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9 786558 990130 ISBN 978-65-5899-013-0 Rafael Alves de Souza é engenheiro Civil formado pela Universidade Esta- dual de Maringá em 1999. Mestre em Engenharia de Estruturas pela Uni- versidade Estadual de Campinas em 2001. Doutorado-Sanduíche pela Uni- versidade do Porto, Portugal, em 2003. Doutor em Engenharia de Estruturas pela Escola Politécnica da Universida- de de São Paulo em 2004. Pós-doutor pela University of Illinois at Urbana- -Champaign, Estados Unidos, em 2006. Pós-doutor pela University of Mas- sachusetts Amherst, Estados Unidos, em 2015. Em 2011, realizou estágios de curta duração em nível de pós-douto- rado na École Politécnique Fédérale de Lausanne (Suíça) e na Technologic Uni- versity of Delft (Holanda). É Professor Titular da Universidade Estadual de Maringá e Diretor da Engracon Enge- nharia e Arquitetura Ltda. Essa obra, de cunho realista, aborda a janela temporal de um ano (março de 2019 e março de 2020) na vida de um engenhei- ro de estruturas, pouco antes do início da pandemia que viria chacoalhar o mundo. Com uma linguagem envolvente, o autor narra diversas experiên- cias de vida que se apre sentam em paralelo às de mandas de sua profissão, revelando que nem sempre as melhores oportuni- dades profissionais irão surgir nos momentos de calmaria. Misturando uma linguagem téc- nica acessível com toques de po- esia que realçam as emoções do cotidiano, a história se desenrola com conexões energéticas incrí- veis e difíceis de serem imagina- das. Seriam as coincidências da vida previamente preparadas pelo destino ou seriam frutos de nossos desejos? Dentro desse mistério existen- cial, resta apenas deixar-se vi- ver e ir aceitando com gratidão os caminhos que a vida vai nos impondo, mesmo nos momen- tos mais difíceis. A vida é, lite- ralmente, não-linear. R A FA SO U Z A EM FR EN T E A O BU R IT I capa_em frente ao buriti4.indd All Pagescapa_em frente ao buriti4.indd All Pages 10/02/2021 21:01:3310/02/2021 21:01:33 EM FRENTE AO BURITI Reflexões de um engenheiro de estruturas miolo-buriti4.indd 1miolo-buriti4.indd 1 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 miolo-buriti4.indd 2miolo-buriti4.indd 2 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 1a edição Maringá/PR SGuerra Design 2020 EM FRENTE AO BURITI Rafa Souza Reflexões de um engenheiro de estruturas miolo-buriti4.indd 3miolo-buriti4.indd 3 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 © 2020 Rafa Souza Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Editado em novembro de 2020 Todos os direitos reservados em nome do autor. Capa: Willer Carvalho Revisão de textos: Hedy Lamar Barbosa de Oliveira Projeto gráfico e diagramação: SGuerra Design Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7/5880) Índices para catálogo sistemático 1. Romance brasileiro S729e Souza, Rafa Em frente ao Buriti: reflexões de um engenheiro de estruturas / Rafa Souza. – 1.ed. – Maringá (PR) : SGuerra Design, 2020. 188 p.: 14x21 cm ISBN: 978-65-5899-013-0 1. Romance brasileiro. I. Souza, Rafael de Souza. II. Título: reflexões de um engenheiro de estruturas CDD B869.3 miolo-buriti4.indd 4miolo-buriti4.indd 4 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 Esta obra foi escrita num ato de explosão, no mês de maio de 2020, durante o período de quarentena em face do isolamento social promovido pela Covid-19. Aborda-se aqui o período cronológico de março de 2019 a março de 2020, com o registro dos desafios profissionais e aprendizados de vida durante essa pequena janela temporal. Dedico essa obra aos meus queridos pais, Nilson Evelazio de Souza (in memoriam) e Ângela Maria Alves Souza. Com amor para Dani, Gabriel e Tiago. Família: minha obra máxima. miolo-buriti4.indd 5miolo-buriti4.indd 5 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 miolo-buriti4.indd 6miolo-buriti4.indd 6 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 7 Sumário Prefácio 9 Segredos da Quarentena Tao 13 Métodos Energéticos 15 Estado-Limite Último 23 Movimento Retilíneo Uniforme 29 A Vida é Não-Linear 49 O Passageiro Oculto 55 Em Frente ao Buriti 59 Efeito-Escala 65 Sexto Sentido 73 O Primeiro Relatório 77 O Ex-Sócio 87 Colapso Frágil 91 Armadilha Tecnológica 97 O Segundo Relatório 103 Investigadores de Estruturas 111 Angústias de Projeto 121 Acima das Nuvens 129 Buscando Apoio 133 Inferno 141 Ponteiro e Marreta 145 miolo-buriti4.indd 7miolo-buriti4.indd 7 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 8 Rafa Souza Wu Wei 151 Janeiro 157 Audiência Máxima 161 Mundo em Movimento 165 Imagens 169 O Autor 183 Posfácio 185 miolo-buriti4.indd 8miolo-buriti4.indd 8 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 9 Prefácio Quando o Rafael me procurou para prefaciar seu livro, fiquei honrado e aceitei de bom grado o convite, certo de que estaria diante de mais um livro técnico, escrito em bases científicas. Conhecendo a vitoriosa trajetória profissional do en- genheiro, Prof. Dr. Rafael Alves de Souza, que, com apenas 15 anos de profissão, foi reconhecido com o grau máximo da carreira docente, o de professor titular da Universidade Estadual de Maringá, achei que o texto estaria recheado de equações, modelos físicos e computacionais, aproximações numéricas e muitos desenhos indecifráveis para qualquer leigo pouco preparado ante as particularidades do desenho de projetos de estruturas de concreto. O Rafael coleciona em seu exemplar curriculum, dois pós-doutorados no exterior, em centros de pesquisa e ensi- no de primeiríssima grandeza, estágios na Suíça e Holanda, mestrado na Unicamp e doutorado na USP, de tal manei- ra que, ao receber seu convite, eu supus que iria prefaciar uma obra de engenharia de excelência, um conteúdo com as marcas próprias da engenharia de projeto. Nada seria mais natural que esperar por um texto dentro das regras de miolo-buriti4.indd 9miolo-buriti4.indd 9 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 10 Rafa Souza escrita acadêmica, de cunho científico, com objetivos bem definidos, hipóteses, métodos de ensaios, simulações, exem- plos, análises matemáticas e estatísticas com demonstrações teóricas e práticas irrefutáveis. Reservei o fim de semana largo do feriado de sete de setembro para ler a obra e escrever este prefácio. Vinha de uma semana pesada e cheia de desafios ao enfrentar o “novo normal” e ter de realizar um congresso virtual com a missão e expectativa de substituir o tradicional e prazeroso con- gresso presencial do Ibracon. Relaxei na manhã de sábado, busquei a companhia de minha esposa querida, que andou a semana toda aban- donada, e, no período da tarde, iniciei a leitura com certa resignação técnica. Qual não foi a minha surpresa... e que surpresa agradável! Inicialmente me senti diante de um conto, muito bem escrito e envolvente, de um engenheiro descrevendo seus de- safios profissionais. Referia o texto a uma solicitação técni- ca complexa de uma grave manifestação patológica precoce, cujo parecer conclusivo de inspeção, diagnóstico, prognósti- co e terapêutica deveria ser realizado no período de um ano. Continuei desfrutando da leitura e percebi que no- vamente tinha me enganado, pois um conto é uma narra- tiva breve e concisa, envolta em um conflito, com número restrito de personagens. Ao contrário, começaram a apa- recer novos personagens com seus dramas, aventuras, va- lores e esperanças. Passei a considerar que tinha nas mãos uma crônica ou conto extenso, cujo gênero ainda eu não sabia precisar, embora se mantivesse a linguagem cativante e objetiva que miolo-buriti4.indd 10miolo-buriti4.indd 10 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 11 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas contaria uma passagem de vida de forma rápida e sem mui- tos detalhamentos. Toquei adiante com mais atenção e logo percebi que o relato continha uma série de discussões inte- ressantes e profundasde um cidadão, mais especificamente de um profissional de engenharia, que lança mão da ciência aplicada para o exercício profissional com ética, responsabi- lidade e competência. Aos poucos, fui tomando consciência de que o texto que eu tinha em mãos era, na realidade, um romance que, partindo de uma temática própria do universo da engenha- ria, se adentrava nas questões mais profundas do ser huma- no envolvido em suas circunstâncias espaciais e temporais, repletas de impressões, sentimentos e crenças, mergulhado simultaneamente no racional, no intuitivo e no mágico. O romance que tenho nas mãos e introduzo ao leitor com este prefácio conta uma história de um personagem principal, um verdadeiro herói, cujo enredo é apresentado a partir de um encadeamento de eventos vividos e filtra- dos pelo olhar humano de um engenheiro consciente de seu papel na sociedade, como profissional, como pai de família, como esposo amoroso, como filho e, também, como cidadão. O Rafa, como prefere se intitular, tem uma sensibilida- de e habilidade ímpares, capazes de cativar o leitor. Discute com propriedade as soluções técnicas complexas, sem es- crever uma equação ou apresentar sequer uma tabela ou ábaco. Mas o leitor vê como magia as soluções técnicas apa- recerem diante de seu olhar e imaginação despertados com maestria pelo autor. Ao mesmo tempo, consegue transmitir as inseguran- ças, os medos, as intuições, o encantamento que acabam miolo-buriti4.indd 11miolo-buriti4.indd 11 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 12 Rafa Souza fazendo parte da solução técnica holística, ao lado do de- terminismo e da falsa segurança que os programas e a teoria matemática dão àqueles que pensam tudo saber. O Rafa consegue prender, envolver e fazer o leitor com- partilhar com ele as grandes emoções da vida, conseguindo, até, levar este profissional experiente às lágrimas, com a for- ça de sua narrativa. Recomendo, de coração, a leitura deste fabuloso livro escrito com autoridade por Rafael Souza, um maestro da engenharia e da escrita literária, que fez valer com precisão a frase por ele citada como sendo do físico inglês, Stephen Hawking, reconhecido como o Albert Einstein dos tempos contemporâneos: “a ciência não é apenas a disciplina da ra- zão, mas também do romance e da paixão”... Desfrutem! São Paulo, 7 de setembro de 2020 Prof. Dr. Paulo Helene Diretor-Presidente do Ibracon miolo-buriti4.indd 12miolo-buriti4.indd 12 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 13 Segredos da Quarentena Tao Sonhei que andava no escuro. E, no estalar dos dedos, Tudo se fez clarão. Sonhei que morava num buraco. E, ao aceitar minha condição, Fiquei amigo de Platão. Sonhei que caía do espaço. E, ao bater os braços, Fui do desespero à suspensão. Finalmente, Sonhei que estava vivo. Mas, ao abrir os olhos, Percebi que era apenas ilusão. miolo-buriti4.indd 13miolo-buriti4.indd 13 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 miolo-buriti4.indd 14miolo-buriti4.indd 14 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 15 Métodos Energéticos "Precisamos especialmente de imaginação nas ciências. Nem tudo é matemática e nem tudo é lógica simples; é também um pouco de beleza e poesia." Maria Montessori B rasília sempre me fascinou como engenheiro de estru-turas. E essa atração é, em grande parte, fruto de toda a beleza existente em torno das soluções dadas por Joaquim Cardoso, o grande calculista de Niemeyer. Além do con- creto, tenho em comum com Joaquim a veia poética e isso, certamente, me fez apreciar ainda mais o talento do grande engenheiro pernambucano. Para projetar bem estruturas, é interessante andar de mãos dadas com as artes e estar aberto às emoções, além, é claro, da lógica. O engenheiro precisa ser racional, mas também precisa ser sensível. Em função de uma possibilidade de trabalho que me apareceu em Foz do Iguaçu no início do ano (estamos em 2019), comecei a estudar novamente Brasília e as soluções estruturais do mestre Joaquim. Meu problema era resolver uma enorme laje com formato de ameba, que, ainda por cima, ostentaria um jardim, aberturas e enormes balanços. miolo-buriti4.indd 15miolo-buriti4.indd 15 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 16 Rafa Souza Me lembrei das lajes nervuradas com caixão perdido do velho mestre e comecei a estudar essa possibilidade avida- mente, mesmo sem ter ainda fechado o negócio. Na mesma época, minha esposa, Daniela, que é arqui- teta, perguntou-me por que eu estudava tanto as soluções estruturais de Brasília, sendo que sequer havia fechado contrato para calcular a obra de Foz do Iguaçu. Como sem- pre, respondi que estava afiando o machado e que, hora ou outra, poderia vir a utilizar tal solução, mesmo que não fosse em Foz do Iguaçu. A verdade é que passei um or- çamento para o pessoal de Foz e sabia que dificilmente ganharia a concorrência. Normalmente é assim, querem construir obras arrojadas, mas sempre querem economi- zar no projeto estrutural. Dani então começou a discorrer sobre seus estudos re- lacionados ao Feng Shui e revelou que havia sido acertada a ideia de trazermos o escritório para a garagem de casa. Mal sabíamos nós que nosso home-office anteciparia uma tendência futura forçada, que seria concretizada um ano de- pois, num contexto mundial. Aparentemente, o centro energético da nossa casa (cal- culado com base nas figuras geométricas que constituem os cômodos), havia mudado do banheiro para a sala, após a transformação da garagem em um escritório, e isso nos dava uma condição energética positiva. Ficamos durante sete anos na torre do Aspen Trade Center e, ao longo de todo esse tempo, me lembro de ter re- cebido pouquíssimos clientes. Em função dos mecanismos virtuais de comunicação, uma porta aberta já não trazia tan- to impacto nos negócios tal como no passado, especialmente miolo-buriti4.indd 16miolo-buriti4.indd 16 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 17 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas para um engenheiro acostumado a trabalhar sozinho e em problemas que exigem concentração intensa. Ao ver a história de empresas como Microsoft, Apple e Amazon, decidimos que poderíamos recomeçar na garagem de casa, contendo gastos e mirando em focos específicos. Às vezes, para dar um passo para frente, é necessário dar dois pas- sos para trás. E foi assim. Vendemos um dos carros e trocamos o outro automóvel por um veículo menor, de maneira que esse último pudesse ser acomodado no espaço descoberto que ha- via sobrado em frente à antiga garagem, agora escritório. Em pouco tempo, estávamos trabalhando em nossa garagem, na Rua Lazurita 347, em pleno verão de janeiro, sob um calor insuportável, pela falta de ar-condicionado. Paralelo a isso, fechamos uma outra empresa que tínhamos, destinada a reformas, reforços e recuperações estruturais. A Engrafix Construções sobreviveu arduamente por 5 anos, tentando exercer uma engenharia de ponta, mas aca- bou engolida pela selvageria do mercado: preços desleais, impostos cruéis do sócio inoperante (governo) e propinas que não aceitávamos pagar para compradores de algumas empresas contratantes. Aceitamos, com humildade, que não tínhamos condições de tocar várias frentes ao mesmo tempo e fomos gratos por entender os mecanismos que le- vam empresas menos qualificadas a prosperarem em um curto espaço de tempo. Ainda no início de 2019, no meio do turbilhão de mu- danças, eu vinha chateado em função de uma nova lesão no ligamento cruzado anterior. A perna esquerda já era opera- da, devido ao futebol. A direita, agora, precisaria ser ope- rada, em função do melhor esporte já inventado para um miolo-buriti4.indd 17miolo-buriti4.indd 17 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 18 Rafa Souza engenheiro de estruturas, o jiu-jitsu, arte marcial baseada em alavancas e esforços simples. Era final de dezembro de 2018, quando, na tentati- va de finalizar um colega com uma submissão conhecidacomo “arco e flecha”, fui surpreendido por uma reposição de meia-guarda que fez meu joelho estalar: pop. Quando o joelho estala, já era, meu amigo. Torção é realmente um esforço simples danado. Fiz a ressonância e estava lá, a se- ção completamente rompida. Meu sonho de ir lutar em um campeonato mundial havia sido adiado e, ao invés dos trei- nos frequentes, passei a me concentrar rotineiramente nos trabalhos de fisioterapia que viriam após a cirurgia. Operei no dia 11 de fevereiro de 2019 e, no dia 9 de março, já sem as muletas mas mancando, fui dar uma aula de pré-moldados na especialização da Universidade Estadual de Londrina. Na estrada, já voltando para casa, eu vinha pensando na vida e suas vicissitudes. O joelho dolo- rido e a falta do jiu-jitsu no dia a dia me incomodavam. O projeto de Foz e tantos outros que não haviam vingado, por mim batizados de projetos natimortos. O escritório na ga- ragem de casa, dando a sensação de que estava regredindo profissionalmente. Resolvi parar num posto qualquer de beira de estrada e alcancei um energético mais próximo para dar uma motivada no ânimo. Ao dar uma espiada no WhatsApp, vi uma mensagem que me chamaria a atenção entre o bombardeio de mensagens inócuas: “Boa tarde, professor. Me chamo D.F. e sou Coordenadora de Projetos e Obras. O Prof. H. da UNB me passou seu conta- to. Estamos com um sério problema em um prédio do nosso miolo-buriti4.indd 18miolo-buriti4.indd 18 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 19 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas tribunal, que precisou ser evacuado e interditado no dia 22 de fevereiro. Vamos precisar escorar e posteriormente analisar o problema para encontrar possíveis causas e uma nova solução. O foco do problema é a laje da cobertura, nervurada e proten- dida, e que recebeu vigas metálicas perfil I como solução de um reforço estrutural na laje, há 3 anos. O que nos chama a aten- ção é o aparecimento de novas patologias e rompimento dos cabos. Precisamos urgentemente contratar um profissional da área, por inexigibilidade (notória especialização) e gostaria de saber se o senhor se interessa em apresentar uma proposta para ser nosso consultor técnico. Apesar de saber que o senhor está em outra cidade, acreditamos que apenas no início será neces- sária uma reunião em Brasília. Caso tenha interesse em nos ajudar, e queira saber um pouco mais do problema, envio as in- formações por e-mail. Desde já, agradeço a atenção. Boa tarde”. Por um momento não acreditei no que estava lendo. Evidentemente que já havia participado de outros casos de repercussão, tais como a ruína do Cassino Tropicana (na épo- ca em que fiz pós-doc na Universidade de Illinois), o colapso progressivo das sacadas de um edifício em Maringá e a ruína do palco do ex-governador Requião. Mas o que me chamava a atenção é que, desta vez, era em Brasília, cidade fantástica e emblemática, bem longe da minha humilde garagem. Mas o que mais me intrigava é que havia estudado Brasília meses antes. Já não sabia dizer se era a minha in- tuição ou se era o centro energético que minha esposa tinha decodificado através do Feng Shui. Será que nos prepara- mos intuitivamente para algo que vai acontecer ou será que as coisas acontecem porque as atraímos? miolo-buriti4.indd 19miolo-buriti4.indd 19 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 20 Rafa Souza Essa sensação estranha já tinha me acontecido no jiu- -jitsu, quando tive uma luxação no ombro direito. O treino já tinha acabado e um companheiro me chamou para fazer um treino extra. Algo me dizia para não ir, que eu poderia me machucar, mas acabei indo contra meus próprios sinais. Após levar uma queda, o oponente ficou irritado e retomou a batalha, dando um armlock voador, que acabou por luxar meu ombro, gerando uma dor inexplicável e absurdamente inesquecível. Ficou a questão: me machuquei porque não ouvi minha intuição ou me machuquei porque atraí aquilo que pensei? O fato é que comecei a ficar mais atento às mi- nhas leituras sensoriais... Voltando ao convite de Brasília, ao mesmo tempo em que a notícia era mágica, também era preocupante, pois me colocava possivelmente em um dos grandes desafios profissionais da minha vida. Como lidar com tudo aquilo? A gente se prepara tanto e daí aparece aquela situação tão sonhada. Como encarar com êxito a realidade daquilo que você tanto sonhou??? Continuei a viagem de volta de Londrina e fiz uma pa- rada em Mandaguari, antes de retornar para Maringá. Lá encontraria minha esposa e meus filhos, que haviam ficado na casa dos meus sogros queridos, Roberto e Sueli. Ao con- tar a notícia para todos, não sabia se sentia medo ou alegria, pois se tornava real a possiblidade de um trabalho especial em uma cidade onde os grandes engenheiros e arquitetos brasileiros deixaram sua marca. Minha esposa, que sabia que eu vinha estudando Brasília, achou, num primeiro momento, que eu havia enlouquecido. “Pronto, além de manco da perna, agora também ficou pinel miolo-buriti4.indd 20miolo-buriti4.indd 20 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 21 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas da cabeça”, disse ela logo que contei a notícia sobrenatural. Ao constatar a verdade, ela também percebeu que o destino nos dá uns toques malucos e que devemos estar mais aten- tos a esses sinais. Meu sogro, Roberto Corazza, também é engenheiro. Engenheirão de obra, daqueles bons e em falta no merca- do. Milhares de metros quadrados construídos em silos nas áreas mais remotas desse Brasil. Foi nosso sócio na Engrafix e, grande parte do que aprendi de canteiro, foi com ele. Meu professor de canteiro, meu guru do “como se faz”. Foram muitas tardes de aprendizado com ele, dobrando estribos para tapear o ritmo lento das obras que pegamos no período de vida da empresa. E foi com ele que discuti as primeiras possibilidades de como salvar aquele colosso em Brasília. Minha sogra, Sueli Corazza, é psicóloga. E devido à profissão que escolheu, me deu a honra de conhecer de perto o refúgio de um dos maiores expoentes da Psicologia, Carl Gustav Jung. Seu sonho sempre foi conhecer o castelo de Jung e, com muita garra, conseguimos encontrá-lo no meio do nada, em um vilarejo chamado Bollingen, nas mar- gens de uma das bacias do lago de Zurique, na Suíça. Jung construiu o castelo com as próprias mãos e lá escreveu gran- de parte de sua obra. O fato é que foram dias de muita expectativa que se sucederam até o fechamento definitivo do contrato de tra- balho em Brasília. Com o contrato firmado em 20 de mar- ço de 2019 e válido por 1 ano, ficou então definido que eu deveria viajar imediatamente para o Distrito Federal para ter acesso a toda a documentação, bem como, conhecer de perto o gigante avariado. miolo-buriti4.indd 21miolo-buriti4.indd 21 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 miolo-buriti4.indd 22miolo-buriti4.indd 22 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 23 Estado-Limite Último "Conecte-se com um cientista e você estará se conectando com uma criança." Ray Bradbury A viagem para Brasília foi cercada de muita expectativa, pois evidentemente gostaria de chegar ao local já com possíveis soluções de reforço. Antes da viagem, o pessoal havia me mandado todos os relatórios de monitoramen- to, simulações, laudos periciais, projetos originais e tudo o que existia de informações sobre a edificação. Já tinha mirabolado várias possibilidades, mas ainda nada que re- almente me convencesse. A construção, situada em pleno Eixo-Monumental de Brasília, ficava em frente a uma praça com inúmeros buritis e tinha o singelo apelido de “petit palais”. Havia sido projetada por um famoso arquiteto que havia trabalhado com Niemeyer e, por sua imponência, havia sido tombada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). O fato é que, em Brasília, tudo foi feito para impres- sionar. Não fosse aquele caboclo desafiando JuscelinoKubitscheck a mudar a capital do Rio de Janeiro para miolo-buriti4.indd 23miolo-buriti4.indd 23 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 24 Rafa Souza Brasília, talvez nunca tivéssemos tido a oportunidade de ver nascer uma cidade tão impressionante, orgulho da im- ponência de nossa nação. Vigas protendidas com seção de 1,0 m de largura por 2,0 m de altura circulam aos mon- tes em Brasília, como se fossem uma coisa absolutamente normal, corriqueira. Infelizmente, a estrutura que agora visitava sofria na mesma ordem de grandeza de sua amplitude. Apesar de um reforço executado com vigas metálicas de seção I sobre as lajes de cobertura, as lajes nervuradas protendidas insistiam em continuar cedendo, alcançando uma incrível flecha de 45 cm no meio do vão da laje mais comprometida. Para pio- rar a situação, monitoramentos indicavam que os perfis me- tálicos de reforço haviam entrado em regime de escoamento no trecho central de uma das lajes. Além da expectativa do trabalho em si, havia também a expectativa em relação à equipe com a qual eu iria ter que interagir nos próximos meses. O aspecto interpessoal é sempre uma coisa que me preocupa muito na condução dos meus trabalhos. Felizmente, o primeiro contato com a equipe foi muito bom e a energia positiva foi imediata. Logo no início da manhã, a querida D.F. me pegou no hotel e fomos direto para o “petit palais”, onde conheci os outros engenheiros de sua equipe. Enfrentamos uma pequena burocracia para acessar a edificação que, desde fevereiro de 2019, estava interditada. A equipe me contou que as pessoas trabalhavam normalmen- te no interior do “petit palais”, quando ouviram um forte es- talo. A mesma equipe que então me recebeu se encaminhou para a edificação e, ao remover a placa de gesso do forro, na miolo-buriti4.indd 24miolo-buriti4.indd 24 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 25 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas região originária do estalido, constatou a exposição de uma cordoalha de protensão rompida em uma das nervuras da laje de cobertura. Recomendou-se, então, a evacuação ime- diata da edificação, de maneira que não houve tempo de as pessoas sequer levarem seus materiais de trabalho. Após a liberação por parte da segurança, pudemos en- tão entrar no interior do “petit palais”. Enquanto andávamos pelos grandes corredores em meio a uma escuridão tremen- da, ouvíamos pequenos estalos, que eram suficientes para nos deixar aflitos, mas não apavorados ao ponto de correr- mos. Após alguns minutos naquela escuridão, conseguimos obter a liberação para retomar a energia elétrica do prédio junto à diretoria e, assim, pudemos afastar um pouco os nossos fantasmas. Apesar da energia e da possiblidade de acender luzes no interior da edificação, a visualização das lajes ainda era difícil. Era necessário ultrapassar o forro e os inúmeros sis- temas (hidráulico e elétrico) para poder observar, de per- to, o estado das nervuras. Além disso, em muitos pontos as nervuras não apresentavam seu aspecto original, pois mui- tas delas haviam sido reparadas na época do reforço metáli- co executado na parte superior. Conseguimos então chegar até o local onde ocorreu a ruptura da cordoalha de protensão, que, por sua vez, ocasionou a interdição do prédio. De maneira estranha, essa cordoalha apresentava-se rompida junto aos apoios e não na região central. A equipe ficou espantada ao perce- ber que o tamanho da cebola formada no ponto de rup- tura havia diminuído de tamanho, possivelmente devido a novas acomodações da laje, que devem ter retificado miolo-buriti4.indd 25miolo-buriti4.indd 25 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 26 Rafa Souza parcialmente o cabo, diminuindo, assim, a cebola típica gerada pelo desencordoamento. A despeito de minhas pernas avariadas em função dos dois joelhos operados, subi com garra por uma escada até o ponto de interesse, enquanto a D.F. iluminava a laje com uma lanterna do ponto mais baixo. Enquanto passava a mão em um trecho da cordoalha, um novo estalo, dessa vez mais forte, aconteceu. Me agarrei com força em uma tubulação e rezei instantaneamente para não ser a minha hora, enquan- to observava a oscilação da iluminação vinda das mãos trê- mulas da minha nova amiga. Tratar com estruturas em estado crítico sempre envol- ve muita tensão. Nesse caso, então, tive a sensação de que tinha chegado no limite. Estamos falando de uma estrutura que apresentou procedimentos executivos inapropriados. Não havia armadura suficiente nas nervuras das lajes para o expressivo vão de 22 m. As poucas armaduras, no entanto, eram excessivas para a largura das nervuras, de maneira que não havia concreto suficiente de envolvimento. Com essa deficiência, observou-se muito desplacamento da camada de cobrimento, ficando as armaduras expostas em vários pontos das faces inferiores das nervuras. Esse desplacamento era ainda potencializado pela ne- cessidade de se fixar parafusos para a sustentação dos forros de gesso. Ao furar as nervuras transversalmente, na região de cobrimento, potencializava-se a tendência do destaca- mento do cobrimento das nervuras. O cenário que encontrei, obviamente, não era mais aquele registrado nos inúmeros laudos aos quais tive aces- so antes de visitar a edificação. Como a estrutura havia miolo-buriti4.indd 26miolo-buriti4.indd 26 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 27 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas sido reforçada pela parte superior, com perfis metálicos, as fissuras que existiam nas nervuras pela parte inferior foram colmatadas. Pode-se dizer que, dessa maneira, estava visitando uma estrutura que se encontrava maquiada e que, agora, apre- sentava ruptura localizada de cordoalhas. Assim, qualquer estalo vindo da estrutura merecia a devida atenção. E assim, decidimos que era melhor ir para a parte de cima, do que fi- car por debaixo de uma laje naquelas condições misteriosas e nitidamente em regime inelástico. Para acessar a parte superior das lajes, a dificuldade para mim foi ainda maior. Meu joelho recém-operado sofria, ao ter que me agachar em espaços apertados e me pendurar em escadas improvisadas que davam acesso à cobertura. Resisti firme na minha falta de força muscular e apliquei minhas reservas de força para poder ver Brasília de cima daquela cobertura. Felizmente, a dor foi recompensada pela visão, afinal de contas, não seriam muitos que teriam a oportuni- dade de ver Brasília por aquele ângulo peculiar. Ao acessar o topo da edificação, fui presentado com a vista do Eixo-Monumental e com o Estádio Mané Garrincha nas proximidades. Meu coração se encheu de emoção, mas foi logo reprimido pelo passageiro oculto mental, determi- nado a controlar as vaidades e voltar ao trabalho duro. Estava eu ali, no meio daquela infinidade de vigas metálicas disponibilizadas para tentar enrijecer as lajes nervuradas. Algumas delas já estavam em escoamento, a edificação continuava vazia, a pressão política aumentava e eu começava a afiar o canivete para descascar o maior aba- caxi da minha carreira profissional. miolo-buriti4.indd 27miolo-buriti4.indd 27 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 