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a individualidade para si Coleção Educação Contemporânea Esta coleção abrange trabalhos que abordam o problema educacional brasileiro de uma perspectiva analítica e crítica. A educação é considerada como fenômeno totalmente radicado no contexto social mais amplo e os textos desenvolvem análise e debate acerca das consequências desta relação de dependência. Divulga propostas de ação pedagógica coerentes e instrumentos teóricos e práticos para o trabalho educacional, considerado imprescindível para um projeto histórico de transformação da sociedade brasileira. Conheça mais obras desta coleção, e os mais relevantes autores da área, no nosso site: www.autoresassociados.com.br http://www.autoresassociados.com.br/ Newton Duarte a individualidade para si Contribuição a uma teoria histórico-crítica da formação do indivíduo Coleção Educação Contemporânea Copyright © 2017 by Editora Autores Associados Ltda. Todos os direitos desta edição reservados à Editora Autores Associados Ltda. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Duarte, Newton A individualidade para si [livro eletrônico]: contribuição a uma teoria histórico-crí�ca da formação do indivíduo / Newton Duarte. – Campinas, SP : Autores Associados, 2017. – (Coleção educação contemporânea) 2 Mb ; ePUB Bibliografia ISBN 978-85-7496-391-4 1. Educação - Filosofia 2. Educação - Finalidades e obje�vos 3. Individualidade 4. Pedagogia crí�ca 5. Sociologia educacional I. Título. II. Série. 17-06295 CDD-370.19 Índices para catálogo sistemá�co: 1. Individualidade : Teoria histórico-social : Sociologia educacional 370.19 E-book – julho de 2017 Conversão EPub – Bookwire EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA. Uma editora educa�va a serviço da cultura brasileira Av. Albino J. B. de Oliveira, 901 | Barão Geraldo CEP 13084-008 | Campinas-SP Telefone: +55 (19) 3789-9000 E-mail: editora@autoresassociados.com.br Catálogo on-line: www.autoresassociados.com.br Conselho Editorial “Prof. Casemiro dos Reis Filho” Bernardete A. Ga� Carlos Roberto Jamil Cury Dermeval Saviani Gilberta S. de M. Jannuzzi Maria Aparecida Mo�a Walter E. Garcia Diretor Execu�vo Flávio Baldy dos Reis mailto:editora@autoresassociados.com.br http://www.autoresassociados.com.br/ Coordenadora Editorial Érica Bombardi Revisão Julio Cesar Camillo Dias Filho Rafaela Santos Lima Capa Maisa S. Zagria Baseada em capa e página interna de Caderno de anotações de Vladimir Lênin, em 1914, do estudo do livro A Ciência da Lógica, de Georg W. F. Hegel Sumário Prefácio à nova edição Apresentação capítulo 1 A dialética entre objetivação e apropriação capítulo 2 Humanização e alienação capítulo 3 O gênero humano capítulo 4 A formação da individualidade livre e universal Considerações �nais Referências Sobre o autor a libertação de cada indivíduo singular é atingida na mesma medida em que a história transforma-se plenamente em história mundial. De acordo com o já exposto, é claro que a efetiva riqueza espiritual do indivíduo depende inteiramente da riqueza de suas relações reais. Somente assim os indivíduos singulares são libertados das diversas limitações nacionais e locais, são postos em contato prático com a produção (incluindo a produção espiritual) do mundo inteiro e em condições de adquirir a capacidade de fruição dessa multifacetada produção de toda a terra (criações dos homens). A dependência multifacetada, essa forma natural da cooperação histórico-mundial dos indivíduos, é transformada, por obra dessa revolução comunista, no controle e domínio consciente desses poderes, que, criados pela atuação recíproca dos homens, a eles se impuseram como poderes completamente estranhos e os dominaram. MARX & ENGELS, 2007, p. 41 é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, “participar” de uma concepção de mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos vários grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente […] ou é preferível elaborar a própria concepção de mundo de uma maneira crítica e consciente e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade? GRAMSCI, 1995, p. 12 utilizaremos a tese de Hegel sobre o ser em si e o ser para si. Ele dizia que todas as coisas existem, de início, em si, mas que com isso a questão não se esgota e no processo de desenvolvimento o ser em si se transforma em ser para si. O ser humano, dizia Hegel, é uma criança cuja tarefa não consiste em permanecer no abstrato e incompleto em si, mas sim em ser também para si, isto é, converter-se em um ser livre e racional. VYGOTSKI, 1996, p. 199 Prefácio à nova edição A primeira versão deste livro foi elaborada como tese de doutorado, defendida na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/UNICAMP), em 15 de outubro de 1992 e publicada no ano seguinte pela editora Autores Associados. Há vários anos decidi refazer a redação deste trabalho, tanto para corrigir falhas de digitação, erros gramaticais e problemas de estilo de redação como também para melhorar a exposição do pensamento em alguns momentos. Mas o tempo foi passando, e a realização de novos estudos, a produção de novos textos e todo o restante de meu trabalho docente1 fizeram com que a pretendida reelaboração fosse repetidas vezes postergada para outro momento. Dei-me conta, então, de que estava se aproximando o aniversário de vinte anos da primeira edição do livro e coloquei-me a tarefa de preparar a nova redação para uma edição comemorativa desses vinte anos. Foi o que fiz durante todo o mês de janeiro deste ano de 2013. O livro que o leitor tem em suas mãos é e não é o mesmo de vinte anos antes. A estrutura do livro, as categorias centrais, as principais obras de referência e a perspectiva teórica marxista permanecem as mesmas. Não se trata, portanto, de um novo livro. Mas, além do acréscimo de novos parágrafos em praticamente todos os itens de todos os capítulos e de uma total substituição das considerações finais, a forma de exposição do raciocínio foi significativamente modificada ao longo do livro. Sabe-se, pela dialética, que a alteração da forma não deixa intacto o conteúdo e, nesse sentido, pode-se dizer que não se trata do mesmo livro. É certo que os estudos que realizei e a experiência que adquiri durante esses vinte anos produziram em mim transformações como autor e, mais amplamente, 1 como indivíduo. Isso haveria de se refletir no momento da revisão do livro. Um aspecto no qual se revela a dialética entre preservação e transformação é minha relação com o marxismo. Quando escrevi pela primeira vez esse livro, eu era marxista e, ao contrário do que aconteceu com vários intelectuais, minha trajetória não foi a de afastamento do marxismo, mas de aproximação constante. Eu diria que hoje sou mais marxista do que era há vinte anos. A atual versão do livro reflete isso, ou seja, continua sendo um trabalho marxista, mas, como seu autor, agora o é ainda mais radicalmente. Não foram, porém, somente as mudanças pelo lado do autor que se refletiram na nova redação. Também influenciaram esse processo as potencialidades contidas na versão anterior, que procurei, agora, explorar melhor. Aplica-se aqui a dialética entre objetivação e apropriação, o que é tema do primeiro capítulo. Sendo o livro um objeto humano, ele contém atividade humana em estado latente. Ao me reapropriar dessa atividade no momento de reelaboração do livro, pus em movimento o que ali existia como atividade em repouso no objeto. É quase inevitável, no entanto, que nesse processo de exploração das potencialidades surjam coisas novas. Deixo registrados meus agradecimentos aos professores Beneditode Jesus Pinheiro Ferreira e Ricardo Eleutério dos Anjos pela leitura atenta desta nova versão, pelo inestimável auxílio na detecção de erros e pelos estimulantes comentários. Newton Duarte Araraquara, fevereiro de 2013 O autor é professor titular do Departamento de Psicologia da Educação, da Faculdade de Ciências e Letras, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), campus de Araraquara. Apresentação Um dos objetivos principais deste livro é promover o debate sobre o processo de formação do indivíduo como um ser essencialmente histórico; nesse sentido, dirige-se a professores, a pesquisadores que se voltem para as questões relativas aos seres humanos e, mais amplamente, a todas as pessoas que reconheçam a importância da educação das novas gerações. No interior desse amplo universo de leitores em potencial, este livro interpela, de forma mais direta, acerca das teorias críticas da educação, ou seja, aquelas que, partindo da visão de que a sociedade contemporânea se estrutura sobre relações de dominação, preconizam a necessidade de superação dessa sociedade. Com esse objetivo, tais teorias procuram entender com que intensidade e como a educação contribui ou não para a reprodução dessas relações. As teorias críticas têm em comum a busca de desfetichização das formas pelas quais a educação reproduz as relações de dominação, pois entendem isso como fundamental para a própria luta contra essas relações. Mas esse ponto em comum de forma alguma significa que não sejam grandes e fundamentais os pontos de divergência entre essas teorias. Quais são essas relações de dominação? Qual sua origem? Qual o papel da educação em sua reprodução? Por meio de quais formas se realiza essa reprodução na educação em geral e na educação escolar em particular? É possível realizar algo em educação que contribua para a superação das relações sociais de dominação? Estas são, entre outras, indagações a partir