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Outra característica importante do espaço geográfico é sua dimensão temporal: ele é o resultado de um acúmulo
desigual de tempos. Sendo produto da ação humana, o espaço recebe intervenções em diferentes períodos históricos.
Em alguns locais, desde a Pré-história até nossos dias, objetos vêm sendo implantados na superfície terrestre, dando origem
a um mosaico de temporalidades diferentes.
Algumas vezes, as implantações antigas vão sendo totalmente substituídas por outras mais recentes, mas é bastante
frequente que haja uma convivência entre objetos de períodos diferentes. Por exemplo, um prédio contemporâneo em
uma rua traçada há trezentos anos; a agricultura atual feita por meio da utilização de antigos canais de irrigação; bibliotecas
que funcionam em prédios onde funcionavam teatros antigamente.
Fig. 5 Os Arcos da Lapa, na região central da cidade do Rio de Janeiro, são uma herança na paisagem das edificações feitas no Brasil durante o período colonial. Se, no
passado, essa construção tinha a finalidade do abastecimento de água (Aqueduto da Carioca), hoje é um atrativo turístico e um ornamento da paisagem.
Construções e relações sociais de épocas diferentes podem entrar em choque ou, ao contrário, estimular-se mutua-
mente no espaço. Ruas antigas e estreitas no centro de São Paulo podem dificultar o trânsito de novos automóveis, o que
acaba estimulando a migração de investimentos para novas áreas. Por outro lado, a existência desse mesmo tipo de rua
em antigas capitais europeias é um dos principais atrativos para os novos investimentos no setor turístico.
Milton Santos nomeou de “rugosidades” tudo aquilo que fica no espaço como forma, como espaço construído, como
fragmentos de paisagens herdados de outras épocas, construídos, muitas vezes, com finalidades diferentes de seus usos
atuais. O importante é que, de um jeito ou de outro, há sempre um papel ativo do espaço nas relações sociais, e, muitas
vezes, essa influência espacial é fruto de ações realizadas há décadas ou séculos atrás.
Paisagem
Paisagem é a parcela da realidade que conseguimos alcançar com
nossa própria visão, quando, por exemplo, observamos uma fotografia
ou o horizonte. Assim, a paisagem é o que percebemos a partir de
nossos sentidos. Não só o que vemos, mas também o que ouvimos,
o que tocamos e até os cheiros que sentimos. Ela é importante por
constituir o primeiro contato com a realidade a ser estudada; deve ser
entendida como a manifestao perceptível dos processos sociais e
naturais, ou seja, como a materialização desses processos.
Entretanto, é importante fazermos duas ressalvas para não valori-
zarmos demais a paisagem como forma de conhecimento.
Primeiro: a paisagem não é simplesmente tudo o que está disponí-
vel no espaço para ser visto, ouvido, cheirado ou sentido. Nossos
sentidos são seletivos, o que significa que damos mais importância a
alguns aspectos e menos a outros, o que depende de fatores como
nossa formação profissional, nossos valores ou mesmo nossa idade.
Quando observamos, selecionamos parte dos aspectos disponíveis
para formar uma imagem mental do que é, para cada um de nós,
a paisagem de uma determinada área. Portanto, dizemos que a
paisagem é resultado de um processo seletivo de apreensão.
Segundo: a paisagem é a aparência da realidade, e não a sua
explicação. A comparação de diferentes áreas, e nesse caso por meio da percepção, é importante, mas não é suficiente para que a entendamos.
Portanto, é sempre necessário lembrar que a paisagem é resultado dos processos sociais e naturais que a formaram.
O geógrafo Milton Santos diferenciava paisagem e espaço geográfico de uma forma bem didática. Dizia ele que, se eventualmente a humanidade
fosse extinta por algum tipo de bomba capaz de eliminar apenas a vida humana, teríamos o fim da sociedade e, consequentemente, do espaço
geográfico, mas a paisagem permaneceria.
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Fig. 6 Essa sequência de imagens retrata a evolução da paisagem de um mesmo local
ao longo do tempo. Perceba que eles apresentam marcas de técnicas específicas de
cada período, que exigem adequação nas formas do espaço para se instalarem.
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GEOGRAFIA Capítulo 1 Espaço geográfico146
Milton Santos e a contribuião para a
renovaão da Geografia
O baiano Milton Almeida
Santos (1926-2001) é um
dos mais importantes ge-
grafos da história do Brasil
e um dos que mais influência
teve sobre a reformulação da
Geografia, iniciada na déca-
da de 1970, tanto no Brasil
como no mundo.
Em função de suas posições
políticas democrá ticas e em
defesa das classes menos
favorecidas, Milton foi perseguido pelo regime militar e teve de se
exilar. No período em que esteve fora do Brasil, lecionou na França,
no Canadá, nos Estados Unidos, na América Latina e na África. Essa
circulação tornou-o mundialmente conhecido.