miolo-buriti4.indd 28miolo-buriti4.indd 28 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 29 Movimento Retilíneo Uniforme "Religião é a cultura da fé. A ciência é a cultura da dúvida." Richard Feynman Comecei a frequentar o curso de Engenharia Civil da Universidade Estadual de Maringá em 1994. Apesar de dois exames realizados ("Mecânica dos Sólidos" e "Sistemas de Abastecimento de Águas e Esgoto"), pude me formar em 1999, sem experimentar dependências ou reprovações ao longo dos cinco anos de curso. O gosto por Engenharia de Estruturas e, especifica- mente, por Estruturas em Concreto, começou antes mesmo do meu ingresso na Universidade Estadual de Maringá. Me lembro que, às vezes, andando pelo centro da cidade, era comum avistaresqueletos de concreto aguardando a devida proteção em argamassa e alvenaria. Sempre me perguntava como alguém podia ter tamanha coragem em assumir a res- ponsabilidade de calcular aquelas maravilhas em concreto. Assim, já entrei no curso me dedicando com mais afin- co às matérias relacionadas ao cálculo estrutural. Queria sa- ber, a todo custo, quais eram os critérios para se obter uma miolo-buriti4.indd 29miolo-buriti4.indd 29 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 30 Rafa Souza quantidade de armadura que, com o concreto, pudesse su- portar aqueles vãos e balanços que tanto me fascinavam. As coisas não foram muito fáceis durante o segundo ano de curso (1995), tendo-se em vista que tive que cumprir o serviço militar obrigatório no Tiro de Guerra de Maringá. Me lembro de que, enquanto os colegas estudavam pelas madrugadas nos períodos de provas, era normal que eu es- tivesse cumprindo alguma escala de guarda, às vezes de até 48 horas. Apesar das dificuldades enfrentadas, nunca co- gitei abandonar o curso e ainda terminei o serviço militar com o título de "Honra ao Mérito", honraria que o Exército Brasileiro oferece aos soldados de comportamento exem- plar e com número reduzido de faltas durante o período. Apesar das dificuldades encontradas em conciliar os estudos e o Exército, pude ainda exercer as atividades de monitor das disciplinas "Vetores" e "Álgebra Linear", ambas com carga horária de 136 h/a e exercidas junto ao Departamento de Matemática da Universidade Estadual de Maringá, tendo-se em vista meu bom desempenho na disciplina "Geometria Analítica", cursada durante o pri- meiro ano de curso. Foram dois anos de preparação nas disciplinas básicas até tomar contato com a disciplina que confirmaria a minha maior paixão: "Estruturas em Concreto". A disciplina foi le- cionada pelo excelente professor Dr. João Dirceu Nogueira Carvalho. A partir daí, já sabia com profunda certeza qual seria o meu caminho dentro da Engenharia Civil. Na época em que cheguei ao quinto ano do curso de Engenharia Civil, a Universidade Estadual de Maringá ainda possibilitava uma formação mais específica, de maneira que miolo-buriti4.indd 30miolo-buriti4.indd 30 10/02/2021 21:08:2910/02/2021 21:08:29 31 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas pude me aperfeiçoar ainda mais no cálculo estrutural de edi- ficações em concreto armado. Fui acompanhado e inspirado, nesse período, pelo professor e hoje grande amigo, Antônio Carlos Peralta, Diretor da Protenfor, um dos nomes fortes no cálculo estrutural de arranha-céus no Paraná. Além da boa formação teórica, em 1998 tive a opor- tunidade de realizar diversos estágios, nomeadamente nas empresas Hejos Engenharia e Sistemas Estruturais Ltda, Ágape Engenharia e na Associação dos Municípios do Setentrião Paranaense (AMUSEP). Na ocasião, pude acompanhar procedimentos relacionados a obras públi- cas (licitações, orçamentos e medições), bem como o de- senvolvimento de projetos estruturais de estruturas em concreto armado. Devo ainda mencionar que, durante o meu curso de graduação, me dediquei não só aos estudos, mas também a várias questões político-estudantis, assumindo a presidên- cia do centro acadêmico de Engenharia Civil entre 1997 e 1998. Essa responsabilidade me colocou em contato direto com engenheiros de renome, bem como com diversos ór- gãos profissionais (Crea, AEAM, Senge), principalmente através da minha colaboração na organização das semanas de engenharia do departamento de engenharia civil. Talvez devido a essa experiência de liderança adquirida junto ao centro acadêmico e também devido ao meu amor pelo mundo das artes desde adolescência, tive a honra de ser escolhido em uma disputa acirrada para orador geral da solenidade de colação de grau dos formandos de 1998. Um dia após ter tido a honra de ser orador geral, em fevereiro de 1999, com o ginásio Chico Neto completamente lotado, miolo-buriti4.indd 31miolo-buriti4.indd 31 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 32 Rafa Souza segui para Campinas, onde comecei a cursar o mestrado em engenharia de estruturas. No Departamento de Estruturas da Faculdade de Engenharia Civil da Universidade de Campinas, comecei meus estudos mais avançados dentro da Engenharia de Estruturas e, graças à proximidade de São Paulo, pude tomar contato com várias tendências que usualmente demoram a chegar nas regiões mais afastadas dos grandes centros. A demora em estabelecer um orientador definitivo para a minha dissertação de mestrado e o aperto finan- ceiro propiciado pela falta de uma bolsa de estudos, por vezes, me afligiram. Nesse momento, fez muita diferen- ça o apoio familiar, principalmente na figura do meu pai, que, na época, já era professor titular do Departamento de Química da Universidade Estadual de Maringá e pesqui- sador do CNPq. Comecei o programa de mestrado sendo orientado pela Profa Dra Maria Cecilia Amorim Teixeira da Silva e, em seguida, passei para a orientação do Prof. Dr. Newton de Oliveira Pinto Junior. Em meio à indefinição do tema da minha dissertação de mestrado e ao tumulto ocasionado pelas mudanças de orientação, surgiu um convite do Prof. Dr. José Luiz Antunes de Oliveira e Sousa para uma bolsa de mestrado já aprovada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Nesse momento, mudei mais uma vez de orientador e dei início à redação da dissertação intitulada "Análise de Fraturamento em Estruturas de Concreto Utilizando Programas de Análise Estrutural". A definição do tema e o suporte financeiro me deram a calma necessária para miolo-buriti4.indd 32miolo-buriti4.indd 32 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 33 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas finalizar o programa em apenas um ano e meio, porém, com mais uma modificação importante. A partir do início da orientação do Prof. Dr. José Luiz Antunes de Oliveira e Sousa, comecei a ter contato frequen- te com o grupo de pesquisa do Prof. Dr. Túlio Nogueira Bittencourt, na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Reuniões periódicas mantidas entre os referidos pro- fessores e seus orientandos me deram a oportunidade de aprofundar ainda mais meus conhecimentos, tendo-se em vista o acompanhamento de detalhes de diversos trabalhos avançados desenvolvidos por outros colegas. Em virtude do afastamento do Prof. Dr. José Luiz Antunes de Oliveira e Sousa para pós-doutorado em Barcelona, o Prof. Dr. Túlio Nogueira Bittencourt foi, en- tão, credenciado ao programa de mestrado da Unicamp e acabou me assumindo como seu orientando e, assim, pude defender minha dissertação de mestrado em 2001. No dia subsequente à minha defesa, me mudei para São Paulo, onde mesmo antes de defender o mestrado já havia termi- nado uma disciplina de doutorado como aluno especial. No programa de doutorado da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Túlio Nogueira Bittencourt e já com bolsa de estudos oferecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), comecei a cursar as disciplinas básicas, com a intenção de desenvolver um trabalho direcionado ao reforço de estruturas de concreto com chapas de aço. No entanto, após muitas conversas com um grande companheiro de doutorado, Leandro Mouta Trautwein, amadureci a ideia de que um estudo direcionado ao Método miolo-buriti4.indd 33miolo-buriti4.indd 33 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 34 Rafa Souza das Bielas, acompanhado de simulações numéricas com fer- ramentas de análise não-linear poderia resultar em um tra- balho com boas perspectivas de aplicação no campo prático, o que, por sua vez, me possibilitaria escrever um trabalho que não ficaria restrito apenas às prateleiras acadêmicas. Na época, o Prof. Dr. Túlio Nogueira Bittencourt nun- ca havia orientado trabalhos relacionados ao Método das Bielas e sua resistência a me orientarnessa linha, no começo de nossas conversas, foi natural. Me lembro de que o pre- texto para conseguir iniciar o trabalho foi bastante ousa- do, tamanha era a minha vontade de me dedicar ao tema. Prometi que, caso o Prof. Túlio aceitasse iniciar as pesquisas no Método das Bielas, eu me comprometia a lhe entregar "o melhor trabalho de doutorado já orientado por ele". Com o compromisso de excelência assumido e com a confiança depositada pelo Prof. Túlio Bittencourt em minha pessoa, comecei a me dedicar com entusiasmo ao tema. Além disso, passei também a atuar como monitor no curso de espe- cialização oferecido pelo Programa de Educação Continuada em Engenharia (Pece), ajudando a redigir um material di- dático com mais de 400 páginas que, até hoje, ainda faz muito sucesso na internet: "ES-013: Exemplo de um Projeto Completo de Edifício de Concreto Armado". Essa disciplina nasceu na Poli, nos cursos de especialização, pelas mãos do Prof. Lauro Modesto dos Santos, e me senti muito honrado em ter meu nome figurando em tão importante trabalho, ao lado de um engenheiro tão importante e reconhecido. No entanto, com os créditos de doutorado concluídos e com a tese de doutorado bem encaminhada, resolvi que seria uma boa oportunidade concorrer a uma vaga de professor miolo-buriti4.indd 34miolo-buriti4.indd 34 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 35 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas assistente disponível em um concurso público a ser reali- zado pela Universidade Estadual de Maringá. Apesar de a vaga ser em "Materiais de Construção", me dispus a estudar com determinação e acabei passando em primeiro lugar, as- sumindo as atividades de docência na instituição, em 2002. Coincidentemente, logo após a divulgação dos resul- tados do concurso, um dos professores da área de estrutu- ras do Departamento de Engenharia Civil da Universidade Estadual de Maringá pediu aposentaria e acabei sendo con- vocado para assumir atividades na referida área, tendo-se em vista o meu perfil afinado com esse campo de atuação. No começo das minhas atividades como docente no Departamento de Engenharia Civil da Universidade Estadual de Maringá, me dividi entre os períodos de pre- paro e as aulas ministradas para os cursos de Engenharia Civil (Mecânica das Estruturas e Mecânica dos Sólidos), Engenharia Mecânica (Mecânica dos Sólidos) e Engenharia de Produção (Resistência dos Materiais e Elementos de Máquinas), absorvendo uma carga horária de 16 h/a. Em simultâneo a todas as atividades mencionadas, me esforçava para terminar a tese de doutoramento, realizando análises não-lineares muito demoradas com o programa ADINA, durante as madrugadas. Após um ano de atividades na Universidade Estadual de Maringá, consegui, por intermédio do Prof. Túlio Bittencourt, uma oportunidade para realizar doutorado- -sanduíche na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, Portugal, sob a supervisão do Prof. Dr. Joaquim Azevedo Figueiras, especialista renomado no cálculo de es- truturas especiais e monitoração de estruturas. miolo-buriti4.indd 35miolo-buriti4.indd 35 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 36 Rafa Souza Aproveitando o período de férias da universidade no início do ano de 2003, segui para Portugal, onde tomei con- tato com temas de ponta da engenharia estrutural da época, tais como: utilização de concreto auto adensável, análise ex- perimental de vigas-parede dimensionadas com modelos de escoras e tirantes, análise e dimensionamento de elementos de membrana, análises não-lineares utilizando modelos de fissuração distribuída e dimensionamento de estruturas es- peciais em concreto com geometria qualquer. Após 2 meses de atividades intensas na Universidade do Porto, voltei ao Brasil com uma visão mais prática da aplicação do Método das Bielas, tendo-se em vista o con- tato direto com as publicações do CEB-FIP Model Code. Também voltei com a experiência necessária para manipu- lar um verdadeiro laboratório virtual, o programa comercial DIANA, por meio do qual pude confirmar todas as minhas propostas de dimensionamento, mesmo utilizando uma versão educacional limitada trazida de Portugal. Em 2004, defendi a minha tese de doutorado, inti- tulada "Análise e Dimensionamento de Elementos com Descontinuidades" e também pude consolidar o com- promisso assumido com o Prof. Túlio Bittencourt sobre a qualidade da tese. O referido trabalho me deu a oportuni- dade de conquistar a "Primeira Menção Honrosa" no con- curso "Prêmios de Destaque para Teses e Dissertações nas Áreas de Materiais e Estruturas", promovido pelo Instituto Brasileiro do Concreto (Ibracon), em 2006. Terminado o período de estágio probatório na Universidade de Maringá, avaliei que muitas das pesqui- sas de qualidade publicadas no Brasil eram desconhecidas miolo-buriti4.indd 36miolo-buriti4.indd 36 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 37 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas mundialmente em função da fronteira de linguagem, isto é, por não serem publicadas em inglês. Por outro lado, em mi- nha linha de pesquisa, já havia constatado em programa de doutorado que interessantes pesquisas sobre o Método das Bielas vinham sendo desenvolvidas na University of Illinois at Urbana-Champaign, uma das melhores universidades americanas em Engenharia Civil. Dessa maneira, em 2006, me encaminhei para a University of Illinois at Urbana-Champaign, para traba- lhar em nível de pós-doutorado com o Prof. Dr. Daniel Alexander Kuchma (ex-orientando de doutorado do famo- so engenheiro canadense Michael Collins), como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Foram seis meses de muita produtividade, durante os quais pude tomar contato direto com pesquisas de ponta na Engenharia Estrutural. Além dos trabalhos direcionados ao Método das Bielas, também acompanhei o ensaio experi- mental de paredes estruturais em grande escala sujeitas a ações sísmicas, e de vigas de concreto protendido de elevada resistência, sujeitas a grandes vãos, ensaiadas em escala real. Em relação ao Método das Bielas, pude desenvolver, no período, um modelo autoadaptável de escoras e tirantes para blocos de fundação, objetivando retratar com maior fidelidade o comportamento dos referidos blocos, quando suportando pilares retangulares sujeitos a flexão oblíqua composta. Como se sabe, os modelos de dimensionamento geralmente disponíveis na literatura são normalmente limi- tados à situação de pilar quadrado sujeito a carga axial, o que, por sua vez, é uma situação muito simplória. miolo-buriti4.indd 37miolo-buriti4.indd 37 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 38 Rafa Souza De maneira a confirmar as deduções analíticas e cer- tificar a potencialidade dos modelos, foi feita uma extensa organização de resultados experimentais disponíveis na li- teratura, bem como empregaram-se ferramentas de análise não-linear (Atena) para validação do modelo proposto. O período em Illinois foi fundamental para o domínio da língua inglesa, de maneira que as pesquisas conduzidas puderam ser publicadas em periódicos de ponta como o ACI Structural Journal, Canadian Journal of Civil Engineering e Computers and Concrete. Na ocasião, também tive o privilégio de tomar contato direto com a teoria conhecida como "Modified Compression Field Theory", proposta introduzida no começo dos anos 80 pelos professores Frank Vecchio e Michael Collins, da Universidade de Toronto (Canadá). Ainda hoje, a referida proposta é tida como uma das teorias mais avançadas para a simulação de peças de concreto armado e protendido sujei- tas a cisalhamento, tendo-se em vista a consideração do efei- to de "softening" do concreto devido às tensões transversais. Uma vez que o Prof. Dr. Daniel Alexander Kuchma foi orientando de doutorado do Prof. Collins, pude conhe- cer a fundo os detalhes da referida teoria e isso culminou no lançamento do meulivro “Análise e Dimensionamento de Elementos de Membrana em Concreto Estrutural”, pu- blicado em 2016. Ainda em relação ao pós-doutorado realizado na University of Illinois at Urbana-Champaign, pude colaborar na investigação do colapso do Cassino Tropicana, ocorrido em New Jersey, 2003. Na ocasião, as investigações estavam em andamento e, de maneira a auxiliar a tomada de decisão miolo-buriti4.indd 38miolo-buriti4.indd 38 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 39 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas do juizado, as provas foram encaminhadas para a University of Illinois, visando a uma avaliação complementar. Anos depois, vim a saber que esse foi um caso emblemático, sen- do o acidente que resultou na maior indenização já paga nos Estados Unidos: 101 milhões de dólares. Foi um período de grande aprendizado e que, de certa maneira, me deu grande confiança para estudar outros casos de colapsos que se desenhariam no futuro. De volta ao Brasil, iniciei um processo de consultorias e projetos estruturais di- versificados, procurando testar todo o acervo teórico adqui- rido ao longo do tempo, sempre com a filosofia de que uma teoria boa seria aquela que sobreviveria à temível prova prática. Entre os trabalhos profissionais iniciados a partir de 2007, destacam-se os seguintes projetos estruturais entre- gues à prefeitura do campus da Universidade Estadual de Maringá: Concha Acústica, Ginásio de Esportes, Editora da UEM, Sanitários e Livraria da UEM. Considero o projeto estrutural do Ginásio de Esportes da Universidade Estadual de Maringá (Centro de Excelência em Handebol) um dos meus mais importantes trabalhos profissionais, tendo-se em vista o histórico da obra, hoje construída e em utilização. Quando voltei a Maringá, após o período de pós-douto- rado na University of Illinois at Urbana-Champaign, o então reitor da Universidade Estadual de Maringá, Prof. Dr. Décio Sperandio, me contatou, pedindo a gentileza de verificar se era possível recuperar e reutilizar uma série de arcos metáli- cos que estavam estocados atrás do Teatro Oficina da UEM. Os referidos arcos haviam sido doados por um reno- mado empresário maringaense e, por longos anos, ficaram ao relento, sujeitos a um longo processo de deterioração. Me miolo-buriti4.indd 39miolo-buriti4.indd 39 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 40 Rafa Souza dispus a estudar os procedimentos de recuperação dos arcos e aceitei o desafio de usá-los em um ginásio de esportes para a Universidade Estadual de Maringá. Junto com meu amigo, Vladimir Ferrari, levantamos em campo as dimensões dos arcos e dei início aos estudos. Paralelamente aos procedimentos de recuperação dos arcos (jateamento para retirada das carepas de corrosão, re- cuperação das soldagens e repintura) fui desenvolvendo o projeto estrutural em estrutura metálica (cobertura) e con- creto armado (estrutura de apoio). Considero o projeto ar- rojado, uma vez que os arcos metálicos perfazem um vão de aproximadamente 29,00 metros, sem tirantes, apoiando-se diretamente sobre pilares em concreto armado espaçados a cada 8,0 metros. Basicamente, o ginásio conta com dimensões em plan- ta de 30,00 metros por 72,00 metros e as vigas longitudi- nais de união entre os pilares, que possuem comprimento de 72,00 metros, foram projetadas sem juntas de dilatação, de maneira que os pórticos constituídos pudessem absorver os efeitos decorrentes de variação de temperatura. O giná- sio começou efetivamente a ser construído em 2009 e só foi inaugurado em 2019. Me aborreceu muito o fato de não ter sido convidado formalmente para a inauguração. Entendi que política é a vaidade de alguns, alimentada sobre o tra- balho árduo de outros. Em 2008, tendo-se em vista o colapso frágil de 1 mar- quise e 15 sacadas do Edifício Don Gerônimo e minha expe- riência adquirida nos Estados Unidos quanto à investigação de ruínas estruturais, fui formalmente convidado a integrar a Defesa Civil do Município de Maringá. miolo-buriti4.indd 40miolo-buriti4.indd 40 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 41 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Na ocasião, além da redação do laudo conclusivo so- bre o colapso ocorrido com o Edifício Don Gerônimo, pude também participar na elaboração de um "Procedimento de Inspeção para Marquises" direcionado ao corpo de bombei- ros, bem como participar na redação do laudo conclusivo so- bre o colapso de uma grande cortina de estacas ocorrida em um edifício em construção, na região do Jardim Universitário, participando, também, do laudo da queda do palanque de co- mício do governador Roberto Requião, ocorrida em Paiçandu. Em outubro de 2010, fui convidado pelo reitor recém- -eleito, Prof. Dr. Júlio Santiago, a assumir o cargo de Diretor de Cultura da Universidade Estadual de Maringá e, com muita honra, aceitei prontamente tão importante convite. O cargo veio ao encontro de uma vasta produção ar- tística que tive como músico e compositor em diversos grupos (Sex Hansen, The Guavas e A Inimitável Fábrica de Jipes) desde os anos 90. Entre os trabalhos mais relevan- tes da minha carreira artística, cito os seguintes trabalhos: "Poesiacusticodinâmica" (livro de poemas inédito devida- mente registrado na Biblioteca Nacional), "O Dia em que Seremos Todos Felizes" (Cd independente d'A Inimitável Fábrica de Jipes, 2005), "Canções Despedaçadas para Juntar os Cacos" (Cd independente d'A Inimitável Fábrica de Jipes, 2008), "Ao Vivo Sesc Vila Mariana" (DVD independente d'A Inimitável Fábrica de Jipes, 2010), "Quando o Caos é a Regra e a Ordem Exceção" (Cd independente d'A Inimitável Fábrica de Jipes lançado em 2012). Em 2011, tendo-se em vista o desejo de renovação da bolsa de produtividade em pesquisa junto ao CNPq, deci- di que era um bom momento para aproveitar o período de miolo-buriti4.indd 41miolo-buriti4.indd 41 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 42 Rafa Souza férias da universidade para realizar estágios de curta dura- ção na École Politécnique Fédérale de Lausanne (Suíça) e na Technologic University of Delft (Holanda). Em Lausanne, tive a oportunidade de trabalhar com o Prof. Dr. Aurelio Muttoni, com pesquisas direcionadas ao Método dos Campos das Tensões ("Stress Fields Method"). Por outro lado, em Delft, direcionei as atividades ao estu- do do Método Biela-Painel ("Stringer-Panel Method") sob orientação do Prof. Dr. Pierre Hoogenboom. Apesar de terem sido experiências muito rápidas, foi possível entender os métodos citados de maneira muito efe- tiva, bem como, foi possível estabelecer parcerias de pesqui- sa com pesquisadores de renome mundial. O Prof. Muttoni veio ao Brasil em 2016, em um curso promovido pela Abece (Associação Brasileira de Engenharia e Consultoria Estrutural) e usou como material de apoio um livro seu por mim traduzido do francês para o português, sendo esse tra- balho um compêndio belíssimo de exemplos relacionados ao “Método dos Campos de Tensão”. De volta ao Brasil, segui fazendo meu trabalho como professor, pesquisador e engenheiro de estruturas e, em 2012, fui aprovado no concurso para professor titular na Universidade Estadual de Maringá, o mais alto cargo dentro da carreira docente. No entanto, a autorização para tomar posse do cargo só foi efetivada em 2014, de maneira que achei por bem não mais depender totalmente do estado. Assim, larguei o regime de dedicação exclusiva e fundei a Engracon Engenharia e Arquitetura Ltda, em 2012. Em 2015, realizei outro estágio de pós-doutorado nos Estados Unidos, desta vez na University of Amherst miolo-buriti4.indd 42miolo-buriti4.indd 42 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 43 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Massachussets. Essa universidade, conhecida como U-MASS, é tema de uma das canções dos Pixies, uma das minhas ban- das de rock preferidas! Ali estudei modelos de escoras e ti- rantes aplicados a vigasde conexão do tipo “coupling beams”, bem como, aspectos de dimensionamento e detalhamento relacionados a ações sísmicas. Nessa época de Amherst eu já estava casado com a Dani e meus dois filhos, o Gabriel e o Tiago, eram bem pequenos. Uma das passagens mais legais dessa experiência foi ter en- contrado duas vezes com J. Mascis, meu guitarrista favorito e líder da icônica banda Dinosaur Jr. O guitarrista, que sofre de Síndrome de Asperger, foi chamado inúmeras vezes por Kurt Cobain para entrar no Nirvana, mas nunca aceitou. Ele, que nunca ri, largou uma bela gargalhada ao ouvir o pequeno Gabriel cantar “Watch the Corners” à sua frente. Em 2017, fui agraciado com o ‘Prêmio Fernando Luiz Lobo Barbosa Carneiro - Destaque do Ano em Pesquisa de Concreto Estrutural”, promovido pelo Instituto Brasileiro do Concreto (Ibracon). Meus grandes amigos, Leandro Trautwein e Antônio Carlos dos Santos me indicaram, fizeram campanha e vota- ram em meu nome. E, assim, lá estava eu no 59o Congresso Brasileiro do Concreto, para receber o prêmio. Quando olho para esse prêmio, com posição de des- taque na estante do meu escritório, junto aos meus livros, não penso nos meus quase 50 artigos em periódicos, dis- sertação/tese/livro, orientações ou nas inúmeras perícias e projetos estruturais. Eu penso nos meus dois amigos. Na vida, há pessoas que vão estar na trincheira conti- go e reconhecer teu valor. Outros, fazem apenas parte do miolo-buriti4.indd 43miolo-buriti4.indd 43 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 44 Rafa Souza batalhão e não vão se importar contigo. Esse prêmio, para mim, é um prêmio que celebra a amizade, que sinaliza a chegada dos novos comandantes, que sinaliza uma transi- ção de gerações em uma instituição tão séria e necessária como é o Instituto Brasileiro do Concreto. Olhando para trás, percebo que a minha trajetó- ria sempre seguiu um Movimento Retilíneo Uniforme (MRU), aquele tipo de movimento que ocorre com velo- cidade constante em uma trajetória reta. Ela tem inspira- ção no belíssimo trabalho de meu pai, que era doutor em Química e professor. Meu pai disciplinou todos lá em casa para sermos uma espécie de família Gracie das ciências. Assim, eu sou doutor em Engenharia de Estruturas e meus dois irmãos mais no- vos são doutores em Física e Computação, respectivamente. Somos todos pesquisadores e professores: os irmãos Souza. Mas nem sempre as coisas foram fáceis e tudo pode- ria ter sido diferente nessa trajetória, não fossem pessoas iluminadas que cruzam os nossos caminhos. Depois de todo o relato anterior, também é preciso registrar o que deu errado, para que se observem novamente as conexões energéticas que regem nossos caminhos. Grande parte das vezes, algo que deu certo é quase sempre resultado de algo que deu errado. Era dezembro de 1998 e eu havia me formado em Engenharia Civil. Janeiro de 1999 já se aproximava e eu ainda não sabia como seria o ano que estava por vir. Não sabia como iria iniciar na profissão abençoada que havia escolhido. Vindo de uma família de professores e de olho no mercado, percebi que deveria estudar um pouco mais miolo-buriti4.indd 44miolo-buriti4.indd 44 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 45 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas se quisesse oferecer algo e se quisesse ser competitivo. De olho no fato de que conhecimento é riqueza, me inscrevi no melhor mestrado em engenharia de estruturas da épo- ca, o mestrado em engenharia de estruturas da Escola de Engenharia de São Carlos. O grande problema é que, na ocasião, eu não tinha nada a oferecer, quando empregada a simples observação do his- tórico escolar e das atividades extra-classe. Naquela época, não tínhamos professores que orientavam iniciação cientí- fica e o máximo que carregava de orgulho no currículo era ter sido monitor de Cálculo e Física e ter ido sempre bem na área de estruturas. Para piorar, tinha em meu currículo uma reprovação em “Prática Desportiva” que, na época, era uma disciplina obrigatória na Universidade Estadual de Maringá. O saudoso Fredy Telles havia me dado uma boa nota no primeiro bimestre sem eu ter aparecido muito nas aulas. Concluí que não era preciso aparecer mais e, assim, deixei de comparecer às aulas, esperando que ele fosse repetir as no- tas. Futebol era legal, mas Cálculo I e Física estavam pegan- do pesado naquele início de vida universitária. Obviamente reprovei e depois tive que fazer novamente a disciplina. Mas voltando ao programa de pós-graduação alme- jado, me inscrevi na Escola de Engenharia de São Carlos, junto com meu grande amigo, Leandro Vanalli. Em fun- ção dos meus atributos, não fui selecionado e recebi uma cartinha informando a negativa. Meu mundo caiu, bem ao estilo da canção e, com lágrimas nos olhos, guardei aquela carta de recordação. Sonhava ser orientando do Prof. Samuel Giongo e tal- vez seja esta uma das frustrações da minha trajetória. Mais miolo-buriti4.indd 45miolo-buriti4.indd 45 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 46 Rafa Souza tarde, me tornei amigo do Prof. Samuel e sempre conto essa história com muito bom humor para ele, que também se diz frustrado por não ter me orientado. Sempre damos boas risadas desse namoro científico que, infelizmente, não deu certo. Uma semana depois, recebi um telefonema do Prof. Nilson Tadeu Mascia, um anjo que Deus enviou na minha vida, e do meu amigo Leandro. O Prof. Nilson, na época Coordenador do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Campinas, queria saber por que eu não ha- via ido para a entrevista de seleção. Em paralelo à inscrição para a Escola de Engenharia de São Carlos, também havíamos nos inscrito no mestrado em estruturas da Universidade de Campinas. Expliquei que não havia sido comunicado sobre a entrevista e então ele falou: "Consegue vir amanhã?". Respondi que sim, de bate pron- to, sem mesmo saber como iria para Campinas, assim, de supetão. Disse que meu amigo Leandro, por algum motivo, também não havia sido comunicado da tal entrevista. O Prof. Nilson comentou que não havia recebido ins- crição do Leandro, mas disse que era para ele ir junto para aquela entrevista repentina. Dá para acreditar? Eu e Leandro viajamos naquela expectativa, atordoados pelo não da Escola de Engenharia de São Carlos e esperançosos com a possibi- lidade do sim da Unicamp. Não tínhamos o que perder. Fizemos a entrevista e felizmente aceitaram os pri- meiros alunos da UEM na pós-graduação em estruturas da Unicamp. E foi só depois da entrevista que os correios vi- riam a finalmente entregar a documentação do