das quais as teorias críticas diferem umas das outras e não raro colidem entre si. Dentro desse segmento do pensamento pedagógico brasileiro, faço uma segunda delimitação em termos dos interlocutores aos quais se dirige mais imediatamente este livro: situo este trabalho no interior do processo de construção da pedagogia histórico-crítica (SAVIANI, 2003). Contribuir para a construção de algo requer uma visão desse processo, isto é: aonde se pretende chegar, quais as condições nas quais se realiza esse processo, o que já foi feito e o que há por fazer. Por exemplo, conforme esclarece Saviani (1989, p. 40), no caso das teorias crítico-reprodutivistas, não há como analisar sua proposta pedagógica, pois não faz parte do processo de construção dessas teorias a proposição de uma pedagogia, na medida em que, para elas, a ação pedagógica não poderia deixar de objetivamente tornar-se parte do processo de reprodução das relações sociais de dominação. Exemplo oposto é o da pedagogia histórico-crítica, cujos pressupostos sobre a relação entre educação e sociedade exigem que essa corrente educacional apresente propostas pedagógicas concretas, viáveis e coerentes com o objetivo de contribuir, por meio da especificidade da prática pedagógica, para o processo de superação da sociedade capitalista. A pedagogia histórico-crítica caracteriza-se como uma pedagogia marxista (SAVIANI & DUARTE, 2012) e, como tal, não pode deixar de enfrentar o problema assinalado por Karl Marx na terceira tese sobre Feuerbach: A doutrina materialista sobre a modificação das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado. Ela tem, por isso, de dividir a sociedade em duas partes – a primeira das quais está colocada acima da sociedade. A coincidência entre a alteração das circunstâncias e a atividade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e racionalmente entendida como prática revolucionária [MARX & ENGELS, 2007, pp. 533-534]. A pedagogia histórico-crítica só faz sentido, portanto, na perspectiva da superação revolucionária da sociedade capitalista. E essa pedagogia entende que a educação em geral e a educação escolar, em especial, não têm o poder de por si só revolucionar a sociedade, mas podem e devem engajar- se na luta política pelo socialismo. Mas de que maneira a educação escolar pode participar da luta pelo socialismo? Dermeval Saviani já respondeu a essa questão em suas obras: a maneira específica de a educação escolar contribuir para a luta pelo socialismo é por meio da socialização do conhecimento científico, artístico e filosófico em suas formas mais desenvolvidas. É claro que, em se tratando de uma pedagogia orientada pelo materialismo histórico e dialético, a participação da escola num processo revolucionário precisa ser compreendida a partir da análise das contradições que se fazem presentes neste tipo peculiar de prática social que é o trabalho educativo. Contradições essas geradas pelas condições históricas objetivas que determinam tanto a produção quanto a apropriação do conhecimento na sociedade capitalista contemporânea. Uma análise dessas contradições que não seja distorcida por preconceitos antidialéticos chegará a uma conclusão aparentemente paradoxal: por um lado, a plena socialização do conhecimento científico, artístico e filosófico não poderá ser atingida pelo sistema educacional escolar no interior da sociedade capitalista; por outro, a superação da sociedade capitalista não pode prescindir da apropriação, pela classe dominada, dos conhecimentos que permitam a compreensão da dinâmica das relações sociais para além das aparências fetichistas e para além das ilusões tão largamente difundidas no cotidiano da sociedade atual. Afirmei, porém, que se trata de um aparente paradoxo. Ultrapassar essa aparência e compreender a dialética desse fenômeno só são possíveis situando-se essa questão no interior da totalidade da concepção marxista de história, de sociedade, de conhecimento e de ser humano. É preciso, por exemplo, entender-se a dialética entre objetivo e subjetivo, individual e coletivo, natural e social, material e não material etc. É preciso, principalmente, entender-se a dialética entre os processos de transformação das estruturas sociais mais amplas e as ações que ocorrem no dia a dia das escolas brasileiras. Igualmente é necessária a construção das mediações teóricas entre o campo dos estudos sobre os fundamentos filosóficos, históricos, sociológicos e psicológicos da educação e o campo dos estudos sobre questões pedagógicas específicas aos campos do currículo, da didática, dos métodos de ensino, dos recursos pedagógicos etc. Essas mediações teóricas são decisivas para uma correta compreensão das relações entre as lutas no campo da política educacional e seu impacto no dia a dia das escolas. Essas mediações teóricas são igualmente decisivas para uma análise crítica das pedagogias ideologicamente vinculadas – tenham ou não seus defensores consciência desse fato – à manutenção da sociedade burguesa; como é o caso das que tenho chamado “pedagogias do aprender a aprender”: o escolanovismo, o tecnicismo, o construtivismo, a pedagogia das competências, a pedagogia dos projetos, a pedagogia do professor reflexivo e o multiculturalismo, para mencionar apenas as principais. A hegemonia exercida por essas pedagogias tem seu fundamento último no fato de que elas remam a favor da maré das relações sociais alienadas. Mas uma autocrítica rigorosa revela que também tem contribuído para isso o desenvolvimento relativamente pequeno das análises teóricas marxistas no campo propriamente pedagógico. Muitos importantes pensadores marxistas têm se mostrado ao longo da história um tanto vulneráveis aos apelos sedutores dos discursos que se opõem à transmissão sistemática do conhecimento erudito pela educação escolar (SAVIANI & DUARTE, 2012). Soma-se a esse fenômeno uma desconfiança acentuada em relação tanto às práticasescolares de transmissão do conhecimento quanto à própria importância do conhecimento sistematizado para o processo revolucionário. Nesse contexto, a pedagogia histórico-crítica vê-se quase isolada, pois sofre ataques constantes tanto pelo lado das pedagogias pró-sistêmicas quanto pelo lado de correntes educacionais que se posicionam politicamente contra a sociedade capitalista, mas que adotam posições muito próximas as dos crítico-reprodutivistas ou fazem coro a ideias oriundas das pedagogias do aprender a aprender. Entendo que só há uma forma de a pedagogia histórico-crítica superar essa situação de quase isolamento: o desenvolvimento da teoria pedagógica de maneira que nossos aliados políticos na batalha pela superação do capitalismo sejam convencidos de que a luta pelo socialismo não logrará êxito, nem em termos de tomada do poder nem em termos de construção de uma nova sociedade, se não fizerem parte dessa luta conquistas substantivas no processo de universalização do conhecimento da natureza e da sociedade. Faz-se necessário um avanço coletivo mais decisivo na elaboração de um corpo teórico mediador entre o campo dos fundamentos da educação e o campo da construção de propostas pedagógicas concretas. É comum ouvir a interpretação de que as teorias educacionais críticas precisam passar da crítica para a ação, da teoria para a prática. Por sua vez, alguns educadores engajados com as teorias críticas tentam rebater tais acusações defendendo a necessidade da crítica para não se reproduzirem formas burguesas de educação e consideram a preocupação com a prática de sala de aula fruto de uma mentalidade pedagogizante e alienada. Esse é um debate equivocado desde seu princípio. O equívoco decorre de uma visão não dialética das relações entre teoria e prática. Em primeiro lugar, não se trata de uma relação linear, na qual a teoria deveria ser inteiramente desenvolvida para depois ser posta em prática. As necessidades da prática se impõem e exigem respostas. Além disso, a teoria também precisa de respostas da prática para poder avançar. Esse movimento dinâmico entre teoria e prática não pode, porém, significar aprisionamento de nenhuma delas. Nem a prática deve se estagnar em virtude do ritmo, por vezes, lento do processo de elaboração teórica; nem a teoria deve se adequar a uma lógica pragmática e imediatista, que tem por consequência a escolha de atalhos traiçoeiros que, entretanto, se mostram mais atraentes que o longo e, por vezes, penoso caminho da elaboração das necessárias abstrações teóricas. E, no campo da elaboração propriamente teórica, há necessidade de compreendermos as complexas relações entre a batalha ideológica contra as concepções adversárias e o trabalho sistemático de elaboração rigorosa da concepção que defendemos. Se não fizermos a crítica às concepções dominantes, corremos o risco de aderirmos aos seus princípios sem disso nos darmos conta. Em contrapartida, é preciso estar alerta para que essa crítica não se torne um exercício meramente acadêmico e autojustificador. Como Marx mostrou, a crítica à religião não era um fim em si mesma, mas deveria conduzir à crítica da sociedade e esta deveria estar a serviço da transformação prática da sociedade; da mesma forma, a crítica às pedagogias hegemônicas deve conduzir-nos à crítica das condições objetivas da educação escolar contemporânea e esta deve estar a serviço das práticas educativas comprometidas com a luta pelo socialismo, isto é, pela socialização da riqueza material e intelectual. O enfrentamento desses desafios requer um trabalho teórico de grande amplitude e profundidade, o que significa que deve ser