Voltando ao Brasil, no final da década de 1970, teve dificuldades para
reingressar na vida acadêmica, em razão da continuidade da perseguição
política. Após poucos anos trabalhando em órgãos de planejamento,
conseguiu ingressar na UFRJ e, posteriormente, na USP, onde continuou
trabalhando, mesmo após a aposentadoria, até o final de sua vida.
Ficou famoso, principalmente, por conseguir sistematizar uma nova
abordagem da Geografia ao colocar como centro da análise a pro-
dução do espaço como um sistema técnico, com todas as questões
políticas, sociais, culturais e econômicas envolvidas no processo.
Desde meados da década de 1990, passou a ser visto dentro e
fora da Geografia como um dos principais intérpretes do processo
de globalização.
Saiba mais
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Fig. 7 Milton Santos.
Também segundo Milton Santos, outra característica do
espaço geográfico é o de ser constituído por fixos, aquilo
que é imóvel, e fluxos, o que é móvel. No primeiro conjunto,
temos tanto objetos naturais (morros, leito de rios, vegeta-
ção, entre outros) como os artificiais ou sociais (rodovias,
pontes, edifícios e mesmo uma cidade inteira). O segun-
do conjunto compreende as ações que partem dos fixos,
chegam neles ou apenas por eles passam. É movimento,
circulação. Os fluxos podem ser materiais e imateriais. Estes
últimos, por serem invisíveis, são mais difíceis de serem
identificados e estudados que os fixos e os fluxos mate-
riais. São os fluxos, na maioria das vezes, que dão sentido
e explicam os fixos. Por exemplo, a existência de rodovias e
veículos se explica pelos fluxos que eles possibilitam, pela
necessidade de transporte de coisas e pessoas.
A evolução das reflexões teóricas levou Milton Santos
a redigir uma definição de espaço geográfico concisa e
precisa: um conjunto indissocivel de sistemas de objetos
e de sistemas de açes. Essa definição sintetiza o que foi
estudado anteriormente. Vamos compreender que concei-
tos essas palavras abarcam e exemplificá-los.
Um sistema é um conjunto de elementos dentro do qual
nenhum deles pode ser entendido isoladamente, principal-
mente porque nenhum existiria isoladamente.
O sistema de objetos envolve tudo que podemos deno-
minar como objeto, tudo que tem materialidade. Devemos
incluir desde os objetos pequenos, como uma lâmpada em
nossa casa, até os muito grandes, como uma usina hidrelé-
trica, passando pelos cabos de transmissão de energia, os
postes, os transformadores, os medidores de consumo,
enfim, teríamos aí um sistema elétrico. Os sistemas natu-
rais são compostos de objetos e elementos da natureza
(atmosfera, hidrografia etc.), enquanto os sistemas técnicos
são aqueles compostos de objetos criados a partir do co-
nhecimento humano.
A ideia de sistemas de ações pressupõe que todas
as ações são, ao menos parcialmente, interdependentes.
Estudar, lecionar, dirigir ônibus, controlar a distribuição de
energia ou de água, produzir, transportar e vender alimento.
Enfim, a lista seria interminável, o que nos leva a pensar em
como cada um de nós dependedireta ou indiretamente dos
outros seres humanos para viver.
Além de destacar um sistema de ações e um de
objetos, Milton Santos coloca-os como indissociáveis, ou
seja, as ações produzem e dependem dos objetos, que,
por sua vez, são produzidos e dependem das ações. Não
é possível estudar o espaço geográfico sem considerar,
ao mesmo tempo, o conjunto de objetos e o conjunto
de ações.
Evolução histórica do espaço
geográfico
As características da sociedade e do espaço geo-
gráfico se alteram com o tempo e refletem o contexto
do conjunto de técnicas disponíveis e como elas foram
utilizadas ou não. Portanto, além das condições materiais e
dos conhecimentos que a sociedade desenvolve, a cons-
trução do espaço geográfico depende também da decisão
humana sobre como mobilizar esses conhecimentos e re-
cursos. Isso pode ser entendido como política, pois resulta
de negociações entre os variados setores da sociedade.
De modo geral, os setores mais organizados e com mais
recursos econômicos são aqueles que têm mais poder de
negociação e decisão.
Vamos agora concentrar nossas reflexões sobre a
evolução do conjunto dos sistemas técnicos ao longo do
tempo. Foi considerando esse fator que o já citado geógra-
fo Milton Santos organizou a história dos meios geográficos
em três períodos: o meio natural, o meio técnico e o meio
técnico-científico-informacional.
