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A Individualidade Para Si Newton Duarte

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a
individualidade
para si
Coleção Educação Contemporânea
Esta coleção abrange trabalhos que abordam o problema educacional brasileiro de uma
perspectiva analítica e crítica. A educação é considerada como fenômeno totalmente radicado no
contexto social
mais amplo e os textos desenvolvem análise e debate acerca das consequências desta relação de
dependência. Divulga propostas de ação pedagógica coerentes e instrumentos teóricos e práticos
para o trabalho educacional, considerado imprescindível para um projeto histórico de
transformação da sociedade brasileira.
Conheça mais obras desta coleção, e os mais relevantes autores da área, no nosso site:
www.autoresassociados.com.br
http://www.autoresassociados.com.br/
Newton Duarte
a
individualidade
para si
Contribuição a uma teoria histórico-crítica da
formação do indivíduo
Coleção Educação Contemporânea
Copyright	©	2017	by	Editora	Autores	Associados	Ltda.
Todos	os	direitos	desta	edição	reservados	à	Editora	Autores	Associados	Ltda.
Dados	Internacionais	de	Catalogação	na	Publicação	(CIP)
(Câmara	Brasileira	do	Livro,	SP,	Brasil)
Duarte,	Newton
A	individualidade	para	si	[livro	eletrônico]:	contribuição	a	uma	teoria	histórico-crí�ca	da	formação
do	indivíduo	/	Newton	Duarte.	–	Campinas,	SP	:	Autores	Associados,
2017.	–	(Coleção	educação	contemporânea)
2	Mb	;	ePUB
Bibliografia
ISBN	978-85-7496-391-4
1.	Educação	-	Filosofia	2.	Educação	-	Finalidades	e	obje�vos	3.	Individualidade
4.	Pedagogia	crí�ca	5.	Sociologia	educacional	I.	Título.	II.	Série.
17-06295 CDD-370.19
Índices	para	catálogo	sistemá�co:
1.	Individualidade	:	Teoria	histórico-social	:	Sociologia	educacional	370.19
E-book	–	julho	de	2017
Conversão	EPub	–	Bookwire
EDITORA	AUTORES	ASSOCIADOS	LTDA.
Uma editora educa�va a serviço da cultura brasileira
Av.	Albino	J.	B.	de	Oliveira,	901	|	Barão	Geraldo
CEP	13084-008	|	Campinas-SP
Telefone:	+55	(19)	3789-9000
E-mail:	editora@autoresassociados.com.br
Catálogo	on-line:	www.autoresassociados.com.br
Conselho	Editorial	“Prof.	Casemiro	dos	Reis	Filho”
Bernardete	A.	Ga�
Carlos	Roberto	Jamil	Cury
Dermeval	Saviani
Gilberta	S.	de	M.	Jannuzzi
Maria	Aparecida	Mo�a
Walter	E.	Garcia
Diretor	Execu�vo
Flávio	Baldy	dos	Reis
mailto:editora@autoresassociados.com.br
http://www.autoresassociados.com.br/
Coordenadora	Editorial
Érica	Bombardi
Revisão
Julio	Cesar	Camillo	Dias	Filho
Rafaela	Santos	Lima
Capa
Maisa	S.	Zagria
Baseada	em	capa	e	página	interna	de	Caderno de
anotações de Vladimir Lênin,	em	1914,	do	estudo	do	livro
A Ciência da Lógica,	de	Georg	W.	F.	Hegel
Sumário
Prefácio à nova edição
Apresentação
capítulo 1
A dialética entre objetivação e apropriação
capítulo 2
Humanização e alienação
capítulo 3
O gênero humano
capítulo 4
A formação da individualidade livre e universal
Considerações �nais
Referências
Sobre o autor
a libertação de cada indivíduo singular é atingida na mesma medida em que a história transforma-se
plenamente em história mundial. De acordo com o já exposto, é claro que a efetiva riqueza espiritual do
indivíduo depende inteiramente da riqueza de suas relações reais. Somente assim os indivíduos singulares
são libertados das diversas limitações nacionais e locais, são postos em contato prático com a produção
(incluindo a produção espiritual) do mundo inteiro e em condições de adquirir a capacidade de fruição
dessa multifacetada produção de toda a terra (criações dos homens). A dependência multifacetada, essa
forma natural da cooperação histórico-mundial dos indivíduos, é transformada, por obra dessa revolução
comunista, no controle e domínio consciente desses poderes, que, criados pela atuação recíproca dos
homens, a eles se impuseram como poderes completamente estranhos e os dominaram.
MARX & ENGELS, 2007, p. 41
é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é,
“participar” de uma concepção de mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por
um dos vários grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no
mundo consciente […] ou é preferível elaborar a própria concepção de mundo de uma maneira crítica e
consciente e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de
atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não aceitar
do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?
GRAMSCI, 1995, p. 12
utilizaremos a tese de Hegel sobre o ser em si e o ser para si. Ele dizia que todas as coisas existem, de início,
em si, mas que com isso a questão não se esgota e no processo de desenvolvimento o ser em si se transforma
em ser para si. O ser humano, dizia Hegel, é uma criança cuja tarefa não consiste em permanecer no
abstrato e incompleto em si, mas sim em ser também para si, isto é, converter-se em um ser livre e
racional.
VYGOTSKI, 1996, p. 199
Prefácio à nova edição
A primeira versão deste livro foi elaborada como tese de doutorado,
defendida na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
(FE/UNICAMP), em 15 de outubro de 1992 e publicada no ano seguinte pela
editora Autores Associados. Há vários anos decidi refazer a redação deste
trabalho, tanto para corrigir falhas de digitação, erros gramaticais e
problemas de estilo de redação como também para melhorar a exposição do
pensamento em alguns momentos. Mas o tempo foi passando, e a realização
de novos estudos, a produção de novos textos e todo o restante de meu
trabalho docente1 fizeram com que a pretendida reelaboração fosse
repetidas vezes postergada para outro momento. Dei-me conta, então, de
que estava se aproximando o aniversário de vinte anos da primeira edição
do livro e coloquei-me a tarefa de preparar a nova redação para uma edição
comemorativa desses vinte anos. Foi o que fiz durante todo o mês de janeiro
deste ano de 2013.
O livro que o leitor tem em suas mãos é e não é o mesmo de vinte anos
antes. A estrutura do livro, as categorias centrais, as principais obras de
referência e a perspectiva teórica marxista permanecem as mesmas. Não se
trata, portanto, de um novo livro. Mas, além do acréscimo de novos
parágrafos em praticamente todos os itens de todos os capítulos e de uma
total substituição das considerações finais, a forma de exposição do
raciocínio foi significativamente modificada ao longo do livro. Sabe-se, pela
dialética, que a alteração da forma não deixa intacto o conteúdo e, nesse
sentido, pode-se dizer que não se trata do mesmo livro. É certo que os
estudos que realizei e a experiência que adquiri durante esses vinte anos
produziram em mim transformações como autor e, mais amplamente,
1
como indivíduo. Isso haveria de se refletir no momento da revisão do livro.
Um aspecto no qual se revela a dialética entre preservação e transformação é
minha relação com o marxismo. Quando escrevi pela primeira vez esse
livro, eu era marxista e, ao contrário do que aconteceu com vários
intelectuais, minha trajetória não foi a de afastamento do marxismo, mas de
aproximação constante. Eu diria que hoje sou mais marxista do que era há
vinte anos. A atual versão do livro reflete isso, ou seja, continua sendo um
trabalho marxista, mas, como seu autor, agora o é ainda mais radicalmente.
Não foram, porém, somente as mudanças pelo lado do autor que se
refletiram na nova redação. Também influenciaram esse processo as
potencialidades contidas na versão anterior, que procurei, agora, explorar
melhor. Aplica-se aqui a dialética entre objetivação e apropriação, o que é
tema do primeiro capítulo. Sendo o livro um objeto humano, ele contém
atividade humana em estado latente. Ao me reapropriar dessa atividade no
momento de reelaboração do livro, pus em movimento o que ali existia
como atividade em repouso no objeto. É quase inevitável, no entanto, que
nesse processo de exploração das potencialidades surjam coisas novas.
Deixo registrados meus agradecimentos aos professores Beneditode
Jesus Pinheiro Ferreira e Ricardo Eleutério dos Anjos pela leitura atenta
desta nova versão, pelo inestimável auxílio na detecção de erros e pelos
estimulantes comentários.
Newton Duarte
Araraquara, fevereiro de 2013
O autor é professor titular do Departamento de Psicologia da Educação, da Faculdade de Ciências
e Letras, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), campus de
Araraquara.
Apresentação
Um dos objetivos principais deste livro é promover o debate sobre o
processo de formação do indivíduo como um ser essencialmente histórico;
nesse sentido, dirige-se a professores, a pesquisadores que se voltem para as
questões relativas aos seres humanos e, mais amplamente, a todas as pessoas
que reconheçam a importância da educação das novas gerações.