uma empreitada assumida coletivamente. Como tem salientado inúmeras vezes Dermeval Saviani, a pedagogia histórico-crítica deve resultar de um esforço coletivo em várias direções e em diferentes campos. A forma pela qual este livro busca contribuir para esse esforço coletivo consiste na delimitação e na análise de categorias da concepção marxista do ser humano que possam se constituir em categorias básicas de uma teoria histórico-crítica da formação do indivíduo. A atividade educativa dirige-se sempre a um ser humano singular, o aluno; ela é dirigida por outro ser humano singular, o professor, e se realiza sempre em condições materiais e não materiais singulares. Ocorre que essa singularidade não tem uma existência independente da história. A formação de todo ser humano é sempre um processo que sintetiza de forma dinâmica um conjunto de elementos produzidos pela história. Em outras palavras, a singularidade de toda atividade educativa é sempre uma singularidade histórica e social. A pedagogia histórico-crítica precisa de uma teoria que explique as complexas mediações dialéticas entre a singularidade da formação de cada indivíduo e a totalidade da história do gênero humano. Gramsci (1995, p. 41) escreveu: “É um lugar comum a afirmação de que o homem não pode ser concebido senão vivendo em sociedade, todavia não se extraem de tal afirmação todas as consequências, inclusive individuais”. A construção de uma teoria marxista da formação social do indivíduo é um problema que diz respeito não apenas à pedagogia histórico-crítica, mas também a outros campos do conhecimento como, por exemplo, a psicologia. Paulo Silveira, na introdução a uma coletânea que leva por título Elementos para uma teoria marxista da subjetividade (SILVEIRA & DORAY, 1989, p. 11), afirma: É certo que a subjetividade e a questão mais ampla da individualidade foram tratadas, por parte das mais diversas correntes do pensamento, de uma forma geral, sob uma perspectiva hipostasiante1. Isso, contudo, está muito longe de justificar o abandono ou, melhor ainda, a supressão dessas questões no interior do pensamento marxista. Nessa mesma coletânea, Lucien Sève (1989, pp. 147-178) defende a necessidade de uma “ciência do singular”, voltada para o estudo da personalidade e da biografia. Do ponto de vista da relação entre a psicologia e a pedagogia, Saviani (2003, p. 81) afirma que “uma das limitações da contribuição da psicologia à educação está no fato de que a psicologia tem tratado principalmente do indivíduo empírico, não do indivíduo concreto”, explicando que o indivíduo concreto é “a síntese de inúmeras relações sociais”, ao passo que “o indivíduo empírico é uma abstração, pressupõe um corte onde se definem determinadas variáveis que são objetos de estudo”. A pedagogia histórico-crítica não pode deixar de elaborar sua concepção sobre formação da individualidade humana como parte constitutiva de seu corpo teórico. Isto é, não pode deixar de explicitar de forma coerente e sistemática em que consiste conceber o indivíduo como “síntese de inúmeras relações sociais”, pois, do contrário, não se obterá êxito na luta pela superação de dicotomias (entre social e individual, histórico e psicológico, objetivo e subjetivo, singular e universal) que estão arraigadas no senso comum pedagógico e que acabam atuando como um filtro que distorce a própria recepção dos fundamentos e das principais teses defendidas por essa corrente educacional. Enfatizo que se trata de um problema no campo da elaboração teórica ou, explicando melhor, da necessidade de elaboração de elementos teóricos mediadores imprescindíveis para a construção de propostas pedagógicas práticas dirigidas a sujeitos concretos, e não a sujeitos empíricos. Para agir com os indivíduos concretos, é necessária a mediação desses elementos teóricos que expliquem a dinâmica que resulta na “síntese de inúmeras relações sociais”. É um equívoco entender essa síntese como mero somatório de fatores isolados, e é igualmente equivocada a concepção da individualidade como resultante passiva das relações sociais. Para que possa compreender o aluno em sua concretude, o professor precisa da mediação de abstrações, pois aquela não se apresenta como decorrência imediata do fato de ele estar em contato com o aluno. Além disso,conhecer a concretude do indivíduo-aluno não se limita, no caso da atividade educativa, ao conhecimento do que o indivíduo é, mas também ao conhecimento do que ele pode vir a ser. Esse conhecimento, por seu lado, implica um posicionamento em favor de algumas possibilidades desse vir a ser e, consequentemente, contra outras. Na medida em que situei este trabalho na perspectiva da construção da pedagogia histórico-crítica, o desenvolvimento do indivíduo como síntese de inúmeras relações sociais precisa ser concebido como um processo situado no interior de outro, o do desenvolvimento histórico do ser humano como um ser social. Com esse pressuposto, delimitei as seguintes categorias básicas para a reflexão sobre o processo de formação do indivíduo: objetivação e apropriação, que expressam a dinâmica do processo pelo qual o ser humano se autoconstrói ao longo da história; humanização e alienação, que expressam o caráter contraditório com que os processos de objetivação e apropriação têm se realizado no processo histórico marcado pela luta de classes; gênero humano, que expressa o resultado da história social humana, da história da atividade objetivante dos seres humanos (a formação do indivíduo é a formação do homem singular como um ser genérico, um ser pertencente ao gênero humano); individualidade para si, que expressa no âmbito da formação do indivíduo um processo de desenvolvimento que se inicia pela síntese espontânea das relações sociais (a individualidade em si) rumo a uma síntese consciente das relações sociais (a individualidade para si). Assim, no primeiro capítulo, analiso a dialética entre objetivação e apropriação como dinâmica essencial da autoprodução do ser humano por meio da atividade vital humana, o trabalho. Numa primeira aproximação, a objetivação pode ser entendida como o processo por intermédio do qual a atividade do sujeito se transforma em propriedades do objeto. A atividade do marceneiro transmuta-se em características de um armário, de uma mesa ou de uma cadeira; a atividade do escritor transforma-se em um livro; a de um pintor, em um quadro; a de um professor, em uma aula. Esses exemplos já permitem notar que a atividade que se transfere do sujeito para o objeto é tanto física como mental. Também é possível constatar que o produto resultante da objetivação pode ser um objeto material ou não material. Por exemplo, no caso do livro, embora ele possua necessariamente algum suporte material (papel e tinta no caso do livro impresso, som no caso do audiolivro e mídia eletrônica no caso do livro digital), não é esse suporte que o define como livro, mas, sim, seu conteúdo ideal, ou seja, não material. O processo de objetivação resulta em produtos sociais, sejam eles materiais ou não. A categoria de apropriação refere-se ao processo inverso, ou seja, à transferência, para o sujeito, da atividade que está contida no objeto. Quando alguém aprende a usar uma ferramenta, está se apropriando da atividade social acumulada no objeto. Na maior parte dos casos, o indivíduo deverá se apropriar da atividade de uso do objeto, mas em alguns casos será necessária a apropriação da atividade de produção do objeto. Rigorosamente falando, poderia ser usado o termo “subjetivação” em vez de “apropriação”, pois se trata de incorporação de atividade humana às características do sujeito. Mas preferi usar o termo “apropriação” por causa das possíveis ressonâncias subjetivistas que poderiam resultar do uso da palavra “subjetivação”. A dialética entre objetivação e apropriação faz-se presente na teoria marxista na concepção de trabalho como atividade que, em sua forma primeira e fundamental, se apresenta como transformação da natureza. Nessa atividade, os seres humanos apropriam-se da natureza e objetivam-se nos produtos do trabalho. Para que isso ocorra, é necessária, entretanto, a apropriação prévia das forças produtivas já existentes na sociedade. A dialética entre objetivação e apropriação é essencial para compreender-se a relação entre o desenvolvimento histórico da humanidade e o desenvolvimento do indivíduo. Marx e Engels (2007, pp. 33; 87), em A ideologia alemã, consideraram a produção dos meios da existência humana como o traço fundamental que diferenciou os seres humanos dos animais, definindo tal produção como o “primeiro ato histórico”. Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx (1978, p. 41) já havia escrito que o ato de nascimento do ser humano é a história e que esse ato do nascimento é um ato que se supera. Isso significa que o ser humano, ao produzir, pela atividade de trabalho, as condições de sua existência, ao transformar a natureza, se apropria dela e se objetiva nela. Essa apropriação e essa objetivação geram novas necessidades humanas e conduzem a novas formas de ação, num constante movimento de superação por incorporação. Cada indivíduo nasce situado espacial e temporalmente nesse processo e, para dele participar, isto é, para se objetivar no interior dele, precisa se apropriar das objetivações (neste caso entendidas como os produtos da atividade objetivante humana, resultados do processo histórico de objetivação). No segundo capítulo, analiso o caráter contraditoriamente humanizador e alienador com que se têm efetivado a objetivação e a apropriação dos seres humanos, uma vez que esses processos têm se realizado nas circunstâncias da luta de classes. A humanização avança à medida que a atividade social e consciente produz objetivações que tornam possível uma existência humana cada vez mais livre e universal. Entretanto, a produção dessas objetivações e das possibilidades de universalidade e liberdade nelas contidas objetivamente não implica necessariamente, na sociedade de classes, maior liberdade e universalidade na vida dos indivíduos. O trabalho de milhões de seres humanos tem possibilitado que objetivações humanas como a ciência e a produção material gerassem, nos dois últimos séculos, possibilidades de existência livre e universal sem precedentes na história humana. Isso, porém, tem se realizado de forma contraditória, pois essas possibilidades têm sido geradas à custa da miséria, da fome, da ignorância, da dominação e mesmo da morte de milhões de seres humanos. Nunca o ser humano conheceu tão profundamente a natureza e nunca a utilizou tão universalmente, mas também nunca esteve tão próximo da destruição total da natureza e de si próprio. O caráter contraditoriamente humanizador e alienador com que a objetivação do ser humano se realiza no interior das sociedades de classe tem implicações importantes no que diz respeito à formação da individualidade. Por um lado, a formação do indivíduo como um ser humano não pode se realizar sem a apropriação das objetivações produzidas ao longo da história social, mas, por outro lado, essa apropriação também é a forma pela qual se reproduz a alienação decorrente da luta de classes. Não está, porém, determinado de forma absoluta, nas próprias objetivações, se elas terão uma função predominantemente humanizadora ou alienadora na formação do indivíduo. Um exemplo nesse sentido é a religião, que é uma forma de objetivação essencialmente alienadora, pois na religião o ser humano cria um ser imaginário, Deus, e se submete a ele. Mas, a despeito dessa essência alienadora, algumas religiões tiveram na história humana, em determinados momentos e contextos históricos, um papel social relativamente progressista. Além disso, uma religião pode ter um papel relativamente positivo na vida de um determinado indivíduo quando, por exemplo, ela possibilita ao sujeito o contato com objetivações artísticas e filosóficas às quais ele não teria acesso por outros meios; ou, então, quando a religião insere o indivíduo em relações sociais que lhe abram possibilidades de participação em ações coletivas até certo ponto contestadoras de determinadas relações sociais de dominação. Esse efeito relativamente positivo poderá permanecer dentro dos limitesalienantes que a crença religiosa impõe à vida dos seus seguidores ou poderá promover o aguçamento de contradições que levem o indivíduo a superar a visão religiosa de mundo. Para não haver dúvidas quanto ao exemplo que estou apresentando, esclareço que entendo ser a religião uma objetivação alienadora em sua essência que, entretanto, pode desempenhar, de forma circunstancial e relativa, um papel positivo na formação do indivíduo. Não se trata da equivocada ideia de que a formação religiosa seja uma etapa necessária na formação dos seres humanos ou da ideia ainda mais equivocada de que a “espiritualidade” seja uma das dimensões necessárias à vida humana. Um exemplo oposto seria o da ciência como uma objetivação essencialmente humanizadora que, entretanto, como já foi dito, tem tornado possível a máxima alienação que é a autodestruição da humanidade. Se a apropriação de um determinado tipo de objetivação desempenhará, na formação do indivíduo, uma função primordialmente humanizadora ou alienadora é uma questão que depende de um complexo e dinâmico conjunto de relações presentes na atividade apropriadora e mais amplamente no conjunto das relações sociais nas quais o indivíduo está inserido. Assim como a humanidade não pode se desenvolver sem se objetivar, o que gera a possibilidade da alienação dos seres humanos perante as objetivações, também os indivíduos não podem se objetivar sem a apropriação das objetivações existentes na sociedade; eles não podem “sentir, pensar, avaliar, agir” (SAVIANI, 2003, p. 7), de forma humana, sem a apropriação das formas historicamente produzidas de “sentir, pensar, avaliar, agir”. Não há outra possibilidade de formação do indivíduo humano, não há outro caminho para o processo individual de humanização. Se esse caminho é o que também reproduz a alienação, a solução não está em negar que a objetivação e a apropriação sejam humanizadoras, mas, sim, em superar suas formas alienadas. Essas duas relações dialéticas (entre objetivação e apropriação e entre humanização e alienação) diferenciam qualitativamente a formação da individualidade humana da ontogênese nos outros animais. Segundo Luria (1979, p. 50), os vertebrados superiores, isto é, os vertebrados terrestres, possuem a capacidade de desenvolver comportamentos individualmente variáveis, capacidade essa que se mostra de maneira particularmente acentuada nos mamíferos superiores. Esses comportamentos resultam da interação entre, por um lado, as características fundamentais da espécie, que são transmitidas por hereditariedade, e, por outro, as condições ambientais variáveis, particulares. Cada animal tem que se adaptar a essas condições particulares desenvolvendo adequadamente aquilo que herdou da espécie. No caso do ser humano, os processos de objetivação e apropriação não são mediadores entre o indivíduo e a espécie humana, pois a relação com a espécie se realiza da mesma forma que com os outros animais, isto é, pela transmissão genética. Mas o mecanismo biológico da hereditariedade não transmite aos indivíduos as características que permitirão considerá-lo efetivamente um ser humano. Isso significa que não é a espécie que contém essas características, não é na espécie que as características humanas possuem uma existência objetiva. A objetividade das características humanas historicamente formadas constitui o gênero humano. Assim, no terceiro capítulo, analiso a formação do indivíduo como um duplo processo de relacionamento com o gênero humano, isto é, a apropriação das características humanas objetivadas e a objetivação individual mediada pelo que foi apropriado. A categoria histórica de gênero humano engloba a categoria biológica de espécie humana, mas vai além dela, da mesma forma que a vida social incorpora a vida biológica, mas a supera. A categoria de gênero humano sintetiza os resultados da autoconstrução humana e não se reduz àquilo que é comum a todos os seres humanos, não é uma mera generalização de características empiricamente verificáveis em todo e qualquer indivíduo. Gênero humano é uma categoria que expressa a riqueza cultural humana em sua totalidade. A linguagem, por exemplo, é uma objetivação do gênero humano, uma objetivação genérica. Todos os seres humanos têm que se apropriar dessa objetivação genérica para poder viver. A linguagem escrita também é uma objetivação genérica, mas, na sociedade brasileira, muitos indivíduos, em decorrência das desigualdades sociais, passam toda a sua vida sem se apropriar dessa objetivação e de todas as outras que exigem a mediação dela. A formação de um indivíduo, (o desenvolvimento de sua personalidade) é, ao mesmo tempo, o seu desenvolvimento como ser social, alguém que faz parte de uma determinada sociedade, e como ser genérico, alguém que faz parte do gênero humano. Contudo, na história humana até o presente, a formação da socialidade tem significado a formação do indivíduo para uma posição no interior da divisão social do trabalho, o que implica o cerceamento da formação do indivíduo como um ser genérico, um representante do gênero humano. A individualidade não se forma a não ser pela formação da pessoa como um ser social, mas, quando se trata de uma sociedade dividida em classes, a socialidade necessariamente carrega consigo a alienação, em graus maiores ou menores. Lutar contra a alienação é lutar por reais condições para todos os seres humanos de desenvolvimento da individualidade à altura das máximas possibilidades objetivamente existentes para o gênero humano. Isso já remete para o quarto e último capítulo deste livro, voltado para a análise da categoria de indivíduo para si. Compreender a individualidade humana de forma histórica não é apenas explicar por que os indivíduos são desta ou daquela maneira. Como diz Gramsci (1995, p. 38), Se observarmos bem, veremos que – ao colocarmos a pergunta “o que é o homem” – queremos dizer: o que é que o homem pode se tornar, isto é, se o homem pode controlar seu próprio destino, se ele pode “se fazer”, se ele pode criar sua própria vida. A categoria de indivíduo para si sintetiza as possibilidades máximas de desenvolvimento livre e universal da individualidade. Ao mesmo tempo em que a sociedade capitalista produz as condições necessárias ao desenvolvimento livre e universal dos indivíduos, antepõe a esse desenvolvimento barreiras gigantescas, que só poderão ser superadas com o fim das classes sociais. Conforme argumenta Marx (2011) nos Grundrisse, no início do processo histórico, a individualidade mostrava-se muito pouco desenvolvida; ela foi sendo construída a partir do desenvolvimento das forças produtivas de tal forma que, no capitalismo, se formaram as condições objetivas e subjetivas da individualidade livre e universal (ainda que pela forma alienada de universalização da relação mercantil). A luta pela superação do capitalismo exige, entre outras coisas, a luta pela