Meio natural
Durante um longo período, as sociedades usaram o
meio sem grandes transformações, ou seja, tratava-se de
um meio natural. Nele, os conhecimentos humanos ga-
rantiam a sobrevivência e a reprodução, porém permitiam
apenas a criação de instrumentos simples, prolongamentos
do corpo humano (como machado, enxada e pá) ou obje-
tos dependentes da força humana ou animal para serem
operados (arados, teares e outros). Os sistemas técnicos do
meio natural também eram simples e muito dependentes
da natureza, assim como as ações humanas, comandadas
por sua força e por seu ritmo lento.
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Uma viagem da Europa ao Brasil no século XV, por
exemplo, durava meses, pois o sistema de transporte mais
avançado da época (caravelas) era movido pelos ventos e
pelas correntes marítimas.
Fig. 8 O uso da alavanca pelo ser humano é um tipo de técnica primitiva, que
emprega recursos simples para potencializar o trabalho humano e amplia seu
poder de transformação da natureza, mas em ritmo lento, característico do período
identificado como meio natural.
A escala do meio natural é a local. Os lugares, de modo
geral, se organizavam de forma independente, autônoma. É,
portanto, um meio marcado pela diversidade ao redor do pla-
neta, pois os contatos entre os povos eram poucos, e, assim,
cada sociedade desenvolveu técnicas próprias a partir de suas
culturas e condições ambientais de onde estavam instalados.
As ações sobre o meio tendiam a reproduzir as heran-
ças apreendidas dos antepassados e, assim, mantinham
as culturas e a continuidade do meio de vida. Havia uma
relação “respeitosa” entre a sociedade local e a natureza
de onde se obtinha os recursos para a manutenção da vida.
A natureza era pouco transformada.
Meio técnico
É o período caracterizado pela passagem para um meio
“artificial”, preenchido por muitos objetos e sistemas téc-
nicos mais sofisticados. Adota-se a Revolução Industrial,
ou seja, meados do século XVIII, como marco histórico do
início da constituição desse meio geográfico.
O meio técnico é marcado pelas máquinas, um meio me-
canizado. Agora, os instrumentos criados pelos seres humanos
não são apenas prolongamentos dos seus corpos, mas máqui-
nas instaladas no espaço e com funcionamento independente
da força humana. A ação da sociedade para transformar o
meio é muito maior, e as forças da natureza perdem poder na
definição sobre como as sociedades se organizam.
As técnicas estão mais complexas. Novos materiais
são descobertos. Novas fontes de energia (carvão mineral
e petróleo, por exemplo) exponencializam a capacidade
da sociedade em produzir, transformar a natureza, au-
mentar a velocidade dos transportes e a área de ação.
A paisagem é marcada por fábricas, cidades, ferrovias,
rodovias, portos, navios cargueiros, linhas telegráficas e te-
lefônicas, usinas de energia de fontes variadas e grandes
concentrações populacionais, tudo articulado e seguindo
ritmos sociais, políticos e econômicos, impondo modos de
vida mais frenéticos.
Fig. 9 Paisagem característica do meio técnico, marcada pela presença de muitos
objetos artificiais e de um espaço organizado para a circulação.
A escala de ação e acontecimento do meio técnico não
está restrita ao local (lugar) ou mesmo ao nacional (país),
mas ao regional e até mesmo ao global, com algumas restri-
ções. Ganham importância as trocas comerciais. Entretanto,
esse fenômeno ainda era limitado a alguns países e regiões.
Apesar de estar disperso – em várias localidades – pelo
mundo, não era um fenômeno global de fato.
É no meio técnico que a poluição e os impactos am-
bientais significativos passam a ser frequentes, sobretudo
a partir do século XIX.
Meio técnico-científico-informacional
Após a Segunda Guerra Mundial, consolidando-se
sobretudo a partir dos anos 1970, o meio geográfico passou
a ser marcado pela profunda interação entre a técnica e a
ciência, além da presença da informação. Por isso, passou
a ser denominado de meio técnico-científico-informacional.
Com grande investimento em ciência e pesquisa, o de-
senvolvimento da tecnologia criou condições para o aumento
jamais visto da capacidade humana de ação no espaço geo-
gráfico, ao ponto de subordinar a natureza à lógica social.
No período atual, desertos podem ser aproveitados para
agricultura, pistas de esqui podem ser construídas em loca-
lidades desérticas, é possível até mesmo a criação de novas
espécies de animais e vegetais (transgênicos, por exemplo).
Se antes eram apenas as grandes cidades que abrigavam
as técnicas e a grande densidade de objetos técnicos, hoje o
mundo artificial também organiza o espaço rural, com materiais
plásticos, fertilizantes, colorantes, máquinas, investimentos
financeiros, controle das condições ambientais, irrigação e
correção do solo por metro quadrado, estufas, vacinas, rações
balanceadas, implantes de chips eletrônicos para monitorar a
localização e a saúde animal, entre outras formas.
Então os objetos técnicos são muito planejados antes
de suas criações. Não estão dispersos aleatoriamente pelo
espaço, suas localizações e utilizações foram estrategica-
mente pensadas.
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