirar por causa dele. Cantigas satíricas Cantigas de escárnio y O eu lírico critica determinadas pessoas ou um grupo social de forma sutil, sem identificá-los. y Há o uso de palavras ambíguas e ironias para de- nunciar tanto atos corriqueiros (como uma bebedeira exagerada) quanto problemas sociais (a avareza do senhor feudal, por exemplo). Quantos mal ham, se quere[m] guarecer, se x’agora per eles nom ficar, venham este maestre bem pagar, e Deus’los pode mui bem guarecer; ca nunca tam mal doent’home achou nem tam perdudo, des que el chegou, se lh’algo deu, que nom fosse catar. Quiçá non’o pod’assi guarecer, que este poder nom lho quis Deus dar, [j]á quem nom sabe o que possa saar o doente, meos de guarecer; mais perguntar-lh’-á de que enfermou, como maestr’; e, se o bem pagou, nom leix’a guarir, polo el preguntar. Ca vos nom pod’el assi guarecer o doente, meos de terminhar; mais, pois esto for, se quis[er] filhar seu conselho, pode bem guarecer: se se bem guardar, poilo el catou, bem guar[i]rá do mal, ca terminhou; e diz o maestre: – Se lhi nom tornar. Ca o doente, de que el pensou por um gram tempo, se mui bem saou [e] se mal nom houver, [já] pod’andar. VINHAL, Gonçalo Anes do. “Quantos mal ham, se quere guarecer”. In: Cantigas trovadorescas: seleção de cantigas [livro eletrônico]. São Paulo: Melhoramentos, 2014. p. 82-3. (Clássicos Melhoramentos) Cantigas de maldizer y O eu lírico satiriza sem polidez, e o seu alvo geralmen- te é bem definido, ou seja, as pessoas que sofrem a crítica são identificadas no texto. y Há o emprego de um vocabulário virulento e grossei- ro, pois não há pudores ao denunciar nomes e fatos. Foy un dia Lobo Jogral a cas d’un infançon cantar e mandou-lhe ele por don dar três couces na garganta, e foy-lh’escass’, a meu cuydar, segundo como el canta. Escasso foy o infançon, en seus couces partir enton ca non deu a Lopo enton mays de três e na garganta e mais merece el jogralon, segundo como el canta. SOAREZ, Martin. In: BERNARDI, Francisco. As bases da literatura brasileira: história, autores, textos e testes. Porto Alegre: Age, 1999. p. 44. As cantigas do período medieval eram produzidas na chamada “me- dida velha” – redondilhas maiores (sete sílabas) e menores (cinco sílabas) –, o que favorecia a sua musicalidade. Atenção vituperar: afrontar, insultar, repreender; guarecer: curar-se; se x’agora per eles nom ficar: se não puderem fazer mais nada; maestre: mestre (médico); ca: pois; mal: gravemente; perdudo: perdido; catar: observar, examinar; saar: sarar; meos de guarecer: a menos que se cure; nom leix’a guarir: não deixará de se curar; meos de terminhar: a menos que recupere (a consciência); filhar: aceitar; catou: viu, olhou; se lhi nom tornar: se não tiver uma recaída; pensou: tratou, cuidou; Lobo: nome de um; conhecido artista de jogral à época; artista “de elite”, geralmente contratado para alegrar festas de nobres e príncipes; cas: casa; infançon: infante, príncipe. F R E N T E 2 231 Novelas de cavalaria – a prosa medieval In : M a h ie t M a s te r o f th e C a m b ra i M is s a l. C h ro n iq u e s d e F ra n c e o u d e S t D e n is . P a ri s : [s .e d ], 13 3 2 -5 0 . (D o m ín io p ú b lic o ) Fig. 4 Detalhe de uma miniatura de Severino profetizando para Odoacer e lutando, 1837, Paris, França. As novelas de cavalaria são narrativas místicas que re- tratam as aventuras de um dado cavaleiro medieval visto como ideal: temente a Deus, honrado, casto e completa- mente dedicado a seu suserano. Entre as novelas mais conhecidas,há a famosa série de contos, originada na Bretanha, sobre a lenda do Rei Artur e os cavaleiros da távola redonda, denominada A demanda do Santo Graal. Nesses contos, Artur, o lendário rei bretão, teria reunido seus destemidos cavaleiros ao redor da távola redonda (grande mesa de pedra) para incumbi-los de uma santa missão: encontrar o cálice sagrado (o Santo Graal) com o qual José de Arimateia teria recolhido o sangue de Cristo depois