realização, no interior dessa sociedade alienada, das possibilidades máximas de desenvolvimento da individualidade para si. Nesse sentido, essa categoria, como síntese das máximas possibilidades de formação dos seres humanos, pode ser tomada como um ponto de referência para a análise da individualidade concreta de cada pessoa. A formação do indivíduo para si é a formação do indivíduo como uma pessoa que faz de sua vida uma relação consciente com o gênero humano. Essa relação concretiza-se por meio dos processos de objetivação e apropriação que, na formação do indivíduo para si, se tornam objeto de constante questionamento, de constante desfetichização. A formação do indivíduo para si é a formação de um posicionamento sobre o caráter humanizador ou alienador dos conteúdos e das formas de suas atividades objetivantes, o que implica a formação de igual posicionamento em relação aos conteúdos das objetivações das quais ele se apropria e das formas pelas quais se realizam essas apropriações. Para concluir esta apresentação, devo fazeralguns esclarecimentos sobre a relação entre certos aspectos da maneira de exposição que adotei neste livro e o objetivo de contribuir para a formação humana numa perspectiva histórico-crítica. O primeiro esclarecimento é relativo à opção por uma exposição que reproduzisse o caráter processual e não linear da construção de uma teoria da formação do indivíduo fundamentada no materialismo históricodialético. Almejo que a própria leitura deste trabalho seja momento pedagógico de difusão de uma forma de pensar materialista, histórica e dialética. Assim, a divisão do livro em capítulos que têm como objeto determinadas categorias não significa que seja possível compreender todo o significado das categorias lendo-se apenas o capítulo destinado a uma delas. Este livro não é uma reunião de capítulos independentes, nem uma mera adição de categorias estáticas, mas um todo composto de muitas relações, cujas partes se esclarecem reciprocamente. Optei, portanto, pela análise em espiral, isto é, as categorias analisadas em cada capítulo vão sendo incorporadas à análise de outras categorias, nos capítulos subsequentes, já que, nesse processo, as próprias categorias que haviam sido analisadas em capítulos anteriores não permanecem imutáveis, sendo cada vez mais esclarecidas e enriquecidas. Por exemplo, as categorias de objetivação e apropriação, que são analisadas no primeiro capítulo, tornam-se mais concretas e ricas ao serem incorporadas à análise da relação entre humanização e alienação, no segundo capítulo. Um segundo aspecto relativo à forma de exposição é a opção por não apenas apresentar ao leitor o produto dos meus estudos, mas também colocá-lo, até onde é possível, em contato com os autores de cujo pensamento procurei me apropriar (no sentido que aqui dou ao termo). Em outras palavras, optei intencionalmente por correr o risco de perder leveza e fluidez no estilo de escrita em favor de uma finalidade pedagógica: a de compartilhar o estudo das obras utilizadas neste trabalho, não apenas citando-as, mas principalmente apresentando ao leitor a maneira como as leio e interpreto. Assim, lancei mão de um número talvez excessivo de citações, e também de citações bastante longas2. Para ilustrar, minha intenção foi trazer o leitor para minha mesa de estudo e analisar passagens que esclarecem e fundamentam meu raciocínio. Porém, talvez o risco maior desse procedimento não seja o de prejudicar o estilo da exposição, mas, sim, o de usar as citações e o pensamento de outros autores como camuflagem e legitimação de minhas próprias concepções e de meus próprios objetivos. Esse fenômeno foi caracterizado por Marx (1978, p. 329) da seguinte maneira: Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada. […] o principiante que aprende um novo idioma traduz sempre as palavras desse idioma para a sua língua natal; mas, só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela. Espero não estar distorcendo as ideias de Marx, generalizando essa passagem para a questão mais ampla das relações entre a apropriação do que já existe e a transformação da realidade. Por um lado, tanto no pensamento quanto na ação, não se cria o novo sem a apropriação do já existente. Não se podem criar novas ideias do nada, é preciso trabalhar a partir das ideias existentes. Isso não é negativo, ao contrário, é uma característica humana muito importante (poder partir da atividade das gerações passadas). Mas, por outro lado, isso também pode cercear a criação do novo, oprimir o pensamento como um pesadelo. E pode também ser usado pelas pessoas para legitimar suas atividades e camuflar o significado objetivo que elas têm no contexto de sua realização. Não há como fugir ao risco, é preciso ter consciência de sua existência, além de estar alerta para perceber quando a erudição, em vez de enriquecer o pensamento, passa a imobilizá-lo. O tipo de estudo que apresento não seria, porém, demasiadamente abstrato e distante da realidade escolar enfrentada diariamente por professores e alunos em nosso país? Não cabe a mim como autor dizer se esta obra tem algo realmente significativo a oferecer aos que trabalham com a formação das novas gerações, embora, obviamente, essa seja minha expectativa. Mas, se essa expectativa não se confirmar, será por falhas e equívocos do meu pensamento e pelo fato de a análise ser abstrata. A realidade não se apresenta ao pensamento de forma imediata. É preciso ir além das aparências e, para tanto, são necessárias as abstrações. A análise que trabalha com as abstrações faz um movimento de momentâneo afastamento da realidade para depois a ela retornar, já dispondo, então, dos conceitos necessários à compreensão dos processos essenciais. Ao justificar as dificuldades que o leitor poderia encontrar ao lidar com o primeiro capítulo de O capital, Marx (1983, p. 12) explicou a necessidade das abstrações: na análise das formas econômicas não podem servir nem o microscópio nem reagentes químicos. A faculdade de abstrair deve substituir ambos. Para a sociedade burguesa, a forma celular da economia é a forma de mercadoria do produto do trabalho ou a forma do valor da mercadoria. Para o leigo, a análise parece perder-se em pedantismo. Trata-se, efetivamente, de pedantismo, mas daquele de que se ocupa a anatomia microscópica. Por isso, com exceção da parte relativa à forma do valor, não se poderá acusar este livro de ser de difícil compreensão. Pressuponho, naturalmente, leitores que queiram aprender algo de novo e queiram, portanto, também pensar por conta própria. Mas percorrer o caminho das abstrações teóricas para alcançar-se uma compreensão aprofundada e crítica da realidade não é um percurso fácil, não é como passear pelo parque num belo domingo pela manhã. Assemelha-se mais à escalada de uma íngreme montanha, sujeita também a adversidades climáticas. No prefácio à edição francesa de O capital, Marx (idem, p. 23) saudou a iniciativa de publicação da obra em fascículos, o que facilitaria o acesso a esta pelo operariado, mas ponderou que isso também poderia ter um lado negativo: o método que utilizei e que ainda não havia sido aplicado aos assuntos econômicos torna bastante árdua a leitura dos primeiros capítulos, e é de se temer que o público francês, sempre impaciente em chegar às conclusões e ávido em conhecer a conexão entre os fundamentos gerais e as questões imediatas que o apaixonam, venha a desanimar em prosseguir a leitura porque tudo não se encontra logo no começo. Essa é uma desvantagem contra a qual nada posso fazer, exceto prevenir e acautelar os leitores sequiosos da verdade. Não há entrada já aberta para a ciência e só aqueles que não temem a fadiga de galgar suas escarpas abruptas é que têm a chance de chegar a seus cimos luminosos. Não posso afiançar que com a leitura desta obra o leitor alcançará “cimos luminosos”, mas posso dizer que eu os tenho alcançado ao estudar o pensamento dos autores que procurei incorporar a este trabalho. Espero que a leitura deste livro estimule o leitor a buscar seus próprios caminhos para essa jornada do pensamento em busca da compreensão da formação dos seres humanos. 