meu amigo Leandro que, de quebra, ainda acabou sendo orientando de mestrado do Prof. Nilson. miolo-buriti4.indd 46miolo-buriti4.indd 46 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 47 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Na minha defesa do mestrado, o saudoso Prof. Venturini me convidou para ir fazer doutorado na Escola de Engenharia de São Carlos. Balancei, mas lembrei daquele não de quando ainda era um engenheiro recém-formado e sem nenhum atrativo. Acabei indo para a Escola Politécnica e lá fazendo o doutorado. Alguns diriam que guardei rancor por causa daquele não. Eu já acho que foi uma questão de energia. Não era para ser, apesar de todo carinho que viria a ter posteriormente pela Escola de Engenharia de São Carlos. No final das contas, vejo que aquele não de São Carlos me ajudou muito a procurar pela diversidade da minha carreira, passando sempre por locais diferentes. A Escola de Engenharia de São Carlos é tão boa, mas tão boa, que todo mundo que faz mestrado lá acaba permanecendo na- quela universidade, fazendo doutorado e pós-doutorado. Eu, que gosto de movimento, certamente não teria me dado bem por lá. Aquele não foi certamente um sinal para que eu pudes- se rodar mais, recomeçar mais, me envolver em novos ciclos sociais e suas dificuldades inerentes. Aquele não me ajudou a entender quenem sempre a negação é a pá de cal sobre as nossas oportunidades. Nessa história toda fico pensando no Prof. Nilson Tadeu que, por coincidência, carrega o nome do meu querido pai. Um anjo com o nome do meu pai e que, ao se interessar pelo próximo, moldou o caminho de dois jovens. Não fosse ele pegar o telefone e se preocupar com nosso sumiço da entre- vista, não sei se estaria aqui hoje contando essa história. Quando voltei anos depois para a Unicamp, para par- ticipar de uma banca para contratação de professor na miolo-buriti4.indd 47miolo-buriti4.indd 47 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 48 Rafa Souza área de concreto comandada pelo Prof. Nilson, contei com emoção essa história maravilhosa. Agradeci com um abra- ço afetuoso, certo de que, diante de mim, estava mais um homem que tinha feito enorme diferença no meu cami- nho. Às vezes, um não é só uma oportunidade melhor que foi adiada. Acredite. miolo-buriti4.indd 48miolo-buriti4.indd 48 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 49 A Vida é Não-Linear “A ciência nunca resolve um problema sem criar mais 10.” George Bernard Shaw Ao voltar de Brasília, após a visita técnica, tinha uma in-finidade de dados para tratar e analisar. Sabia que teria que conduzir inúmeras simulações numéricas e cálculos analíticos para conseguir comprovar as impressões obtidas e estava muito ansioso para fazer isso. O grande problema é que a vida é não-linear. Difi- cilmente você poderá se concentrar em um único problema de cada vez. Nunca existirá condição perfeita. É sempre um tudo ao mesmo tempo agora, à la Titãs. Em paralelo à con- sultoria de Brasília, tinha ainda que dar as minhas aulas de concreto, recuperar os meus joelhos na fisioterapia e resol- ver outros trabalhos que iam aparecendo do nada. Mas nada disso era mais importante do que a batalha que meu pai vinha enfrentando com muita coragem. Apesar de sobrecarregado, me esforçava para visitar meu velho to- dos os dias, bem no comecinho da manhã. A luta contra o linfoma, de cabeça erguida e com otimismo é para poucos. miolo-buriti4.indd 49miolo-buriti4.indd 49 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 50 Rafa Souza Somente os grandes samurais podem encarar um fantasma silencioso e agressivo como esse. Me lembro de que, ao receber a notícia da doença, em lágrimas, dei para meu pai uma moeda japonesa com um furo no meio, que havia recebido de um japonês, em um encontro aleatório, em uma estação de metrô, em Chicago. O amigo ocasional me disse que aquela moeda me traria muita sorte. Passei essa moeda para meu pai e contei essa história. Ele guardou esse pequeno talismã por longos me- ses, após nos abraçarmos e limparmos nossas lágrimas. Iríamos enfrentar juntos aquela batalha, lado a lado. Como comemoração, após a vitória, combinamos que levaria meu pai para ver o seu Palmeiras, no lindo estádio do verdão1. Esse era o combinado. Mal havia chegado de Brasília, fui convocado a ir para Porto Alegre, a fim de auxiliar uma empresa de pré-molda- dos de Santa Catarina. Nunca tinha ido para Porto Alegre e, no dia 4 de abril, desembarquei tarde da noite no aeroporto Salgado Filho para, no outro dia, acordar às seis horas da manhã e ir para o polo petroquímico de Triunfo. Ainda dentro do táxi, resolvi conferir meus e-mails e me deparei com uma mensagem do meu orientador da época do doutorado, o Prof. Túlio Bittencourt. Aparen- temente tinha ocorrido uma incongruência teórica com um dos gigantes da dosagem do concreto nacional, o res- peitadíssimo Prof. Paulo Helene, e ele queria debater co- nosco essa questão. 1 Em 2 de agosto de 2020, Palmeiras e Ponte Preta se enfrentariam pelas semifi- nais do campeonato paulista, no Allianz Parque. Era o nosso jogo. miolo-buriti4.indd 50miolo-buriti4.indd 50 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 51 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas O problema surgiu quando comparamos a resistência característica à compressão definida na norma brasileira com a resistência característica à compressão definida na norma americana. Na ocasião, publicamos um artigo num even- to de baixíssima expressão, inspirados num artigo do Prof. Vasconcelos, e declaramos que o controle da resistência ca- racterística à compressão do concreto da norma americana seria mais rigoroso do que o controle da norma brasileira. Por algum motivo, o artigo acabou repercutindo e foi adotado como referência por uma orientanda do Prof. Paulo, que, então, com opinião contrária, queria nos mos- trar que estávamos equivocados numa reunião virtual. Eu ainda era muito jovem e posso mesmo ter cometi- do algum equívoco nas manipulações estatísticas. Mas com Brasília e Triunfo para resolver, eu não tinha a menor con- dição de encarar um duelo desses, ainda mais com um dos grandes nomes da engenharia nacional, profissional pelo qual tenho profunda admiração e em quem sempre me inspirei. Infelizmente teria que abdicar daquele debate e deixa- ria de aprender com um dos maiores estudiosos do concre- to do Brasil. Respondi com tristeza ao meu ex-orientador Túlio que não via problemas se estivesse errado, mas que também não gostaria de provar que podia estar certo. Na vida, precisamos escolher as batalhas que precisam ser luta- das e eu já tinha duas guerras imprevisíveis a caminho. De maneira alguma ficaria triste em perder uma ba- talha para o Prof. Paulo Helene2. Certa vez, ainda muito 2 Em setembro de 2020 trabalhamos juntos, por convite do Prof. Paulo, na in- vestigação de um silo de 45 m de altura com problemas estruturais em Santos. miolo-buriti4.indd 51miolo-buriti4.indd 51 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 52 Rafa Souza jovem e morando nos Estados Unidos, fui a um congresso do ACI em Denver e tive a honra de almoçar com ele, com o Prof. Fernando Stucchi e com o Eng. Julio Timerman, além do Prof. Túlio. Imagine só a cena! Eu vendo aque- les monstros discutindo engenharia e coisas do cotidia- no bem ali na minha frente! Só pelo fato de o Prof. Paulo Helene me escrever querendo a conversa eu já me sentia um grande vitorioso! Demorei para pegar no sono e fiquei ali, pensando em como o universo é maluco. Uma hora estamos tentando abrir e fechar um joelho danificado na fisioterapia e em ou- tra surgem várias atividades excepcionais ao mesmo tem- po. Adormeci com tristeza matutando sobre o fato de que perderia a oportunidade única de um debate científico com uma das grandes lendas da engenharia nacional. No outro dia, de manhãzinha, encontrei-me no sa- guão do hotel com meus amigos GG e FM. Tomamos café e seguimos caminho para Triunfo, passando pela ponte nova em construção sobre o Rio Guaíba e pela já finali- zada Arena do Grêmio. Durante a viagem, fomos progra- mando as estratégias da reunião tensa que teríamos pela frente, intercalando com as observações da belíssima es- trada que se desenhava. Entrar num polo petroquímico é uma experiência perigosa. Eu, que tinha passado medo em Brasília uma se- mana antes, agora assistia a filmes institucionais com pro- cedimentos de segurança e emergência para poder entrar naquele complexo. “Um polo petroquímico só é menos pe- rigoso do que uma usina nuclear”, diria um dos engenheiros daquele incrível local. miolo-buriti4.indd 52miolo-buriti4.indd 52 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 53 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas O butadieno, gás amplamente utilizado na produção da borracha sintética de butadieno-estireno (SBR), pode vazar e você pode morrer sem ao menos perceber. Além disso, há risco de tudo explodir em um raio de 5 km, caso o butadie- no se inflame. Cada vez que tocava uma sirene, nossos corações dispa- ravam, mas tínhamos que manter a calma e a serenidade para poder encarar aquela reunião que viria. Pouco antes, consegui- mos ir até a estrutura pré-fabricada entregue pelos meus clien- tes, a qual, por sua vez, era o objeto de discórdia entre as partes. A empresado polo petroquímico demorou muitos anos para montar suas instalações na estrutura pré-moldada, um pipe rack, de maneira que a mesma ficou exposta a um ambiente muito agressivo por vários anos. Naturalmente, a estrutura sofreu com aquele ambiente repleto de gases e, quando da eminente instalação das tubulações, já não apre- sentava as características apropriadas. Entramos na sala de reuniões, impressionados com a potência daquela multinacional. Mas a festa estava só come- çando. Éramos apenas nós três, quando observamos entrar uma equipe de, pelo menos, 13 engenheiros. Além dos en- genheiros da multinacional, chegavam aos montes equipes de engenheiros de empresas de ponta vindos de São Paulo, especialmente contratados para nos sabatinar. Queriam, a todo custo, a demolição da estrutura pré- -moldada, com a argumentação de que a estrutura a ser uti- lizada em um polo petroquímico deveria ser impecável. A empresa exigia de meus clientes uma estrutura beirando a perfeição, que teria que resistir até mesmo às explosões que ali poderiam ocorrer. miolo-buriti4.indd 53miolo-buriti4.indd 53 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 54 Rafa Souza Resistimos bravamente durante cinco horas de reu- nião, rebatendo qualquer tipo de argumento que surgia, na tentativa de inutilizar a estrutura pré-moldada ali cons- truída. Mostramos que a estrutura poderia ser recuperada, mesmo com o descaso do cliente para com a estrutura, ao longo do tempo. Eu tinha minha batalha de Brasília para terminar e agora percebia que estava no meio de outra guerra que es- tava apenas começando e que, certamente, iria me exigir muita criatividade e poder de argumentação. Eu ia ter que argumentar contra um engenheiro renomado e experiente, de vasta cabeleira branca e filho do engenheiro que simples- mente conseguiu construir as colunas curvas do Palácio do Planalto imaginadas por Niemeyer e com a equação para- bólica definida por Joaquim Cardoso. Voltamos de Triunfo e meus amigos GG e FM me dei- xaram no aeroporto Salgado Filho, antes de seguirem de volta para Santa Catarina. O voo sairia tarde da noite e eu só conseguiria chegar em Maringá por volta de uma da ma- drugada. Foram horas pensando em Brasília e naquele polo petroquímico. Por que será que veio tudo de uma única vez? Pegaria meu carro, chegaria em casa, tomaria um banho e sete horas da manhã acordaria para ir dar aula de concreto armado na universidade. Enquanto escrevia no quadro para meia dúzia de alunos do quinto ano, não deixei o desprestígio me abater e fiquei pensando naquele engenheiro de vastos cabelos brancos, em cuja cabeça Joaquim Cardoso certamente tinha passado a mão, quando ele ainda era uma criança. Tudo que eu tinha aprendido e ensinado seria definitivamente colocado à prova. miolo-buriti4.indd 54miolo-buriti4.indd 54 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 55 O Passageiro Oculto “Os que se encantam com a prática sem a ciência são como os timoneiros que entram no navio sem timão nem bússola, nunca tendo certeza do seu destino.” Leonardo da Vinci Abril de 2019 seguia seu fluxo. Dava minhas aulas, ia religiosamente para a fisioterapia recuperar meus joe- lhos e estudava Brasília e Triunfo em todos os horários pos- síveis de folga da universidade. Me tornei um engenheiro de estruturas 24/7: vinte quatro horas por dia, durante sete dias da semana. Não tinha sábados, domingos ou feriados. Minha vida era desvendar as estruturas de concreto arma- do e protendido. Recebi um telefonema que me apavorou. Normalmente me sinto assim, quando vejo no celular o número de algum cliente antigo para o qual prestei algum serviço delicado, me ligando. O passageiro oculto fica em êxtase. Havia algum tempo, projetara o reforço de uma mo- ega que estava para cair. As paredes de concreto estavam subdimensionadas e apresentavam algumas rachaduras. A flecha das paredes era bem visível e a coisa poderia ceder miolo-buriti4.indd 55miolo-buriti4.indd 55 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 56 Rafa Souza em breve. Mas havia um pequeno problema: a indústria não parava nunca e o reforço deveria ser feito com a moe- ga em funcionamento. Dessa maneira, estudando o problema e as alternati- vas que poderiam possibilitar a estabilização da estrutura sem parar o funcionamento da mesma, projetei um con- junto de escoras com perfis metálicos que ficam entre a parede inclinada da moega e a parede de divisa do arrimo. Fazia um ano que tinha projetado essa estrutura e agora recebia uma ligação com a péssima notícia de que novas fissuras tinham aparecido. Imediatamente me dirigi para a cidade de Indianópolis, que fica cerca de uma hora de Maringá. No caminho, aquele turbilhão de pensamentos: Brasília, Triunfo, meu pai e ago- ra essa moega. Meu Deus, será que já não está bom de desa- fios para um ano? Ao chegar ao local, após grande dificuldade para aces- sar a moega devido a questões de segurança, consegui des- cer pela longa escada de marinheiro, chegando à posição do reforço executado no interior da lateral da moega. Essa moega armazena farelo de trigo, e o calor que ali se forma é insuportável. Com o coração batendo forte, pro- curei pelas fissuras e percebi que as únicas aberturas que existiam eram apenas as mesmas que ali já estavam antes do reforço. “Cale-se passageiro oculto!”, gritei comigo. “Está perfeito esse reforço!” Além do problema de dimensionamento, essa moega ti- nha sofrido também uma avaria muito interessante. A moe- ga é uma estrutura de concreto tridimensional maravilhosa, com dificuldades interessantes de cálculo e detalhamento. miolo-buriti4.indd 56miolo-buriti4.indd 56 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 57 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Sobre ela, pistões hidráulicos elevam uma plataforma metá- lica com um caminhão totalmente carregado. Assim, quan- do a plataforma atinge sua inclinação máxima, o farelo é descarregado da carreta para o interior da moega. Em certa ocasião, quando o caminhão já se encontrava na inclinação máxima, os cabos de segurança se romperam e o veículo capotou de elevada altura, danificando as vigas de rolamento. Em função dessa queda, observou-se tam- bém a danificação das paredes da moega que, somada ao sub-dimensionamento, motivou o reforço projetado. Na volta para Maringá, totalmente suado e cheirando a farelo, abri um sorriso largo na estrada e pensei: “como a mente da gente é danada”, sempre esperando o pior. Para quem já tinha morado em Urbana-Champaign e Amherst, uma moega em Indianópolis era coisa pequena. E enquanto dirigia de volta para casa me pegava filo- sofando sobre as armadilhas mentais que tanto nos afligem. Na verdade, eu já tinha aprendido um caminho interessante através das artes marciais, mas a nossa cabeça é como um cavalo selvagem, que insiste em não obedecer. Quando comecei a disputar campeonatos de jiu-jitsu, tive uma oportunidade incrível de mergulhar numa via- gem de autoconhecimento. Um campeonato de jiu é sempre cheio de muita tensão, expectativa e ansiedade. Através de sucessivas disputas, ano após ano, percebi que o principal oponente não é exatamente o guerreiro do outro lado ten- tando te pegar, mas sim, a sua mente. Para poder enfrentar o oponente é preciso, antes de mais nada, dominar a sua mente. Não deixar ela julgar. É preciso encontrar o que eu chamo de “estado de neutralidade miolo-buriti4.indd 57miolo-buriti4.indd 57 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 58 Rafa Souza da mente”. Se sua mente te diz que o oponente é muito fraco, você pode desenvolver uma autoconfiança ilusória e se dar mal. Por outro lado, se a sua mente te diz que o oponente é muito forte, você já pode entrar derrotado. A mente neutra não julga. A mente neutra não amplia e também não diminui a situação. Você entra e faz o que deve ser feito, seja o adversário forte ou fraco, pequeno ou grande, habilidoso ou grosseiro. Pelo menos, para mim, essafoi a melhor forma que encontrei para dar o melhor de mim nos tatames, obtendo, assim, resultados expressivos. Talvez, por estar longe dos meus treinos diários, acabei me esquecendo dessa importante lição da mente neutra. A viagem para Indianópolis certamente teria sido bem mais tranquila e sem tanto desgaste desnecessário ocasionado pelo passageiro oculto. Mas, enfim, a vida é uma sucessão sem-fim de aprendizado, esquecimento e resgate. Chegando a Maringá, voltaria a Brasília e a Triunfo, isso, é claro, depois de visitar meu querido pai. miolo-buriti4.indd 58miolo-buriti4.indd 58 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 59 Em Frente ao Buriti “A ciência é cometida por erros, mas por erros úteis a serem cometidos, porque pouco a pouco, eles levam à verdade.” Julio Verne Como o primeiro relatório de Brasília era devido apenas para o final de abril, aproveitei para focar um pouco mais na questão do pipe rack de Triunfo e retornei para Porto Alegre com as minhas sugestões de reforço estrutural. Aquele negócio de avião estava me incomodando e todos os meus abonos de funcionário público estavam se esgotan- do. Tinha cinco por ano e o terceiro já estava indo embora. Se mais reuniões fossem necessárias, seria difícil conciliar Triunfo e Brasília. Novamente cheguei tarde da noite no mesmo hotel da Avenida Júlio de Castilhos mas, dessa vez, deu tem- po de jantar com meus amigos GG e FM. No outro dia, bem de manhãzinha, fomos enfrentar o batalhão técnico da multinacional. A coisa estava tensa, mas estávamos desempenhando bem, defendendo com convicção nossas estratégias para reforçar a estrutura, a fim de resistir às ex- plosões que eles tanto queriam. miolo-buriti4.indd 59miolo-buriti4.indd 59 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 60 Rafa Souza Para nossa surpresa, o engenheiro de vastos cabelos brancos, filho do homem dos pilares de Brasília, passou a nos apoiar em nossas abordagens, o que, por sua vez, acabou re- sultando numa aceitação da maioria das nossas propostas. Iríamos poder encamisar os elementos estruturais necessários, poderíamos arrumar os consolos com deficiências e, agora, a disputa estava apenas nos materiais a serem utilizados. No processo de reforço estrutural, a escolha dos mate- riais é muito relevante. Nessa obra em questão, havia uma resistência muito grande à utilização da resina epóxi devido às possibilidades de incêndio. Para temperaturas entre 40 a 50oC, a resina epóxi praticamente derrete e pode colocar em risco os elementos dependentes de sua resistência. Assim, a solução mais apropriada seria um encamisamento com graute, de maneira a proteger as armaduras eventualmente grampeadas, utilizando resina epóxi. O volume de graute a ser utilizado era relativamente grande e a multinacional exigia a utilização de um produto industrializado. Acontece que, para se fazer um metro cúbi- co de graute, são normalmente necessários cerca de 80 sacos de 25 kg, o que, em termos monetários, daria uma fortuna. O graute é basicamente um produto ensacado, pré-do- sado, constituído de cimento, areia quartzosa de granulome- tria selecionada e aditivos especiais. Daí adiciona-se cerca de 2,0 litros de água para cada saco para obter um milk-shake milagroso que, quando endurecido, chega a uma resistência à compressão de quase 30 MPa em apenas 24 horas. Estávamos lutando para demonstrar que podería- mos produzir nosso próprio graute na obra e que o produ- to teria qualidade e desempenho semelhantes aos produtos miolo-buriti4.indd 60miolo-buriti4.indd 60 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 61 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas industrializados. Para isso, evidentemente, traríamos um dos maiores especialistas na área de materiais do Brasil e chegarí- amos ao traço necessário, viabilizando, assim, uma interven- ção que fosse economicamente viável para nosso time. Outro ponto que também estava gerando muita discus- são estava no tratamento do substrato. Como se sabe, antes de efetuar um encamisamento, é preciso escarificar a super- fície de concreto até que a mesma apresente uma superfície rugosa, com os poros abertos, de maneira que seja possí- vel promover uma boa ponte de aderência entre o concreto novo e concreto velho. A multinacional não queria a utilização de marteletes, com o pretexto de que tal tipo de procedimento poderia fragilizar ainda mais a estrutura. Lembrando-me, então, de grandes serviços de reparo que havia conduzido em pisos protendidos industriais, sugeri que podíamos utilizar o des- baste com discos, que garantiriam, por sua vez, uma gran- de velocidade executiva e também a rugosidade necessária para a geração de um substrato adequado. Na verdade, não tínhamos em mãos apenas o problema de reparar e reforçar a estrutura em alguns pontos. As tu- bulações do pipe rack estavam chegando e iriam ter que ser montadas em simultâneo às atividades de recuperação. Ou seja, seria preciso coordenar em campo uma estratégia para que tanto as frentes da equipe de civil quanto da equipe de mecânica pudessem trabalhar ao mesmo tempo. Terminada a reunião, conseguimos avançar bem, mas sabíamos que as coisas poderiam mudar de uma hora para outra. Sabíamos que o batalhão de engenheiros consultores iria se reunir e, de alguma maneira, tentaria miolo-buriti4.indd 61miolo-buriti4.indd 61 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 62 Rafa Souza inviabilizar nossas soluções por demanda da multinacio- nal. Mas tínhamos confiança em nosso trabalho e estáva- mos sempre amparados em normas de referência mundial. Éramos três guerreiros incansáveis na missão de proteger uma empresa construída com muito suor e que figurava entre as gigantes do concreto pré-fabricado nacional pela sua qualidade e vanguarda. Voltamos faceiros para Porto Alegre e nos reuni- mos em uma empresa que tinha sido a responsável pela construção da obra. Na verdade, essa empresa ganhou a concorrência e terceirizou o pré-moldado para os meus clientes. Eles também estavam sendo pressionados e ti- nham um interesse ainda mais amplo na resolução do pro- blema. Ninguém queria uma ação judicial e terminar tudo amigavelmente era o objetivo de todos. Explanamos todos os pontos da reunião para a gerente e celebramos, já que as coisas pareciam estar se resolvendo. Ao nos encaminharmos para o veículo para que meus amigos GG e FM pudessem me deixar no aeroporto, co- mentei que estava escrevendo um livro sobre a experiên- cia de Brasília e que eles iriam figurar em algum capítulo. Essa aventura de Triunfo também continha grandes doses de emoção e não seria todo dia que eu teria um problema estrutural num polo petroquímico. Demos risada enquanto caminhávamos e já mais ali- viados da tensão disse que o livro iria se chamar “Sentado em Frente ao Buriti”, devido à praça existente na frente do pequeno palácio de Brasília, que ainda me afligia. Daí meu amigo GG falou: “Por que você não coloca apenas ‘Em Frente ao Buriti’?” miolo-buriti4.indd 62miolo-buriti4.indd 62 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 63 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Fiquei pensando nesse título a noite toda, tanto no aeroporto quanto no avião. E também, no outro dia de manhãzinha, novamente numa aula para meia dúzia de gatos pingados. Apesar do título definido, faltava ainda uma coisa mais importante: tempo para poder registrar essa experiência que aparentemente se concretizaria como o ápice na carreira de um engenheiro de estruturas do interior do Paraná. miolo-buriti4.indd 63miolo-buriti4.indd 63 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 miolo-buriti4.indd 64miolo-buriti4.indd 64 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 65 Efeito-Escala "O cientista não é a pessoa que dá as respostas certas, mas quem faz as perguntas certas." Claude Levi-Strauss Uma semana depois de voltar de Porto Alegre, tive um sonho muito estranho. Após estudar profundamentea problemática de Brasília, fui dormir tarde da noite, comple- tamente exausto e consumido pelas inúmeras investigações analíticas e numéricas: retração, fluência, fadiga, efeitos de temperatura, projeto, execução. O que efetivamente foi de- cisivo? O que fazer para salvar a estrutura? Ela poderia, re- almente, ruir a qualquer momento? Havia estudado um livro muito interessante, chamado “The Story of the Koror Bridge”. Nessa obra fantástica é con- tada a história de uma ponte que ruiu num pequeno país chamado Palau. A ponte, dimensionada com o que havia de mais moderno nos códigos da época (AASHTO, ACI e CEB-FIP), veio a ruir apenas três meses depois de um reforço estrutural executado. Quando inaugurada, em 1977, essa ponte detinha o recorde de maior vão livre do mundo, porém, alguns anos miolo-buriti4.indd 65miolo-buriti4.indd 65 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 66 Rafa Souza depois de construída, começou a apresentar deflexões muito acima das previstas em projeto. Empresas japonesas e ame- ricanas, após investigarem o problema a fundo, concluíram que a ponte era segura, mas que a deflexão excessiva era um fenômeno inexplicável. O reforço estrutural consistiu numa modificação do es- quema estrutural da ponte e na introdução de um alto grau de forças de protensão. Alguns pesquisadores alegam que o reforço estava em perfeitas condições e que a ponte não deve- ria ter ruído. Outros pesquisadores alegam que, se o reforço não tivesse sido efetuado, a ponte teria grandes deflexões mas certamente não teria ruído. Começou, assim, um grande em- bate científico para tentar descobrir o que efetivamente ocor- reu e que se arrasta por décadas sem conclusões definitivas. Nesse livro, de Man-Chung Tang, aparece também uma das definições mais interessantes de engenharia, que procuro adaptar conforme se segue: “Engenharia não é ciência. O objetivo da ciência é a busca pela verdade. O objetivo da engenharia é servir aos anseios da sociedade. Baseados no que já sabem, os cientistas fazem descobertas em relação à natureza. Baseando-se em acúmulo de experiência, os engenheiros melhoram o ambiente constru- ído. A experiência nunca é completa, mas os engenheiros não podem esperar pelas descobertas científicas e suas verdades necessárias para projetar e construir”. O livro termina com a conclusão de que mesmo os có- digos modernos, incorporando todos os avanços em relação à fluência, também não seriam capazes de estimar as grandes miolo-buriti4.indd 66miolo-buriti4.indd 66 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 67 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas deflexões ocorridas na Koror Bridge. Aparentemente, o fa- tor predominante seria a perda de protensão, cerca de 50%, valor esse dificilmente aceito, mesmo hoje em dia, para os projetistas estruturais, no caso de pontes. Aparentemente, a fluência teria sido a grande responsável por essa expressiva perda de protensão. No caso de Brasília, sentia que havia vários fatores en- volvidos, mas, sem dúvida, o aspecto determinante era o subdimensionamento. Porém, o caso dessas lajes era inte- ressante, pela seguinte indagação: “Se fosse eu que tivesse a missão de dimensionar essas lajes, o que eu deveria efetiva- mente considerar em termos de carregamento?” Quando tive a missão de projetar um viaduto esconso na região do bairro Cidade Alta em Maringá, comecei a en- tender melhor que, para exercer a engenharia, é necessário ser um grande apostador. Um verdadeiro “gambler”. Digo apostador no sentido de que, para projetar, você primeiro precisa adivinhar as cargas que vão efetivamente atuar na estrutura. Assim, a dosagem apropriada entre a economia e segurança será literalmente condicionada por essa arte de predizer as cargas que irão efetivamente atuar sobre a estrutura. Foi isso que fez Othmar Ammann para conseguir viabi- lizar a George Washington Bridge em Nova York. Apostando em probabilidades, Ammann carregou sua ponte com uma carga significativamente menor do que aquela que vinha sen- do feita na época. Assim, a ponte ficou viável do ponto de vista econômico e continua imponente até os dias atuais. É claro que hoje em dia devemos seguir à risca os códi- gos normativos, situação um pouco mais flexível na época miolo-buriti4.indd 67miolo-buriti4.indd 67 10/02/2021 21:08:3010/02/2021 21:08:30 68 Rafa Souza de Ammann, mas, ainda assim, estimar as cargas reais é uma arte. Calculando o viaduto do Cidade Alta, todo dia me apa- recia uma nova ação, até que cheguei numa nova maneira de pensar no problema: “Quais cargas não posso esquecer de jeito nenhum?”