No interior desse amplo universo de leitores em potencial, este livro
interpela, de forma mais direta, acerca das teorias críticas da educação, ou
seja, aquelas que, partindo da visão de que a sociedade contemporânea se
estrutura sobre relações de dominação, preconizam a necessidade de
superação dessa sociedade. Com esse objetivo, tais teorias procuram
entender com que intensidade e como a educação contribui ou não para a
reprodução dessas relações. As teorias críticas têm em comum a busca de
desfetichização das formas pelas quais a educação reproduz as relações de
dominação, pois entendem isso como fundamental para a própria luta
contra essas relações. Mas esse ponto em comum de forma alguma significa
que não sejam grandes e fundamentais os pontos de divergência entre essas
teorias. Quais são essas relações de dominação? Qual sua origem? Qual o
papel da educação em sua reprodução? Por meio de quais formas se realiza
essa reprodução na educação em geral e na educação escolar em particular?
É possível realizar algo em educação que contribua para a superação das
relações sociais de dominação? Estas são, entre outras, indagações a partir
das quais as teorias críticas diferem umas das outras e não raro colidem
entre si.
Dentro desse segmento do pensamento pedagógico brasileiro, faço
uma segunda delimitação em termos dos interlocutores aos quais se dirige
mais imediatamente este livro: situo este trabalho no interior do processo de
construção da pedagogia histórico-crítica (SAVIANI, 2003).
Contribuir para a construção de algo requer uma visão desse processo,
isto é: aonde se pretende chegar, quais as condições nas quais se realiza esse
processo, o que já foi feito e o que há por fazer. Por exemplo, conforme
esclarece Saviani (1989, p. 40), no caso das teorias crítico-reprodutivistas,
não há como analisar sua proposta pedagógica, pois não faz parte do
processo de construção dessas teorias a proposição de uma pedagogia, na
medida em que, para elas, a ação pedagógica não poderia deixar de
objetivamente tornar-se parte do processo de reprodução das relações
sociais de dominação. Exemplo oposto é o da pedagogia histórico-crítica,
cujos pressupostos sobre a relação entre educação e sociedade exigem que
essa corrente educacional apresente propostas pedagógicas concretas, viáveis
e coerentes com o objetivo de contribuir, por meio da especificidade da
prática pedagógica, para o processo de superação da sociedade capitalista.
A pedagogia histórico-crítica caracteriza-se como uma pedagogia
marxista (SAVIANI & DUARTE, 2012) e, como tal, não pode deixar de
enfrentar o problema assinalado por Karl Marx na terceira tese sobre
Feuerbach:
A doutrina materialista sobre a modificação das circunstâncias e da educação esquece
que as circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser
educado. Ela tem, por isso, de dividir a sociedade em duas partes – a primeira das quais
está colocada acima da sociedade. A coincidência entre a alteração das circunstâncias e a
atividade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e racionalmente
entendida como prática revolucionária [MARX & ENGELS, 2007, pp. 533-534].
A pedagogia histórico-crítica só faz sentido, portanto, na perspectiva
da superação revolucionária da sociedade capitalista. E essa pedagogia
entende que a educação em geral e a educação escolar, em especial, não têm
o poder de por si só revolucionar a sociedade, mas podem e devem engajar-
se na luta política pelo socialismo. Mas de que maneira a educação escolar
pode participar da luta pelo socialismo? Dermeval Saviani já respondeu a
essa questão em suas obras: a maneira específica de a educação escolar
contribuir para a luta pelo socialismo é por meio da socialização do
conhecimento científico, artístico e filosófico em suas formas mais
desenvolvidas. É claro que, em se tratando de uma pedagogia orientada pelo
materialismo histórico e dialético, a participação da escola num processo
revolucionário precisa ser compreendida a partir da análise das contradições
que se fazem presentes neste tipo peculiar de prática social que é o trabalho
educativo. Contradições essas geradas pelas condições históricas objetivas
que determinam tanto a produção quanto a apropriação do conhecimento
na sociedade capitalista contemporânea. Uma análise dessas contradições
que não seja distorcida por preconceitos antidialéticos chegará a uma
conclusão aparentemente paradoxal: por um lado, a plena socialização do
conhecimento científico, artístico e filosófico não poderá ser atingida pelo
sistema educacional escolar no interior da sociedade capitalista; por outro, a
superação da sociedade capitalista não pode prescindir da apropriação, pela
classe dominada, dos conhecimentos que permitam a compreensão da
dinâmica das relações sociais para além das aparências fetichistas e para
além das ilusões tão largamente difundidas no cotidiano da sociedade atual.
Afirmei, porém, que se trata de um aparente paradoxo. Ultrapassar essa
aparência e compreender a dialética desse fenômeno só são possíveis
situando-se essa questão no interior da totalidade da concepção marxista de
história, de sociedade, de conhecimento e de ser humano. É preciso, por
exemplo, entender-se a dialética entre objetivo e subjetivo, individual e
coletivo, natural e social, material e não material etc. É preciso,
principalmente, entender-se a dialética entre os processos de transformação
das estruturas sociais mais amplas e as ações que ocorrem no dia a dia das
escolas brasileiras. Igualmente é necessária a construção das mediações
teóricas entre o campo dos estudos sobre os fundamentos filosóficos,
históricos, sociológicos e psicológicos da educação e o campo dos estudos
sobre questões pedagógicas específicas aos campos do currículo, da didática,
dos métodos de ensino, dos recursos pedagógicos etc. Essas mediações
teóricas são decisivas para uma correta compreensão das relações entre as
lutas no campo da política educacional e seu impacto no dia a dia das
escolas. Essas mediações teóricas são igualmente decisivas para uma análise
crítica das pedagogias ideologicamente vinculadas – tenham ou não seus
defensores consciência desse fato – à manutenção da sociedade burguesa;
como é o caso das que tenho chamado “pedagogias do aprender a
aprender”: o escolanovismo, o tecnicismo, o construtivismo, a pedagogia
das competências, a pedagogia dos projetos, a pedagogia do professor
reflexivo e o multiculturalismo, para mencionar apenas as principais.
A hegemonia exercida por essas pedagogias tem seu fundamento
último no fato de que elas remam a favor da maré das relações sociais
alienadas. Mas uma autocrítica rigorosa revela que também tem contribuído
para isso o desenvolvimento relativamente pequeno das análises teóricas
marxistas no campo propriamente pedagógico. Muitos importantes
pensadores marxistas têm se mostrado ao longo da história um tanto
vulneráveis aos apelos sedutores dos discursos que se opõem à transmissão
sistemática do conhecimento erudito pela educação escolar (SAVIANI &
DUARTE, 2012). Soma-se a esse fenômeno uma desconfiança acentuada em
relação tanto às práticasescolares de transmissão do conhecimento quanto à
própria importância do conhecimento sistematizado para o processo
revolucionário.
Nesse contexto, a pedagogia histórico-crítica vê-se quase isolada, pois
sofre ataques constantes tanto pelo lado das pedagogias pró-sistêmicas
quanto pelo lado de correntes educacionais que se posicionam
politicamente contra a sociedade capitalista, mas que adotam posições
muito próximas as dos crítico-reprodutivistas ou fazem coro a ideias
oriundas das pedagogias do aprender a aprender. Entendo que só há uma
forma de a pedagogia histórico-crítica superar essa situação de quase
isolamento: o desenvolvimento da teoria pedagógica de maneira que nossos
aliados políticos na batalha pela superação do capitalismo sejam
convencidos de que a luta pelo socialismo não logrará êxito, nem em termos
de tomada do poder nem em termos de construção de uma nova sociedade,
se não fizerem parte dessa luta conquistas substantivas no processo de
universalização do conhecimento da natureza e da sociedade.
Faz-se necessário um avanço coletivo mais decisivo na elaboração de
um corpo teórico mediador entre o campo dos fundamentos da educação e
o campo da construção de propostas pedagógicas concretas. É comum ouvir
a interpretação de que as teorias educacionais críticas precisam passar da
crítica para a ação, da teoria para a prática. Por sua vez, alguns educadores
engajados com as teorias críticas tentam rebater tais acusações defendendo a
necessidade da crítica para não se reproduzirem formas burguesas de
educação e consideram a preocupação com a prática de sala de aula fruto de
uma mentalidade pedagogizante e alienada. Esse é um debate equivocado
desde seu princípio. O equívoco decorre de uma visão não dialética das
relações entre teoria e prática. Em primeiro lugar, não se trata de uma
relação linear, na qual a teoria deveria ser inteiramente desenvolvida para
depois ser posta em prática. As necessidades da prática se impõem e exigem
respostas. Além disso, a teoria também precisa de respostas da prática para
poder avançar. Esse movimento dinâmico entre teoria e prática não pode,
porém, significar aprisionamento de nenhuma delas. Nem a prática deve se
estagnar em virtude do ritmo, por vezes, lento do processo de elaboração
teórica; nem a teoria deve se adequar a uma lógica pragmática e imediatista,
que tem por consequência a escolha de atalhos traiçoeiros que, entretanto,
se mostram mais atraentes que o longo e, por vezes, penoso caminho da
elaboração das necessárias abstrações teóricas.
E, no campo da elaboração propriamente teórica, há necessidade de
compreendermos as complexas relações entre a batalha ideológica contra as
concepções adversárias e o trabalho sistemático de elaboração rigorosa da
concepção que defendemos. Se não fizermos a crítica às concepções
dominantes, corremos o risco de aderirmos aos seus princípios sem disso
nos darmos conta. Em contrapartida, é preciso estar alerta para que essa
crítica não se torne um exercício meramente acadêmico e autojustificador.