1 2 Essa perspectiva hipostasiante da subjetividade e da individualidade realiza o “fetichismo da individualidade”(DUARTE, 2004). São de minha responsabilidade as traduções de citações extraídas de edições estrangeiras. capítulo 1 A dialética entre objetivação e apropriação Meu propósito neste capítulo é o de mostrar que a relação entre os processos de objetivação e apropriação constitui a dinâmica fundamental da formação do gênero humano e dos indivíduos. Com essa finalidade, dividi este capítulo em dois itens. No primeiro, parto da análise realizada por Marx (2004), nos Manuscritos econômico- filosóficos, a respeito do trabalho como atividade vital humana, que diferencia os seres humanos dos outros animais, para mostrar que a característica central dessa atividade reside justamente na relação dialética entre os processos de objetivação e apropriação e que essa relação é geradora do processo histórico de formação do gênero humano. Ainda que Marx e Engels (2007) não utilizem, em A ideologia alemã, a expressão “atividade vital”, a análise que eles ali fazem do que seja o processo histórico expressa a mesma concepção da origem desse processo na atividade de produção dos meios de satisfação das necessidades humanas; ou seja, no trabalho, como atividade especificamente humana. No segundo item deste capítulo, analiso a dialética entre objetivação e apropriação como dinâmica do processo de formação do indivíduo como um ser histórico e social. Procuro mostrar a importância da compreensão dessa dinâmica para a concepção marxista da individualidade, que supera as análises da ontogênese humana fundamentadas tanto no modelo biológico de interação entre organismo e meio ambiente quanto em modelos sociológicos reducionistas que concebem o indivíduo como resultante passiva de um conjunto de fatores sociais. A relação entre objetivação e apropriação: dinâmica própria da atividade vital humana e geradora do processo histórico Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx (2004, p. 84) distingue o ser humano dos demais animais por meio das características próprias da “atividade vital” humana, que é o trabalho. A centralidade da atividade vital para o desenvolvimento dos seres humanos é o que torna tão problemática a inversão produzida pela alienação do trabalho, que transforma essa atividade em simples meio de sobrevivência do indivíduo, em vez de se constituir na atividade que o humaniza. Dessa maneira, por causa da sociedade capitalista: o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva mesma aparece ao homem apenas como um meio para a satisfação de uma carência, a necessidade de manutenção da existência física. A vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a vida engendradora de vida. No modo (Art) da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de uma species, seu caráter genérico, e a atividade consciente é o caráter genérico do homem. [Na sociedade capitalista:] A vida mesma aparece como meio de vida [idem, ibidem, intervenção nossa entre colchetes]. A atividade vital é antes de tudo aquela que reproduz a vida, é aquela que toda espécie animal (e também o gênero humano) precisa realizar para existir e para reproduzir a si própria como espécie. A atividade vital é a base a partir da qual cada membro de uma espécie reproduz a si próprio como ser singular e, em consequência, reproduz a própria espécie. No caso do ser humano, a mera sobrevivência física dos indivíduos e sua reprodução biológica por meio do nascimento de seres humanos asseguram a continuidade da espécie biológica, mas não asseguram a reprodução do gênero humano, com suas características historicamente constituídas. O trabalho, como atividade vital humana, não é apenas uma atividade que assegura a sobrevivência do indivíduo que a realiza e de outros imediatamente próximos a ele, mas uma atividade que assegura a existência da sociedade. Essas duas funções da atividade vital humana, assegurar a existência individual e assegurar a existência da sociedade, tornam-se, na sociedade capitalista, funções alienadamente separadas e até antagônicas. Marx mostra que, nas relações sociais capitalistas, nas quais o trabalho, atividade vital, é transformado em mercadoria, essa atividade não se apresenta ao indivíduo como aquilo que ela deveria ser, a principal forma de objetivação e desenvolvimento de sua individualidade humana. O trabalho alienado não deixa de ser uma atividade objetivante, no entanto, na condição de atividade transformada em mercadoria, sua realização tem para o trabalhador não o sentido de sua objetivação como ser humano, mas, sim, o sentido de um meio (o único) que ele tem para assegurar sua existência. Nas palavras de Marx (idem, ibidem), o trabalho alienado aliena o trabalhador “de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital” e “faz-lhe da vida genérica apenas um meio da vida individual”. Para Marx, a atividade vital humana não é apenas uma atividade que assegura a existência física do indivíduo, mas aquela que reproduz as características fundamentais do gênero humano. Na medida, porém, em que o trabalhador, para poder sobreviver, tem como única alternativa a venda de sua força de trabalho, de sua atividade vital, esta se transforma em meio para satisfazer uma única necessidade, a de sobrevivência. Mas a atividade vital humana se caracteriza, em sua essência, por ser uma atividade que reproduz o ser humano como ser genérico, o qual se distingue dos animais por possuir uma atividade vital livre e consciente: O animal é imediatamente um com sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade (Bestimmtheit) com a qual ele coincide imediatamente. A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal. Justamente, [e] só por isso, ele é um ser genérico. Ou ele somente é um ser consciente, isto é, sua própria vida lhe é objeto, precisamente porque é um ser genérico. Eis porque a sua atividade é livre [idem, ibidem]. Entretanto, na sociedade capitalista, o indivíduo trabalhador tem que vender sua atividade vital para obter o salário sem o qual ele não pode sobreviver. Esse ato de venda da sua atividade vital a aliena do próprio trabalhador e, nesse sentido, o trabalho alienado “inverte a relação, a tal ponto que o homem, precisamente porque é um ser consciente, faz da sua atividade vital, da sua essência, apenas um meio para a sua existência” (idem, p. 85). É importante, porém, distinguir duas coisas. Uma delas é essa forma de alienação da atividade vital: sua redução, para o trabalhador, a um meio de satisfação de uma única necessidade, a da sua existência física. A outra é que a produção das condições materiais da vida humana constitui a base indispensável da própria história humana e, nesse sentido, é uma característica fundamental da atividade vital humana. A universalidade do trabalho foi claramente explicitada por Marx (1983, p. 149) em O capital: o processo de trabalho deve ser considerado de início independentemente de qualquer forma social determinada. Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio domínio. Nesse sentido, a atividade vital deve assegurar, antes de tudo, as condições materiais da existência do gênero humano. Sem isso, não há história. Essa produção não apenas constitui a indispensável base material da vida em sociedade,como também gera a dinâmica fundamental do processo histórico de desenvolvimento do gênero humano, isto é, a relação entre objetivação e apropriação. Se a atividade vital é aquela que, em primeiro lugar, assegura a existência de cada espécie animal, ela é, antes de tudo, uma forma de relacionamento entre a espécie e o restante da natureza. Na condição de ser vivo, o ser humano precisa garantir, por meio de sua atividade, aquilo de que seu organismo necessita para sobreviver. Esse ponto de partida da história humana foi destacado por Marx e Engels (2007, pp. 32-33) em A ideologia alemã: devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm que estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos. Essa afirmação pode parecer uma obviedade, mas essa impressão se desfaz quando é analisado o significado metodológico que ela assume na concepção marxista da história humana. O ser humano não se distingue dos animais simplesmente pelo fato de ter que realizar uma atividade que assegure sua sobrevivência. O que é próprio ao ser humano é a maneira como ele reproduz sua vida. Nesse ponto, começam as diferenças entre a atividade vital humana e a atividade vital de outros animais. Para assegurar sua sobrevivência, o ser humano realiza o primeiro ato histórico, o ato histórico fundamental, isto é, ele produz os meios que permitem a satisfação de suas necessidades básicas. Isso significa que a atividade vital humana, já nas suas formas elementares, não se caracteriza pelo simples consumo dos objetos que satisfaçam necessidades, mas, sim, pela produção de meios que possibilitem essa satisfação. Ou seja, o ser humano, para satisfazer suas necessidades, cria uma realidade humana, o que significa a transformação tanto da natureza quanto do próprio ser humano. Somos seres naturais, fazemos parte da natureza pelo simples e incontornável fato de que somos seres vivos. Mas a natureza humana não é fruto pura e simplesmente da natureza, é fruto também da sociedade, da cultura, da experiência historicamente acumulada: O homem, no entanto, não é apenas ser natural, mas ser natural humano, isto é, um ser que é para si próprio e, por isso, ser genérico, que enquanto tal deve atuar e confirmar-se tanto em seu ser como em seu saber. Por conseguinte, nem os objetos humanos são os objetos naturais tais como se oferecem imediatamente, nem o sentido humano, tal como é imediata e objetivamente, é sensibilidade humana, objetividade humana. Nem objetiva nem subjetivamente está a natureza imediatamente presente ao ser humano de modo adequado. E como tudo o que é natural deve nascer, assim também o homem possui seu ato de nascimento: a história, que, no entanto, é para ele uma história consciente, e que, portanto, como ato de nascimento acompanhado de consciência é ato de nascimento que se supera [MARX, 1978, p. 41]. O ser humano, ao produzir os meios para a satisfação de suas necessidades básicas de existência, ao produzir uma realidade humanizada pela sua atividade, humaniza a si próprio, posto que a transformação objetiva é acompanhada da transformação subjetiva. A atividade de trabalho cria, portanto, uma realidade humanizada tanto objetiva quanto subjetivamente. Ao se apropriar da natureza, transformando-a para satisfazer suas necessidades, o ser humano objetiva-se nessa transformação. Por sua vez, essa atividade humana objetivada nos produtos e fenômenos culturais passa a ser ela também objeto de apropriação, isto é, o ser humano deve se apropriar daquilo que de humano ele criou. Tal apropriação gera nele necessidades humanas de novo tipo, que exigem nova atividade, num processo sem fim. No meu entender, esse é o