. E assim, finalmente, consegui selecionar os carregamentos e terminar o projeto. Nessas passagens relacionadas à definição dos carrega- mentos, sempre me vem o caso da queda da passarela Tim Maia no Rio de Janeiro, ocorrida em 2016. Vamos esquecer os aspectos obscuros que cercam o projeto/execução e va- mos pensar na hipótese de que tudo tivesse sido feito no devido padrão de excelência. Formulo então a seguinte per- gunta: Qual engenheiro de estruturas teria dimensionado a passarela, prevendo a condição de carregamento de que uma onda gigante voaria de dentro do mar, bateria numa pedra e alcançaria, em elevada altura, as vigas pré-moldadas da passarela, ao ponto de derrubá-las? Na época do colapso vi muita gente desfilando na mí- dia sua experiência profunda em estruturas, propiciada certamente por um background constituído de ancoragem de guarda-sóis em areias de praia. “Ah, essa passarela era insegura pois não foi calculada para aguentar a onda do mar”. Óbvio que não foi e não seria, nem nas condições mais perfeitas de projeto. Até um oceanógrafo apareceu numa entrevista dizen- do que faltou considerar o impacto da água nas longarinas. Desafio ele, o especialista nas ondas do mar, camarada ín- timo de Netuno, a me dar, então, uma pressão adequada de impacto da água nas longarinas, considerando-se as condi- ções de contorno ali existentes. miolo-buriti4.indd 68miolo-buriti4.indd 68 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 69 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Falar, até papagaio fala. Não seria mais simples fechar a passarela quando estivesse ventando muito e o mar estivesse agitado? Isso chama-se restrição de uso e ocorre, por exem- plo, na Terceira Ponte de Vitória e Ponte Rio-Niterói. Agora, calcular pressão de água, nas condições ali existentes, certa- mente continuará sendo pouco provável. Mas de volta ao caso de Brasília, como seria o dimen- sionamento das lajes de cobertura? O peso próprio das lajes nervuradas junto com a impermeabilização não poderiam ser esquecidos. As cargas pontuais dos tirantes que suspen- dem o piso superior também não. Havia, ainda, as instala- ções e uma carga mínima acidental sobre a laje. Acontece que estamos falando de lajes com dimensões superiores a 25 m, que, por sua vez, ultrapassam os valores usuais. Como será que uma laje com esse nível de grandeza se comporta frente a efeitos como retração, temperatura, fadiga e fluência? Será que seria fácil analisar esses efeitos? Será que se eles fossem efetivamente considerados, as lajes seriam viáveis economicamente? Será que se esses fatores fossem conside- rados, estaria eliminada a hipótese de problemas estruturais? Primeiro vamos falar de retração e efeito de tempera- tura. Esses efeitos são preocupantes em estruturas hiperes- táticas que, impedidas de se movimentar, geram esforços adicionais provocados por esses efeitos. Em estruturas isos- táticas, a situação é mais simples, pois a estrutura pode con- trair ou dilatar sem maiores problemas, de maneira que não surgirão reações e, consequentemente, esforços decorrentes de retração e efeitos de temperatura. O problema é que, se os efeitos de retração e temperatu- ra forem levados em conta no dimensionamento, conforme miolo-buriti4.indd 69miolo-buriti4.indd 69 10/02/2021 21:08:3110/02/202121:08:31 70 Rafa Souza exige a maioria das normas, a quantidade de armaduras pode ser tão absurda, que vai onerar demais o projeto. Códigos mais modernos já prescrevem que, dimensio- nar em estado-limite último, considerando-se os efeitos de retração e temperatura, não faz muito sentido. Ao fissurar, os referidos esforços decorrentes de temperatura e retração tendem a se dissipar, de maneira que seria muito mais inte- ressante adotar um nível de armação que apenas controle as aberturas de fissuras para as condições de serviço. Não é o que pensa a norma brasileira no momento, mes- mo com Leonhardt tendo passado essa receita lá na década de 1970. Assim, muitas vezes, vendam-se os olhos para pro- blemas que envolvem efeitos de temperatura e retração em edificações menores. Mas, e no caso dessa obra de Brasília? Quais seriam os esforços promovidos pela retração e efeitos de temperatura nos pilares? Estamos falando de vigas de 1,0 m x 2,0 m com lajes de vãos superiores a 20 metros! Assim, deve-se ter muito cuidado ao criticar um cole- ga; afinal de contas, ninguém está livre de não levar em con- ta um carregamento necessário, esquecido por descuido ou desconhecimento. Devemos utilizar esses problemas para não cometermos o mesmo erro e também calibrar nossa humildade em respeito à natureza. A escala da obra de Brasília ocorre fora dos padrões, muito distinta do que normalmente se encontra na prática das construções. Cabe, portanto, aqui, relembrar o chama- do efeito-escala, desde muito tempo observado pelo inigua- lável Leonardo da Vinci. Se observarmos a natureza e fizermos uma compara- ção entre a formiga e o elefante: quem seria o ser mais forte? miolo-buriti4.indd 70miolo-buriti4.indd 70 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 71 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Muitos diriam, sem dúvida alguma, que é o elefante! Porém, a resposta é relativa. Pensemos na escala de cada um dos se- res selecionados. Quantas formigas uma formiga pode car- regar em suas costas? Quantos elefantes um elefante pode carregar em suas costas? Se levarmos em conta a escala de cada um, vamos per- ceber que a formiga possui uma força fantástica. O elefante, por sua vez, dentro de sua escala, não conseguiria suportar outro ser de sua espécie. É exatamente isso que acontece com a natureza das vigas de concreto. A maioria dos ensaios experimentais foi efetuada em vigas de pequena altura e, a partir daí, foram desenvolvidas as formulações. Assim, a maioria dos mode- los leva em conta que a capacidade referente à força cortante das vigas é dependente de sua altura útil, de maneira que, quanto maior esse parâmetro, maior seria sua capacidade. A história começou a mudar em 1955, após o colapso parcial do hangar Wilkins, da Força Aérea, em Shelby, Ohio, Estados Unidos. O colapso foi ocasionado pelas tensões de cisalhamento em vigas de 90 cm de altura, armadas com apenas 0,45% de armadura longitudinal e sem estribos. As vigas falharam com uma tensão de cisalhamento próxima a 0,5 MPa, enquanto o código americano da épo- ca permitia uma tensão de trabalho admissível de 0,62 MPa para o concreto de 20 MPa utilizado. Desde então, o proble- ma de cisalhamento em peças de concreto armado se tornou tema de grande debate e pesquisas. Nascia, assim, um dos temas mais controversos dentro da engenharia de estruturas. Assim, ao se aumentar a altura das vigas, não se pode esperar que a resistência ao cisalhamento irá aumentar miolo-buriti4.indd 71miolo-buriti4.indd 71 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 72 Rafa Souza linearmente com o aumento da altura útil. Existe, assim, um efeito-escala envolvido e a formulação desenvolvida para vi- gas de grande porte não pode ser baseada no ensaio de vigas de pequeno porte. Vários concursos têm sido promovidos mundo afora, na tentativa de tratar melhor esse problema entre a for- miga (vigas de pequeno e médio porte) e o elefante (vigas de grande porte). E, pelo jeito, estamos só no meio da jor- nada. Seria a laje de Brasília um elefante idealizado como uma formiga? miolo-buriti4.indd 72miolo-buriti4.indd 72 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 73 Sexto Sentido "Equipado com seus cinco sentidos, o homem explora o Universo ao seu redor e chama suas aventuras de ciência." Edwin Powell Hubble O prazo de entrega do primeiro relatório de Brasília es-tava expirando e eu lutava contra o tempo, escreven- do loucamente para registrar, de maneira clara, as minhas hipóteses. Nesse primeiro momento, o objetivo primordial era demonstrar por que as lajes de cobertura chegaram a uma situação tão crítica, bem como concluir sobre a estabi- lidade global da edificação. De madrugada, sonhei que segurava até a exaustão placas de concreto penduradas em cordas. Meus braços, esticados como se eu fosse um Cristo redentor, seguravam até não poder mais as placas de concreto, até que, final- mente, não puderam aguentar e cederam. Nesse momento, acordei subitamente, completamente assustado e suado, sentindo meu braço direito completamente dormente. Demorei para pegar no resto de sono que ainda me faltava, por associar diretamente o pesadelo com Brasília. miolo-buriti4.indd 73miolo-buriti4.indd 73 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 74 Rafa Souza Pela manhã, refleti bastante em relação àquela passa- gem onírica e acabei interpretando o fato como uma men- sagem divina. Me lembrei da vez em que tive uma luxação de ombro por não seguir minhas intuições. Dessa vez, pre- cisava fazer diferente, ouvir meus próprios sinais. Após muito refletir, percebi que meus braços poderiam ser os consolos (regiões maciças) nas redondezas das vigas longitudinais que, por sua vez, davam apoio para os tirantes que sustentavam as lajes do piso superior. Reuni as informações que tinha e encaminhei um ofí- cio emergencial no dia 18 de abril, recomendando que os consolos fossem abertos e que ninguém mais deveria entrar na edificação sem o devido escoramento de todo o prédio. Ainda nessa mesma época, tomei conhecimento de que um perito designado precisaria entrar no prédio para registrar todo o imbróglio jurídico que havia sido criado. Pensando, então, na segurança desse profissional que tão amigavelmente havia me contatado em semanas anteriores e, sabendo que estrutura não era sua especialidade, achei por bem encaminhar urgentemente tal ofício, a fim de que providências pudessem ser tomadas. Conhecendo o comportamento de órgãos públicos, por trabalhar em um, conjecturei que eventualmente eu po- deria estar numa posição de boi de piranha. Para aqueles que não conhecem essa analogia, boi de piranha é uma ex- pressão popular brasileira que designa uma situação em que um bem menor e de pouco valor é sacrificado para que, em troca, outros bens mais valiosos não sofram dano. Evidentemente, eu tinha minha competência para es- tar ali, mas também não podia ser ingênuo, pensando que miolo-buriti4.indd 74miolo-buriti4.indd 74 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 75 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas poderia ser só isso. A partir do momento em que a obra estava por mim sendo estudada, entendi que ela estava sob minha responsabilidade e não mais do órgão que me con- tratou. Ou seja, inicialmente, a responsabilidade pelo prédio estava toda nas costas dos engenheiros do órgão responsá- vel; mas, ao me contratarem como especialista, essa respon- sabilidade foi imediatamente a mim transferida. Não creio que tenha sido exatamente um boi de pi- ranha, mas se eventualmente fosse e o prédio viesse a cair enquanto eu o estudava, certamente teria um problema ju- rídico muito difícil de me livrar. Assim, de maneira a me resguardar, joguei novamente a batata quente de volta para o órgão competente e pude terminar com mais calma o tão esperado primeiro relatório. Meses mais tarde, viria a ler o excelente livro do pes- quisador Sidarta Ribeiro, chamado “OOráculo da Noite” e me lembrei com emoção dessa passagem de Brasília. No livro, esse respeitado neurocientista revela como a huma- nidade já foi guiada por sonhos no passado, como uma espécie de bússola para a tomada de decisões. Não são poucos os casos em que os sonhos serviram de ferramenta para a tomada de decisões. São frequentes, tam- bém, os casos de sonhos capazes de prever uma realidade que estaria para acontecer. Estão nos sonhos, também, um número sem-fim de inspirações para grandes invenções e obras artísticas. Até hoje a ciência não consegue explicar de maneira efetiva o papel dos sonhos. Mas uma coisa é fato: esse ma- terial deve ser aproveitado, nem que seja para entender me- lhor a nós mesmos: nossos desejos, angústias e medos. Eis miolo-buriti4.indd 75miolo-buriti4.indd 75 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 76 Rafa Souza aqui um grande desafio científico: para que servem e como surgem os sonhos? São revelações ou simples coincidências? O fato é que me alimentei de ciência, mas fui defi- nitivamente sensibilizado por aquele sonho, tendo, assim, decidido pelo pedido de escoramento imediato da edifica- ção. A notícia repercutiu como uma bomba em Brasília; afinal de contas, o escoramento das lajes de cobertura de- veria vir desde o subsolo, gerando a necessidade de uma contratação de emergência que implicaria grandes custos. Também recomendei que os consolos precisariam ser abertos, de maneira que pudéssemos confirmar a armadura ali existente. Como a obra havia sido muito modificada, não estava claro o comportamento estrutural daqueles elemen- tos e também não havia certeza se a armadura de projeto havia sido efetivamente empregada. Meses depois de entregar o primeiro relatório, foi con- tratada uma empresa para abrir os consolos das lajes de cobertura. Foram retirados os revestimentos impermeabili- zantes e abriram-se janelas com grande profundidade. Para surpresa geral, não foram encontradas as armadu- ras negativas, de maneira que me pareceu acertado o pedido de escoramento da edificação em função da temível passa- gem onírica. Esse era mais um fato preocupante entre os mais diversos problemas que já haviam sido constatados e, para estudar aquela obra, precisaria definitivamente empre- gar o sexto sentido. miolo-buriti4.indd 76miolo-buriti4.indd 76 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 77 O Primeiro Relatório "Para mim, nunca houve uma fonte maior de honras terrenas ou distinção maior do que a conexão com os avanços da ciência." Isaac Newton E ra final de março de 2019 quando subi nas lajes de co-bertura do gigante abatido e, agora, um mês depois, compilava todas as minhas impressões da estrutura num primeiro relatório, resumidas a seguir. Em pleno Eixo-Monumental de Brasília está encrava- da essa belíssima estrutura de concreto armado e protendi- do, finalizada por volta de 2002. A arquitetura é arrojada, sendo a edificação constituída de subsolo, térreo, piso su- perior e cobertura. O edifício é basicamente uma caixa de concreto, com comprimento de 68 m por uma largura de 24 m, sendo que o prédio, a partir do térreo, possui altura total de 9,0 m. A estrutura da cobertura é constituída de 2 vigas lon- gitudinais e 4 vigas transversais, todas protendidas. Com exceção das vigas transversais de fachada, que possuem di- mensões de 0,50 m x 2,0 m e são armadas com 16 cordoa- lhas engraxadas de 12,7 mm, todas as outras vigas possuem miolo-buriti4.indd 77miolo-buriti4.indd 77 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 78 Rafa Souza dimensões de 1,0 m x 2,0 m e são armadas com 50 cordoa- lhas engraxadas de 12,7 mm. Essas vigas se apoiam em 8 pilares de 1,0 m x 1,0 m, formando, assim, três panos de lajes nervuradas protendi- das: 18,6 m x 24 m (L1), 30,8 m x 24 m (L2) e 18,60 m x 24 m (L3). As lajes nervuradas de cobertura também são pro- tendidas e apresentam altura total de 47,5 cm, sendo destes 5 cm destinados ao capeamento. As lajes nervuradas possuem 3 cordoalhas de 12,7 m por nervura na direção longitudinal, isto é, na direção para- lela ao comprimento de 68 m. Por outro lado, as lajes L1 e L3 recebem 2 cordoalhas de 12,7 mm por nervura na direção transversal, enquanto a laje L3 recebe 3 cordoalhas de 12,7 mm na direção paralela à largura da edificação de 24 m. Além da armadura ativa, a laje nervurada L2 recebe 2 barras de 10 mm por nervura em ambos os sentidos (longi- tudinal e transversal), enquanto as lajes nervuradas L1 e L3 recebem apenas 1 barra de 8 mm nas duas direções. Por volta de 2006, a estrutura de cobertura começou a apresentar os primeiros problemas, de maneira que passou a ser monitorada por, pelo menos, 4 empresas distintas, a partir de 2014, em períodos diferentes. Os monitoramen- tos indicaram deslocamentos excessivos das lajes de co- bertura (foram verificados incríveis 35 cm de flecha na laje L2), presença de fissurações e desplacamentos nas lajes nervuradas protendidas. Considerando-se que as nervuras possuem apenas 12,5 cm de largura e que as barras necessitam ser emendadas de- vido ao grande comprimento, não é de se estranhar os des- placamentos, uma vez que não há espaço suficiente para o miolo-buriti4.indd 78miolo-buriti4.indd 78 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 79 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas concreto envolver as armaduras. O desplacamento era ain- da potencializado pela necessidade de furação das nervuras para ancoragens dos forros. Deve-se observar que a estrutura de cobertura chegou a apresentar fissuras máximas de até 10 mm em algumas nervuras e várias outras fissuras na faixa de 0,1 a 7,0 mm. Esse panorama já indicava que, na época, a estrutura já dava claros indícios de um estado avançado de deformação das armaduras ativas, denunciando, assim, um provável subdi- mensionamento e entrada em estado-limite último. Como se sabe, no concreto armado e mesmo no con- creto protendido, costuma-se trabalhar com uma defor- mação última convencional das armaduras de 10 mm/m. Isso significa que, se tomarmos um trecho de comprimento igual a 1,0 m em uma viga, que tenha fissuras espaçadas a cada 10 cm, a abertura média de fissura de cada uma delas seria cerca de 1,0 mm. Imagine, então, visitar uma estrutura protendida que, em um único ponto, apresenta uma fissura de 1,0 cm! Ou seja, em um único ponto, a armadura já dava claros indícios de que o regime elástico poderia estar sendo ultrapassado. Uma deformação de 10 mm/m em uma arma- dura protendida corresponde normalmente ao início do seu regime convencional de escoamento. Em vista desse estado preocupante, houve a contrata- ção de projeto e execução de reforço para as lajes da cober- tura, com a utilização de perfis metálicos. O referido reforço com vigas metálicas foi iniciado em junho de 2015 e finali- zado em outubro de 2016. As lajes nervuradas foram moldadas com cubetas e têm peso próprio de 5,63 kN/m2. Considerando-se os miolo-buriti4.indd 79miolo-buriti4.indd 79 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 80 Rafa Souza carregamentos adicionais promovidos pela impermeabili- zação, forros/instalações e carga acidental, estimou-se, antes do reforço, um carregamento total na ordem de 8,13 kN/m2. Deve-se observar que as lajes de cobertura sustentam, ainda, em suas bordas longitudinais, tirantes destinados a suspender as lajes do piso superior. A estimativa é de que cada tirante suspende, em média, uma carga pontual de 301 kN a cada 2,20 m, nas proximidades das vigas longitu- dinais de fachada. Tal fato leva a um imenso problema para a resolução do problema, pois uma vez afetadas as lajes de cobertu- ra, as lajes do piso superior também podem vir a ruir, já que dependem da estabilidade das primeiras. Além disso, a desmobilização de cordoalhas no sentido longitudinal de alguma das lajes acabaria afetando as lajes vizinhas; sendo assim, em função das lajes suspensas, há necessidade de se escorar a edificação porcompleto, desde o subsolo até a cobertura afetada. Para se ter uma noção da ordem de grandeza dos esfor- ços, a laje nervurada protendida de cobertura L2 apresentou momentos fletores positivos nas nervuras do sentido trans- versal de até 271 kN.m, quando considerado um modelo de grelha sem a influência dos tirantes de suspensão da laje inferior. Ao considerar a influência dos tirantes, o referido momento fletor positivo disparou para 305 kN.m. Fato interessante ainda foi observado ao se calcular sim- plificadamente os panos de laje utilizando as consagradas tabelas de Marcus e Czerny. Com essas tabelas, os picos de momento positivo nas nervuras do sentido transversal da laje L2 seriam de apenas 148 kN.m (Marcus) e 167 kN.m (Czerny). miolo-buriti4.indd 80miolo-buriti4.indd 80 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 81 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Estimou-se que o escoamento das armaduras ativas da seção transversal da laje L2 ocorreria para o momento fle- tor de 245 kN.m que, por sua vez, seria menor do que os 305 kN.m esperados, revelando, portanto, que as nervuras estariam subdimensionadas para absorver o carregamento. Deve-se ainda observar que, não bastasse toda proble- mática, os efeitos de retração, fluência, temperatura e fadiga também são muito relevantes para o caso em pauta e po- dem se combinar de maneira crítica. Considerando-se que Brasília pode apresentar temperaturas elevadas durante o dia e temperaturas baixas durante a noite, as lajes possuem uma tendência de encurtamento e dilatação frequente que, por sua vez, pode conduzir a efeitos de fadiga. Como se não bastassem os problemas anteriores, mo- nitoramentos efetuados em 2019 demonstraram que os fluxos de veículos durante o dia também poderiam ter in- fluência no comportamento das lajes de cobertura, geran- do vibrações. Na cobertura da edificação, encontram-se atualmente vigas metálicas de reforço W460 x 82, sendo que as três lajes nervuradas protendidas existentes na cobertura foram re- forçadas com essas vigas metálicas dispostas em um único sentido, mudando, a princípio, a forma de distribuição dos carregamentos das lajes. As lajes de cobertura originais, em vista de suas geo- metrias retangulares, possuíam tendência de distribuir os carregamentos em vigas protendidas longitudinais e trans- versais, isto é, de maneira bidirecional. Com a execução do reforço, passou-se a ter provavelmente um encaminhamen- to unidirecional das cargas, com aumento de carga sobre os miolo-buriti4.indd 81miolo-buriti4.indd 81 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 82 Rafa Souza consolos, que são, na realidade, regiões maciças de encon- tro das lajes nervuradas com as vigas perimetrais e que, no sentido longitudinal, ancoram os tirantes de suspensão do pavimento inferior. O carregamento sobre as lajes foi amplificado em fun- ção da colocação das vigas metálicas e observou-se que es- tas trabalham como uma espécie de viga mista invertida. Ou seja, como tais vigas foram colocadas na parte superior, os perfis metálicos capturam os esforços de compressão, enquanto as nervuras protendidas fragilizadas continuam absorvendo tração. A partir de medidas tiradas no local, foi possível cons- tatar um acentuado deslocamento das vigas metálicas, in- dicando que o reforço metálico não estava funcionando de maneira adequada. O início dos deslocamentos das vigas metálicas ocasionou, inclusive, a interdição da edificação em fevereiro de 2019, em vista de novos deslocamentos, despla- camentos do concreto das nervuras, ruptura de uma cordoa- lha de protensão e registro de escoamento em um dos perfis metálicos que estavam sendo monitorados. Na visita realizada, de maneira a não perder a oportu- nidade da visita, pedimos uma linha de pedreiro e consegui- mos medir a deflexão da viga metálica central situada sobre a laje central L2: 9 cm! As flechas eram facilmente visualiza- das e o medo de andar sobre as lajes era muito grande. No projeto de reforço, especificou-se que os perfis metálicos seriam responsáveis por apenas uma parcela do carregamento e não pelo carregamento total da cobertu- ra. Aparentemente, não houve a preocupação de se ava- liar a seção efetivamente como uma seção mista invertida. miolo-buriti4.indd 82miolo-buriti4.indd 82 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 83 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Aparentemente, o carregamento foi simplesmente dividido de maneira aleatória entre os perfis metálicos e a seção original. Além disso, o modo de apoio dos perfis metálicos não estava bem definido. Entrariam eles para enrijecer as ner- vuras ou estariam apoiados nos consolos laterais, suspen- dendo as lajes afetadas? Não se sabe ao certo a concepção considerada para o cálculo do reforço efetuado. Ainda, em vista do estado avançado de fissuração, seria muito mais prudente desprezar a capacidade residual das nervuras que estavam subdimensionadas e, provavelmente, com as armaduras escoadas em alguns pontos. O dimensio- namento dos perfis metálicos para absorver todo o carre- gamento seria, certamente, um procedimento muito mais prudente, em vista do estado de fissuração observado e do subdimensionamento das armaduras das nervuras. Ainda em relação aos perfis metálicos de reforço, ob- serva-se que os mesmos não possuem travamentos laterais, o que leva a uma esbeltez elevada para flambagem lateral com torção (FLM), desrespeitando, assim, o limite máximo de esbeltez de 200 especificado pela NBR8800. Na prática, o reforço executado funciona como uma seção mista invertida, com perfis metálicos trabalhando comprimidos e nervuras trabalhando tracionadas. Ao se comprimir um perfil por flexão e, observando-se que os mesmos não estão travados transversalmente, pode-se che- gar à flambagem com cargas inferiores àquelas que provo- cariam o escoamento do perfil. Deve-se ainda observar que, ao introduzir os perfis metálicos como solução de reforço, o encaminhamento das cargas foi provavelmente modificado de bidirecional para miolo-buriti4.indd 83miolo-buriti4.indd 83 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 84 Rafa Souza unidirecional, gerando solicitações diferenciadas sobre os consolos de extremidade que, por sua vez, sustentam tam- bém os tirantes de sustentação das lajes do piso superior. A estrutura certamente apresenta alguma reserva de resistência em função de os carregamentos considerados se- rem eventualmente maiores do que os existentes, bem como pelo fato de os materiais utilizados poderem ter resistência superior àquelas consideradas. Mas não há dúvidas de que a laje central já está em estado limite último em vista das características observadas. Na visita realizada, observou-se que as lajes nervura- das da cobertura foram reparadas em vários pontos onde anteriormente ocorreram desplacamentos e fissurações. A princípio, as regiões anteriormente fissuradas e desplacadas encontram-se estabilizadas, isto é, não ocorreram novos da- nos nas regiões recuperadas. Foram identificadas fissuras de flexão com pequena abertura e, pelo menos na parte visível, não foi encontrada nenhuma fissura com abertura que de- nuncie um comportamento anormal. Por outro lado, foi constatada a ruptura de uma cor- doalha do sentido transversal da laje L2 junto à região dos apoios. Inicialmente, nos causou estranheza o posiciona- mento de tal ruptura, uma vez que os momentos de pico tendem a ocorrer em regiões centrais. No entanto, após muita reflexão, constatou-se que o comportamento físico era apropriado, uma vez que a presença dos tirantes na re- gião dos apoios introduz um momento fletor positivo eleva- do, logo nas imediações das ancoragens. Em relação ao projeto original, foram identificadas diversas deficiências, dentre as quais podem ser citadas: miolo-buriti4.indd 84miolo-buriti4.indd 84 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 85 Em frente ao Buriti: Reflexõesde um engenheiro de estruturas ausência de especificação do traçado dos cabos de proten- são das nervuras, ausência de especificação em relação aos espaçamentos necessários entre cordoalhas numa mesma nervura, subdimensionamento das armaduras passivas e ativas, provável ausência de verificações em relação aos efei- tos de temperatura, retração e flechas, levando-se em consi- deração os efeitos de fluência e perdas de protensão. Em relação ao processo executivo, observa-se que hou- ve modificação do projeto original. As lajes suspensas, pro- jetadas inicialmente como nervuradas, foram substituídas por lajes maciças, sem que houvesse a atualização do proje- to estrutural. Não se sabe quais armações foram utilizadas na laje suspensa da edificação, uma vez que não foram en- contrados registros dessa modificação efetuada. Observa-se ainda que, em função de resultados de extra- ção de testemunhos, é provável que o concreto utilizado nas lajes de cobertura seja inferior ao valor indicado em projeto de 30 MPa. Esse valor ainda é conflitante com o valor de 50 MPa, supostamente utilizado para o cálculo das armaduras. Há, sem dúvida, uma aparente confusão na definição do con- creto, que pode ter levado ao subdimensionamento. O histórico de fatos demonstrou claramente que a es- trutura vem sempre trabalhando, ao longo do tempo, em uma região muito aquém da região de segurança recomen- dada pelos códigos normativos e, por esse motivo, reco- mendou-se o escoramento imediato até que uma solução definitiva fosse tomada. Após inúmeras horas de simulações e investigações, entreguei meu primeiro relatório de trabalho em abril de 2019, revelando, assim, minhas hipóteses para tamanha miolo-buriti4.indd 85miolo-buriti4.indd 85 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 86 Rafa Souza complicação. Em conversas no local, um fato me chamou bastante a atenção. Pelo que aparenta, a referida obra foi executada com muita pressa, com turnos diários e noturnos, na tentativa de inaugurá-la com data marcada. Talvez, tal fato tenha sido o estopim para as inúmeras deficiências observadas. E isso passaria a ser um padrão crítico repetitivo que eu observa- ria ao longo da minha trajetória de investigador estrutural. miolo-buriti4.indd 86miolo-buriti4.indd 86 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 87 O Ex-Sócio "A ciência não é apenas uma disciplina de razão, mas tam- bém de romance e paixão." Stephen Hawking Com o primeiro relatório encaminhado para Brasília, agora eu teria um tempo livre para voltar a pensar no problema de Triunfo. Assim, já no final do mês de abril de 2019, seguimos novamente eu, GG e FM para uma reunião decisiva em São Paulo, no quartel general de uma das empre- sas consultoras contratadas pela multinacional de Triunfo. O amigável engenheiro dos longos cabelos brancos, filho do engenheiro executor dos espetaculares pilares de Brasília, já tinha se revelado um grande aliado. Profissional ponderado, pragmático e eloquente, era sempre decisivo quando levantava a voz e dava sua opinião. O pessoal sina- lizava com aprovação e as coisas finalmente caminhavam após longas horas de discussão. A questão do graute a ser produzido em canteiro, bem como a utilização de discos de desbaste para dar produ- tividade e a devida rugosidade às vigas a serem reforça- das já estavam decididas, quando alguém teve a ideia de miolo-buriti4.indd 87miolo-buriti4.indd 87 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 88 Rafa Souza contatar o chefe daquela empresa consultora com quase 200 engenheiros. Saíram para chamar a autoridade máxima e con- tinuamos ali, agora com um clima bem mais amigável. Escutávamos aquele monte de engenheiros contando suas histórias e suas obras sensacionais e, a despeito da pressão que estávamos sofrendo, carregávamos a sensação de que estávamos participando de algo realmente grande. Daquela estrutura de concreto, entregue pelos meus clientes, sairia grande parte da borracha sintética que circula pelo mundo. De repente, vimos entrar pela porta um senhor de ida- de já bem avançada, cabelos muito brancos e pele averme- lhada. Com voz rouca e sotaque espanhol se apresentou aos presentes e pediu para que resumíssemos os procedimentos de recuperação a serem efetuados em Triunfo. Ao final das explicações, ouvimos, espantados, sua dis- cordância e, novamente, uma reviravolta se apresentou. Dizia ele que fazer graute na obra não iria funcionar e que o produ- to deveria ser industrializado. Além disso, não poderíamos otimizar o processo com discos de desbaste para regularizar o substrato e que marteletes deveriam cumprir esse papel. Para piorar a situação, esse engenheiro estrangeiro, de origem uruguaia e nitidamente o guru dos gurus dentro da empresa consultora, havia sido sócio do Prof. Paulo Helene. Ou seja, por mais que eu tentasse fugir, seu nome vinha à tona novamente. Fiquei ali refletindo sobre mais essa coin- cidência do destino. Eu não podia acreditar como esse mundo é pequeno e como as coisas vão se entrelaçando de maneira inacreditá- vel, comprovando a sincronicidade de Jung. Como poderia