Como Marx mostrou, a crítica à religião não era um fim em si mesma, mas
deveria conduzir à crítica da sociedade e esta deveria estar a serviço da
transformação prática da sociedade; da mesma forma, a crítica às
pedagogias hegemônicas deve conduzir-nos à crítica das condições objetivas
da educação escolar contemporânea e esta deve estar a serviço das práticas
educativas comprometidas com a luta pelo socialismo, isto é, pela
socialização da riqueza material e intelectual.
O enfrentamento desses desafios requer um trabalho teórico de grande
amplitude e profundidade, o que significa que deve ser uma empreitada
assumida coletivamente. Como tem salientado inúmeras vezes Dermeval
Saviani, a pedagogia histórico-crítica deve resultar de um esforço coletivo
em várias direções e em diferentes campos.
A forma pela qual este livro busca contribuir para esse esforço coletivo
consiste na delimitação e na análise de categorias da concepção marxista do
ser humano que possam se constituir em categorias básicas de uma teoria
histórico-crítica da formação do indivíduo.
A atividade educativa dirige-se sempre a um ser humano singular, o
aluno; ela é dirigida por outro ser humano singular, o professor, e se realiza
sempre em condições materiais e não materiais singulares. Ocorre que essa
singularidade não tem uma existência independente da história. A formação
de todo ser humano é sempre um processo que sintetiza de forma dinâmica
um conjunto de elementos produzidos pela história. Em outras palavras, a
singularidade de toda atividade educativa é sempre uma singularidade
histórica e social. A pedagogia histórico-crítica precisa de uma teoria que
explique as complexas mediações dialéticas entre a singularidade da
formação de cada indivíduo e a totalidade da história do gênero humano.
Gramsci (1995, p. 41) escreveu: “É um lugar comum a afirmação de
que o homem não pode ser concebido senão vivendo em sociedade, todavia
não se extraem de tal afirmação todas as consequências, inclusive
individuais”.
A construção de uma teoria marxista da formação social do indivíduo é
um problema que diz respeito não apenas à pedagogia histórico-crítica, mas
também a outros campos do conhecimento como, por exemplo, a
psicologia. Paulo Silveira, na introdução a uma coletânea que leva por título
Elementos para uma teoria marxista da subjetividade (SILVEIRA & DORAY,
1989, p. 11), afirma:
É certo que a subjetividade e a questão mais ampla da individualidade foram tratadas,
por parte das mais diversas correntes do pensamento, de uma forma geral, sob uma
perspectiva hipostasiante1. Isso, contudo, está muito longe de justificar o abandono ou,
melhor ainda, a supressão dessas questões no interior do pensamento marxista.
Nessa mesma coletânea, Lucien Sève (1989, pp. 147-178) defende a
necessidade de uma “ciência do singular”, voltada para o estudo da
personalidade e da biografia. Do ponto de vista da relação entre a psicologia
e a pedagogia, Saviani (2003, p. 81) afirma que “uma das limitações da
contribuição da psicologia à educação está no fato de que a psicologia tem
tratado principalmente do indivíduo empírico, não do indivíduo concreto”,
explicando que o indivíduo concreto é “a síntese de inúmeras relações
sociais”, ao passo que “o indivíduo empírico é uma abstração, pressupõe um
corte onde se definem determinadas variáveis que são objetos de estudo”.
A pedagogia histórico-crítica não pode deixar de elaborar sua
concepção sobre formação da individualidade humana como parte
constitutiva de seu corpo teórico. Isto é, não pode deixar de explicitar de
forma coerente e sistemática em que consiste conceber o indivíduo como
“síntese de inúmeras relações sociais”, pois, do contrário, não se obterá êxito
na luta pela superação de dicotomias (entre social e individual, histórico e
psicológico, objetivo e subjetivo, singular e universal) que estão arraigadas
no senso comum pedagógico e que acabam atuando como um filtro que
distorce a própria recepção dos fundamentos e das principais teses
defendidas por essa corrente educacional. Enfatizo que se trata de um
problema no campo da elaboração teórica ou, explicando melhor, da
necessidade de elaboração de elementos teóricos mediadores
imprescindíveis para a construção de propostas pedagógicas práticas
dirigidas a sujeitos concretos, e não a sujeitos empíricos. Para agir com os
indivíduos concretos, é necessária a mediação desses elementos teóricos que
expliquem a dinâmica que resulta na “síntese de inúmeras relações sociais”.
É um equívoco entender essa síntese como mero somatório de fatores
isolados, e é igualmente equivocada a concepção da individualidade como
resultante passiva das relações sociais.
Para que possa compreender o aluno em sua concretude, o professor
precisa da mediação de abstrações, pois aquela não se apresenta como
decorrência imediata do fato de ele estar em contato com o aluno. Além
disso,conhecer a concretude do indivíduo-aluno não se limita, no caso da
atividade educativa, ao conhecimento do que o indivíduo é, mas também ao
conhecimento do que ele pode vir a ser. Esse conhecimento, por seu lado,
implica um posicionamento em favor de algumas possibilidades desse vir a
ser e, consequentemente, contra outras.
Na medida em que situei este trabalho na perspectiva da construção da
pedagogia histórico-crítica, o desenvolvimento do indivíduo como síntese
de inúmeras relações sociais precisa ser concebido como um processo
situado no interior de outro, o do desenvolvimento histórico do ser humano
como um ser social. Com esse pressuposto, delimitei as seguintes categorias
básicas para a reflexão sobre o processo de formação do indivíduo:
objetivação e apropriação, que expressam a dinâmica do processo pelo qual o
ser humano se autoconstrói ao longo da história; humanização e alienação,
que expressam o caráter contraditório com que os processos de objetivação
e apropriação têm se realizado no processo histórico marcado pela luta de
classes; gênero humano, que expressa o resultado da história social humana,
da história da atividade objetivante dos seres humanos (a formação do
indivíduo é a formação do homem singular como um ser genérico, um ser
pertencente ao gênero humano); individualidade para si, que expressa no
âmbito da formação do indivíduo um processo de desenvolvimento que se
inicia pela síntese espontânea das relações sociais (a individualidade em si)
rumo a uma síntese consciente das relações sociais (a individualidade para
si).
Assim, no primeiro capítulo, analiso a dialética entre objetivação e
apropriação como dinâmica essencial da autoprodução do ser humano por
meio da atividade vital humana, o trabalho. Numa primeira aproximação, a
objetivação pode ser entendida como o processo por intermédio do qual a
atividade do sujeito se transforma em propriedades do objeto. A atividade
do marceneiro transmuta-se em características de um armário, de uma mesa
ou de uma cadeira; a atividade do escritor transforma-se em um livro; a de
um pintor, em um quadro; a de um professor, em uma aula. Esses exemplos
já permitem notar que a atividade que se transfere do sujeito para o objeto é
tanto física como mental. Também é possível constatar que o produto
resultante da objetivação pode ser um objeto material ou não material. Por
exemplo, no caso do livro, embora ele possua necessariamente algum
suporte material (papel e tinta no caso do livro impresso, som no caso do
audiolivro e mídia eletrônica no caso do livro digital), não é esse suporte
que o define como livro, mas, sim, seu conteúdo ideal, ou seja, não material.
O processo de objetivação resulta em produtos sociais, sejam eles materiais
ou não.
A categoria de apropriação refere-se ao processo inverso, ou seja, à
transferência, para o sujeito, da atividade que está contida no objeto.
Quando alguém aprende a usar uma ferramenta, está se apropriando da
atividade social acumulada no objeto. Na maior parte dos casos, o indivíduo
deverá se apropriar da atividade de uso do objeto, mas em alguns casos será
necessária a apropriação da atividade de produção do objeto. Rigorosamente
falando, poderia ser usado o termo “subjetivação” em vez de “apropriação”,
pois se trata de incorporação de atividade humana às características do
sujeito. Mas preferi usar o termo “apropriação” por causa das possíveis
ressonâncias subjetivistas que poderiam resultar do uso da palavra
“subjetivação”.
A dialética entre objetivação e apropriação faz-se presente na teoria
marxista na concepção de trabalho como atividade que, em sua forma
primeira e fundamental, se apresenta como transformação da natureza.
Nessa atividade, os seres humanos apropriam-se da natureza e objetivam-se
nos produtos do trabalho. Para que isso ocorra, é necessária, entretanto, a
apropriação prévia das forças produtivas já existentes na sociedade. A
dialética entre objetivação e apropriação é essencial para compreender-se a
relação entre o desenvolvimento histórico da humanidade e o
desenvolvimento do indivíduo.
Marx e Engels (2007, pp. 33; 87), em A ideologia alemã, consideraram a
produção dos meios da existência humana como o traço fundamental que
diferenciou os seres humanos dos animais, definindo tal produção como o
“primeiro ato histórico”. Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx (1978,
p. 41) já havia escrito que o ato de nascimento do ser humano é a história e
que esse ato do nascimento é um ato que se supera. Isso significa que o ser
humano, ao produzir, pela atividade de trabalho, as condições de sua
existência, ao transformar a natureza, se apropria dela e se objetiva nela.