significado da expressão “um ato de nascimento que se supera”. De certa forma, o consumo de um objeto natural por um animal não deixa de ser um ato de apropriação. Quando o animal se alimenta de um vegetal ou quando um pássaro utiliza algo para construir seu ninho, está sendo realizado um ato de apropriação. Há, porém, uma diferença qualitativa entre esse ato elementar e a apropriação que o ser humano realiza por meio da atividade vital. Mesmo quando a apropriação animal se caracteriza pela produção de algo, por uma forma elementar de objetivação, esse processo não se realiza como um processo gerador de uma realidade qualitativamente nova, enquanto um processo gerador de história. Isso porque essas formas animais elementares de objetivação e apropriação são determinadas e limitadas pelo organismo do animal, isto é, pela objetividade biológica da espécie, que lhe é transmitida geneticamente em seu organismo. Daí Marx (2004, p. 85) afirmar que: É verdade que também o animal produz. Constrói para si um ninho, habitações, como a abelha, castor, formiga etc. No entanto, produz apenas aquilo de que necessita imediatamente para si ou sua cria; produz unilateral[mente], enquanto o homem produz universal[mente]; o animal produz somente sob o domínio da carência física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da carência física, e só produz, primeira e verdadeiramente, na [sua] liberdade [com relação] a ela; o animal só produz a si mesmo, enquanto o homem reproduz a natureza inteira; [no animal,] o seu produto pertence imediatamente a seu corpo físico, enquanto o homem se defronta livre[mente] com o seu produto. O animal forma apenas segundo a medida e a carência da species à qual pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer species, e sabe considerar, por toda a parte, a medida inerente ao objeto; o homem também forma, por isso, segundo as leis da beleza. No segundo capítulo, voltarei à questão da universalização crescente do ser humano ao longo da história. Por ora desejo frisar que o impulso à universalização já se faz presente na forma de trabalho mais elementar, posto que o trabalho gera a possibilidade do ser humano agir para além dos limites das necessidades imediatas de seu organismo. A diferença entre a produção animal e a humana mostra-se particularmente clara quando se analisa, por exemplo, a atividade de produção de instrumentos, que é tanto um processo de apropriação da natureza pelo ser humano como um processo de sua objetivação. Adiante mostrarei que a objetivação humana não se reduz à produção de objetos materiais, que ela também se realiza de outras formas, como, por exemplo, a produção da linguagem. A transformação dos objetos naturais em instrumentos, em meios da ação humana, é o melhor exemplo de apropriação da natureza pelo ser humano. Um instrumento é não apenas algo que as pessoas utilizam em sua ação, mas algo que passa a ter uma função social, uma significação que é dada pela atividade social. O instrumento é, portanto, um objeto que é transformado para servir a determinadas finalidades no interior da prática social. O ser humano cria novo significado para o objeto. Mas essa criação não se realiza de forma arbitrária. Em primeiro lugar, porque o ser humano precisa conhecer a natureza do objeto para poder adequá-lo às suas finalidades. Ou seja, para que o objeto possa ser transformado e inserido na “lógica” da atividade humana, é preciso que o ser humano se aproprie de sua “lógica” natural. Em segundo lugar, a transformação de um objeto em instrumento não pode ser arbitrária porque um objeto só pode ser considerado um instrumento quando possui uma função no interior da prática social. Isso é válido mesmo parao caso de certas invenções cujo uso só se torna possível tempos após sua criação, por não existirem naquele momento as condições necessárias para que a prática social incorporasse a invenção. Há, portanto, uma relação dialética entre o que é o objeto em seu estado natural e o que ele passa a significar na prática social. Para poder transformar um objeto físico natural em um instrumento, o ser humano deve levar em conta, isto é, conhecer, as características físico-naturais do objeto, ao menos aquelas diretamente relacionadas às funções que terá o instrumento. Mesmo nos primórdios da evolução humana, quando os instrumentos ainda eram muito primitivos, como a pedra lascada, era necessário certo grau de conhecimento objetivo das propriedades dos objetos e fenômenos da natureza para que fosse possível colocar tais objetos e fenômenos a serviço da satisfação das necessidades humanas. Em outras palavras, para transformar a natureza em natureza humanizada, era preciso adquirir algum conhecimento do que a natureza é em si mesma. Nessa perspectiva, pode-se dizer que foi a produção de instrumentos que fez surgir algo que até então não existia: a relação entre sujeito e objeto. É nesse sentido que Marx afirmou que o animal e sua atividade são uma coisa só. Na atividade animal, não há a relação entre sujeito e objeto. Para produzir instrumentos, entretanto, o ser humano precisou distinguir o que o objeto é para ele e o que o objeto é independentemente dele, ser humano1. É claro que a afirmação de que a inserção da natureza na prática social exige um certo grau de conhecimento da natureza em si mesma deve ser entendida historicamente, ou seja, como um processo em cujo início esse conhecimento do objeto em si mesmo está indissociavelmente ligado à sua utilidade prática para os seres humanos. Estes tentam usar, por exemplo, um tipo de madeira para determinada finalidade, e o resultado positivo ou negativo lhes fornece uma informação sobre o objeto em si. Só que essa informação aparece, de início, em decorrência da tentativa de inserção do objeto numa determinada ação humana, isto é, da tentativa de apropriação do objeto. Com o desenvolvimento social, o conhecimento foi adquirindo autonomia em relação à utilidade prática dos objetos. A ciência, por exemplo, permite cada vez mais conhecer a natureza na sua dinâmica própria, interna, a qual, em sua origem, não resulta da atividade humana, ou seja, não resulta de nenhuma forma de consciência. O aspecto que estou procurando destacar é o de que a apropriação de um objeto natural pelo homem, que o transforma em seu instrumento, nunca pode se realizar independentemente das condições objetivas originais desse objeto, ainda que estas venham a sofrer enormes transformações qualitativas, gerando fenômenos sem precedentes na história natural. O objeto, portanto, não é totalmente subtraído de sua lógica natural, mas esta é inserida na lógica da prática social. O ser humano não produz e reproduz sua realidade sem apropriar-se da realidade natural. Ocorre que essa apropriação não se realiza sem a atividade humana, seja a de utilização do objeto como um meio para alcançar uma finalidade consciente, seja a de transformação do objeto, para que ele possa servir mais adequadamente às novas funções que passará a ter, ao ser inserido na atividade social. O objeto em seu estado natural é resultante da ação de forças físico-químicas e, dependendo do objeto, de forças biológicas. Como instrumento, ele passará a ser resultante também da atividade consciente. O ser humano cria uma nova função para aquele objeto – o que pode acontecer de forma deliberada ou, de início, até mesmo de forma acidental – e busca, por meio de sua atividade, obrigar o objeto a assumir as feições e características desejadas. O objeto, ao ser transformado em instrumento, passa a ser uma objetivação2, pois o ser humano objetivou-se nele, transformou-o em objeto humanizado, portador de atividade humana. Isso não quer dizer apenas que o objeto sofreu a ação humana, o que em nada distinguiria esse processo do fato de que o objeto em seu estado natural resulta da ação das forças naturais. A questão fundamental é que, ao sofrer a ação humana, o objeto passa a ter novas funções, isto é, passa a ser portador de funções sociais. Foi a atividade de trabalho que gerou um fenômeno inexistente antes do aparecimento da espécie humana: surgem objetos cuja existência objetiva é precedida de sua existência na consciência. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é exigida a vontade orientada a um fim, que se manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho, e isso tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo próprio conteúdo e pela espécie e modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos ele o aproveita, como jogo de suas próprias forças físicas e espirituais [MARX, 1983, pp. 149-150]. O objeto humanizado não é, como se pode ver nessa passagem, fruto de uma imaginação sonhadora que inventa uma realidade segundo seus desejos. Para que o objetivo final seja alcançado, faz-se necessária a mediação da atividade autocontrolada. Na citada passagem, Marx acentua o fato de que, no trabalho alienado, o esforço para manter a atenção deve ser maior ainda, pois se trata de uma atividade realizada por imposição, por constrangimento. Não é uma atividade resultante de livre escolha. O trabalhador a realiza porque precisa do salário. Entretanto, com tal observação, Marx não está contradizendo aquilo que acabara de afirmar, isto é, que o trabalho é uma atividade dirigida e controlada conscientemente pelo objetivo previamente estabelecido na consciência. Apenas está mostrando que o esforço exigido para que se efetive esse autocontrole é maior nas condições do trabalho alienado. Resumindo essa relação entre objetivação e apropriação na produção de instrumentos: o ser humano apropria-se da natureza objetivando-se nela para inseri-la em sua atividade social. Sem a apropriação da natureza, não haveria a criação da realidade humana, não haveria a objetivação do ser humano. Sem objetivar-se por meio de sua atividade, o ser humano não pode se apropriar humanamente da natureza. Outra forma pela qual a relação entre objetivação e apropriação se realiza na incorporação de um objeto natural à atividade social humana é a de que, nesse processo, surgem (se objetivam) novas forças e necessidades humanas, em função de novas ações geradas pelo enriquecimento da atividade humana. E esse é um ponto importante para se conceber historicamente a relação entre objetivação e apropriação na atividade social. Não haveria desenvolvimento histórico se o ser humano se apropriasse de objetos que servissem de instrumentos para ações dentro de um conjunto fechado de forças humanas e de necessidades humanas. O que possibilita o desenvolvimento histórico é justamente o fato de que a apropriação de um objeto – transformando-o em instrumento, pela objetivação da atividade humana nesse objeto, inserindo-o na atividade social – gera, na atividade e na consciência dos seres humanos, novas necessidades e novas forças, faculdades e capacidades. Ou seja, a relação entre objetivação e apropriação na incorporação de forças naturais à atividade social gera a necessidade de novas apropriações e novas objetivações. Citei, anteriormente, uma passagem de A ideologia alemã na qual Marx e Engels afirmaram que o primeiro ato histórico é a produção dos meios que permitem a satisfação das necessidades ligadas à sobrevivência humana. É interessantenotar que, na sequência do raciocínio, Marx e Engels (2007, p. 33) afirmam que: O segundo ponto é que a satisfação dessa primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades – e essa produção de novas necessidades constitui o primeiro ato histórico. Pode parecer estranho, à primeira vista, que Marx e Engels tenham afirmado que o primeiro ato histórico tenha sido a produção dos meios de satisfação das necessidades humanas e depois afirmado que o primeiro ato histórico foi igualmente a produção de novas necessidades. Mas isso só soa estranho se não raciocinarmos dialeticamente. O primeiro ato histórico é constituído dessas duas coisas ao mesmo tempo. O ser humano tem necessidades a serem satisfeitas, por exemplo, a de se alimentar. Para satisfazer essa necessidade, ele produz meios, por exemplo, uma lança, que usa para caçar. A produção da lança gera a necessidade de conhecer cada vez melhor a natureza, para produzir lanças que efetivamente facilitem a atividade de caça. Essa necessidade de conhecimento da natureza é uma nova necessidade que foi gerada pelo processo de produção dos meios de satisfação de necessidades que já existiam. É por isso que esse é o primeiro ato histórico. Não há história social se não houver transformação da realidade humana, se não houver desenvolvimento. Mas não há desenvolvimento humano se não houver a transformação das necessidades humanas, seja pela modificação das formas de satisfação de necessidades anteriormente existentes, seja pelo surgimento de novos tipos de necessidades. Mais adiante voltarei à análise desse processo de formação de novas necessidades, que é de extrema importância tanto para a história de desenvolvimento do gênero humano como para a educação dos indivíduos. Seria, entretanto, equivocado, concluir, com as considerações precedentes, que a relação entre objetivação e apropriação só aparece quando o ser humano cria algo novo. Na questão analisada, da produção de instrumentos, isso pode ser notado com facilidade. Em primeiro lugar, a repetição da produção de um tipo de instrumento já existente é também um processo tanto de objetivação quanto de apropriação. E é muito difícil, na história, separar absolutamente a repetição e a criação do novo, porque muitas vezes, ao se produzir um instrumento já existente, são descobertos novos aspectos que levam ao seu desenvolvimento. O mesmo pode acontecer com a descoberta de novas formas de utilização de um instrumento, o que pode vir a nele acarretar modificações. Esses exemplos simples já mostram que a objetivação e a apropriação, como processos de reprodução de uma realidade já existente, não se separam de forma absoluta da objetivação e da apropriação como geração do novo. É importante também ressaltar que a análise da relação entre objetivação e apropriação, como dinâmica própria da atividade vital humana e geradora do processo histórico, não pode ser reduzida ao processo de produção e utilização de instrumentos propriamente ditos. Além destes, as mais elementares formas de atividade vital humana contêm, necessariamente, outras duas formas de objetivação e apropriação: a linguagem e as relações entre os seres humanos. O trabalho não se realiza sem a atividade de comunicação entre os seres humanos, na medida em que a atividade vital humana é, desde sua origem, uma atividade coletiva. O ser humano em suas origens já se apresentava como um ser gregário, isto é, vivia e agia coletivamente. Marx (2011, p. 39), nos Grundrisse, ridiculariza as “robinsonadas” dos economistas clássicos que iniciavam suas análises sempre de uma legendária situação, nos primórdios da história humana, de um isolado produtor de mercadorias. A atividade vital humana, sendo originalmente uma atividade imediatamente coletiva, exige a atividade de comunicação, que se foi objetivando, ao longo da história primitiva, em signos e em sistemas de signos, isto é, a linguagem. Esses sistemas de signos transformam-se em sistemas internos, orientadores da atividade de pensamento, num processo infinito de interiorização e exteriorização. A apropriação da linguagem é a apropriação da atividade histórica e social de comunicação que nela se acumulou, se sintetizou3. A relação entre objetivação e apropriação na relação entre pensamento e linguagem se enquadra na categoria de “primeiro ato histórico”, já mencionada. A linguagem é um meio que o ser humano cria para satisfazer uma necessidade, no caso, a de comunicação. A comunicação é uma necessidade vital para a atividade coletiva de trabalho. Ao criar meios de se comunicar, os seres humanos geraram novas necessidades. Portanto, a objetivação do pensamento por meio da linguagem possui as duas características do “primeiro ato histórico”, do “ato de nascimento que se supera”. Além dos instrumentos e da linguagem, também as relações entre os seres humanos assumem formas objetivadas. No início, provavelmente, esse tipo de objetivação estava muito ligado ao êxito de certas formas de atividade coletiva, na relação com a natureza, nas quais se estabeleciam determinadas relações entre os seus participantes. Assim como a linguagem e os instrumentos, a objetivação das relações entre os seres humanos significa acúmulo de experiência, síntese de atividade humana; de tal forma que cada indivíduo, apropriando-se dessas objetivações, passa a agir no âmbito das condições sociais, isto é, no âmbito das condições que não resultam da natureza, mas, sim, da história da atividade dos outros seres humanos. Em resumo, a atividade humana é uma atividade histórica, geradora da história, do desenvolvimento humano, da humanização da natureza e do próprio gênero humano, em decorrência de algo que caracteriza a especificidade dessa atividade diante de todas as demais formas de atividade de outros seres vivos. O que caracteriza essa peculiaridade é a relação entre objetivação e apropriação, que se efetiva já nas formas mais elementares de relacionamento do ser humano com a natureza, já no primeiro ato histórico de produção dos meios de satisfação das necessidades humanas e de criação, nessa produção, de necessidades qualitativamente novas. A relação entre objetivação e apropriação se efetiva, portanto, no próprio “ato de nascimento que se supera”. A relação entre objetivação e apropriação como mediação entre a formação do indivíduo e a história do gênero humano O ato de nascimento que se supera é um processo, sem o que não seria história. Em outras palavras, não se pode falar em um começo absoluto, no qual alguns primeiros representantes da espécie Homo sapiens teriam realizado esse ato de nascimento a partir do nada. Mesmo aqueles momentos que possuíram o significado de um salto qualitativo, fazendo com que o desenvolvimento humano ingressasse em nova fase, se realizaram como desdobramentos de ações anteriores. A passagem da evolução biológica para a história social não aconteceu subitamente. A história, como o processo de autotransformação humana, como o ato de nascimento que se supera, não pode, portanto, ser pensada de outra forma que não a da atividade de seres humanos que nascem sempre num determinado momento histórico. Cada geração tem que se apropriar das objetivações resultantes da atividade das gerações passadas. A apropriação da significação social de uma objetivação é um processo de inserção na continuidade da história das gerações. Marx e Engels (2007, p. 43), em A ideologia alemã, dizem que em cada uma das fases da história: encontra-se um resultado material, uma soma de forças de produção, uma relação historicamente estabelecida com a natureza e que os indivíduos estabelecem uns com os outros; relação que cada geração recebe da geração passada, uma massa de forças produtivas, capitais e circunstâncias que, embora seja, por um lado, modificada pela nova geração, por outro lado prescreve a esta última suas próprias condições de vida e