miolo-buriti4.indd 88miolo-buriti4.indd 88 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 89 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas aquele guru ter sido sócio do papa do concreto nacional? Já não bastava o engenheiro filho do engenheiro que concre- tizou os pilares do Planalto? Seria outra batalha da pesada, que já parecia vencida, mas que precisaríamos, novamente, recomeçar da estaca zero. O guru ainda disse que eles fariam uma proposta de encamisamento da estrutura de concreto com estrutura me- tálica e que, assim, tudo poderia ficar mais rápido e seguro. Achamos absurda a ideia, mas ele começou a lançar núme- ros de peso de aço, estimativas de custo, num intervalo tão curto que pareceu que, dali, poderia realmente sair uma ideia genial. Isso era uma sexta-feira e ele disse que na se- gunda já teriam as simulações e custos efetivos. Tudo estaria resolvido. Seria um triunfo em Triunfo. A reunião terminou e saímos todos dali com aquele sentimento de perda de tempo. Eu, GG e FM não acredi- távamos no desfecho daquela reunião. Ficamos ainda pen- sando na possibilidade de nos pedirem para fazermos as simulações da estrutura de concreto reforçada com estru- tura metálica. Retornei para o aeroporto de Guarulhos e ali fiquei pensando em toda aquela viagem. Não era para menos tam- bém. Se explodissem alguns daqueles gases, voaria tudo pe- los ares e um sem número de profissionais ficaria com o peso do mundo em suas costas. Cada movimento no tabuleiro tinha que ser pensado com destreza, pois, depois de dado o movimento, seria difícil retornar à posição de origem. Me lembrei também de uma história muito maluca relacionada àquela teoria de que estamos todos no mun- do conectados por uma diferença de apenas cinco pessoas. miolo-buriti4.indd 89miolo-buriti4.indd 89 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 90 Rafa Souza Comentei essa história com alguém que me disse que isso era pura besteira. Insisti que não era e a pessoa então me de- safiou. “E o papa, por exemplo, como me conecto ao papa?” Lembrei da irmã freira do meu baterista e também engenheiro, Igor Grande. Ela morava na Itália e, certa- mente, tinha uma superior que, por sua vez, teria alguma ligação com o Vaticano e, consequentemente, com o papa. Essa teoria, agora, se mostrava novamente válida com o engenheiro uruguaio. O fato é que, passado algum tempo, o modelo numérico com o reforço metálico nunca foi apresentado e, felizmente, essa ideia absurda foi descartada. Nesse tempo, recorremos novamente aos códigos normativos de ponta e casos corre- latos, para demonstrar que as nossas intenções refletiam o estado da arte. Aproveitei o tempo livre para terminar um curso de “Patologia e Recuperação Estrutural” que daria em Cianorte na próxima semana e, com a experiência, já coleciona- va ações que, certamente,seriam necessárias em Triunfo. Estamos ou não todos conectados? miolo-buriti4.indd 90miolo-buriti4.indd 90 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 91 Colapso Frágil “Se você quer os acertos, esteja preparado para os erros.” Carl Yastrzemski O mês de maio de 2019 vinha se desenrolando incrivel-mente bem. Havia entregado o relatório de Brasília, Triunfo já se preparava para iniciar o reforço e eu já havia dado um curso de Patologia para engenheiros em Cianorte, cidade num raio de 100 km de Maringá. Com tudo um pouco mais calmo e sob controle podia me dedicar ao cálculo estrutural de um edifício da cidade de São Bento do Sul, em Santa Catarina, bem como aumentar o número de visitas ao meu pai. Ficava refletindo comigo por que uma doença ainda sem cura, que a ciência ainda não conseguia desvendar, foi procurar justamente meu pai, um cientista de ponta na área de Química, para se alojar. Ele estava sofrendo com um linfoma não Hodkin e já estava na fase de quimioterapia, reagindo muito bem. O humor do meu velho me alegrava demais para encarar os desafios e nossos encontros eram sempre recheados com política e futebol. Meu primeiro projeto estrutural foi o da casa da chácara onde morávamos. Foi ele quem me deu a miolo-buriti4.indd 91miolo-buriti4.indd 91 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 92 Rafa Souza primeira oportunidade de calcular e consolidar uma estru- tura de concreto do começo ao fim. E isso foi logo após me formar, quando estava na mesma Unicamp em que ele fez seu doutorado. O linfoma surge no sistema linfático, uma rede de pequenos vasos e gânglios linfáticos, que é parte tanto do sistema circulatório como do sistema imune. O sistema é responsável por coletar e redirecionar para o sistema circula- tório um líquido claro, chamado linfa que, por sua vez, con- tém células de defesa (glóbulos brancos) chamadas linfócitos. O linfoma não Hodgkin normalmente se manifesta através de linfonodos (gânglios) aumentados na região do pescoço, axilas e virilha. Estão presentes sintomas como febre, perda de peso, sudorese abundante à noite, prurido (coceira), falta de apetite e cansaço. Existem mais de 20 tipos diferentes de linfoma não Hodgkin, sendo eles classificados de acordo com o tipo de célula linfoide e o comportamento biológico: os indolentes (com evolução lenta) e os agressivos (de crescimento rápido e mais invasivos). O do meu pai, apesar de não ter sido pos- sível fazer a biópsia para identificação, era aparentemente um agressivo e já começava a afetar os ossos. Como cientistas que somos, tanto meu pai como meus irmãos, estudamos tudo o que podíamos em relação à doen- ça, sempre buscando artigos científicos em revistas de ponta e jogando com a probabilidade de que meu velho era um ponto fora da curva: já tinha sobrevivido a dois infartos e ostentava pontes de safena. Ele estava no estágio IV da doença e as estatísticas não eram muito favoráveis. Mas o tratamento conhecido como miolo-buriti4.indd 92miolo-buriti4.indd 92 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 93 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas R-CHOP, constituído dos medicamentos rituzimabe, ciclo- fosfamida, doxorrubicina, vincristina e prednisona funcio- nava para ele como uma espécie de energético. Muita gente passa mal nesse tratamento, normalmente administrado em ciclos, com intervalos de 3 semanas. Ele voltava alegre do hospital, agitado e feliz por estar reagindo bem. A quimio- terapia só aumentava a sua potência, que já era grande de- mais, de maneira natural. Não se conhecem as causas do linfoma não Hodgkin e a incidência tem aumentado bastante nos últimos anos, principalmente em homens com idade superior a 60 anos. Meu pai estava com 68 anos e tinha tido associações com alguns fatores considerados de risco. Aparentemente, infecção pelos vírus HIV, Epstein-Barr e HTLV1 e a bactéria Helicobacter pylori podem levar ao linfoma. Exposição a agentes químicos, tais como herbici- das, fertilizantes, inseticidas, pesticidas e solventes também, além de exposição a altas doses de radiação. Meu pai tinha contraído a bactéria Helicobacter pylo- ri antes de tudo começar, porém, nossa maior desconfian- ça para a origem da doença estava nas pipetagens que, por muito tempo, ele fez na profissão, utilizando reagentes quí- micos. Interessante que, no departamento de Química da universidade onde ele trabalhava, vários outros professores também tinham sido acometidos pelo câncer. Para nós, não era coincidência, mas sim, um efeito colateral da profissão que ele tanto amava. Mas o importante é que meu pai estava ficando bem, minha mãe, como parceira incansável, agora tinha um pou- co mais de alegria e eu podia me concentrar um pouco mais miolo-buriti4.indd 93miolo-buriti4.indd 93 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 94 Rafa Souza relaxado no meu dia a dia. Assim, os dias de maio iam cor- rendo um pouco mais calmos, entre aulas, projeto estrutu- ral e sessões de fisioterapia. Iam. Já na virada para junho de 2019, chegou-me uma notícia que tiraria Brasília do papel de protagonista desse ano atípico. Por volta das 9:30 h da manhã, uma laje alveolar recém-ins- talada no quinto pavimento de uma edificação em Maringá ruiu, levando todas as outras lajes a um colapso progressivo. Nesse fatídico acidente, três operários se feriram gravemente e uma estudante de engenharia acabou vindo a óbito. Profunda tristeza se abateu em nossa cidade que, em outras ocasiões, também já havia presenciado um colap- so progressivo. Em outubro de 2018, uma marquise ruiu de madrugada e levou 15 sacadas ao colapso progressivo, como num efeito dominó. Felizmente, nessa ocasião, só foram regis- trados prejuízos materiais e as sacadas foram reconstruídas. Eu tinha recém-voltado dos Estados Unidos, onde ti- nha estudado as causas do colapso do Cassino Tropicana e fui então chamado pela Defesa Civil para colaborar com a investigação das causas que levaram as sacadas ao colapso. Foi nessa ocasião que conheci o engenheiro Mauro José de Souza Araújo, um engenheiro sensacional, conhecido na cidade como o médico das edificações. Juntos exploramos a fundo o problema das sacadas e acabamos publicando o arti- go intitulado “The Progressive Failure of 15 Balconies and the Engineering Techniques for their Reconstruction”, na reco- nhecida revista internacional “Engineering Failure Analysis”. Mauro foi um grande amigo e me deu inúmeras pos- sibilidades para praticar a minha engenharia: escreve- mos laudos, projetamos reforços, analisamos resultados miolo-buriti4.indd 94miolo-buriti4.indd 94 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 95 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas experimentais e nos encontramos nos momentos mais inu- sitados dentro das nossas tumultuadas agendas para con- versar sobre engenharia. Um engenheiro apaixonado que, infelizmente, partiu muito cedo, e a quem devo muito da minha trajetória profissional. De volta à laje alveolar que havia ruído, continuavam res- soando as reportagens sensacionalistas da mídia. Ainda não havia sido chamado, mas sabia que a possibilidade era forte. Após algumas semanas, meu telefone tocou e, finalmente, pude acessar o local, levemente descaracterizado pelas operações de resgate. Agora eu tinha em mãos Brasília, Triunfo e Maringá. Até então, já tinha tomado contato com todo tipo de estrutura avariada. Salvei estruturas com deficiência por- tante por inúmeros motivos (projeto, execução, materiais, mudança de uso etc.), estruturas destruídas pelo vento, es- truturas consumidas pelo fogo, estruturas colapsadas por efeito dominó e até estruturas colapsadas por impacto de veículos. Mas nunca, em nenhum dos casos em que havia trabalhado, tinha entrado em um cenário em que uma es- trutura tinha sido capaz de tirar uma vida. Sempre conse- guíamos chegar antes. Em meio àqueles escombros de concreto e cordoalhas, em busca de provas que pudessemauxiliar no esclarecimen- to dos fatos, encontrei capacetes amassados, calçados avul- sos e a triste interrupção de um sonho. Agora me fazia mais sentido aquela preocupação aparen- temente descomunal dos engenheiros mecânicos de Triunfo e sua filosofia risco zero, almejando uma estrutura perfeita. Naquele silêncio abissal, enquanto caminhava pelos diversos pavimentos, subindo e descendo escadas, refletia miolo-buriti4.indd 95miolo-buriti4.indd 95 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 96 Rafa Souza sobre o impacto da engenharia de estruturas sobre o bem mais precioso que temos. Sabia que teria que voltar àquele triste cenário inúme- ras vezes, não só para descobrir o que havia acontecido, mas também para ajudar na tomada de decisões em relação ao que fazer dali para a frente. miolo-buriti4.indd 96miolo-buriti4.indd 96 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 97 Armadilha Tecnológica “O começo de todas as ciências é o espanto de as coisas serem o que são.” Aristóteles A s causas que levaram às patologias do “petit palais” de Brasília já estavam mais claras e demonstradas. No entanto, vislumbrava-se agora um desafio ainda mais im- portante: Qual terapia aplicar em nosso gigante para reesta- belecer sua capacidade portante? Eu teria que entregar a resposta para esse problema no começo de julho de 2019, mas primeiro precisava adiantar as atividades dos reforços de Triunfo e iniciar as inúmeras atividades investigativas da laje alveolar ruída de Maringá. Pela primeira vez na vida, então, participei de uma re- constituição e pude acompanhar de perto o trabalho de um experiente perito da polícia criminal. Com todos posiciona- dos no quinto pavimento da edificação, iniciou-se, então, o processo de simulação dos eventos. Lentamente, o guindaste trouxe a laje alveolar até a po- sição onde ela deveria ser apoiada. Os operários, em seguida, conduziram a laje até os pontos de apoio e soltaram as alças miolo-buriti4.indd 97miolo-buriti4.indd 97 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 98 Rafa Souza de içamento. Na sequência, começaram o processo de rema- gem, que consiste basicamente em movimentar a placa com o auxílio de pé de cabras para a posição definitiva. No pro- cesso de instalação, não foi verificado nada que a princípio pudesse explicar o colapso daquela placa recém-instalada. Um fato que me chamou a atenção é de que a laje ru- ída era uma laje alveolar. Como se sabe, as lajes alveola- res são provenientes de um avançado processo industrial. Cordoalhas são estiradas em uma pista de protensão e uma máquina especial percorre a pista moldando o concreto das placas, produzindo por extrusão os furos conhecidos como alvéolos. Posteriormente, com o concreto já seco, efetua-se o alívio das cabeceiras de protensão e cortam-se as placas com enormes serras adiamantadas. Em vista da natureza do processo e da utilização de um concreto mais seco, não são adicionados estribos nesse tipo de elemento estrutural e, sendo assim, a resistência do elemento é profundamente dependente da força de proten- são aplicada. Minha opinião é de que esse tipo de elemento não deveria ser utilizado, em vista de falhas invisíveis que podem eventualmente ocorrer no processo industrial. Quando o francês Freyssinet inventou o concreto pro- tendido, ele o concebeu apenas com armaduras ativas. No entanto, os alemães mostraram, ao longo do tempo, que seria prudente sempre considerar alguma porcentagem de armadura passiva, de maneira a evitar fissuras indesejáveis. As lajes alveolares não permitem a utilização de estri- bos e, como consequência, a resistência à força cortante fica dependente da força de protensão e da resistência à tração do concreto. Assim, se parcela de protensão é perdida, mais miolo-buriti4.indd 98miolo-buriti4.indd 98 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 99 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas o concreto será solicitado à tração e, como sua capacidade é limitada, um colapso frágil poderá ocorrer. Deve-se ainda observar que o ensaio experimental utilizado para avaliar o corte das placas nas pistas tam- bém não é dos mais adequados. Basicamente são usados cilindros testados à compressão, de maneira a avaliar a re- sistência do concreto. No entanto, a disposição da massa no interior dos corpos de prova não guarda perfeita seme- lhança com a massa do concreto moldado das placas. Nos corpos de prova, o concreto é adensado com uma haste metálica, enquanto na produção das placas o concreto é lançado e compactado pela extrusora. Assim, se a estimativa da resistência à compressão do concreto já é questionável, o que pode ser dito em relação à resistência à tração e à aderência do concreto? Se o concreto ainda não apresenta boa resistência à compressão, também não a terá à tração e, consequen- temente, isso poderá se refletir numa baixa aderência. Assim, um corte prematuro, potencializado por um resul- tado à compressão que não reflete a realidade, pode levar ao escorregamento das cordoalhas, por falta de condições apropriadas de aderência. Perdendo-se protensão, aumen- ta-se, então, a necessidade de reação do concreto em re- lação à tração, o que não é nunca apropriado, no caso de estruturas de concreto. Em fevereiro de 2007, foi noticiado um acidente muito semelhante na cidade de Nova York, nos Estados Unidos. Um operário de construção sofreu ferimentos fatais após a queda de uma laje alveolar desmoronada em um canteiro de obras de dez andares. miolo-buriti4.indd 99miolo-buriti4.indd 99 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 100 Rafa Souza A laje alveolar ruída tinha 8,0 m de comprimento, 2,51 m de largura e 20 cm de espessura, e pesava aproxi- madamente sete toneladas. A laje constituía-se de recortes para encaixe nos pilares, de maneira semelhante ao colapso ocorrido em Maringá. A placa alveolar ruída nos Estados Unidos apresentava recortes na direção transversal em tor- no de 0,97 m, enquanto ao longo do comprimento o recorde era de apenas 0,14 m. As lajes de piso estavam sendo posicionadas na es- trutura metálica do edifício e encontravam-se simples- mente apoiadas sobre as vigas metálicas de sustentação. Aproximadamente às 9:20 h da manhã, a vítima e um cole- ga de trabalho estavam no 6º andar usando alavancas para ajustar as lajes pré-moldadas em suas posições finais. A parte sul da laje repousava sobre vigas de aço horizontais e a seção norte encontrava-se em balanço, devido aos recor- tes da laje alveolar. Depois que os dois trabalhadores terminaram de ajus- tar a laje na região sul, ambos caminharam para o norte da laje perto de sua extremidade leste. A laje, repentinamente, se inclinou para baixo em seu lado norte, girando para uma po- sição quase vertical, e ficou presa entre os apoios metálicos. Um dos trabalhadores conseguiu se segurar com os co- tovelos sobre a laje da frente, por onde conseguiu escalar e sobreviver ao acidente. A vítima caiu no piso abaixo e, na sequência, a laje ruída provocou um efeito dominó, que le- vou mais cinco pisos ao colapso. As investigações pós-incidente demonstraram que ao menos 18 pilares metálicos estavam fora de prumo, sendo 2 destes na zona em que ocorreu o desmoronamento. Os miolo-buriti4.indd 100miolo-buriti4.indd 100 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 101 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas pilares fora de prumo levaram a um aumento do espaça- mento entre os eixos, resultando em comprimentos de suporte reduzidos. O comprimento de apoio indicado no projeto estrutural era de 7,0 cm, porém, a investigação pós- -acidente indicou uma largura de apoio de apenas 2,5 cm na região do colapso. As lajes alveolares foram erguidas até o oitavo pavi- mento sem o devido capeamento das lajes ou soldagem de apoios adicionais para manter as lajes conectadas às vigas metálicas. De acordo com as investigações do Department of Heath (DOH) de Nova York, essa faltade travamento contribuiu para a falta de estabilidade da laje ruída. A integridade da laje ruída foi ainda amplificada pela for- ma entalhada da laje alveolar, observando-se que não foram previstas armaduras especiais para reforçar os balanços gera- dos. De acordo com a DOH, essa falta de reforço possivel- mente também contribuiu para a instabilidade da laje ruída. De volta ao Brasil, porém, agora, fazendo uma viagem para o futuro, outro acidente aconteceria na manhã de 12 de fevereiro de 2020, dando ainda mais embasamento acerca dos perigos vislumbrados em relação à utilização de lajes alveolares. Em Erechim/RS, um operário morreu e outro fi- cou ferido na construção de uma grande rede de lojas, tam- bém devido à queda de uma laje alveolar. Acidentes com lajes alveolares têm ocorrido mundo afora e os registros certamente tenderão a crescer com a in- dustrialização da construção. A disseminação desse tipo de solução, sem armaduras passivas, depende da capacidade resistente do concreto à tração e, com a eventual perda de protensão, as consequências podem ser desastrosas. miolo-buriti4.indd 101miolo-buriti4.indd 101 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 102 Rafa Souza Em minhas investigações, levantei inúmeros aciden- tes ocorridos com lajes alveolares, todos envolvendo ru- ína frágil. Além dos acidentes de Maringá/PR e Erechim/ RS, descobri acidentes semelhantes em Concórdia/SC, Campinas/SP, Florianópolis/SC, Indaiatuba/SP, Barueri/ SP e Águas Claras/DF. É preciso que sejam estabelecidas regras mais rígidas nas plantas produtoras e que as peças tenham um rigoroso processo de produção e controle de aceitação. Apesar de pa- recer para muitos uma solução de vanguarda, do ponto de vista de segurança, nos parece algo temivelmente arcaico e que deveria ser evitado a todo custo. Não moraria em um imóvel com lajes alveolares, nem que me dessem de graça, ao menos que passe a existir um controle normativo e fisca- lizador mais intenso. Talvez seja por isso que a empresa liderada por aquele interessante engenheiro uruguaio, consultor daquela gigan- te multinacional de Triunfo, proíbe terminantemente a uti- lização de lajes alveolares em seus projetos industriais em todo mundo. Estariam eles errados e vivendo no passado, ou certos e já vivendo à frente do seu tempo, em relação a esse sedutor produto? miolo-buriti4.indd 102miolo-buriti4.indd 102 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 103 O Segundo Relatório “A ciência é uma disposição de aceitar os fatos mesmo quando eles são opostos aos desejos.” Burrhus Frederic Skinner E ra comecinho de julho de 2019 quando entreguei o segundo relatório de Brasília, em meio às minhas in- vestigações de Maringá e colaborações já menos intensas em Triunfo. No polo petroquímico, os reparos haviam começado e minha participação já era derradeira, sendo apenas consultado em pequenos conflitos que surgiam no meio do caminho. Em relação a Maringá, foram meses turbulentos, sem- pre dividindo minhas atividades de professor com períodos de acompanhamento da polícia científica, no levantamen- to de provas e documentos. No entanto, precisava dar uma resposta para Brasília, que esperava uma solução de como recuperar aquelas lajes de cobertura. Durante minhas investigações, foram estudadas várias possibilidades de intervenção para a recuperação das lajes de cobertura e, consequentemente, das lajes de piso que es- tavam atirantadas nas primeiras. O problema, por si só, já miolo-buriti4.indd 103miolo-buriti4.indd 103 10/02/2021 21:08:3110/02/2021 21:08:31 104 Rafa Souza tinha uma natureza muito complexa. Além disso, tendo-se em vista o fato de que a edificação é tombada pelo Iphan, qualquer alteração que viesse incidir sobre a fachada deve- ria ser excluída das propostas. Essa restrição de mudança de fachada, sem dúvida al- guma, acabou restringindo demais as possibilidades de solu- ção. Em vista dos vãos envolvidos, mesmo com a utilização de protensão, seriam necessárias seções que acabariam fi- cando expostas de alguma maneira, mudando levemente as fachadas da edificação. Porém, nem pequenas modificações estéticas eram permitidas. Restava, assim, trabalhar com o pequeno espaço dispo- nível na fachada, que era basicamente constituído pela di- ferença de nível entre o topo das vigas perimetrais e o topo das lajes de cobertura. Porém, deve-se observar que nesse espaço já haviam sido colocadas as vigas metálicas, de ma- neira que as possibilidades também eram limitadas. Foram pensadas inúmeras possibilidades, porém, vá- rias delas eram sempre inviabilizadas seja pela impossibi- lidade de mudar os materiais/seções seja pela necessidade de mudança da fachada. Dessa maneira, foram descartadas soluções como protensão das vigas metálicas e construção de novos elementos que poderiam, de alguma maneira, aparecer na fachada. Observou-se que uma solução utilizando protensão externa em uma direção, com ancoragem no topo das vigas de borda, seria prejudicada pela baixa excentrici- dade disponível, bem como, pelos elevados momentos de torção que surgiriam nas vigas de borda. As vigas de borda possuiriam armação transversal e longitudinal miolo-buriti4.indd 104miolo-buriti4.indd 104 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 105 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas insuficientes para a torção decorrente das ancoragens da protensão adicional. Esse fato levaria à necessidade de reforço da torção das vigas longitudinais, com a adição de tirantes de travamento interno, de maneira a aliviar os efeitos decorrentes da torção. Porém, a utilização de tirantes internos, objetivando evitar a rotação das vigas, reduziria demasiadamente o pé-direito e prejudicaria a passagem dos sistemas de ar-condicionado, forros e tubulações. O procedimento de reforço, com natureza unidirecio- nal, amplifica ainda os esforços nas vigas longitudinais de borda, de maneira que a manutenção do sistema estrutural original bidirecional seria muito mais efetiva na distribui- ção dos esforços das lajes de cobertura. No entanto, pro- cedimentos de reforço com natureza bidirecional tendem a gerar uma solução muito complexa, em vista da necessi- dade de interação dos elementos de reforços nos dois sen- tidos ortogonais. Além disso, em vista de características patológicas avançadas já registradas para as lajes de cobertura (fissura- ção excessiva chegando, em alguns casos, a 1,0 cm de aber- tura de fissura nas nervuras, flecha excessiva ultrapassando 35 cm, constatação de escoamento dos perfis metálicos de reforço, ruptura de cabos de protensão de algumas nervu- ras), não é possível estimar qual o nível de contribuição efe- tiva das nervuras originais. Tendo-se em consideração as dúvidas que pairam so- bre a aplicação da protensão externa sobre lajes nervuradas protendidas (protensão ativa em estrutura já ativa, redis- tribuição de esforços, rigidez à torção de vigas de borda, miolo-buriti4.indd 105miolo-buriti4.indd 105 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 106 Rafa Souza etc.), acredita-se que seria mais prudente recorrer a um sistema convencional de reforço, amplamente dominado pelo mercado e com maior oferta, tanto do ponto de vista de projeto estrutural como de execução. Acredita-se que essa é uma solução bastante efetiva e que poderia eliminar os problemas das lajes de cobertura, apesar de modificar o layout dos pavimentos, em função da presença do posicio- namento dos novos pilares. Nessa alternativa, novos pilares devem nascer no subso- lo, subindo pelos diversos pavimentos, até alcançar a laje de cobertura. Essa solução deverá apresentar reforço das lajes intermediárias a serem interrompidas e construção de uma grelha de vigas por debaixo das lajes de cobertura afetadas. Como há uma folga entre o fundo da laje e o fundo das vigas de 2,0 m, as vigas adicionais poderiam ser construídas nesse intervalo. A desvantagem dessa abordagem estaria na perdade espaços úteis no interior da edificação, devido à inter- ferência causada pelos novos pilares. No entanto, seria um procedimento relativamente fácil de ser executado. Outra alternativa para o problema seria a demolição não só das lajes de cobertura, mas também das lajes ati- rantadas. Nesse caso, há necessidade de, primeiramente, demolir a laje atirantada para, só então, demolir as lajes de cobertura. Deve-se observar que as lajes de cobertura fun- cionam como um diafragma rígido e evitam a rotação das vigas de borda, rotação essa que tende a ser promovida pela ancoragem dos tirantes nos consolos (regiões maciças das lajes nervuradas junto às vigas de borda). Além disso, deve-se observar a necessidade de escora- mento contínuo da estrutura, até as lajes de cobertura, após miolo-buriti4.indd 106miolo-buriti4.indd 106 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 107 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas a demolição da laje atirantada. Uma vez que a protensão das nervuras no sentido horizontal é continua, a demolição da laje central L2 acarretaria instabilidade das lajes laterais L1 e L3. Isto é, ao desmobilizar a protensão da laje central, as lajes laterais podem chegar ao colapso. Com a estrutura escorada, poder-se-ia, então, retirar os perfis metálicos, efetuar a desprotensão das nervuras e demoli-las, de maneira que o acúmulo de materiais não cairia de grandes alturas, mas ficaria depositado no pró- prio escoramento. Nesse tipo de solução, seria gerado um pé-direito bas- tante alto e o pavimento térreo que, atualmente, encontra-se desocupado, poderia passar a abrigar as atividades que são atualmente desenvolvidas no pavimento atirantado. Após a demolição das lajes, poderia então ser instala- do um sistema de cobertura leve, apoiando-se diretamente sobre os consolos a serem deixados. Em nossa opinião, a instalação de uma cobertura em steel joist ou treliça espa- cial seria a solução mais interessante, podendo-se, inclusive, usufruir de iluminação zenital para proporcionar ilumina- ção natural, economizando-se, assim, energia no edifício. Outra possibilidade de solução para o problema pode- ria ser a demolição das lajes de cobertura, porém, manten- do-se a laje atirantada do piso superior. Isso poderia ser feito através da substituição do sistema de apoio da laje atiranta- da, de maneira a não alterar seu comportamento estrutural. Isso poderia ser feito com a introdução de novos pila- res posicionados na direção paralela à maior dimensão da edificação, que nasceriam desde o subsolo e se estenderiam até encontrar a face inferior da laje atirantada. miolo-buriti4.indd 107miolo-buriti4.indd 107 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 108 Rafa Souza Com novos pilares construídos, seria então possível construir vigas contínuas. Essas vigas, posicionadas ao lon- go das duas fachadas longitudinais, ligariam os novos pi- lares e ficariam posicionadas por debaixo da laje de piso, servindo de ponto corrido de apoio. Como as novas vigas ocupariam exatamente as posições atualmente ocupadas pelos tirantes, seria, então, possível desmobilizá-los, de ma- neira a fazer a laje de piso se apoiar definitivamente na nova estrutura construída. Com a desmobilização dos tirantes, as lajes de cober- tura ficariam aliviadas da torção promovida pelos tirantes nas vigas de borda, bem como, do momento positivo de alta magnitude introduzido nas lajes nervuradas. Dessa manei- ra, a desmobilização das lajes de cobertura poderia ser feita com muito mais segurança; porém, também demandaria o escoramento completo da edificação, de maneira a efetuar a retirada segura dos inefetivos perfis metálicos de reforço e a demolição segura das lajes de cobertura. Na ocasião, também havia tido uma outra ideia ma- luca que talvez funcionasse bem, porém, daria muito con- flito com os sistemas ali existentes (forro, tubulações, etc.). Pensei em passar um emaranhado de cordoalhas de maneira bidirecional, como se fosse uma espécie de rede de seguran- ça para as lajes de cobertura, inspirado no sistema estrutural das pontes pênseis. Pensei que essa rede de cabos em catenária poderia suspender as lajes de cobertura. Certamente seria a solução mais econômica, mas certamente não seria a solução mais segura e nem a mais eficiente, já que demandaria modifica- ções nas tubulações. miolo-buriti4.indd 