Essa apropriação e essa objetivação geram novas necessidades humanas e
conduzem a novas formas de ação, num constante movimento de superação
por incorporação. Cada indivíduo nasce situado espacial e temporalmente
nesse processo e, para dele participar, isto é, para se objetivar no interior
dele, precisa se apropriar das objetivações (neste caso entendidas como os
produtos da atividade objetivante humana, resultados do processo histórico
de objetivação).
No segundo capítulo, analiso o caráter contraditoriamente
humanizador e alienador com que se têm efetivado a objetivação e a
apropriação dos seres humanos, uma vez que esses processos têm se
realizado nas circunstâncias da luta de classes. A humanização avança à
medida que a atividade social e consciente produz objetivações que tornam
possível uma existência humana cada vez mais livre e universal. Entretanto,
a produção dessas objetivações e das possibilidades de universalidade e
liberdade nelas contidas objetivamente não implica necessariamente, na
sociedade de classes, maior liberdade e universalidade na vida dos
indivíduos. O trabalho de milhões de seres humanos tem possibilitado que
objetivações humanas como a ciência e a produção material gerassem, nos
dois últimos séculos, possibilidades de existência livre e universal sem
precedentes na história humana. Isso, porém, tem se realizado de forma
contraditória, pois essas possibilidades têm sido geradas à custa da miséria,
da fome, da ignorância, da dominação e mesmo da morte de milhões de
seres humanos. Nunca o ser humano conheceu tão profundamente a
natureza e nunca a utilizou tão universalmente, mas também nunca esteve
tão próximo da destruição total da natureza e de si próprio.
O caráter contraditoriamente humanizador e alienador com que a
objetivação do ser humano se realiza no interior das sociedades de classe
tem implicações importantes no que diz respeito à formação da
individualidade. Por um lado, a formação do indivíduo como um ser
humano não pode se realizar sem a apropriação das objetivações produzidas
ao longo da história social, mas, por outro lado, essa apropriação também é
a forma pela qual se reproduz a alienação decorrente da luta de classes.
Não está, porém, determinado de forma absoluta, nas próprias
objetivações, se elas terão uma função predominantemente humanizadora
ou alienadora na formação do indivíduo. Um exemplo nesse sentido é a
religião, que é uma forma de objetivação essencialmente alienadora, pois na
religião o ser humano cria um ser imaginário, Deus, e se submete a ele. Mas,
a despeito dessa essência alienadora, algumas religiões tiveram na história
humana, em determinados momentos e contextos históricos, um papel
social relativamente progressista. Além disso, uma religião pode ter um
papel relativamente positivo na vida de um determinado indivíduo quando,
por exemplo, ela possibilita ao sujeito o contato com objetivações artísticas e
filosóficas às quais ele não teria acesso por outros meios; ou, então, quando
a religião insere o indivíduo em relações sociais que lhe abram
possibilidades de participação em ações coletivas até certo ponto
contestadoras de determinadas relações sociais de dominação. Esse efeito
relativamente positivo poderá permanecer dentro dos limitesalienantes que
a crença religiosa impõe à vida dos seus seguidores ou poderá promover o
aguçamento de contradições que levem o indivíduo a superar a visão
religiosa de mundo. Para não haver dúvidas quanto ao exemplo que estou
apresentando, esclareço que entendo ser a religião uma objetivação
alienadora em sua essência que, entretanto, pode desempenhar, de forma
circunstancial e relativa, um papel positivo na formação do indivíduo. Não
se trata da equivocada ideia de que a formação religiosa seja uma etapa
necessária na formação dos seres humanos ou da ideia ainda mais
equivocada de que a “espiritualidade” seja uma das dimensões necessárias à
vida humana. Um exemplo oposto seria o da ciência como uma objetivação
essencialmente humanizadora que, entretanto, como já foi dito, tem
tornado possível a máxima alienação que é a autodestruição da
humanidade. Se a apropriação de um determinado tipo de objetivação
desempenhará, na formação do indivíduo, uma função primordialmente
humanizadora ou alienadora é uma questão que depende de um complexo e
dinâmico conjunto de relações presentes na atividade apropriadora e mais
amplamente no conjunto das relações sociais nas quais o indivíduo está
inserido. Assim como a humanidade não pode se desenvolver sem se
objetivar, o que gera a possibilidade da alienação dos seres humanos perante
as objetivações, também os indivíduos não podem se objetivar sem a
apropriação das objetivações existentes na sociedade; eles não podem
“sentir, pensar, avaliar, agir” (SAVIANI, 2003, p. 7), de forma humana, sem a
apropriação das formas historicamente produzidas de “sentir, pensar,
avaliar, agir”. Não há outra possibilidade de formação do indivíduo
humano, não há outro caminho para o processo individual de humanização.
Se esse caminho é o que também reproduz a alienação, a solução não está
em negar que a objetivação e a apropriação sejam humanizadoras, mas, sim,
em superar suas formas alienadas. Essas duas relações dialéticas (entre
objetivação e apropriação e entre humanização e alienação) diferenciam
qualitativamente a formação da individualidade humana da ontogênese nos
outros animais.
Segundo Luria (1979, p. 50), os vertebrados superiores, isto é, os
vertebrados terrestres, possuem a capacidade de desenvolver
comportamentos individualmente variáveis, capacidade essa que se mostra
de maneira particularmente acentuada nos mamíferos superiores. Esses
comportamentos resultam da interação entre, por um lado, as características
fundamentais da espécie, que são transmitidas por hereditariedade, e, por
outro, as condições ambientais variáveis, particulares. Cada animal tem que
se adaptar a essas condições particulares desenvolvendo adequadamente
aquilo que herdou da espécie. No caso do ser humano, os processos de
objetivação e apropriação não são mediadores entre o indivíduo e a espécie
humana, pois a relação com a espécie se realiza da mesma forma que com os
outros animais, isto é, pela transmissão genética. Mas o mecanismo
biológico da hereditariedade não transmite aos indivíduos as características
que permitirão considerá-lo efetivamente um ser humano. Isso significa que
não é a espécie que contém essas características, não é na espécie que as
características humanas possuem uma existência objetiva. A objetividade
das características humanas historicamente formadas constitui o gênero
humano. Assim, no terceiro capítulo, analiso a formação do indivíduo como
um duplo processo de relacionamento com o gênero humano, isto é, a
apropriação das características humanas objetivadas e a objetivação
individual mediada pelo que foi apropriado.
A categoria histórica de gênero humano engloba a categoria biológica
de espécie humana, mas vai além dela, da mesma forma que a vida social
incorpora a vida biológica, mas a supera. A categoria de gênero humano
sintetiza os resultados da autoconstrução humana e não se reduz àquilo que
é comum a todos os seres humanos, não é uma mera generalização de
características empiricamente verificáveis em todo e qualquer indivíduo.
Gênero humano é uma categoria que expressa a riqueza cultural humana
em sua totalidade. A linguagem, por exemplo, é uma objetivação do gênero
humano, uma objetivação genérica. Todos os seres humanos têm que se
apropriar dessa objetivação genérica para poder viver. A linguagem escrita
também é uma objetivação genérica, mas, na sociedade brasileira, muitos
indivíduos, em decorrência das desigualdades sociais, passam toda a sua
vida sem se apropriar dessa objetivação e de todas as outras que exigem a
mediação dela. A formação de um indivíduo, (o desenvolvimento de sua
personalidade) é, ao mesmo tempo, o seu desenvolvimento como ser social,
alguém que faz parte de uma determinada sociedade, e como ser genérico,
alguém que faz parte do gênero humano.
Contudo, na história humana até o presente, a formação da socialidade
tem significado a formação do indivíduo para uma posição no interior da
divisão social do trabalho, o que implica o cerceamento da formação do
indivíduo como um ser genérico, um representante do gênero humano. A
individualidade não se forma a não ser pela formação da pessoa como um
ser social, mas, quando se trata de uma sociedade dividida em classes, a
socialidade necessariamente carrega consigo a alienação, em graus maiores
ou menores. Lutar contra a alienação é lutar por reais condições para todos
os seres humanos de desenvolvimento da individualidade à altura das
máximas possibilidades objetivamente existentes para o gênero humano.
Isso já remete para o quarto e último capítulo deste livro, voltado para
a análise da categoria de indivíduo para si. Compreender a individualidade
humana de forma histórica não é apenas explicar por que os indivíduos são
desta ou daquela maneira. Como diz Gramsci (1995, p. 38),
Se observarmos bem, veremos que – ao colocarmos a pergunta “o que é o homem” –
queremos dizer: o que é que o homem pode se tornar, isto é, se o homem pode controlar
seu próprio destino, se ele pode “se fazer”, se ele pode criar sua própria vida.