da crucificação. Esse cálice teria poderes mágicos e seria capaz de resolver os problemas do reino. Destemidos, os cavaleiros partiram pelo mundo e enfren- taram grandes desafios na busca do cálice sagrado. Entre os cavaleiros, destacaram-se Lancelote, Percival e Galaaz. A seguir, temos um fragmento da novela, o qual retrata o momento em que os caminhos de Lancelote e Galaaz se cruzam pela primeira vez. Quando eles chegarom aa abadia, levarom Lançarot pera ũ a camara e desarmarom-no. E veo a ele a abadessa com quatro donas, e adusse consigo Galaaz. Tam fremosa cousa era mara- vilha era! E andava tam bem vestido que nom podia milhor. E a abadessa chorava muito com prazer tanto que viu Lançarot e disse-lhe: — Senhor, por Deus, fazede vós nosso novel cavaleiro ca nom queríamos que seja cavaleiro per mão doutro, ca milhor cavaleiro ca vós nom no pode fazer cavaleiro. Ca bem creemos que ainda seja tam bõõ que vos acharedes ende bem e que será vossa honra de o fazerdes. E se vos el ende nom rogasse vó-lo devíades de fazer ca bem sabedes que é vosso filho. — Galaaz, disse Lançalot, queredes vós seer cavaleiro? El respondeo baldosamente: — Senhor, se prouvesse a vós, bem no queria seer, ca nom há cousa no mundo que tanto deseje como honra de cavalaria e seer da vossa mão, ca d’outro nom no queria seer, que tanto vos ouço louvar e preçar de cavala [1, d] ria que niũũ, a meu cuidar, nom podia seer covardo nem mao quem vós fezéssedes cavaleiro. E esto é ũa das cousas do mundo que me dá maior esperança de seer homem bõõ e bõõ cavaleiro. — Filho Galaaz, disse Lançalot, estranhamente vos fez Deus fremosa creatura. Par Deus, se vós nom cuidades seer bõõ homem ou bõõ cavaleiro, assi Deus me conselhe, sobejo seria gram dano e gram mala ventura de nom seerdes bõõ cavaleiro ca sobejo sodes fremoso. E ele disse: — Se me Deus feze assi fremoso, dar-mi-á bondade, se lhe prouver. Ca em outra guisa valeria pouco. E ele querrá que serei bõõ e cousa que semelhe minha linhagem e aqueles onde eu venho. E metuda hei minha esperança em Nosso Senhor. E por esto vos rogo que me façades cavaleiro. E Lançalot respondeo: — Filho, pois vos praz, eu vos farei cavaleiro. E Nosso Senhor, assi como a ele aprouver e o poderá fazer, vos faça tam bõõ cavaleiro como sodes fremoso. E o irmitam respondeo a esto: — Dom Lançalot, nom hajades dulda de Galaaz, ca eu vos digo que de bondade de cavalaria os milhores cavaleiros do mundo passará. E Lançalot respondeo: — Deus o faça assi como eu queria. Entam começarom todos a chorar com prazer, quantos no lugar estavam. A demanda do Santo Graal. 2. ed. rev. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005. p. 20-1. Uma novela de cavalaria própria da Península Ibérica é Amadis de Gaula, de 1508. Há, inclusive, pesquisadores que defendem que ela teria sido escrita originalmente em galego-português. Nela, a personagem Amadis é o cava- leiro amante ideal, que desenvolve de forma ímpar o amor cortês. Ele apresenta uma dedicação constante e obsessiva pela amada Oriana, a fim de lhe conseguir os favores. Suas aventuras giram em torno do contraste entre o amor cortês que ele deve demonstrar e as constantes interpelações do “grande e mortal desejo” que lhe atormentam a alma. Humanismo: a primeira mudança de paradigma na literatura portuguesa O Humanismo é a corrente artística e filosófica que marca a transição entre a arte medieval e a arte renascentista e, como seu nome indica, remete ao que é próprio do pensamento humanista. Reflexo da queda da visão teocêntrica (Deus no centro de tudo) e, consequentemente, dos primeiros sinais da visão antropocêntrica (ser humano no centro de tudo), a literatura humanista está ligada ao desenvolvimento dos burgos (as cidades) e ao fortalecimento da classe burguesa (os comerciantes). Os burgueses de Portugal empreendiam viagens pelo Mar Mediterrâneo em busca de novas mercadorias. Disso, de- corria o contato com outros povos e culturas, o que fomentou