108miolo-buriti4.indd 108 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 109 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Através de pesquisas de mercado, estimei que tan- to o reforço quanto a demolição com as soluções que ha- via apresentado estariam na faixa de R$3.500,00 (três mil e quinhentos reais) a R$4.000,00 (quatro mil reais) por metro quadrado, de maneira que o custo total ficaria entre R$5.000.000,00 (cinco milhões de reais) e R$7.000.000,00 (sete milhões de reais). Deixei claro, no segundo relatório, que, conforme as soluções de engenharia vão se tornando cada vez mais complexas, possivelmente o caminho para a solução mais eficiente esteja ficando cada vez mais distante. Dessa ma- neira, muitas vezes, é melhor aceitar o recomeço, com so- luções mais simples. Em vista de todas as características da edificação ori- ginal e das diversas alternativas de reforço investigadas, a demolição das lajes de cobertura/atirantadas, com recons- trução do sistema de cobertura (steel joist ou treliça espa- cial) talvez não fosse o procedimento mais econômico, mas seria, inegavelmente, a solução que possibilitaria maior se- gurança aos usuários da edificação. Em segundo lugar, a introdução de novos elementos estruturais, a partir do subsolo, poderia não ser a melhor solução sob o ponto de vista arquitetônico, porém, seria, sem dúvida, a segunda melhor opção em termos de segu- rança estrutural. Terminado o segundo relatório, enviei o documen- to e continuei sempre pensando em outras possibilidades que poderiam existir. Perguntei para mim mesmo quais soluções poderiam dar gigantes nacionais como Joaquim Cardoso, Bruno Contarini, Mario Franco, Walter Pfeil, José miolo-buriti4.indd 109miolo-buriti4.indd 109 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 110 Rafa Souza Carlos Sussekind e Augusto Carlos de Vasconcelos, entre outras tantas mentes brilhantes que sempre me inspiraram. Eu não me sentia sozinho naquela jornada, pois tinha sem- pre esses mentores, ao meu alcance, nas prateleiras. miolo-buriti4.indd 110miolo-buriti4.indd 110 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 111 Investigadores de Estruturas “A verdadeira ciência ensina sobretudo a duvidar e a ser ignorante.” Miguel Unamuno E ra comecinho de julho de 2019 quando entreguei o segundo relatório e, portanto, ganharia uma folga de Brasília e poderia me dedicar com maior atenção ao colapso progressivo de Maringá. A polícia científica seguia fazendo seu trabalho investigativo e, apesar de trocarmos informa- ções, procurava seguir meu caminho de maneira indepen- dente, visando não ser influenciado. O trabalho investigativo é fascinante, mas ao mesmo tempo pode gerar armadilhas impressionantes. Evitava ao máximo ouvir conclusões, principalmente nascidas tempos depois do acidente. As melhores informações são sempre aquelas que você obtém logo após o acidente, quando os relatos condizem mais com a realidade. Horas depois do ocorrido, os relatos começam a mudar, as fofocas começam a correr e a história vai ganhando uma forma que pode não corresponder à verdade. miolo-buriti4.indd 111miolo-buriti4.indd 111 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 112 Rafa Souza Um pesquisador deve buscar a verdade, e era para isso que eu estava ali. Meus clientes queriam conhecer a verda- de, fosse ela ainda mais pesada do que a grande dor que eles já vinham sofrendo. Agora, porém, nascia não só a necessi- dade de se explicar o que aconteceu com a laje, mas também atestar que a construção era segura como um todo. Assim, durante todoo mês de junho de 2019, voltei ao local do acidente ao menos cinco vezes, verificando não só o ponto do colapso progressivo, mas a edificação como um todo, elemento a elemento. Filtrei todos os elementos estru- turais, um a um: pilares, vigas, consolos e placas alveolares. Estudei a fundo o projeto estrutural e busquei danificações que pudessem explicar a ação dos operários antes de a laje ruir. O que se sabia, antes da minha entrada na edificação, é que a placa alveolar ruída era uma placa de substituição, tendo-se em vista problemas de desaprumo ocorridos com os pilares da fachada durante a montagem. Tendo-se em vista que os pilares da fachada sofreram desaprumos em função de pesadas placas de fechamento vertical, a placa alveolar inicialmente projetada não se en- caixava apropriadamente no vão existente. Esse fato levou à necessidade da execução de uma placa alveolar de maior comprimento que, logo após colocada, veio a ruir. Porém, apesar do problema de desaprumo dos pilares, havia ainda outro detalhe a ser observado. Assim como no caso da laje alveolar ruída em Nova York, a placa alveolar de Maringá também apresentava um recorte em seu extremo, objetivando eliminar uma interferência de contato com o pi- lar. O recorte era relativamente elevado e, eventualmente, po- deria ter estimulado a rotação da laje durante sua montagem. miolo-buriti4.indd 112miolo-buriti4.indd 112 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 113 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Através de marcas encontradas na viga de apoio da laje, provavelmente pela ação do pé de cabra de um dos operá- rios, bem como marcas em pilares decorrentes do impacto durante a queda da placa, foi possível visualizar o modo de colapso, levando em conta também a forma do acúmulo de entulhos na base da edificação. O caso acabou se tornando público e, em outu- bro de 2019, o laudo pericial produzido pelo Instituto de Criminalística foi apresentado à imprensa, apontando como causa principal do colapso a maneira como a estrutura pré- -moldada vinha sendo montada. Apesar de não concordar globalmente com o documento, sem dúvida, era um tra- balho bastante completo e eu tinha concordância quanto à causa principal do colapso, de maneira que passei a focar mais nos aspectos de como reconstruir a parte afetada, de- volvendo, assim, a segurança necessária para a edificação. Em função do acidente ocorrido em Maringá, bem como das características semelhantes observadas em outros acidentes com lajes alveolares, acabei elaborando uma sé- rie de recomendações, uma vez que a utilização desse tipo de elemento deverá aumentar significativamente no Brasil nos próximos anos. As recomendações, objetivando evitar a ocorrência de novos acidentes, são as seguintes: • Esperar ao menos 7 dias para mandar as lajes alveo- lares para uma obra, de maneira que o concreto pos- sa desenvolver em fábrica melhor cura, resistência à compressão, resistência à tração e, principalmente, melhor aderência. Essa medida é estabelecida tendo- -se em vista que, nem sempre, o ensaio de resistência à compressão representa a real qualidade do concreto miolo-buriti4.indd 113miolo-buriti4.indd 113 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 114 Rafa Souza utilizado nas lajes alveolares e que um ciclo muito rá- pido potencializa o surgimento de fissuras indesejá- veis e nem sempre fáceis de identificar. Um tempo de armazenamento maior possibilitará maior controle na observação de efeitos como escorregamentos de armadura, perda de contraflecha, surgimento de fis- suras, entre outros, dando maior segurança a todos os envolvidos no processo; • Evitar pisar nas cordoalhas, na frente do equipamen- to, durante o processo de moldagem das lajes alveo- lares. A vibração causada pode afastar o concreto da interface com as cordoalhas, prejudicando, assim, a aderência e provocando o lascamento do concreto na região de envolvimento com as cordoalhas; • A liberação das lajes alveolares para montagem só deverá ser feita após um profissional responsável analisar cuidadosamente peça a peça, rejeitando au- tomaticamente aquelas peças que apresentarem fissu- ração, deslizamento de armadura ativa, lascamento de concreto em regiões de apoio, cordoalhas expostas ou cordoalhas sem o devido concreto de envolvimento; • Evitar a utilização de cordoalhas com carepas de corrosão, óleos, graxas ou lubrificantes, uma vez que estas podem prejudicar a aderência, funda- mental na ancoragem. De preferência, deverão ser adotados procedimentos específicos para limpeza das cordoalhas, preferencialmente seguindo o con- tido no REPORT 621 da NCHRP (2008), intitulado “Acceptance Tests for Surface Characteristics of Steel Strands in Prestressed Concrete”; miolo-buriti4.indd 114miolo-buriti4.indd 114 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 115 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas • Deve-se reforçar obrigatoriamente as peças sujeitas a recortes, através de preenchimento dos alvéolos na região de apoio. Uma vez que peças recortadas estão sujeitas a ações combinadas de cisalhamento decor- rentes de força cortante e momento de torção, deve-se ter concreto suficiente para absorver essas tensões. Como se sabe, em lajes alveolares, toda a resistência ao cisalhamento depende da resistência à tração do concreto, de maneira que essa medida simples evitará problemas de ruptura frágil junto aos apoios; • Quando não for possível efetuar o grauteamento dos alvéolos, será sempre melhor posicionar um consolo ou uma chapa metálica por debaixo da placa alveo- lar, de maneira a aumentar preventivamente a área de contato. Tal ação evitará reduções de capacidade geradas por cortes inadequados, que podem resultar no desconfinamento da cordoalha ou lascamento do concreto das bordas; • Dar preferência aos recortes em concreto seco ao invés de efetuar os recortes em pista ainda com o concreto fresco. O corte em concreto fresco induz a translação da seção de corte para a face da nervura mais próxima, a fim de que o concreto ainda fresco da parte superior não caia. Essa alteração acaba des- confinando a cordoalha, fazendo com que se tenha um concreto quebradiço e armadura ativa exposta; • Conferir em campo, de maneira severa, o compri- mento efetivo de apoio das lajes sobre os apoios, de- vendo obrigatoriamente a zona apoiada ser igual ou superior àquela recomendada em projeto estrutural; miolo-buriti4.indd 115miolo-buriti4.indd 115 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 116 Rafa Souza • Observar atentamente se as lajes instaladas não foram danificadas em campo devido aos procedimentos de alinhamento. Essa conferência consiste em identifi- car concreto rompido junto aos apoios, presença de fissuras, armaduras expostas, nervuras rompidas ou qualquer outro sinal que remeta à dúvida quanto à resistência do elemento estrutural; • Proibir a alavancagem das lajes alveolares de maneira que esta se desloque ao longo do seu comprimento. As alavancagens só serão permitidas pelas faces laterais. Caso seja necessária a movimentação ao longo do com- primento, devido ao mal posicionamento da placa, esta deverá ser feita via caminhão munck ou guindaste. Essa ação preventiva evita a danificação intencional da face inferior do alvéolo, visando alcançar a viga de apoio para servir de alavanca na movimentação da laje; • Verificar se na ponta das lajes não há cordoalhas ex- postas em virtude da quebra do concreto durante a instalação (impacto) ou em virtude dos procedimen- tos de alinhamento (remagem); • Verificar se houve o escorregamento das cordoalhas, isto é, se as cordoalhas estão para dentro em relação à face de corte. O máximo escorregamento tolerável deverá ser inferior a 0,2 mm; • Nunca deixar mais do que dois pavimentos para trás do que está sendo feito, sem o devido capeamento das lajes alveolares. No caso de eventual queda de laje alveolar em processo de montagem, as lajesjá con- cretadas podem servir de barreira, evitando, assim, o colapso progressivo; miolo-buriti4.indd 116miolo-buriti4.indd 116 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 117 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas • Para edifícios altos, deve-se evitar ao máximo o desa- prumo dos pilares, uma vez que o deslocamento des- tes poderá implicar em zonas de apoio reduzidas para as lajes. Preferencialmente, devem ser utilizados sis- temas estruturais com vigas de travamento nos dois sentidos ortogonais dos pilares de grandes alturas, a fim de minimizar o efeito do desaprumo; • Sempre ter um profissional da própria empresa aten- to ao isolamento da área, não deixando pessoas tra- fegarem por debaixo das regiões de montagem. Esse profissional deverá circular pela edificação e deverá se comunicar via rádio com o operador de guindaste. A instalação das lajes alveolares só poderá ser feita a cada sinal de comando do inspetor de campo, indi- cando que a região de montagem se encontra devida- mente isolada e sem pessoas circulando. Nesse mês de julho, enquanto dividia meu tempo entre investigações em lajes alveolares e reforço de es- truturas pré-moldadas, sem falar de Brasília que não saía do meu pensamento, recebi um telefonema da Dani, no início da noite, que me fez estremecer as pernas e palpitar o coração. “Rafa, roubaram o carro. Roubaram o carro. O cara ti- nha uma faca gigante. Os meninos estão bem. Os meninos estão bem”, disse a Dani em meio a choro e nervosismo. Tendo um carro só, que agora havia sido roubado, pe- guei um Uber e saí imediatamente. Imagine você queren- do chegar logo à sua família, e você ter que ir ali, tentando manter a calma dentro de um Uber. miolo-buriti4.indd 117miolo-buriti4.indd 117 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 118 Rafa Souza Finalmente cheguei e constatei que todos estavam bem. Meus filhos estavam pálidos de medo: “Pai, eles tinham uma faca gigante”. Era um casal. O homem se aproximou pela frente e a mulher veio por trás, encurralando minha família quando saíram do carro. Como minha mulher não tinha dinheiro para oferecer, o casal resolveu levar o carro e saiu em disparada, enquan- to minha família era amparada no Centro Português. Para nossa sorte, durante a fuga, bateram em um outro carro e continuaram em frente. Um motoqueiro, vendo a situação, achou estranho e seguiu os assaltantes, simultaneamente orientando a polícia acerca da rota. Em meia hora do ocorrido, a polícia recuperou o carro na famosa Vilinha em Maringá, onde as peças seriam troca- das por crack, droga maldita. Prenderam o casal, na verdade tia e sobrinho, e o rapaz portava elegantemente uma torno- zeleira eletrônica. Enquanto andava naquele Uber, naquela eternidade angustiante até chegar à minha família, ia refletindo sobre a fragilidade da vida. Tentava manter a calma respondendo a comentários sobre o clima por parte do insensível motoris- ta, que não acelerava. Refletia sobre a selvageria do país em que vivemos e que o passo para o outro lado é, às vezes, fácil, imprevisível e repentino. Naqueles momentos de tensão, não mais me interessa- vam Brasília, Triunfo e Maringá. Tudo o que me importava eram apenas Dani, Gabriel e Tiago. Não havia nada mais importante e valioso. Não estaria eu ficando muito distante da minha fa- mília, mergulhado em tanto trabalho? Se eu não fosse tão miolo-buriti4.indd 118miolo-buriti4.indd 118 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 119 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas atarefado, será que teriam passado por esse pesadelo? Valia mesmo a pena tanta imersão no mundo profissional, sacri- ficando a família? Felizmente, estavam todos bem e agora começaríamos uma via crucis de reconhecimento em delegacia de polícia e audiências posteriores em fóruns. A parte burocrática era chata, necessária e exequível. Porém, como lidar agora com o trauma deixado nos meus pequenos, ameaçados por aquela enorme faca de co- zinha, que já havia sido penetrada em um flanelinha? Como tirar deles o medo de andar nas ruas? Como tirar deles o jul- gamento das pessoas em função de seus trejeitos? O melhor caminho que encontramos foi aumentar a intensidade no jiu- -jitsu. E, em pouco tempo, essa seria uma ferramenta muito valiosa para reencontrarem a paz e acalmarem os fantasmas. Havia trabalhado arduamente naquele mês de julho de 2019 e as emoções que havia experimentado tinham eleva- do demais meus batimentos cardíacos. Não bastasse a pres- são de Brasília, Triunfo e Maringá, o assalto, ainda tinha o fechamento de disciplina na universidade. Final de semestre em período universitário é uma das fases mais detestáveis da carreira acadêmica. Os alunos aparecem em minha sala para tentar aumen- tar as notas de provas, no grito, de maneira a tentar fugir do temível exame. Às vezes, é um jogo psicológico tão intenso quanto complexos desafios profissionais. Não é nada fácil ver os alunos chorarem, especialmente quando as lágrimas não são de crocodilo. Resolvi, então, aproveitar um curso de protensão que daria em Florianópolis, e levei minha família comigo para miolo-buriti4.indd 119miolo-buriti4.indd 119 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 120 Rafa Souza o litoral de Santa Catarina. Era preciso aliviar a mente após tanta tensão e observar o mar era uma maneira zen de esva- ziar a mente. Minha família precisava. Eu, também. miolo-buriti4.indd 120miolo-buriti4.indd 120 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 121 Angústias de Projeto "A coisa mais linda que podemos experimentar é o mistério. É a fonte de toda arte e toda ciência." Albert Einstein Aquela laje alveolar ruída não tinha desabado em um lu-gar qualquer. Na mesma propriedade, em 2009, havia ali projetado as minhas primeiras lajes lisas em concreto protendido. Esse tipo de laje se apoia diretamente sobre os pilares, sem a utilização de vigas, e a temível punção é sem- pre uma preocupação muito grande. Me lembro de que esse foi meu primeiro projeto uti- lizando protensão e, naturalmente, apesar de muita con- fiança, o passageiro oculto mental sempre aparecia para me colocar aquele medo habitual. A edificação era um prédio de cinco pavimentos, com lajes de 25 cm de altura e pilares espaçados a cada 6,0 metros. A geometria em planta era ir- regular, com um aspecto escalonado na forma de degrau. Consegui esse projeto com um ex-professor, meu ami- go, João de Miranda, que, por sinal, também regularizou as primeiras construções da chácara de meu pai. João é um engenheiro muito experiente e já se envolveu em grandes miolo-buriti4.indd 121miolo-buriti4.indd 121 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 122 Rafa Souza projetos estruturais envolvendo protensão. Acompanhado dele, fui ganhando confiança em projetar, conforme discu- tíamos os detalhes desse projeto. Mais tarde, em 2013, inspirado por uma viagem a Dubai, meu amigo, João, me chamou para uma empreitada ainda mais ousada, também nesse mesmo local. Dessa vez, utilizando lajes nervuradas protendidas de 40 cm de altura e pilares espaçados a cada 12,0 m, em um prédio de 9 pavi- mentos. Esse projeto tinha uma peculiaridade novamente envolvendo punção, explicada a seguir. Apesar de disponibilizar maciços com 40 cm de espessu- ra em torno dos pilares, eu e João achamos por bem adicionar uma protensão adicional nas regiões maciças, uma vez que, junto aos pilares de 40 cm x 200 cm, teríamos 5 aberturas de 12 cm x 12 cm em cada face do maior lado dos pilares. A presença de aberturas levava a uma redução de 25% no perímetro crítico em torno do pilar, bem como a uma re- dução em torno de 38% no perímetro crítico situado a duas vezes a altura da laje, em relação à face do pilar. Além disso, a norma brasileira não tinha muitas orientações, na época, de como fazer isso, tampouco as normas internacionais. Efetuamos alguns procedimentos analíticos, proten- demos a região maciça com cabosadicionais entre as ner- vuras que chegavam ali e colocamos uma generosa taxa de armadura negativa e positiva na cabeça dos pilares, visando garantir a segurança da edificação. Apesar de a Matemática demonstrar que as tensões de cisalhamento estavam abaixo dos limites normativos, devo confessar que, durante anos, tive pesadelos com as regiões de apoio, em função dos furos ali existentes. miolo-buriti4.indd 122miolo-buriti4.indd 122 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 123 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Enquanto dirigia para Santa Catarina, ia me lembran- do na estrada do momento em que recebi a notícia de que uma laje havia caído no mesmo local onde há obras que eu havia projetado. Fiquei congelado, até rapidamente consta- tar que o acidente não estava relacionado com nenhum des- ses projetos ousados. Me intrigava, assim, com as conexões malucas e as coincidências infelizes que, às vezes, a vida nos propor- ciona. Pensava nos sonhos e nos seus significados. Seriam coincidências ou premonições? Às vezes, parecia que a vida repetia um sonho bom. Outras vezes, parecia que eram os pesadelos que eram materializados. Será que so- mos nós que atraímos isso tudo? Qual a explicação para essas inúmeras coincidências? Já o medo de calcular estruturas acredito que sempre vai existir, especialmente quando fazemos algo diferente, que fuja do convencional. Deve ser igual ao artista que sobe ao palco, com a adrenalina a mil, e só se acalma após o su- cesso dos primeiros acordes e as palmas da multidão. Nós, engenheiros estruturais, só nos acalmamos quando vemos a obra pronta e em utilização. E, muitas vezes, sequer subimos nelas prontas e acabadas. Me lembro de uma escada que calculei para um centro de eventos em Maringá, hoje considerado um dos maiores do Paraná. Nesse projeto existiam 3 vigas protendidas de 15 m, que se tornaram fáceis frente ao desafio de calcular uma escada helicoidal com patamar intermediário. Calculei a escada por cinco métodos diferentes e, após ir à obra e conferir as armaduras numa sexta, acordei na manhãzinha de sábado e calculei tudo novamente do zero, miolo-buriti4.indd 123miolo-buriti4.indd 123 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 124 Rafa Souza sem olhar nos rascunhos anteriores. Felizmente, as novas armaduras batiam com as encaminhadas para a obra e, as- sim, pude ter certeza de que ela poderia ser concretada na segunda. A verdade é que só fiquei tranquilo depois de subir nela pronta e constatar que não vibrava. Me acalmei ainda mais após vários eventos e ela lá, trabalhando perfeitamente com cargas elevadas. Por essas e outras passagens, refleti que o único jeito de eu não sentir medo seria apenas dar aulas. Mas daí, pi- pocavam as seguintes inquietações: Como posso dar aula de uma coisa que não estou praticando? Como me manter atualizado sem a prática? Sempre acreditei que para ensinar é preciso fazer. Não queria ser um professor que falasse de problemas que nunca tinha enfrentado na prática. Queria ser um pro- fessor que tinha encarado desafios e vencido. Minhas aulas deveriam ser fonte de inspiração para meus alunos. Teoria e prática em harmonia. Meu objetivo era quebrar aquela frase clássica de Bernard Shaw: “those who can, do; those who can't, teach". Aqui no Brasil ela tem uma outra versão: “Você só dá aula ou você também trabalha?” Concluí que precisava da emoção e da experiência. É isso que me dava vida, que me dava orgulho, ajudando pes- soas e produzindo histórias para contar. Já não tinha sido o rock star que havia sonhado ser e também já estava velho para viver das artes marciais. Mas, como engenheiro, po- deria ir até o final da vida, com emoção. Sem o medo, não existiria essa história. Sem a emoção não existiria a necessi- dade de compartilhar. Existiriam apenas sonhos frustrados a relativizar, num futuro que sempre chega muito rápido. miolo-buriti4.indd 124miolo-buriti4.indd 124 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 125 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas E o mais incrível que percebi nessa minha jornada de en- genharia é que, nela, tenho misturado conceitos que muitas vezes aprendi na música e nas artes marciais. Me parece que por mais que tente dissociar as coisas, a realidade é, na verda- de, sempre holística, com um campo do conhecimento sem- pre interferindo e complementando outro. Para ver isso, basta estar sensível e estar sempre atento, tentando fazer analogias. Como compositor, digo que o combustível para que uma canção possa ser criada é normalmente uma centelha de ideia que, por algum motivo, desperta uma certa aten- ção. Essa atenção despertada provavelmente tem origem em algum processo inconsciente registrado em nossa memória ou em alguma outra viagem qualquer que, também, não im- porta nesse momento. O que importa é que você foi tocado pelo mágico frag- mento e quer transformar esse pequeno choque em um grande raio. Pode ser um fragmento harmônico ouvido no trânsito ou até mesmo uma palavra forte que aparece no meio de um sonho no meio da madrugada. Tendo-se o mote inspirador, segue-se então um processo árduo, artesa- nal, intenso, de tentativa e erro, para combinar da melhor maneira possível letra e música. Pouquíssimas canções me saíram plenas e maduras em 15 minutos. O processo, por vezes, é um verdadeiro parto e, até que possa nascer uma nova canção, normalmente levo semanas gestando as ideias. Por outro lado, também já sofri com canções que só foram terminadas após décadas e, ainda assim, revelam uma áurea de incompletude. Há ideias que demoram a florir, que precisam ser tra- balhadas com mais afinco, com mais racionalidade e uma miolo-buriti4.indd 125miolo-buriti4.indd 125 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 126 Rafa Souza benção de inspiração que é normalmente dependente da generosidade dos deuses. Outras ideias já parecem estar prontas, flutuando no ar e aguardando a inspiração para so- mente psicografá-las. Tempos atrás, elaborando um complicado projeto es- trutural, percebi que o processo de conceber uma estrutura é muito semelhante àquele processo que utilizo para com- por uma canção. Intuitivamente, você tem que ir lançando vigas, pilares e lajes. Esses são os acordes da canção-cons- trução que, quando bem lançados pela técnica ou ilumina- dos por profunda inspiração, suas disposições produzem obras maravilhosas. Os acordes são os mesmos para todos os músicos assim como os elementos estruturais são os mesmos para todos os engenheiros de estruturas. Porém, a maneira como essas peças do quebra-cabeça são lançadas e combinadas é que diferencia o artista inspirado do profissional convencional. Meu sentimento é que é possível ser um grande artista trabalhando com estruturas. E, depois de ler os escritos de Eduardo Torroja (‘Razón y ser de los Tipos Estructurales”), tive ainda mais certeza de que estruturas é, sem dúvida, um campo que mistura artes e ciência, engenharia e inspiração. Coisa de artista, sempre conectado com as novas tendências, mas também sempre de olho nas pérolas do passado. O segredo está em como é conduzido o processo, no desenvolvimento do background necessário e, acima de tudo, no intuir, no fazer, no sentir, no avaliar e no apreender. Pode ser uma casa ou pode ser uma grande torre. A maneira como você combina os seus elementos estruturais é que vai estabelecer se você está fazendo arte ou não. miolo-buriti4.indd 126miolo-buriti4.indd 126 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 127 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas O engenheiro de estruturas é um escultor. É um artista que, quase sempre, passa despercebido, pois, na maior par- te do tempo, sua arte fica intencionalmente escondida no interior da arquitetura. Moldando o concreto como barro, o engenheiro-artista vai produzindo artesanalmente as suas obras, orgulhando-se do seu trabalho especializado e, porvezes, solitário. Das artes marciais, aprendi a coragem para a exposi- ção das minhas obras. Você estudou, se dedicou e criou as suas estruturas. Agora precisa ter a coragem de liberar suas pequenas maravilhas para a agressividade do mundo. Você precisa liberar suas obras para encarar a mão de obra ruim, a falta de manutenção dos proprietários, os materiais defei- tuosos e as mais diversas ações da natureza. É preciso estar preparado para socorrê-las num eventual aperto. Ainda, com as artes marciais e, mais especificamente, por meio do jiu-jitsu brasileiro, aprendi a refinar o princí- pio da eficiência, isto é, procurar sempre obter o máximo de potência com o mínimo de esforço, sempre a partir da aplicação da técnica correta. E, assim, como num ato de revelação divina, descobri a minha tríade sagrada para o alinhamento entre corpo, men- te e espírito. Se minha mente se ocupa da engenharia na maior parte do tempo, meu corpo encontra porto seguro no jiu-jitsu, enquanto meu espírito se eleva pela música. Tem funcionado bem, mesmo que, às vezes, tenha a es- tranha sensação da louca coexistência de três personalidades em um único ser. Foi difícil aceitar. Não fosse minha capaci- dade de tentar alinhar todas elas, certamente já teria batido pino. Às vezes, aceitar a loucura é o que te torna normal. miolo-buriti4.indd 127miolo-buriti4.indd 127 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 miolo-buriti4.indd 128miolo-buriti4.indd 128 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 129 Acima das Nuvens “As pessoas não são lembradas pelo número de vezes que fra- cassam, mas sim pelo número de vezes que têm sucesso.” Thomas Edison Chegamos em Itapema e nos instalamos em um belo resort, de frente para o mar. Era necessária essa pau- sa para acalmar a alma e refletir sobre tantos aconteci- mentos simultâneos em um ano atípico. Trazia comigo o pensamento em meu pai e sua árdua batalha. Mas, com ele reagindo bem ao tratamento, eu poderia me ausentar durante alguns dias. Eu, Dani, Gabriel e Tiago aproveitamos com alegria aqueles dias de sol, curtindo em família cada minuto que nos era propiciado. Eu sabia que andava trancado demais na minha garagem-escritório nos últimos meses e, certa- mente, estava devendo a minha presença. Abatia-se sobre mim a culpa pelo assalto que sofreram. A ausência de mi- nha presença. Expliquei para meus filhos pequenos que meu ofício estava possibilitando aquele momento mágico e pedi paciência para eles até que eu pudesse encerrar to- dos esses trabalhos complicados. miolo-buriti4.indd 129miolo-buriti4.indd 129 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 130 Rafa Souza Após dias de paz com minha família, segui sozinho para Florianópolis, onde daria um curso de protensão, em um hotel, às margens da ponte Hercílio Luz. Minhas aulas aconteceriam no sábado o dia todo e aproveitei a oportu- nidade para assistir a uma apresentação de uma empresa desenvolvedora de softwares na sexta-feira à noite. Após a aula, o pessoal combinou de jantar e seguimos com os ami- gos recém-conhecidos para um restaurante. Nas conversas de mesa, um colega muito bacana co- mentava que tinha acabado de chegar de Toledo, onde ti- nha ido visitar uma obra cujo projeto estrutural era seu. Ele era de Itapema, mas tinha ido até o Paraná para ver essa obra e agora estava ali para, no outro dia, assistir ao meu curso de protensão. Me espantei e perguntei para ele como tinha consegui- do um prédio no Paraná; afinal de contas, ele era de Santa Catarina. Ele me respondeu com bastante elegância que tinha bons contatos e que, por isso, tinha conseguido aquela obra. Daí, nesse