A categoria de indivíduo para si sintetiza as possibilidades máximas de
desenvolvimento livre e universal da individualidade. Ao mesmo tempo em
que a sociedade capitalista produz as condições necessárias ao
desenvolvimento livre e universal dos indivíduos, antepõe a esse
desenvolvimento barreiras gigantescas, que só poderão ser superadas com o
fim das classes sociais. Conforme argumenta Marx (2011) nos Grundrisse,
no início do processo histórico, a individualidade mostrava-se muito pouco
desenvolvida; ela foi sendo construída a partir do desenvolvimento das
forças produtivas de tal forma que, no capitalismo, se formaram as
condições objetivas e subjetivas da individualidade livre e universal (ainda
que pela forma alienada de universalização da relação mercantil). A luta pela
superação do capitalismo exige, entre outras coisas, a luta pela realização, no
interior dessa sociedade alienada, das possibilidades máximas de
desenvolvimento da individualidade para si. Nesse sentido, essa categoria,
como síntese das máximas possibilidades de formação dos seres humanos,
pode ser tomada como um ponto de referência para a análise da
individualidade concreta de cada pessoa.
A formação do indivíduo para si é a formação do indivíduo como uma
pessoa que faz de sua vida uma relação consciente com o gênero humano.
Essa relação concretiza-se por meio dos processos de objetivação e
apropriação que, na formação do indivíduo para si, se tornam objeto de
constante questionamento, de constante desfetichização. A formação do
indivíduo para si é a formação de um posicionamento sobre o caráter
humanizador ou alienador dos conteúdos e das formas de suas atividades
objetivantes, o que implica a formação de igual posicionamento em relação
aos conteúdos das objetivações das quais ele se apropria e das formas pelas
quais se realizam essas apropriações.
Para concluir esta apresentação, devo fazeralguns esclarecimentos
sobre a relação entre certos aspectos da maneira de exposição que adotei
neste livro e o objetivo de contribuir para a formação humana numa
perspectiva histórico-crítica.
O primeiro esclarecimento é relativo à opção por uma exposição que
reproduzisse o caráter processual e não linear da construção de uma teoria
da formação do indivíduo fundamentada no materialismo
históricodialético. Almejo que a própria leitura deste trabalho seja momento
pedagógico de difusão de uma forma de pensar materialista, histórica e
dialética. Assim, a divisão do livro em capítulos que têm como objeto
determinadas categorias não significa que seja possível compreender todo o
significado das categorias lendo-se apenas o capítulo destinado a uma delas.
Este livro não é uma reunião de capítulos independentes, nem uma mera
adição de categorias estáticas, mas um todo composto de muitas relações,
cujas partes se esclarecem reciprocamente. Optei, portanto, pela análise em
espiral, isto é, as categorias analisadas em cada capítulo vão sendo
incorporadas à análise de outras categorias, nos capítulos subsequentes, já
que, nesse processo, as próprias categorias que haviam sido analisadas em
capítulos anteriores não permanecem imutáveis, sendo cada vez mais
esclarecidas e enriquecidas. Por exemplo, as categorias de objetivação e
apropriação, que são analisadas no primeiro capítulo, tornam-se mais
concretas e ricas ao serem incorporadas à análise da relação entre
humanização e alienação, no segundo capítulo.
Um segundo aspecto relativo à forma de exposição é a opção por não
apenas apresentar ao leitor o produto dos meus estudos, mas também
colocá-lo, até onde é possível, em contato com os autores de cujo
pensamento procurei me apropriar (no sentido que aqui dou ao termo). Em
outras palavras, optei intencionalmente por correr o risco de perder leveza e
fluidez no estilo de escrita em favor de uma finalidade pedagógica: a de
compartilhar o estudo das obras utilizadas neste trabalho, não apenas
citando-as, mas principalmente apresentando ao leitor a maneira como as
leio e interpreto. Assim, lancei mão de um número talvez excessivo de
citações, e também de citações bastante longas2. Para ilustrar, minha
intenção foi trazer o leitor para minha mesa de estudo e analisar passagens
que esclarecem e fundamentam meu raciocínio. Porém, talvez o risco maior
desse procedimento não seja o de prejudicar o estilo da exposição, mas, sim,
o de usar as citações e o pensamento de outros autores como camuflagem e
legitimação de minhas próprias concepções e de meus próprios objetivos.
Esse fenômeno foi caracterizado por Marx (1978, p. 329) da seguinte
maneira:
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob
circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente,
legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como
um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em
revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses
períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os
espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as
roupagens, a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada. […] o principiante que
aprende um novo idioma traduz sempre as palavras desse idioma para a sua língua natal;
mas, só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua
no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente
nela.
Espero não estar distorcendo as ideias de Marx, generalizando essa
passagem para a questão mais ampla das relações entre a apropriação do que
já existe e a transformação da realidade. Por um lado, tanto no pensamento
quanto na ação, não se cria o novo sem a apropriação do já existente. Não se
podem criar novas ideias do nada, é preciso trabalhar a partir das ideias
existentes. Isso não é negativo, ao contrário, é uma característica humana
muito importante (poder partir da atividade das gerações passadas). Mas,
por outro lado, isso também pode cercear a criação do novo, oprimir o
pensamento como um pesadelo. E pode também ser usado pelas pessoas
para legitimar suas atividades e camuflar o significado objetivo que elas têm
no contexto de sua realização. Não há como fugir ao risco, é preciso ter
consciência de sua existência, além de estar alerta para perceber quando a
erudição, em vez de enriquecer o pensamento, passa a imobilizá-lo.
O tipo de estudo que apresento não seria, porém, demasiadamente
abstrato e distante da realidade escolar enfrentada diariamente por
professores e alunos em nosso país? Não cabe a mim como autor dizer se
esta obra tem algo realmente significativo a oferecer aos que trabalham com
a formação das novas gerações, embora, obviamente, essa seja minha
expectativa. Mas, se essa expectativa não se confirmar, será por falhas e
equívocos do meu pensamento e pelo fato de a análise ser abstrata. A
realidade não se apresenta ao pensamento de forma imediata. É preciso ir
além das aparências e, para tanto, são necessárias as abstrações. A análise
que trabalha com as abstrações faz um movimento de momentâneo
afastamento da realidade para depois a ela retornar, já dispondo, então, dos
conceitos necessários à compreensão dos processos essenciais. Ao justificar
as dificuldades que o leitor poderia encontrar ao lidar com o primeiro
capítulo de O capital, Marx (1983, p. 12) explicou a necessidade das
abstrações:
na análise das formas econômicas não podem servir nem o microscópio nem reagentes
químicos. A faculdade de abstrair deve substituir ambos. Para a sociedade burguesa, a
forma celular da economia é a forma de mercadoria do produto do trabalho ou a forma
do valor da mercadoria. Para o leigo, a análise parece perder-se em pedantismo. Trata-se,
efetivamente, de pedantismo, mas daquele de que se ocupa a anatomia microscópica. Por
isso, com exceção da parte relativa à forma do valor, não se poderá acusar este livro de ser
de difícil compreensão. Pressuponho, naturalmente, leitores que queiram aprender algo
de novo e queiram, portanto, também pensar por conta própria.
Mas percorrer o caminho das abstrações teóricas para alcançar-se uma
compreensão aprofundada e crítica da realidade não é um percurso fácil,
não é como passear pelo parque num belo domingo pela manhã.
Assemelha-se mais à escalada de uma íngreme montanha, sujeita também a
adversidades climáticas. No prefácio à edição francesa de O capital, Marx
(idem, p. 23) saudou a iniciativa de publicação da obra em fascículos, o que
facilitaria o acesso a esta pelo operariado, mas ponderou que isso também
poderia ter um lado negativo:
o método que utilizei e que ainda não havia sido aplicado aos assuntos econômicos torna
bastante árdua a leitura dos primeiros capítulos, e é de se temer que o público francês,
sempre impaciente em chegar às conclusões e ávido em conhecer a conexão entre os
fundamentos gerais e as questões imediatas que o apaixonam, venha a desanimar em
prosseguir a leitura porque tudo não se encontra logo no começo. Essa é uma
desvantagem contra a qual nada posso fazer, exceto prevenir e acautelar os leitores
sequiosos da verdade. Não há entrada já aberta para a ciência e só aqueles que não temem
a fadiga de galgar suas escarpas abruptas é que têm a chance de chegar a seus cimos
luminosos.
Não posso afiançar que com a leitura desta obra o leitor alcançará
“cimos luminosos”, mas posso dizer que eu os tenho alcançado ao estudar o
pensamento dos autores que procurei incorporar a este trabalho. Espero que
a leitura deste livro estimule o leitor a buscar seus próprios caminhos para
essa jornada do pensamento em busca da compreensão da formação dos
seres humanos.
1
2
Essa perspectiva hipostasiante da subjetividade e da individualidade realiza o “fetichismo da
individualidade”(DUARTE, 2004).
São de minha responsabilidade as traduções de citações extraídas de edições estrangeiras.
capítulo 1
A dialética entre objetivação e
apropriação
Meu propósito neste capítulo é o de mostrar que a relação entre os
processos de objetivação e apropriação constitui a dinâmica fundamental da
formação do gênero humano e dos indivíduos.
Com essa finalidade, dividi este capítulo em dois itens. No primeiro,
parto da análise realizada por Marx (2004), nos Manuscritos econômico-
filosóficos, a respeito do trabalho como atividade vital humana, que
diferencia os seres humanos dos outros animais, para mostrar que a
característica central dessa atividade reside justamente na relação dialética
entre os processos de objetivação e apropriação e que essa relação é geradora
do processo histórico de formação do gênero humano. Ainda que Marx e
Engels (2007) não utilizem, em A ideologia alemã, a expressão “atividade
vital”, a análise que eles ali fazem do que seja o processo histórico expressa a
mesma concepção da origem desse processo na atividade de produção dos
meios de satisfação das necessidades humanas; ou seja, no trabalho, como
atividade especificamente humana.
No segundo item deste capítulo, analiso a dialética entre objetivação e
apropriação como dinâmica do processo de formação do indivíduo como
um ser histórico e social. Procuro mostrar a importância da compreensão
dessa dinâmica para a concepção marxista da individualidade, que supera as
análises da ontogênese humana fundamentadas tanto no modelo biológico
de interação entre organismo e meio ambiente quanto em modelos
sociológicos reducionistas que concebem o indivíduo como resultante
passiva de um conjunto de fatores sociais.
A relação entre objetivação e apropriação: dinâmica
própria da atividade vital humana e geradora do
processo histórico
Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx (2004, p. 84) distingue o
ser humano dos demais animais por meio das características próprias da
“atividade vital” humana, que é o trabalho. A centralidade da atividade vital
para o desenvolvimento dos seres humanos é o que torna tão problemática a
inversão produzida pela alienação do trabalho, que transforma essa
atividade em simples meio de sobrevivência do indivíduo, em vez de se
constituir na atividade que o humaniza. Dessa maneira, por causa da
sociedade capitalista:
o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva mesma aparece ao homem apenas como um
meio para a satisfação de uma carência, a necessidade de manutenção da existência física.
A vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a vida engendradora de vida. No modo
(Art) da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de uma species, seu caráter genérico,
e a atividade consciente é o caráter genérico do homem. [Na sociedade capitalista:] A
vida mesma aparece como meio de vida [idem, ibidem, intervenção nossa entre
colchetes].
A atividade vital é antes de tudo aquela que reproduz a vida, é aquela
que toda espécie animal (e também o gênero humano) precisa realizar para
existir e para reproduzir a si própria como espécie. A atividade vital é a base
a partir da qual cada membro de uma espécie reproduz a si próprio como
ser singular e, em consequência, reproduz a própria espécie. No caso do ser
humano, a mera sobrevivência física dos indivíduos e sua reprodução
biológica por meio do nascimento de seres humanos asseguram a
continuidade da espécie biológica, mas não asseguram a reprodução do
gênero humano, com suas características historicamente constituídas. O
trabalho, como atividade vital humana, não é apenas uma atividade que
assegura a sobrevivência do indivíduo que a realiza e de outros
imediatamente próximos a ele, mas uma atividade que assegura a existência
da sociedade.
Essas duas funções da atividade vital humana, assegurar a existência
individual e assegurar a existência da sociedade, tornam-se, na sociedade
capitalista, funções alienadamente separadas e até antagônicas. Marx mostra
que, nas relações sociais capitalistas, nas quais o trabalho, atividade vital, é
transformado em mercadoria, essa atividade não se apresenta ao indivíduo
como aquilo que ela deveria ser, a principal forma de objetivação e
desenvolvimento de sua individualidade humana. O trabalho alienado não
deixa de ser uma atividade objetivante, no entanto, na condição de atividade
transformada em mercadoria, sua realização tem para o trabalhador não o
sentido de sua objetivação como ser humano, mas, sim, o sentido de um
meio (o único) que ele tem para assegurar sua existência. Nas palavras de
Marx (idem, ibidem), o trabalho alienado aliena o trabalhador “de si
mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital” e “faz-lhe da
vida genérica apenas um meio da vida individual”.
Para Marx, a atividade vital humana não é apenas uma atividade que
assegura a existência física do indivíduo, mas aquela que reproduz as
características fundamentais do gênero humano. Na medida, porém, em que
o trabalhador, para poder sobreviver, tem como única alternativa a venda de
sua força de trabalho, de sua atividade vital, esta se transforma em meio
para satisfazer uma única necessidade, a de sobrevivência. Mas a atividade
vital humana se caracteriza, em sua essência, por ser uma atividade que
reproduz o ser humano como ser genérico, o qual se distingue dos animais
por possuir uma atividade vital livre e consciente:
O animal é imediatamente um com sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O
homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência.
Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade (Bestimmtheit) com a
qual ele coincide imediatamente. A atividade vital consciente distingue o homem
imediatamente da atividade vital animal. Justamente, [e] só por isso, ele é um ser
genérico. Ou ele somente é um ser consciente, isto é, sua própria vida lhe é objeto,
precisamente porque é um ser genérico. Eis porque a sua atividade é livre [idem, ibidem].
Entretanto, na sociedade capitalista, o indivíduo trabalhador tem que
vender sua atividade vital para obter o salário sem o qual ele não pode
sobreviver. Esse ato de venda da sua atividade vital a aliena do próprio
trabalhador e, nesse sentido, o trabalho alienado “inverte a relação, a tal
ponto que o homem, precisamente porque é um ser consciente, faz da sua
atividade vital, da sua essência, apenas um meio para a sua existência” (idem,
p. 85).
É importante, porém, distinguir duas coisas. Uma delas é essa forma de
alienação da atividade vital: sua redução, para o trabalhador, a um meio de
satisfação de uma única necessidade, a da sua existência física. A outra é que
a produção das condições materiais da vida humana constitui a base
indispensável da própria história humana e, nesse sentido, é uma
característica fundamental da atividade vital humana. A universalidade do
trabalho foi claramente explicitada por Marx (1983, p. 149) em O capital:
o processo de trabalho deve ser considerado de início independentemente de qualquer
forma social determinada. Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a
Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla
seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como
uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua
corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural
numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a
Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria
natureza. Ele desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a
seu próprio domínio.
Nesse sentido, a atividade vital deve assegurar, antes de tudo, as
condições materiais da existência do gênero humano. Sem isso, não há
história. Essa produção não apenas constitui a indispensável base material
da vida em sociedade,como também gera a dinâmica fundamental do
processo histórico de desenvolvimento do gênero humano, isto é, a relação
entre objetivação e apropriação.
Se a atividade vital é aquela que, em primeiro lugar, assegura a
existência de cada espécie animal, ela é, antes de tudo, uma forma de
relacionamento entre a espécie e o restante da natureza. Na condição de ser
vivo, o ser humano precisa garantir, por meio de sua atividade, aquilo de
que seu organismo necessita para sobreviver. Esse ponto de partida da
história humana foi destacado por Marx e Engels (2007, pp. 32-33) em A
ideologia alemã:
devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a existência humana e
também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm que
estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para viver, precisa-se, antes
de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato
histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção
da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição
fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser
cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos.
Essa afirmação pode parecer uma obviedade, mas essa impressão se
desfaz quando é analisado o significado metodológico que ela assume na
concepção marxista da história humana. O ser humano não se distingue dos
animais simplesmente pelo fato de ter que realizar uma atividade que
assegure sua sobrevivência. O que é próprio ao ser humano é a maneira
como ele reproduz sua vida. Nesse ponto, começam as diferenças entre a
atividade vital humana e a atividade vital de outros animais. Para assegurar
sua sobrevivência, o ser humano realiza o primeiro ato histórico, o ato
histórico fundamental, isto é, ele produz os meios que permitem a satisfação
de suas necessidades básicas. Isso significa que a atividade vital humana, já
nas suas formas elementares, não se caracteriza pelo simples consumo dos
objetos que satisfaçam necessidades, mas, sim, pela produção de meios que
possibilitem essa satisfação. Ou seja, o ser humano, para satisfazer suas
necessidades, cria uma realidade humana, o que significa a transformação
tanto da natureza quanto do próprio ser humano.
Somos seres naturais, fazemos parte da natureza pelo simples e
incontornável fato de que somos seres vivos. Mas a natureza humana não é
fruto pura e simplesmente da natureza, é fruto também da sociedade, da
cultura, da experiência historicamente acumulada:
O homem, no entanto, não é apenas ser natural, mas ser natural humano, isto é, um ser
que é para si próprio e, por isso, ser genérico, que enquanto tal deve atuar e confirmar-se
tanto em seu ser como em seu saber. Por conseguinte, nem os objetos humanos são os
objetos naturais tais como se oferecem imediatamente, nem o sentido humano, tal como
é imediata e objetivamente, é sensibilidade humana, objetividade humana. Nem objetiva
nem subjetivamente está a natureza imediatamente presente ao ser humano de modo
adequado. E como tudo o que é natural deve nascer, assim também o homem possui seu
ato de nascimento: a história, que, no entanto, é para ele uma história consciente, e que,
portanto, como ato de nascimento acompanhado de consciência é ato de nascimento que
se supera [MARX, 1978, p. 41].
O ser humano, ao produzir os meios para a satisfação de suas
necessidades básicas de existência, ao produzir uma realidade humanizada
pela sua atividade, humaniza a si próprio, posto que a transformação
objetiva é acompanhada da transformação subjetiva. A atividade de trabalho
cria, portanto, uma realidade humanizada tanto objetiva quanto
subjetivamente. Ao se apropriar da natureza, transformando-a para
satisfazer suas necessidades, o ser humano objetiva-se nessa transformação.