momento, outro colega, organizador do cur- so, exclamou que o Cachoeira era muito humilde e, que, na verdade, ele também era um dos calculistas do maior prédio em construção no Brasil, situado em Balneário Camboriú, com 81 andares e 275 metros de altura. Senti-me envergonhado pela pergunta que havia feito em relação ao prédio de Toledo, mas na sequência me senti mais confortável, quando ele perguntou se eu também tinha vindo para a aula de protendido. Quando respondi que eu seria o professor, demos longas gargalhadas e senti o tamanho da pressão que teria no dia seguinte. Dar uma aula de protendido tendo como miolo-buriti4.indd 130miolo-buriti4.indd 130 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 131 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas aluno um dos calculistas do maior prédio do Brasil seria, certamente, outro momento singular em minha carreira. No outro dia acordei cedinho e parti, animado, para a aula que teria o dia todo pela frente. Lá estavam ao menos 20 engenheiros ávidos por aprender protensão, incluindo- -se, aí, o engenheiro Cachoeira, que viria a se tornar um grande colega, recebendo-me várias vezes em Itapema. Eliomar Cachoeira, esse engenheiro de coração gigan- tesco, ainda me mandaria algumas pranchas dos projetos e me levaria às suas torres para que eu pudesse conhecer, de perto, os detalhes de armação e execução das maiores torres brasileiras. Me indicaria, ainda, para um reforço de bloco de fundação com barras Diwidag, que viria a efe- tuar em Itapema, no final do ano, e ainda me convidaria para o cálculo das fundações da roda gigante de Balneário Camboriú, em relação à qual, infelizmente, acabamos per- dendo a concorrência. Senti-me um privilegiado e agradeci a Deus por ta- manha sorte, por ter a possibilidade de conhecer pessoas tão competentes e do bem. Mesmo estando no interior do Paraná, já tinha trabalhado com inúmeros engenheiros. Muitos se inspiram em Pelé. Eu me inspiro em Dicá. No in- terior, em um time pequeno, exercendo com maestria sua arte, longe dos holofotes. Aquele sábado em Florianópolis foi um dia espetacu- lar, de ensino e aprendizado. Contei minhas histórias com protensão, mostrando meus cálculos, e ouvi as histórias dos presentes. Foi um momento muito especial na minha carreira, pois acredito que ali tenha tido a minha melhor turma ao longo de quase 20 anos de docência. Pena que miolo-buriti4.indd 131miolo-buriti4.indd 131 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 132 Rafa Souza a experiência tenha durado apenas um único dia. Porém, desse único dia, carrego até hoje amizades com inúmeros engenheiros do Sul do Brasil. De volta para Itapema, no sábado à noite, encontrei com alegria minha família e liguei para meus pais para con- tar as novidades e alegrá-los com a notícia de que tínhamos ficado em um mesmo resort que eles tinham conhecido no passado. Era bom falar com meus pais e, de súbito, veio uma frase bela que diz que filhos precisam ter asas e raízes. No domingo pela manhã, teríamos 650 km até Maringá, um dia todo de viagem. A rotina voltaria àquela mesma in- tensidade, mas, aquele final de semana mágico tinha fun- cionado como um potente alternador, capaz de recarregar a minha bateria de entusiasmo. miolo-buriti4.indd 132miolo-buriti4.indd 132 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 133 Buscando Apoio “É preciso ter dúvidas. Só os estúpidos têm uma confiança ab- soluta em si mesmos.” Orson Welles Quando entramos em agosto de 2019, Triunfo seguia em execução, Brasília tinha contratado uma empresa para monitoramento das lajes de cobertura e, em Maringá, já estudávamos o que fazer com o prédio pré-moldado de cinco pavimentos. Logo no começo do mês, recebi uma ligação do enge- nheiro que estava comandando os novos monitoramentos em Brasília. Ele estava bastante assustado com as condições da edificação e passou a ficar ainda mais inquieto a partir dos resultados que vinha colhendo. À medida que os resultados iam sendo obtidos e anali- sados, decidi que precisava novamente emitir um alerta em relação às condições da edificação e foi isso que fiz naquele começo de mês, com a emissão de um novo ofício: Considerando que, em conversa informal com o Eng. FGC (responsável pelo monitoramento), observou-se no dia 07/08/2019 miolo-buriti4.indd133miolo-buriti4.indd 133 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 134 Rafa Souza desalinhamento da alma da viga VS33, possivelmente indicando início de processo de instabilidade por torção do perfil de reforço; Considerando que, na prática, o reforço funciona como uma seção mista invertida, com perfis metálicos trabalhando compri- midos e nervuras trabalhando tracionadas e que os perfis, por si só, não seriam capazes de suspender todo o carregamento; Considerando que, ao introduzir os perfis metálicos o encaminhamento das cargas foi provavelmente modificado de bidirecional para unidirecional, gerando solicitações dife- renciadas sobre os consolos de extremidade, que por sua vez sustentam também os tirantes de uma laje de piso que foi mo- dificada em relação ao projeto estrutural original; Considerando que janelas recentes executadas na face su- perior da laje L2 não indicaram a presença das armaduras negativas dos consolos que ali deveriam se encontrar confor- me o projeto estrutural; Vimos através desta, mais uma vez, recomendar que a edificação não seja mais aberta para pessoal antes do devido escoramento, que, por sua vez, deve ser efetuado desde o nível mais baixo da edificação, passando pela laje suspensa. Alertamos ainda que, em função dos inúmeros sinais emitidos pela estrutura ao longo do tempo, bem como, através da avaliação dos resultados mais recentes de monitoramento emitidos pela empresa responsável, há grande possibilidade de ruína localizada na região das vigas VS33 e VS35, de maneira que cuidados redobrados devem ser tomados ao se intervir na estrutura (escoramento, reforço ou demolição). O histórico dos fatos demonstra claramente que a estrutura vem sempre trabalhando ao longo do tempo em uma região de segurança muito aquém da região de segurança recomendada miolo-buriti4.indd 134miolo-buriti4.indd 134 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 135 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas pelos códigos normativos e, por esse motivo, deve ser imediata- mente escorada até que uma solução definitiva seja tomada. Para todos os fins, com base nos diversos estudos realizados e com base nos dados mais recentes, alertamos que já não é mais possível ter certezas sobre a segurança da edificação na re- gião referida, sendo que a mesma pode apresentar um colapso localizado e, consequentemente, em cadeia, em vista da presen- ça de uma laje atirantada ao pavimento, com sérios problemas. A estrutura encontra-se nitidamente trabalhando em regime plástico, de maneira que já não é mais possível ob- ter garantias de segurança na região central entre as vigas VS33 e VS35. Apesar de serem possíveis redistribuições de tensões em vista da grelha original, tal quantificação é de di- fícil determinação, o que leva à necessidade de uma postura extremamente cautelosa em relação às possíveis reservas de resistência que ainda há na região. Por nos sentirmos também responsáveis pela segurança da edificação e dos eventuais usuários que necessitem aces- sar a edificação, nos sentimos no dever de alertar sobre a grande possibilidade de ruína, tendo-se em vista os últimos resultados obtidos. Os últimos resultados de monitoramento demonstraram um processo de fadiga correlacionado a efeitos de temperatura e a rigidez (falta) da estrutura pode, ainda, estar sendo afetada por cargas de trânsito. Coincidentemente, as deformações são má- ximas no horário de pico de trânsito, que, por sua vez, também coincidem com o pico de temperatura. Apesar de o resultado ser preliminar, novos monitoramentos utilizando acelerômetros po- derão demonstrar se realmente há alguma correlação entre as deformações máximas e o período de pico de trânsito. miolo-buriti4.indd 135miolo-buriti4.indd 135 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 136 Rafa Souza Sem mais para o momento e, na convicção de que nos ma- nifestamos em tempo hábil para a preservação da segurança de todos os envolvidos, ficamos à disposição para a apresentação de eventuais esclarecimentos. Sabia que a notícia não seria bem-recebida em Brasília, porém, tinha comigo que estaria protegendo a vida do pe- rito judicial e de sua equipe, bem como de qualquer pessoa que eventualmente precisasse entrar naquela edificação. Alguns dias mais tarde, após emitir esse ofício, o perito me ligou pedindo ajuda em relação a profissionais que pode- riam auxiliá-lo naquela lide, na ação judicial que corria em pa- ralelo ao meu trabalho. Indiquei então meus grandes amigos professores doutores da Unicamp, Leandro Trautwein e Luiz Carlos Almeida. Eles acabaram sendo contratados e, após a análise de toda a documentação, também concluíram que a estrutura realmente se apresentava em estado-limite último. Eu tinha tanta vontade de resolver o problema de Brasília que, em certa ocasião, cheguei a pedir ajuda para um profissional que talvez tivesse criatividade suficiente para me ajudar com alguma ideia brilhante, difícil de surgir nas mentes convencionais. Me lembrei da ocasião em que Bruno Contarini apa- receu paraquedisticamente em minha sala, na universidade de Maringá. Por uma dessas felicidades do destino, pude conversar com o velho mestre por cerca de trinta minutos inesquecíveis. Essa memória foi reforçada ainda mais pela leitura de sua biografia, em que pude ler histórias maravi- lhosas de soluções estruturais para problemas cabulosíssi- mos. Arrisquei, então, o seguinte e-mail: miolo-buriti4.indd 136miolo-buriti4.indd 136 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 137 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Prezado Dr. Bruno, Por felicidade do destino, há treze anos tive o privilégio de ver o senhor entrar na minha sala, na Universidade Estadual de Maringá, onde pudemos conversar brevemente e o senhor mudou definitivamente minha maneira de projetar estruturas. Me lembro de ter lhe perguntado sobre o MAC: "Mas como analisar os resultados do SAP com aquele monte de informa- ções, sendo que ele ainda não solta os momentos para a gen- te?". E o senhor respondeu: "Eu controlo os deslocamentos". Sempre conto com entusiasmo para meus alunos de concreto armado/protendido essa nossa conversa, religiosamente, há mais de 15 anos. Quem nos apresentou foi a engenheira e arquiteta JKV, grande amiga e contemporânea de graduação, que tem um carinho enorme por você. Sempre que nos encontramos, seu nome é sempre lembrado em nossas conversas. Além dela, te- mos outros conhecidos em comum, com quem já tive a oportu- nidade de interagir: Prof. Vasconcelos e José Luiz Varella, entre tantos outros engenheiros estruturais nesse Brasil afora. Dr. Bruno, o que me leva a escrever é porque acredito que agora chegou a vez do destino me levar até a sua sala, caso o senhor me conceda essa oportunidade. Tenho atuado como consultor de uma belíssima obra no Eixo-Monumental de Brasília. Trata-se de uma belíssima obra, com vãos de até 30 m, com lajes nervuradas protendidas de cobertura que sus- tentam uma laje atirantada de piso. Infelizmente, o calculista terceirizou o projeto de protensão e, devido a subdimensiona- mento e outros problemas, as lajes de cobertura já registraram 45 cm de flecha, fissuras com 1,0 cm e ruptura de cordoalhas. miolo-buriti4.indd 137miolo-buriti4.indd 137 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 138 Rafa Souza Como tudo estava no nome dele, está enfrentando uma bata- lha judicial dolorosa. Executaram um reforço na parte superior com vigas I, porém já registramos o escoamento das mesmas e tivemos nessa sema- na nova ruptura de cordoalhas engraxadas. Monitoramentos apontam fadiga da laje e também influência do tráfego de veí- culos e o medo é a laje ruir a qualquer momento.... Fico triste de ver um colega de profissão, com uma carreira tão brilhante, terminar sua trajetória com uma situação des- sas e tenho procurado uma solução de reforço que seja mais econômica do que a demolição. Já pensei em váriassoluções para salvar essas lajes e evitar a demolição. Já forneci algumas alternativas exequíveis, mas certamente deve existir alguma nova ideia no ar, que me permita respeitar as imposições de não alterar a fachada devido à obra ser tombada pelo Iphan. Se me permite, gostaria de lhe apresentar o problema e ou- vir a sua opinião, nosso grande mestre da engenharia nacional e que já resolveu "pepinos e abacaxis" que poucos foram capazes de sequer começar a descascar. Acredito que uma simples conversa nossa pode resultar em uma nova ideia e, quem sabe, no futuro, possamos registrar esse encontro técnico em um artigo ou livro. Caso o senhor tenha tempo para eu lhe expor o problema, posso ir ao Rio de Janeiro em qualquer dia e horário que o se- nhor tiver disponibilidade em sua agenda. Acredito que duas a três horas do seu tempo já seriam suficientes para entendermos o problema e pensar alguma coisa. Em relação ao seu tempo posso lhe pagar as horas de con- sultorias, além, é claro de um almoço para podermos conversar de outros temas. Caso essa visita seja possível, gostaria ainda de pegar um autógrafo em sua biografia e presenteá-lo com miolo-buriti4.indd 138miolo-buriti4.indd 138 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 139 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas o meu livro "Análise e Dimensionamento de Elementos de Membrana em Concreto Estrutural". Fico no aguardo de res- posta e lhe desejo um ótimo final de semana! Esse e-mail, infelizmente, nunca foi respondido e nunca pude conversar com o grande mestre sobre soluções alter- nativas às minhas na recuperação das lajes de Brasília. Não sei se ele chegou a ler, mas também não queria incomodá-lo; afinal, já havia descascado incontáveis “pepinos e abacaxis”, como ele mesmo diz, ao longo de toda a sua vida. Achei por bem deixá-lo em paz e segui meu caminho, solitário. Com o novo documento emitido para Brasília e conten- te pelo fato de que o perito judicial tinha agora ao seu lado especialistas, ganhei mais um tempo para poder voltar ao problema de Maringá. Na ocasião, o laudo pericial da polícia científica ainda estava em execução e estávamos procurando um jeito de resolver um problema de desaprumo dos pilares. Foram elaborados diversos modelos computacionais para avaliar o desaprumo dos pilares e realizadas diver- sas reuniões com os responsáveis pelo projeto estrutural da edificação. Nas simulações, ficou claro que os esforços decorrentes do desaprumo seriam inferiores aos esforços considerados nos pilares e que, por esse motivo, os pilares apresentavam segurança apesar dos desalinhamentos. Também foram avaliados outros pontos localizados que exigiriam reforço, bem como seriam necessárias vigas adicionais de travamento que, por sua vez, teriam a função de melhor travar os pilares. De maneira geral, o prédio teria condições de ser retomado, mas um cuidadoso processo de intervenção deveria ser conduzido. miolo-buriti4.indd 139miolo-buriti4.indd 139 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 140 Rafa Souza Já era ponto consensual na equipe de que as pesadas placas de fachada deveriam ser eliminadas, de maneira a minimizar o desaprumo dos pilares. Mas ainda não estava claro se o cliente iria aceitar aquela obra com as intervenções propostas, em vista dos transtornos e perdas irreparáveis. Seguiram-se reuniões muito tensas, justamente no prédio em que eu havia calculado aquelas lajes protendidas com furos na laje na interface dos pilares. O clima era muito pesado e um grande impasse estava nitidamente nascendo. Do nosso lado, acreditávamos que seria possível salvar a estrutura com as intervenções concebidas. Do outro lado, o desejo de desmontar a estrutura e apagar uma triste história. Enquanto não se tomava uma decisão, a estrutura continuava ali, incompleta, como uma espécie de cachorro raivoso em descanso, que todos olhavam de maneira desconfiada. As vidas perdidas, da jovem estudante Natália, em Maringá, e do jovem trabalhador, Alexandre, em Erechim, infelizmente não voltarão. Não temos condições de mudar o passado. Mas podemos tentar, ao menos, melhorar o futuro, tomando como lição essas árduas experiências e melhoran- do os procedimentos executivos das estruturas pré-molda- das com lajes alveolares. miolo-buriti4.indd 140miolo-buriti4.indd 140 10/02/2021 21:08:3210/02/2021 21:08:32 141 Inferno “Tão fiel fui ao glorioso ofício, que perdi o sono e a saúde.” Dante Alighieri Em setembro de 2019, as coisas estavam mais paradas. Já não tinha mais tantas notícias de Brasília, Triunfo es- tava me solicitando pouco, com uma consulta ou outra, e Maringá seguia em mistério, com seguidas reuniões entre as direções administrativas das partes envolvidas. Surgiu então, nesse intervalo, uma experiência muito interessante, a prestação de um serviço diferenciado para uma das maiores indústrias abatedoras de aves do Brasil. Com a intenção de substituir um chiller de grandes dimen- sões por um ainda maior, objetivando aumentar a produção, fui contratado para verificar se as lajes alveolares existentes no complexo poderiam suportar a referida substituição. Após efetuar inúmeros cálculos, conclui que tal subs- tituição não seria possível, tendo-se em vista a falta de ca- pacidade das vigas laterais de apoio, bem como a presença de corrosões em cordoalhas e seccionamento destas em algumas placas, em função de aberturas para tubulações mal planejadas. miolo-buriti4.indd 141miolo-buriti4.indd 141 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 142 Rafa Souza O local que tive de acessar para ver as condições por debaixo das lajes alveolares era conhecido no complexo industrial como “Inferno”, tendo-se em vista o calor, a es- curidão e o forte cheiro de esgoto. Existia um enchimento de solo por debaixo da laje, ao longo de um longo compri- mento debaixo do chiller, que tinha pé-direito de apenas 1,50 m. Assim, tínhamos que explorar o local usando lan- ternas e andando de cócoras, enquanto pingava água suja em nossas cabeças. O local tinha grandes restrições de trabalho e o chiller deveria ser trocado sem atrasos, em dezembro de 2019. A empresa iria parar apenas um final de semana para a troca do equipamento e qualquer dia a mais de interrupção pro- duziria prejuízos de milhões de reais. Em função do pé-direito pequeno existente por debaixo das lajes alveolares, elaboramos um projeto que determinava a retirada de toda a terra do local, deixando um pé-direito mais apropriado para os funcionários efetuarem os procedi- mentos de manutenção. Apesar de tirar toda a terra do local e conseguir passar o pé-direito arquitetônico de 1,50 m para quase 2,50 m, ain- da tínhamos um problema com a execução das fundações. Como entrar com maquinário por debaixo das lajes alveo- lares e executar as fundações? A única solução seria o em- prego de estacas-raiz ou tubulões escavados manualmente. No entanto, apesar de o solo de Maringá ser reconheci- damente colapsível e objetivando acelerar o processo cons- trutivo, ponderamos que uma solução utilizando um radier protendido seria aconselhável, desde que fosse feito um tra- tamento apropriado no solo. miolo-buriti4.indd 142miolo-buriti4.indd 142 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 143 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Dessa maneira, antes de executar o radier protendido, compactamos firmemente o solo e disponibilizamos uma generosa camada de brita, com aproximadamente 50 cm de espessura. Na sequência, foi então executado um radier pro- tendido, com 30 cm de espessura, 3,0 metros de largura e 43 m de comprimento, sem juntas. Com o radier executado, construiu-se, então, sobre ele, um pórtico metálico que acaba funcionando como uma es- pécie de escoramento permanente para as lajes alveolares originais. A estrutura não pôde ser construída até dezem- bro, conforme planejado, mas, ainda assim, se constituiu como uma solução bastante segura erápida, possibilitando a eliminação de prejuízos e aumentando a produção. Me lembro de que, ao entrar nesse complexo industrial, tive que seguir todas as instruções de segurança, objetivando não contaminar as aves. Tive que colocar botas, máscara, tou- ca e macacão, além de ter que lavar as mãos antes de entrar no recinto. Tudo higienicamente controlado e monitorado. O pessoal da higienização trabalhava numa verdadeira estufa, com um barulho infernal dos maquinários pesados. Ali, sob aquele barulho ensurdecedor e aquele calor dantes- co, os macacões utilizados eram lavados e descontaminados pelos funcionários. Antes de descer ao “Inferno”, primeiro precisava enten- der o que era um chiller e, assim, entrei na planta de produ- ção. Perambulei pelas alas internas de produção e vi aquele sem-fim de pessoas trabalhando como robôs, com suas enormes facas afiadas cortando peitos, asas e pernas. Já havia visto uma multidão de pessoas do lado de fora, chegando e se preparando para substituir o turno miolo-buriti4.indd 143miolo-buriti4.indd 143 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 144 Rafa Souza daqueles que lá dentro estavam. Fiquei sensibilizado com tanta gente e suas caras tristes. Minha sensação era seme- lhante àquela de chegar na Estação da Barra Funda, numa segunda-feira logo no começo da manhã, porém, com um clima bem mais pesado. Finalmente, após alguma caminhada, cheguei ao chil- ler. Ali concluí que se tratava de um enorme tanque de água fria com uma rosca giratória em seu interior. Assim, as aves abatidas chegavam por uma ponta, ainda quentes, e o para- fuso as levava mergulhadas até a outra ponta, de onde saíam muito frias. Assim, as aves podiam ser cortadas em suas di- versas partes. Achei que o “Inferno” seria um local pior do que aquele, mas pensei que, se fosse obrigado a trabalhar ali, o “Inferno” talvez fosse a melhor opção. Refleti que as pessoas que têm dó dos frangos abati- dos certamente não conhecem as pessoas que trabalham exercendo tal função. Um salário baixíssimo, num ambiente altamente tóxico promovido pela amônia utilizada no pro- cesso e com uma alta taxa de depressão e suicídio. Não eram só os frangos que estavam confinados, eram também as pes- soas. E eu, com minha profissão, tinha contribuído para o aumento da produção. Nem sempre o resultado de nossa profissão nos dará satisfação plena do ponto de vista humano. E assim me en- tristeci por longas semanas, pensando naquelas aves abati- das e naquelas pessoas confinadas com suas facas afiadas. Porém, paralelo à tristeza, vinham-me doses homeopáti- cas de alegria; afinal de contas, havia conseguido descarac- terizar o “Inferno”. miolo-buriti4.indd 144miolo-buriti4.indd 144 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 145 Ponteiro e Marreta “A humildade é a única base sólida de todas as virtudes.” Confúcio O laudo pericial da polícia científica só viria a sair no meio de outubro de 2019, mas pouco antes, sairia uma decisão definitiva em relação ao prédio de Maringá. A obra seria totalmente desconstruída. A estrutura pré-fabricada de 15.000 m2, avaliada em nove milhões de reais, começaria a ser desmontada no final de setem- bro de 2019. Eu acreditava que a obra poderia ser recuperada, mas me senti aliviado com o caminho derradeiro. O término daquela obra poderia pesar sobre as minhas costas e de outros colegas, caso novos problemas viessem a ocorrer no futuro. Mais uma vez, percebi que a pressa e a pressão foram fa- tores determinantes em um colapso. Não se faz engenharia de excelência nessas condições de contorno. A contratada tinha que entregar o prédio a qualquer custo, no prazo determi- nado e, para isso acontecer, teve que acelerar para não ficar sujeita a pesadas multas. Acidentes de obras em construção como os ocorridos em Maringá e Erechim não são exclusividades do Brasil. Em miolo-buriti4.indd 145miolo-buriti4.indd 145 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 146 Rafa Souza outubro de 2019, um mês após a decisão pela desconstrução do prédio em Maringá, veio a ruir um prédio em constru- ção, de uma famosa rede de hotéis em New Orleans, nos Estados Unidos. O prédio, que teria 18 andares e era avalia- do em 18 milhões de dólares, ruiu localizadamente, levando a estrutura remanescente a ser implodida. Esse colapso americano aparentemente mais relaciona- do com os grandes vãos utilizados e com questões de esco- ramento, também deixa uma lição importante. A lição de que devemos respeitar as leis da natureza, sejam elas fun- cionais (vãos) ou temporais (velocidade de execução). As coisas têm seus limites e períodos para se desenvolverem e, normalmente, a natureza e a vida impõem essas condições de contorno, independentemente do seu arsenal financeiro. Aquele era um ano de grande aprendizado e eu já esta- va na reta final da minha fisioterapia, com os joelhos quase fortes para voltar ao jiu-jitsu. Ali, na fisioterapia, encontrei um velho conhecido de universidade que, então, solicitou minha visita à sua residência, para ver se umas paredes po- diam ser retiradas numa reforma que ele pretendia fazer. Dias depois, estava eu na casa de meu colega, muni- do de meus equipamentos altamente tecnológicos: trena eletrônica e pacômetro (identificador de barras). Entrei na bela mansão, orgulhoso de minha profissão e de minhas fer- ramentas digitais, envaidecido pelo meu ofício de investiga- dor de estruturas. Enquanto íamos conversando, eu ia passando o pacô- metro pelas paredes, na tentativa de achar algum pilar. Não apitava. Havia um forro aberto, alcancei uma escada e en- tendi o sistema estrutural. Não tinha pilares ali e meu colega miolo-buriti4.indd 146miolo-buriti4.indd 146 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 147 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas poderia demolir aquelas paredes e ter uma nova sala e uma nova cozinha integradas e amplas. Recebi minha hora técnica, agradeci pela oportunida- de, saí com o carro e parei em um posto de combustíveis em Paiçandu para pegar um energético sabor maçã verde, um dos meus preferidos. Enquanto vinha dirigindo pela rodovia, sabo- reando aquele líquido motivacional, pensava como era bacana minha profissão. Uma hora estava em Brasília, outra hora em Porto Alegre. Mas estar em Paiçandu também era muito legal. Ainda nesse caminho de volta, aquele energético me fez lembrar de uma perícia que fiz para um colega enge- nheiro que tinha tido problemas severos com drogas. Ele me chamou para ver alguns problemas graves em seu prédio e, aparentemente, estava tudo certo com a síndica para a re- alização da inspeção. Chegando ao local, percebi que os problemas nos ele- mentos estruturais da garagem estavam relacionados com movimentação de formas e eram meramente estéticos. Não havia problemas graves naquele prédio. Perguntei, então, para quem deveria emitir a nota fiscal e foi aí que a síndica me olhou com cara de espanto: “Não era de graça?” Respondi que não. Disse que era um profissional sério, que estava ali a serviço e que alguém deveria arcar com a minha hora técnica. No meio desse impasse, meu colega me chamou para ir visitar o apartamento dele, e disse que assu- miria meus honorários. Me despedi da síndica espantada, ainda mais espanta- do do que ela por causa da situação e subi com meu cole- ga pelo elevador, já percebendo que o comportamento dele não era muito normal. Sabia de seu histórico com drogas, miolo-buriti4.indd 147miolo-buriti4.indd 147 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 148 Rafa Souza mas nunca imaginei que a situação pudesse me levar a ser protagonista de um filme do Tarantino. Ao entrar em seu apartamento, ele me apresentou um buraco de bucha na parede, preenchido com pasta de dente, e disse que ali era um ponto de preocupação muito grande. Me falou que o prédio poderia cair por causa da- quele buraco. Expliquei para o colega engenheiro que era só um buraco simples e que um preenchimento commassa corrida seria o suficiente para resolver o problema estético. Ficamos ali, olhando para aquela parede, indo e voltan- do inúmeras vezes em relação ao buraco, até que, finalmente, consegui que ele se acalmasse e me levasse até a porta para sair daquela situação maluca. Percebi o grau de loucura em função das drogas e fiquei com muita pena do meu colega, um estudante brilhante, que se perdeu no meio do caminho. A compulsão que ele tinha para estudar para as provas de engenharia, varando noites adentro, foi a mesma que o levou a se dedicar aos tóxicos na mesma intensidade. Assim, ele me perguntou quanto era o valor da visita. Dei o valor e ele pediu desconto. Refleti melhor e então lhe disse: “Olha só. Me paga um energético e um pão de queijo ali no posto da esquina e está tudo certo”. E assim, fiquei no filme do Tarantino por mais uns 15 minutos, com as aten- dentes me olhando espantadas em função da companhia ao estranho cliente habitual. De volta ao presente, os dias foram correndo calmamen- te; afinal de contas, Brasília seguia sem novidades, Maringá estava finalizada e Triunfo seguia com pouquíssimas exi- gências. Uma semana depois, meu colega de Paiçandu me ligou e, para minha surpresa, disse que quebrou as paredes e miolo-buriti4.indd 148miolo-buriti4.indd 148 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 149 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas que tinha encontrado três pilares. Disse para ele ficar tran- quilo, que ia resolver o problema. Essa obra foi uma das maiores lições trazidas por uma edificação. Eu, o engenheiro de Brasília, agora estava com um pepino direto para descascar. Tinha que dar um jeito de arrancar três pilares de uma mansão e ainda não cobrar nada, a fim de preservar a minha reputação. Ao abrir as paredes, foi possível verificar que os pila- res tinham um revestimento de massa de cerca de 5 cm, de maneira que o identificador de barras não acusou a pre- sença das ferragens. Ainda, as vigas altas, proporcionais aos vãos onde pilares eram visíveis, me induziram ao erro. Mas, sem dúvida, meu erro fundamental, nesse caso, foi ter apelado para a tecnologia sem um critério mais rígido. Certamente, se tivesse utilizado ponteiro e marreta, não estaria em tamanha encrenca. Assim seguiu outubro, com as obras do radier sendo executadas e eu tendo que resolver o caso dos pilares em Paiçandu diariamente. Foram longos dias até conseguir bolar uma solução, mas lá estava ela. Ia reforçar algumas vigas e en- tão poderia eliminar os pilares. Acontece que havia mais um problema: a mão de obra de terceira categoria para o serviço. Trabalhavam na obra um pedreiro e seu filho e ambos eram especializados em parede e assentamento de piso. Assim, tive que me deslocar no mínimo umas 15 vezes até Paiçandu, até que todo o processo de reforço estivesse completo. Já havia retirado pilares de outras edificações e, após