Por sua vez, essa atividade humana objetivada nos produtos e fenômenos
culturais passa a ser ela também objeto de apropriação, isto é, o ser humano
deve se apropriar daquilo que de humano ele criou. Tal apropriação gera
nele necessidades humanas de novo tipo, que exigem nova atividade, num
processo sem fim. No meu entender, esse é o significado da expressão “um
ato de nascimento que se supera”.
De certa forma, o consumo de um objeto natural por um animal não
deixa de ser um ato de apropriação. Quando o animal se alimenta de um
vegetal ou quando um pássaro utiliza algo para construir seu ninho, está
sendo realizado um ato de apropriação. Há, porém, uma diferença
qualitativa entre esse ato elementar e a apropriação que o ser humano
realiza por meio da atividade vital. Mesmo quando a apropriação animal se
caracteriza pela produção de algo, por uma forma elementar de objetivação,
esse processo não se realiza como um processo gerador de uma realidade
qualitativamente nova, enquanto um processo gerador de história. Isso
porque essas formas animais elementares de objetivação e apropriação são
determinadas e limitadas pelo organismo do animal, isto é, pela
objetividade biológica da espécie, que lhe é transmitida geneticamente em
seu organismo. Daí Marx (2004, p. 85) afirmar que:
É verdade que também o animal produz. Constrói para si um ninho, habitações, como a
abelha, castor, formiga etc. No entanto, produz apenas aquilo de que necessita
imediatamente para si ou sua cria; produz unilateral[mente], enquanto o homem produz
universal[mente]; o animal produz somente sob o domínio da carência física imediata,
enquanto o homem produz mesmo livre da carência física, e só produz, primeira e
verdadeiramente, na [sua] liberdade [com relação] a ela; o animal só produz a si mesmo,
enquanto o homem reproduz a natureza inteira; [no animal,] o seu produto pertence
imediatamente a seu corpo físico, enquanto o homem se defronta livre[mente] com o seu
produto. O animal forma apenas segundo a medida e a carência da species à qual
pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer species, e
sabe considerar, por toda a parte, a medida inerente ao objeto; o homem também forma,
por isso, segundo as leis da beleza.
No segundo capítulo, voltarei à questão da universalização crescente do
ser humano ao longo da história. Por ora desejo frisar que o impulso à
universalização já se faz presente na forma de trabalho mais elementar,
posto que o trabalho gera a possibilidade do ser humano agir para além dos
limites das necessidades imediatas de seu organismo.
A diferença entre a produção animal e a humana mostra-se
particularmente clara quando se analisa, por exemplo, a atividade de
produção de instrumentos, que é tanto um processo de apropriação da
natureza pelo ser humano como um processo de sua objetivação. Adiante
mostrarei que a objetivação humana não se reduz à produção de objetos
materiais, que ela também se realiza de outras formas, como, por exemplo, a
produção da linguagem.
A transformação dos objetos naturais em instrumentos, em meios da
ação humana, é o melhor exemplo de apropriação da natureza pelo ser
humano. Um instrumento é não apenas algo que as pessoas utilizam em sua
ação, mas algo que passa a ter uma função social, uma significação que é
dada pela atividade social. O instrumento é, portanto, um objeto que é
transformado para servir a determinadas finalidades no interior da prática
social. O ser humano cria novo significado para o objeto. Mas essa criação
não se realiza de forma arbitrária. Em primeiro lugar, porque o ser humano
precisa conhecer a natureza do objeto para poder adequá-lo às suas
finalidades. Ou seja, para que o objeto possa ser transformado e inserido na
“lógica” da atividade humana, é preciso que o ser humano se aproprie de
sua “lógica” natural. Em segundo lugar, a transformação de um objeto em
instrumento não pode ser arbitrária porque um objeto só pode ser
considerado um instrumento quando possui uma função no interior da
prática social. Isso é válido mesmo parao caso de certas invenções cujo uso
só se torna possível tempos após sua criação, por não existirem naquele
momento as condições necessárias para que a prática social incorporasse a
invenção.
Há, portanto, uma relação dialética entre o que é o objeto em seu
estado natural e o que ele passa a significar na prática social. Para poder
transformar um objeto físico natural em um instrumento, o ser humano
deve levar em conta, isto é, conhecer, as características físico-naturais do
objeto, ao menos aquelas diretamente relacionadas às funções que terá o
instrumento. Mesmo nos primórdios da evolução humana, quando os
instrumentos ainda eram muito primitivos, como a pedra lascada, era
necessário certo grau de conhecimento objetivo das propriedades dos
objetos e fenômenos da natureza para que fosse possível colocar tais objetos
e fenômenos a serviço da satisfação das necessidades humanas. Em outras
palavras, para transformar a natureza em natureza humanizada, era preciso
adquirir algum conhecimento do que a natureza é em si mesma. Nessa
perspectiva, pode-se dizer que foi a produção de instrumentos que fez surgir
algo que até então não existia: a relação entre sujeito e objeto. É nesse
sentido que Marx afirmou que o animal e sua atividade são uma coisa só. Na
atividade animal, não há a relação entre sujeito e objeto. Para produzir
instrumentos, entretanto, o ser humano precisou distinguir o que o objeto é
para ele e o que o objeto é independentemente dele, ser humano1.
É claro que a afirmação de que a inserção da natureza na prática social
exige um certo grau de conhecimento da natureza em si mesma deve ser
entendida historicamente, ou seja, como um processo em cujo início esse
conhecimento do objeto em si mesmo está indissociavelmente ligado à sua
utilidade prática para os seres humanos. Estes tentam usar, por exemplo, um
tipo de madeira para determinada finalidade, e o resultado positivo ou
negativo lhes fornece uma informação sobre o objeto em si. Só que essa
informação aparece, de início, em decorrência da tentativa de inserção do
objeto numa determinada ação humana, isto é, da tentativa de apropriação
do objeto. Com o desenvolvimento social, o conhecimento foi adquirindo
autonomia em relação à utilidade prática dos objetos. A ciência, por
exemplo, permite cada vez mais conhecer a natureza na sua dinâmica
própria, interna, a qual, em sua origem, não resulta da atividade humana,
ou seja, não resulta de nenhuma forma de consciência.
O aspecto que estou procurando destacar é o de que a apropriação de
um objeto natural pelo homem, que o transforma em seu instrumento,
nunca pode se realizar independentemente das condições objetivas originais
desse objeto, ainda que estas venham a sofrer enormes transformações
qualitativas, gerando fenômenos sem precedentes na história natural. O
objeto, portanto, não é totalmente subtraído de sua lógica natural, mas esta
é inserida na lógica da prática social. O ser humano não produz e reproduz
sua realidade sem apropriar-se da realidade natural. Ocorre que essa
apropriação não se realiza sem a atividade humana, seja a de utilização do
objeto como um meio para alcançar uma finalidade consciente, seja a de
transformação do objeto, para que ele possa servir mais adequadamente às
novas funções que passará a ter, ao ser inserido na atividade social. O objeto
em seu estado natural é resultante da ação de forças físico-químicas e,
dependendo do objeto, de forças biológicas. Como instrumento, ele passará
a ser resultante também da atividade consciente.
O ser humano cria uma nova função para aquele objeto – o que pode
acontecer de forma deliberada ou, de início, até mesmo de forma acidental –
e busca, por meio de sua atividade, obrigar o objeto a assumir as feições e
características desejadas. O objeto, ao ser transformado em instrumento,
passa a ser uma objetivação2, pois o ser humano objetivou-se nele,
transformou-o em objeto humanizado, portador de atividade humana. Isso
não quer dizer apenas que o objeto sofreu a ação humana, o que em nada
distinguiria esse processo do fato de que o objeto em seu estado natural
resulta da ação das forças naturais. A questão fundamental é que, ao sofrer a
ação humana, o objeto passa a ter novas funções, isto é, passa a ser portador
de funções sociais.
Foi a atividade de trabalho que gerou um fenômeno inexistente antes
do aparecimento da espécie humana: surgem objetos cuja existência objetiva
é precedida de sua existência na consciência.
No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na
imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma
transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural
seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e
ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado. Além
do esforço dos órgãos que trabalham, é exigida a vontade orientada a um fim, que se
manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho, e isso tanto mais quanto
menos esse trabalho, pelo próprio conteúdo e pela espécie e modo de sua execução, atrai
o trabalhador, portanto, quanto menos ele o aproveita, como jogo de suas próprias forças
físicas e espirituais [MARX, 1983, pp. 149-150].
O objeto humanizado não é, como se pode ver nessa passagem, fruto
de uma imaginação sonhadora que inventa uma realidade segundo seus
desejos. Para que o objetivo final seja alcançado, faz-se necessária a
mediação da atividade autocontrolada. Na citada passagem, Marx acentua o
fato de que, no trabalho alienado, o esforço para manter a atenção deve ser
maior ainda, pois se trata de uma atividade realizada por imposição, por
constrangimento. Não é uma atividade resultante de livre escolha. O
trabalhador a realiza porque precisa do salário. Entretanto, com tal
observação, Marx não está contradizendo aquilo que acabara de afirmar,
isto é, que o trabalho é uma atividade dirigida e controlada conscientemente
pelo objetivo previamente estabelecido na consciência. Apenas está
mostrando que o esforço exigido para que se efetive esse autocontrole é
maior nas condições do trabalho alienado.