esse ocorrido, parecia estar virando rotina. Logo no início de novembro, um ex-aluno me pediu para ajudá-lo numa edificação na qual ele queria arrancar 8 pilares. miolo-buriti4.indd 149miolo-buriti4.indd 149 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 150 Rafa Souza Em paralelo a esse trabalho, em novembro de 2019, apareceu ainda a avaliação de uma nova estrutura pré- -moldada, pertencente a um famoso político da cidade, ex-ministro da Saúde. Passaria, então, minhas semanas desse mês dividido entre aulas, fisioterapia, retirada de no- vos pilares e visitas insólitas a blocos pré-moldados aban- donados. O final do mês guardaria uma nova volta para o litoral de Santa Catarina e novas oportunidades interes- santes de trabalho. miolo-buriti4.indd 150miolo-buriti4.indd 150 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 151 Wu Wei “Se o problema possui solução, não devemos nos preocu- par com ele. E se não possui solução, de nada adianta nos preocuparmos.” Epicteto M eu pai vinha reagindo positivamente ao tratamento. Havia feito uma biópsia do mediastino no começo de dezembro e estava se recuperando bem. O mediastino é uma das três cavidades em que está dividida a cavidade to- rácica. Contém o coração, as partes torácicas dos grandes vasos e outras estruturas importantes, tais como: partes to- rácicas da traqueia e do esôfago, o timo, a parte do sistema nervoso autônomo e o sistema linfático. O laudo, infelizmente, seria demorado. Mas, em posse dos resultados, um tratamento certeiro poderia ser aplica- do, o que, por sua vez, faria muita diferença. O velho seguia animado, mesmo com aqueles pontos todos na região da garganta. Era um verdadeiro highlander, que ostentava com orgulho as diversas cicatrizes e ossos quebrados, sem nunca questionar por que o destino o havia sorteado com aquela doença terrível. miolo-buriti4.indd 151miolo-buriti4.indd 151 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 152 Rafa Souza Confiante na melhora de meu pai e tranquilo com a saúde de ferro e sabedoria de minha mãe, peguei minha fa- mília novamente e retornamos ao litoral de Santa Catarina para mais um período de descanso. Dessa vez, tinha pela frente uma palestra e um curso sobre concreto protendido, que daria num encontro a ser realizado em Balneário Camboriú. Também tinha em mi- nha agenda a visita técnica em um prédio em construção, em Itapema, onde iriam precisar do reforço de um bloco de fundação. Enquanto minha família descansava e se divertia em Camboriú, fiquei envolvido todo final de semana na apre- sentação de meus conteúdos de protendido, no famoso Hotel Marambaia. Estava muito empolgado com a palestra do sábado pela manhã, mas o horário ficou péssimo e, infelizmente, falei para poucos presentes nocauteados pela farra da noite anterior. Na sequência, veio o curso e, apesar de falar para apenas 7 engenheiros, foi uma experiência muito agradável viajar com eles durante 8 horas intensas de curso. Apesar da leve decepção que senti, por pensar que o esforço preparatório não havia compensado o retorno de audiência, estava feliz porque podia proporcionar à minha família momentos de lazer. Criança adora praia! Também estava animado porque, logo ao chegar, na sexta-feira, fui visitar o prédio em construção em Itapema. O engenheiro Cachoeira tinha me indicado para esse arro- jado serviço e, então, fui lá conhecer de perto o problema. Seriam duas torres. Uma já estava com a estrutu- ra pronta e a outra tinha apenas as estacas executadas. miolo-buriti4.indd 152miolo-buriti4.indd 152 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 153 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Aparentemente, por um problema de locação, a estrutura da nova torre sofreu um deslocamento e a fundação já exe- cutada teria que ser adaptada. Sobre um bloco de fundação de duas estacas de 90 cm, com dimensões de 1,0 m x 3,0 m e altura de 0,90 m, chegava um pilar retangular com uma força normal de 232 tf. Apesar de o bloco já estar pronto, uma nova estaca de 90 cm se apre- sentava na região. A distância entre eixos das estacas do bloco pronto era de 2,0 m, e essa nova estaca estava posicionada a cerca de 1,42 m do eixo de uma das estacas do bloco pronto. A ideia era, então, encamisar um novo bloco, envolvendo o bloco já concretado e essa nova estaca, de maneira que um novo pilar, com carga de 562 tf, pudesse nascer, faceando o pilar já existente. Resumindo, teria que calcular um bloco ca- paz de pegar dois pilares, com cargas elevadas, sobre um blo- co de três estacas, com distanciamentos não convencionais. Fiquei andando naquela areia mole, estudando a geome- tria do problema e as dificuldades que teríamos para proten- der o bloco e executar o projeto de reforço. Ainda por cima, teria que pensar nos possíveis efeitos da maré, uma vez que percebi que todo o perímetro da obra possuía um sistema de bombeamento e o prédio ficava muito próximo da orla. Já havia sido contatado para o problema no início de novembro, mas até então não havia fechado negócio. Ofato é que o problema era tão interessante que, quando cheguei ao local, na verdade, já tinha desenvolvido o projeto. Sabia que seria difícil encontrarem outro maluco nas redondezas para encarar aquela situação incomum e, mes- mo que não fechasse negócio, teria me preparado para o fu- turo e adquirido experiência. miolo-buriti4.indd 153miolo-buriti4.indd 153 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 154 Rafa Souza Para poder encaminhar esse projeto, eu só precisa- va que o responsável pelo cálculo do estaqueamento me garantisse a capacidade das estacas executadas em hélice contínua. Eu estava preocupado com o fato de que o RQD (Rock Quality Designation), índice que mede a qualidade da rocha, indicava que as estacas estavam apoiadas em uma rocha de má qualidade. Assim, para poder fechar esse projeto, eu precisava, primeiramente, ser contratado e, depois, conseguir que o responsável técnico pelo estaqueamento formalizasse a ca- pacidade de carga das estacas, eximindo-me, assim, de mi- nha reponsabilidade pelas mesmas. Já havia interagido com esse engenheiro em um prédio de 18 pavimentos que calcu- lei em Água Boa, no Mato Grosso. Ele tinha sido o respon- sável pelas fundações. Certo dia, liguei para ele para conversarmos sobre a capacidade de carga das estacas de Itapema e discorri sobre preocupação em relação à qualidade da rocha de assentamen- to. Tinha também receio em relação ao fato de que as estacas não eram integralmente armadas e de que o atrito lateral ali era afetado pelas águas do mar, sendo indicada uma prova de carga para poder reforçar o bloco. É triste conversar com pessoas que atendem o telefone já querendo desligar. Você vai falando rápido antes que a pessoa desapareça. Senti um certo desdém pelo fato de eu ser de Maringá e ele, no seu pedestal, ser de Curitiba, a capi- tal europeia brasileira. Não importou o fato de que já tínhamos uma obra em comum e agora tínhamos outra. Ele parecia de saco cheio. Dias depois, encaminhou um documento garantindo a miolo-buriti4.indd 154miolo-buriti4.indd 154 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 155 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas capacidade de carga das estacas e disse que não havia neces- sidade de prova de carga. Assim, voltei para Maringá e alguns dias depois recebi o contrato para assinar. Encaminhei então o meu projeto de reforço, que consistiu em encamisar o bloco original e a es- taca adicional com um novo bloco de dimensões em planta de 1,50 m x 5,0 m com altura de 1,90 m. Foram especificadas na região dos tirantes 4 barras do tipo Dywidag, com 47 mm de diâmetro e força de protensão de 131 tf em cada barra, perfazendo, assim, uma força total de protensão de 524 tf. Além das armaduras ativas, o bloco foi engaiolado com armaduras passivas de diâmetros vari- áveis de 12,5 mm, 16 mm e 20 mm e concretado com con- creto de resistência característica à compressão de 40 MPa. Brasília seguia incrivelmente calada após o último con- tato. Triunfo já se encaminhava para a finalização do reforço no pipe rack e Maringá seguia com prudência na descons- trução do incógnito prédio pré-moldado. Meus três gigan- tes estavam seguindo seus rumos e eu sabia que, em breve, seria quebrado o cordão umbilical. Sairiam definitivamente da minha rotina profissional. Assim, trabalhos como o radier e o bloco protendido eram projetos importantes naquele momento de transição. Eram trabalhos rápidos e prazerosos, e exaltavam a criativi- dade e a coragem de encarar novos desafios. Eu seguia no fluxo, sem combate. Conectado ao princípio do Wu Wei, deixava as coisas tomarem seu curso natural e me adaptava a elas. Precisava aceitar as passagens. miolo-buriti4.indd 155miolo-buriti4.indd 155 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 miolo-buriti4.indd 156miolo-buriti4.indd 156 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 157 Janeiro “Nada é permanente, exceto a mudança.” Heráclito T anto o Natal quanto a virada de ano de 2019 para 2020 não foram capazes de me alegrar. Meu velho pai estava se sentindo mais incomodado do que o habitual e vivia en- trando e saindo de hospitais em função das constantes pioras. Visitava-o todos os dias e passávamos longas horas conversando. Me lembro de que ele tinha uma raquete elé- trica para espantar mosquitos, já que na chácara, em meio a tantas árvores, estávamos em seu habitat natural e eles nos atacavam sem dó. Eu ficava falando e chacoalhando aquela raquete e, quase todas as vezes, acabava sendo acidentalmente eletro- cutado. Meu pai ria sem parar nesses meus momentos de- sastrados, conciliando dor nos ossos e alegria na alma. Na semana entre o Natal e o Ano Novo eu havia pas- sado muito mal. Tinha ido ao jiu-jitsu e, após almoçar, resolvi descansar um pouco. Quando acordei, senti todo meu corpo dolorido nas juntas e uma forte dor de cabeça ao movimentar os olhos. Ponderei que talvez tivesse me miolo-buriti4.indd 157miolo-buriti4.indd 157 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 158 Rafa Souza exigido demais no treino e que talvez aquilo tudo fosse um reflexo muscular. Os dias foram passando e os sintomas aumentando. Manchas vermelhas, garganta doendo, dores nas juntas e muita indisposição. Fui ao médico suspeitando de dengue, mas o resultado deu negativo. Voltei dias depois e novamen- te deu negativo. Como o médico não sabia dizer o que era, após muitos estudos, concluí por conta própria e consultas ao Dr. Google que tinha tido Zika Vírus. Ainda, no começo de janeiro de 2020, acabou saindo o resultado do laudo de meu pai. Infelizmente, o câncer já tinha se proliferado e, a cada dia, ele vinha ficando mais de- bilitado. Ao vê-lo novamente internado, senti que as coisas não estavam bem, principalmente quando começou a rece- ber noradrenalina. A coisa ficou ainda mais estranha quando os diversos médicos quiseram conversar comigo e minha mãe. Sabíamos que seria difícil nosso guerreiro vencer essa guerra final mas seguíamos unidos, confiantes, esperançosos e otimistas. Nos primeiros dias de internação, ele parecia que esta- va voltando. Oscilava entre estados de inconsciência, con- tando histórias malucas, com momentos de grande lucidez, lembrando precisamente de fatos do passado. Eu e minha mãe nos apegávamos nesses momentos de lucidez e pedía- mos a Deus para que ele ganhasse aquela luta. Na última visita, sentimos um comportamento es- tranho de toda equipe da unidade de terapia intensiva. Meu pai estava amarrado na cama e lutava para se soltar, incomodado com as dores e a falta de uma posição con- fortável. Não conseguíamos entender o que ele falava e, miolo-buriti4.indd 158miolo-buriti4.indd 158 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 159 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas desesperados, buscávamos alguma atenção da equipe em relação àquele comportamento. Não conseguíamos nenhuma espécie de atenção. Os enfermeiros fingiam não escutar e desviavam os olhares. Estavam frios conosco. A visita era de apenas 15 minutos e nada podíamos fazer. Beijei a testa de meu pai e disse que o amava, apertando firmemente sua mão. Seria a última vez que nos veríamos em vida. Meu pai passou pela porta da história em 9 de janeiro, aos 69 anos. Em 10 de janeiro faria 45 anos de casado com minha mãe. E no dia 13 de janeiro, seria meu aniversário de 44 anos. Janeiro, meu mês preferido, me traria uma grande perda. Já não tinha mais meu avô Abelegy. E, agora, já não tinha mais meu pai, Nilson. Foram-se as minhas grandes referências. Foram-se os meus grandes heróis. Agora eu es- tava por conta própria. No meio de todo o caos promovido pela perda de um ente muito querido, tive acesso a um koan que, de certa ma- neira, me trazia consolo: “O avô morre, o pai morre, o filho morre. Isso é sorte”. Meu pai dizia que tinha sido o homem de sua família que mais tinha vivido e, do ponto de vista de Sócrates, acredito que ele tenha levado uma vida virtuosa.Tivemos o ciclo natural, na sua ordem hierárquica e, por isso, tivemos sorte. Filho de um barbeiro e uma costureira, saiu do nada, de Campo Mourão, e ganhou a vida se tornando um pes- quisador de ponta. Tornou-se Doutor em Química na Universidade de Campinas e orientou mais de 45 mestra- dos e doutorados na Universidade Estadual de Maringá. miolo-buriti4.indd 159miolo-buriti4.indd 159 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 160 Rafa Souza Publicou 3 livros e incríveis 288 artigos científicos em peri- ódicos indexados. Meu pai, além de bom homem, era uma máquina científica. Quando eu era moleque, ele queria que eu torcesse para o seu time do coração, o Palmeiras. Tenho inúmeras fotos com fraldas, bolas, camisetas e canecos do Palmeiras até os meus 5 anos de idade. Porém, um dia, quando morá- vamos em Campinas, ele teve a ideia brilhante de ir assistir a um jogo da Ponte Preta e me levou junto. Desde então, após esse dia singular reservado pelo destino, tornei-me um fanático torcedor da Ponte Preta, um time cujo nome tem profunda ligação com a minha profissão de engenheiro de estruturas. Ser pontepretano é acreditar, às vezes, no impossível, e era com esse mesmo sentimento que acreditava que meu pai poderia escapar da- quela terrível doença. Meu pai e eu nos desentendemos muito durante a vida, mas hoje olho para trás e vejo que ele estava certo, na grande maioria dos casos. Quando você tem filhos, você começa a entender melhor os seus pais. Ficam as lembran- ças de uma história breve, o aprendizado de que a vida tem suas próprias vontades e que temos que seguir em frente, aceitando as vicissitudes. É preciso aceitar o fluxo para se- guir em frente. miolo-buriti4.indd 160miolo-buriti4.indd 160 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 161 Audiência Máxima “Se os fatos não se encaixam na teoria, modifique os fatos.” Albert Einstein Em fevereiro de 2020, após toda tempestade que se aba-teu sobre nossa família, aproveitamos a oportunidade de uma banca de mestrado em Curitiba e fomos viajar nova- mente. O plano era ficar um dia em Curitiba, um dia em São Bento do Sul e o final de semana em Balneário Camboriú, onde a Dani tem familiares. Cheguei animado em Curitiba para a minha palestra na Universidade Federal do Paraná. A palestra teria como título "Reflexões de um Engenheiro de Estruturas sobre uma Estrutura Emblemática e Avariada Situada no Eixo- Monumental de Brasília/DF”. Seria uma palestra louca, pois traria todo um contexto energético e minhas experiências acumuladas naquele 2019 tão atípico. Trataria o problema não só de forma científica, mas mostraria também as estranhas conexões de vida, mos- trando que tudo deve ser visto por um ângulo mais holístico. Me preparei durante semanas, compilando experiên- cias e emoções, de maneira a dar um verdadeiro show para miolo-buriti4.indd 161miolo-buriti4.indd 161 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 162 Rafa Souza uma grande e aguardada audiência, que seria constituída por alunos de graduação, pós-graduação e professores. As palestras sempre me lembram as apresentações das minhas bandas de rock, em especial aquela da qual mais me orgulho, A Inimitável Fábrica de Jipes. Você tem que entrar em palco e pescar a plateia, ganhar a atenção dos olhares desconfiados. Literalmente, é uma arte, que só é refinada com muita experiência de palco. Já toquei para uma plateia de algumas pessoas em bo- tecos da vida e também para quase duas mil pessoas. Nas apresentações musicais, a incógnita é sempre o público. Vai dar gente? Esse é sempre um grande dilema! Nas minhas andanças com bandas de rock já fui desde o temeroso palco do Cabana 40o, em Sarandi/PR, em um uma virada de ano para três pessoas, até o prestigiado palco do Sesc Vila Mariana em São Paulo/SP, quando A Inimitável Fábrica de Jipes chegou a uma espécie de segunda divisão do rock nacional. A lição que aprendi é que o artista deve tocar com a mes- ma empolgação, independentemente da quantidade de presen- tes. A apresentação é um ato de entrega, de liberação da alma e, agindo dessa maneira, o resultado sempre será mágico. É claro que tocar para muitas pessoas gera uma emoção diferenciada, mas condicionar sua alegria a isso é uma verdadeira armadilha. Mas voltando à minha palestra na UFPR, a apresen- tação foi realmente um sucesso e, ao final, as cinco gene- rosas almas que testemunharam o evento bateram palmas emocionadas, tendo a certeza de que participaram de um momento único. Por duas pessoas, meu recorde de público no Cabana 40o não havia sido batido! miolo-buriti4.indd 162miolo-buriti4.indd 162 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 163 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Assim é a vida, e a conexão com aqueles poucos pre- sentes não era coincidência. Era o que tinha que ser. Energia atrai energia. E, certamente, naquele momento, apenas as nossas frequências estavam alinhadas. Os que não compare- ceram, certamente não estavam preparados para as viagens filosóficas que seriam tratadas ali. Concluí que a academia, realmente, tem se tornado um local estranho, muitas vezes mais politizado do que científi- co. Certamente a audiência seria outra, caso fosse um polí- tico que, de certa maneira, pudesse trazer algum benefício, a despeito do período de férias. No outro dia participei da banca de defesa de mestra- do, encontramos o amigo Dary Jr. (da inesquecível ban- da Terminal Guadalupe) para um almoço no Mercado Municipal e seguimos para São Bento do Sul, onde iria visi- tar um edifício em execução cujo projeto estrutural eu havia feito, o Edifício Hannover. Aquela visita à pacata cidade de São Bento do Sul, em Santa Catarina, foi, sem dúvida, uma das melhores coisas acontecidas após toda aquela perda e a decepção na pales- tra com audiência mínima. Fomos recebidos pelo amigo e também engenheiro Kenny Gertler e passamos, finalmente, dias de muita alegria e celebração. Conferi in loco mais um projeto estrutural saindo do papel e se tornando realidade. Fizemos churrasco. Tomamos cerveja e tocamos guitarra. A engenharia era o elo. Mas a música e o compartilhamento de experiências de vida gera- vam uma conexão difícil de separar. Abraçamos o amigo e seguimos para Camboriú, onde poderíamos, mais uma vez, recarregar as energias apreciando as ondas do mar. miolo-buriti4.indd 163miolo-buriti4.indd 163 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 miolo-buriti4.indd 164miolo-buriti4.indd 164 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 165 Mundo em Movimento “Inteligência é a capacidade de se adaptar à mudança.” Stephen Hawking Em Maringá, no mês de março de 2020, começavam as obras do Edifício Triunfo (percebam a coincidência com a cidade de Triunfo/RS), uma torre de 17 pavimentos, cujo projeto estrutural eu havia elaborado, em 2018. Em São Bento do Sul, o Hannover já havia concluído o subsolo e agora chegava imponente nas lajes do primeiro pavimento. Minha rotina voltava a ser dar aulas, ir ao jiu-jitsu e levar meus moleques para os jogos de futebol. Ia tocando meus projetos e tentando resolver, em paralelo, as questões relacionadas ao inventário de meu pai. Agora tinha minha querida mãe para dar mais atenção, já que meus dois irmãos estavam fora de Maringá e não podiam ajudar muito. Em janeiro, logo após meu pai falecer, decidi que pre- cisava realizar um sonho antigo: comprar um jipe. Assim, adquiri um modelo Overland, 1954, com motor de opala. Oswaldo veio completinho: jogo na direção, vazamento de óleo, fumaça saindo do motor e consumo exagerado de combustível. miolo-buriti4.indd 165miolo-buriti4.indd 165 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 166 Rafa Souza No primeiro passeio que dei com o Oswaldo, rompeu- -se a correia do alternador, que incrivelmente fui capaz de trocar, por carregar uma correia sobressalente. Mas nada se comparou à emoção de conseguir ativar o motor tocando a chave de fenda estrategicamenteno motor de arranque, quando o painel acordou, um dia, sem dar sinal. Ter um jipe é explorar o domínio do homem sobre a máquina. Ao mesmo tempo, é entender que o veícu- lo tem suas vontades próprias e só vai funcionar quan- do quiser. Ter um jipe é um exercício zen. Você não está nem aí para a pressa do mundo. Você entra na década de 50 e vai dar um rolê no futuro, despreocupado com os compromissos. Quando você dirige um jipe, você está em busca de de- safios a serem resolvidos, mantendo a mesma serenidade de um monge. Já correra muito na vida e, agora, me interessava uma abordagem mais estoica das incongruências diárias. De Brasília já não recebia mais notícias formais, po- rém, ficava sabendo de algumas movimentações vindas de outras fontes. Não me senti triste, mas ficava nítido que a conexão tinha se encerrado, tanto do ponto de vista contra- tual quanto do ponto de vista humano. Em 20 de março de 2020, encerrou-se formalmente o meu contrato firmado com Brasília. Ao mesmo tempo, re- cebemos as primeiras orientações para não sairmos de casa, em função da chegada da Covid-19. Sucederam-se, assim, dias estranhos, em que vimos o mundo se modificar numa velocidade incrível, sem respostas imediatas para o futuro. As redes sociais ajudaram a romper a distância e as lives viraram a nova tendência mundial. miolo-buriti4.indd 166miolo-buriti4.indd 166 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 167 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Assim, enquanto cresciam os casos de corona vírus no Brasil e no mundo, alternava meu período de quarentena en- tre passeios de jipe, em visita à minha querida mãe, e lutas de jiu-jitsu com Wallid, um boneco especial recém-adquirido, que agora fazia parte da nossa família. Confinado e obrigado a parar de correr, olhei para trás com gratidão, mas ainda sentindo muito a perda de meu pai. Ninguém sabia o que viria pela frente. O mundo havia mudado e a vida de mais ninguém seria a mesma. As dúvi- das finalmente haviam superado as certezas. Ainda assim, era preciso seguir em frente. Se adaptando para não ser en- golido pela vida. Oss3!! 3 A transcrição exata da palavra é OSU e a origem da variação OSS foi criada na escola naval japonesa para servir de motivação no cotidiano. É um termo fre- quentemente utilizado nos tatames de jiu-jitsu e seu significado é “perseverança sob pressão”. miolo-buriti4.indd 167miolo-buriti4.indd 167 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 miolo-buriti4.indd 168miolo-buriti4.indd 168 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 169 Imagens “O tempo é a imagem móvel da eternidade imóvel.” Platão Vista lateral do “petit palais” em Brasília/DF miolo-buriti4.indd 169miolo-buriti4.indd 169 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 170 Rafa Souza Cobertura do “petit palais” com Palácio do Buriti ao fundo Laje do “petit palais” com desplacamentos e armaduras expostas miolo-buriti4.indd 170miolo-buriti4.indd 170 10/02/2021 21:08:3310/02/2021 21:08:33 171 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Vista de um dos prédios do polo petroquímico de Triunfo/RS Edifício Hannover durante a construção em São Bento do Sul/SC em 2020 (Crédito da Foto: RGB Drones) miolo-buriti4.indd 171miolo-buriti4.indd 171 10/02/2021 21:08:3410/02/2021 21:08:34 172 Rafa Souza Edifício Triunfo, em Maringá/PR, durante a construção em 2020 Reforço metálico de moega em Indianópolis/PR miolo-buriti4.indd 172miolo-buriti4.indd 172 10/02/2021 21:08:3410/02/2021 21:08:34 173 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Laje nervurada protendida de edifício em Maringá/ PR, com pilares posicionados a cada 12 m Região de maciço com protensão “chapéu” em Maringá/PR miolo-buriti4.indd 173miolo-buriti4.indd 173 10/02/2021 21:08:3410/02/2021 21:08:34 174 Rafa Souza Edifício em Maringá/PR, calculado em parceria com o Eng. João de Miranda miolo-buriti4.indd 174miolo-buriti4.indd 174 10/02/2021 21:08:3410/02/2021 21:08:34 175 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Residencial Araguaia, em Água Boa/MT, com 18 pavimentos “Inferno” revitalizado com radier protendido e estrutura metálica para escoramento permanente de lajes alveolares, em Maringá/PR miolo-buriti4.indd 175miolo-buriti4.indd 175 10/02/2021 21:08:3410/02/2021 21:08:34 176 Rafa Souza Encamisamento de bloco de fundação utilizando protensão em barras Dywidag, em Itapema/SC miolo-buriti4.indd 176miolo-buriti4.indd 176 10/02/2021 21:08:3410/02/2021 21:08:34 177 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Escada helicoidal com patamar intermediário e vigas protendidas com 15 m de vão, em Maringá/PR Viaduto esconso em Maringá/PR, com 16 m de vão miolo-buriti4.indd 177miolo-buriti4.indd 177 10/02/2021 21:08:3410/02/2021 21:08:34 178 Rafa Souza Centro de Excelência em Handebol da Universidade Estadual de Maringá/PR Os irmãos Souza em volta de seu patrono. Da esquerda para a direita: Nilson Filho, Vinícius e Rafael miolo-buriti4.indd 178miolo-buriti4.indd 178 10/02/2021 21:08:3410/02/2021 21:08:34 179 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Nilson (pai), Rafael, Daniela e Ângela (mãe) Eu e meu pai, durante sua batalha, em 2019 miolo-buriti4.indd 179miolo-buriti4.indd 179 10/02/2021 21:08:3410/02/2021 21:08:34 180 Rafa Souza Gabriel, Tiago (no colo) e Dani, quando fui campeão brasileiro de jiu-jitsu, faixa-azul, máster, 2014 Durante luta no Campeonato Brasileiro de jiu-jitsu, faixa marrom, 2018 (Crédito da foto: Camila Nobre) miolo-buriti4.indd 180miolo-buriti4.indd 180 10/02/2021 21:08:3510/02/2021 21:08:35 181 Em frente ao Buriti: Reflexões de um engenheiro de estruturas Apresentação d´A Inimitável Fábrica de Jipes no Sesc Vila Mariana, em São Paulo/SP, 2009 (Crédito da foto: Jorge Mariano) Apresentação no Circo do Amor para quase duas mil pessoas, em Maringá/PR, 2009 (Crédito da foto: Bulla Jr.) miolo-buriti4.indd 181miolo-buriti4.indd 181 10/02/2021 21:08:3510/02/2021 21:08:35 182 Rafa Souza Formação clássica d´A Inimitável Fábrica de Jipes com Ricardo Herrera, Igor Grande, Fernando Duran e Rafa Souza, 2011 (Crédito da foto: Rafael Silva) miolo-buriti4.indd 182miolo-buriti4.indd 182 10/02/2021 21:08:3510/02/2021 21:08:35 183 O Autor Rafael Alves de Souza é engenheiro civil formado pela Universidade Estadual de Maringá em 1999. Mestre em Engenharia de Estruturas pela Universidade Estadual de Campinas em 2001. Doutorado-Sanduíche pela Universidade do Porto, Portugal, em 2003. Doutor em Engenharia de Estruturas pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, em 2004. Pós-doutor pela University of Illinois at Urbana-Champaign, Estados Unidos, em 2006. Pós-doutor pela University of Massachusetts Amherst, Estados Unidos, em 2015. Em 2011, realizou estágios de curta duração em nível de pós-doutorado na École Politécnique Fédérale de Lausanne (Suíça) e na Technologic University of Delft (Holanda)”. Foi agraciado com a “Primeira Menção Honrosa para Teses de Doutorado em Estruturas” no ano de 2006 e recebeu o “Prêmio Fernando Luiz Lobo Barbosa Carneiro” em 2017, ambas pelo Instituto Brasileiro do Concreto. Autor de inúme- ros projetos estruturais e laudos periciais. Autor de diversos artigos científicos nacionais e internacionais, publicados tan- to em congressos quanto em periódicos indexados. É mem- bro do Instituto Brasileiro do Concreto desde 2002 e membro do American Concrete Institute desde 2006, participando miolo-buriti4.indd 183miolo-buriti4.indd 183 10/02/2021 21:08:3510/02/2021 21:08:35 184 Rafa Souza dos comitês 445 - Shear and Torsion e 447- Finite Element Analysis of Reinforced Concrete Structures. É Membro do Comitê CT301 da Associação Brasileira de Normas Técnicas, desde 2007, com objetivo deRevisão da NBR6118 (Projeto de Estruturas de Concreto - Procedimento). Membro da Associação Brasileira de Engenharia e Consultoria Estrutural (ABECE). Foi Pesquisador Nível 2 e Nível 1-D do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) entre 2009 a 2016. É professor titular da Universidade Estadual de Maringá, onde leciona disciplinas da área de Estruturas desde 2002 e Diretor da Engracon Engenharia e Arquitetura desde 2012. miolo-buriti4.indd 184miolo-buriti4.indd 184 10/02/2021 21:08:3510/02/2021 21:08:35 185 Posfácio Um amigo e fã me escreve um livro e me convida para fazer o posfácio. Fiquei muito honrado com a missão, que considerei fácil, e cabe até um trocadilho aí: “posfácil”. Engano meu! Conheço e admiro muito os trabalhos deste meu amigo e fã, o Rafael, e teria muito a dizer, po- rém as palavras pareciam faltar. Fora o fato de que escrevo poucos posfácios e só gosto de me arriscar no universo do cálculo estrutural ou Matemática. Então, talvez, essas linhas não sejam nem posfácio, nem cálculo ou matemática.... Mas é admirável sair do universo do cálculo, tão pre- ciso, quase previsível, e partir para o universo das palavras, tão imprecisas e quase imprevisíveis. Desejo que este livro represente o primeiro de uma série de vários, demonstrando às próximas gerações que, assim como é necessário estudar e trabalhar com afinco, po- de-se também, ao mesmo tempo, libertar o espírito, escre- vendo linhas fora do nosso cotidiano e trilhando caminhos diferentes nas mais diversas áreas, como literatura, música, pintura e até jardinagem. miolo-buriti4.indd 185miolo-buriti4.indd 185 10/02/2021 21:08:3510/02/2021 21:08:35 186 Rafa Souza Deixo um legado de livros que me ajudaram a trilhar estes citados caminhos, orientando quem porventura os queira seguir. Do mestre, com carinho, Vasco. Prof. Dr. Augusto Carlos de Vasconcelos Engenheiro estrutural, autor e coautor de 17 livros, com admirável contribuição para a engenharia nacional e internacional. miolo-buriti4.indd 186miolo-buriti4.indd 186 10/02/2021 21:08:3510/02/2021 21:08:35 miolo-buriti4.indd 187miolo-buriti4.indd 187 10/02/2021 21:08:3510/02/2021 21:08:35 Em frente ao Buriti — Reflexões de um engenheiro de estruturas foi produzido pela SGuerra Design para Rafa Souza em novembro de 2020 miolo-buriti4.indd 188miolo-buriti4.indd 188 10/02/2021 21:08:3510/02/2021 21:08:35