Resumindo essa relação entre objetivação e apropriação na produção
de instrumentos: o ser humano apropria-se da natureza objetivando-se nela
para inseri-la em sua atividade social. Sem a apropriação da natureza, não
haveria a criação da realidade humana, não haveria a objetivação do ser
humano. Sem objetivar-se por meio de sua atividade, o ser humano não
pode se apropriar humanamente da natureza.
Outra forma pela qual a relação entre objetivação e apropriação se
realiza na incorporação de um objeto natural à atividade social humana é a
de que, nesse processo, surgem (se objetivam) novas forças e necessidades
humanas, em função de novas ações geradas pelo enriquecimento da
atividade humana. E esse é um ponto importante para se conceber
historicamente a relação entre objetivação e apropriação na atividade social.
Não haveria desenvolvimento histórico se o ser humano se apropriasse de
objetos que servissem de instrumentos para ações dentro de um conjunto
fechado de forças humanas e de necessidades humanas. O que possibilita o
desenvolvimento histórico é justamente o fato de que a apropriação de um
objeto – transformando-o em instrumento, pela objetivação da atividade
humana nesse objeto, inserindo-o na atividade social – gera, na atividade e
na consciência dos seres humanos, novas necessidades e novas forças,
faculdades e capacidades. Ou seja, a relação entre objetivação e apropriação
na incorporação de forças naturais à atividade social gera a necessidade de
novas apropriações e novas objetivações.
Citei, anteriormente, uma passagem de A ideologia alemã na qual Marx
e Engels afirmaram que o primeiro ato histórico é a produção dos meios que
permitem a satisfação das necessidades ligadas à sobrevivência humana. É
interessantenotar que, na sequência do raciocínio, Marx e Engels (2007, p.
33) afirmam que:
O segundo ponto é que a satisfação dessa primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o
instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades – e essa produção
de novas necessidades constitui o primeiro ato histórico.
Pode parecer estranho, à primeira vista, que Marx e Engels tenham
afirmado que o primeiro ato histórico tenha sido a produção dos meios de
satisfação das necessidades humanas e depois afirmado que o primeiro ato
histórico foi igualmente a produção de novas necessidades. Mas isso só soa
estranho se não raciocinarmos dialeticamente. O primeiro ato histórico é
constituído dessas duas coisas ao mesmo tempo. O ser humano tem
necessidades a serem satisfeitas, por exemplo, a de se alimentar. Para
satisfazer essa necessidade, ele produz meios, por exemplo, uma lança, que
usa para caçar. A produção da lança gera a necessidade de conhecer cada vez
melhor a natureza, para produzir lanças que efetivamente facilitem a
atividade de caça. Essa necessidade de conhecimento da natureza é uma
nova necessidade que foi gerada pelo processo de produção dos meios de
satisfação de necessidades que já existiam. É por isso que esse é o primeiro
ato histórico. Não há história social se não houver transformação da
realidade humana, se não houver desenvolvimento. Mas não há
desenvolvimento humano se não houver a transformação das necessidades
humanas, seja pela modificação das formas de satisfação de necessidades
anteriormente existentes, seja pelo surgimento de novos tipos de
necessidades. Mais adiante voltarei à análise desse processo de formação de
novas necessidades, que é de extrema importância tanto para a história de
desenvolvimento do gênero humano como para a educação dos indivíduos.
Seria, entretanto, equivocado, concluir, com as considerações
precedentes, que a relação entre objetivação e apropriação só aparece
quando o ser humano cria algo novo. Na questão analisada, da produção de
instrumentos, isso pode ser notado com facilidade. Em primeiro lugar, a
repetição da produção de um tipo de instrumento já existente é também um
processo tanto de objetivação quanto de apropriação. E é muito difícil, na
história, separar absolutamente a repetição e a criação do novo, porque
muitas vezes, ao se produzir um instrumento já existente, são descobertos
novos aspectos que levam ao seu desenvolvimento. O mesmo pode
acontecer com a descoberta de novas formas de utilização de um
instrumento, o que pode vir a nele acarretar modificações. Esses exemplos
simples já mostram que a objetivação e a apropriação, como processos de
reprodução de uma realidade já existente, não se separam de forma absoluta
da objetivação e da apropriação como geração do novo.
É importante também ressaltar que a análise da relação entre
objetivação e apropriação, como dinâmica própria da atividade vital
humana e geradora do processo histórico, não pode ser reduzida ao
processo de produção e utilização de instrumentos propriamente ditos.
Além destes, as mais elementares formas de atividade vital humana contêm,
necessariamente, outras duas formas de objetivação e apropriação: a
linguagem e as relações entre os seres humanos.
O trabalho não se realiza sem a atividade de comunicação entre os seres
humanos, na medida em que a atividade vital humana é, desde sua origem,
uma atividade coletiva. O ser humano em suas origens já se apresentava
como um ser gregário, isto é, vivia e agia coletivamente. Marx (2011, p. 39),
nos Grundrisse, ridiculariza as “robinsonadas” dos economistas clássicos que
iniciavam suas análises sempre de uma legendária situação, nos primórdios
da história humana, de um isolado produtor de mercadorias.
A atividade vital humana, sendo originalmente uma atividade
imediatamente coletiva, exige a atividade de comunicação, que se foi
objetivando, ao longo da história primitiva, em signos e em sistemas de
signos, isto é, a linguagem. Esses sistemas de signos transformam-se em
sistemas internos, orientadores da atividade de pensamento, num processo
infinito de interiorização e exteriorização. A apropriação da linguagem é a
apropriação da atividade histórica e social de comunicação que nela se
acumulou, se sintetizou3.
A relação entre objetivação e apropriação na relação entre pensamento
e linguagem se enquadra na categoria de “primeiro ato histórico”, já
mencionada. A linguagem é um meio que o ser humano cria para satisfazer
uma necessidade, no caso, a de comunicação. A comunicação é uma
necessidade vital para a atividade coletiva de trabalho. Ao criar meios de se
comunicar, os seres humanos geraram novas necessidades. Portanto, a
objetivação do pensamento por meio da linguagem possui as duas
características do “primeiro ato histórico”, do “ato de nascimento que se
supera”.
Além dos instrumentos e da linguagem, também as relações entre os
seres humanos assumem formas objetivadas. No início, provavelmente, esse
tipo de objetivação estava muito ligado ao êxito de certas formas de
atividade coletiva, na relação com a natureza, nas quais se estabeleciam
determinadas relações entre os seus participantes. Assim como a linguagem
e os instrumentos, a objetivação das relações entre os seres humanos
significa acúmulo de experiência, síntese de atividade humana; de tal forma
que cada indivíduo, apropriando-se dessas objetivações, passa a agir no
âmbito das condições sociais, isto é, no âmbito das condições que não
resultam da natureza, mas, sim, da história da atividade dos outros seres
humanos.
Em resumo, a atividade humana é uma atividade histórica, geradora da
história, do desenvolvimento humano, da humanização da natureza e do
próprio gênero humano, em decorrência de algo que caracteriza a
especificidade dessa atividade diante de todas as demais formas de atividade
de outros seres vivos. O que caracteriza essa peculiaridade é a relação entre
objetivação e apropriação, que se efetiva já nas formas mais elementares de
relacionamento do ser humano com a natureza, já no primeiro ato histórico
de produção dos meios de satisfação das necessidades humanas e de criação,
nessa produção, de necessidades qualitativamente novas. A relação entre
objetivação e apropriação se efetiva, portanto, no próprio “ato de
nascimento que se supera”.
A relação entre objetivação e apropriação como
mediação entre a formação do indivíduo e a história
do gênero humano
O ato de nascimento que se supera é um processo, sem o que não seria
história. Em outras palavras, não se pode falar em um começo absoluto, no
qual alguns primeiros representantes da espécie Homo sapiens teriam
realizado esse ato de nascimento a partir do nada. Mesmo aqueles
momentos que possuíram o significado de um salto qualitativo, fazendo
com que o desenvolvimento humano ingressasse em nova fase, se realizaram
como desdobramentos de ações anteriores. A passagem da evolução
biológica para a história social não aconteceu subitamente. A história, como
o processo de autotransformação humana, como o ato de nascimento que se
supera, não pode, portanto, ser pensada de outra forma que não a da
atividade de seres humanos que nascem sempre num determinado
momento histórico. Cada geração tem que se apropriar das objetivações
resultantes da atividade das gerações passadas. A apropriação da significação
social de uma objetivação é um processo de inserção na continuidade da
história das gerações. Marx e Engels (2007, p. 43), em A ideologia alemã,
dizem que em cada uma das fases da história:
encontra-se um resultado material, uma soma de forças de produção, uma relação
historicamente estabelecida com a natureza e que os indivíduos estabelecem uns com os
outros; relação que cada geração recebe da geração passada, uma massa de forças
produtivas, capitais e circunstâncias que, embora seja, por um lado, modificada pela nova
geração, por outro lado prescreve a esta última suas próprias condições de vida e

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