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Cariologia Conceitos e terminologia A definição mais recente da cárie dentária é baseada na perspectiva bioquímica e ecoepidemiológica da doença. De acordo com a Federação Dentária Internacional, a cárie é uma doença infecciosa crônica, biofilme-mediada e multifatorial que resulta da disbiose do biofilme dental na presença de carboidratos fermentáveis, levando à desmineralização progressiva e irreversível do tecido dentário mineralizado. A produção de ácidos pela metabolização de nutrientes pelas bactérias do biofilme, com a baixa do pH como consequência, é o fator responsável pela desmineralização do tecido dentário, podendo resultar na formação de uma lesão de cárie. Todavia, o processo de desmineralização é fisiológico, ocorrendo frequentemente na superfície dentária na presença de carboidratos fermentáveis. A atividade metabólica das bactérias presentes no biofilme decorrente da disponibilidade de nutrientes causa constante flutuação do pH, tendo a superfície dentária coberta por biofilme perdas e ganhos minerais. Frente a um aumento no consumo de carboidratos fermentáveis, especialmente na frequência, a produção de ácidos é intensificada, ocorrendo uma perda do balanço entre os eventos de desmineralização e remineralização. A lesão de cárie vai ocorrer quando o resultado cumulativo dos processos de des-remineralização levam à perda mineral. A perda mineral de um dente diante do processo carioso inicia-se desde níveis ultraestruturais até a destruição completa do dente. Quando em níveis subclínicos, ou seja, sem lesões visíveis clinicamente, um indivíduo não pode ser considerado como sendo portador da doença cárie, não necessitando de nenhum tipo de tratamento. Por ser uma doença multifatorial, várias características genéticas, ambientais e comportamentais interagem, podendo ser divididos em: Determinantes biológicos ou proximais: fatores que atuam no nível da superfície dentária. Determinantes distais: fatores que atuam no nível do indivíduo ou população. O controle da cárie, assim como de outras doenças crônicas como câncer, doenças cardiovasculares e diabetes, deve incluir estratégias múltiplas direcionadas aos determinantes em nível do indivíduo, da família e da população, envolvendo fatores de risco comuns à cárie e a outras doenças. Um exemplo é o consumo racional de açúcar, que engloba o controle tanto da doença cárie como da obesidade, ou diabetes. Prevalência A cárie dentária é um problema de saúde bucal comum em todo o mundo, não apenas no Brasil. De acordo com o Ministério da Saúde, a prevalência de cárie em 2010 em crianças de cinco a 12 anos era de cerca de 53%, variando de acordo com a região do país, nível socioeconômico da população e a qualidade dos serviços de saúde bucal oferecidos. Em crianças menores de cinco anos, também de acordo com o SB Brasil 2010, a prevalência era de 23%, representando quase uma a cada quatro crianças dessa faixa etária. De acordo com o SB Brasil 2020, a prevalência de cárie dentária em crianças de cinco a 12 anos caiu para 45%, com um decréscimo de 8% num período de 10 anos, indicando uma melhoria na saúde bucal das crianças, mas ainda afetando uma parcela significativa dessa população. Diferenças também são observadas entre áreas rurais e áreas urbanas, havendo a prevalência de 54% nas primeiras e de 43% nas segundas. Quanto à renda, crianças com renda per capita mais elevadas apresentam uma prevalência de cárie dentária de 37% enquanto crianças em níveis socioeconômicos inferiores apresentam a prevalência de 52%. Biofilme Dental O biofilme dental é o fator biológico indispensável para a formação da lesão de cárie, uma vez que essas somente ocorrem em áreas onde o biofilme está estagnado, comumente nas margens gengivais, superfícies proximais (abaixo do ponto de contato) e sistema de fóssulas e fissuras, sendo mais difícil a formação de lesões em áreas submetidas constantemente à autolimpeza decorrente da mastigação e dos movimentos de língua e bochecha. Embora a presença de biofilme seja um fator causal indispensável para o desenvolvimento da cárie, ele sozinho não é suficiente para que a lesão ocorra, sendo importante o tipo de nutriente (determinado pela dieta do indivíduo) a que as bactérias estão expostas, resultando em diferentes flutuações do pH que refletirão no processo de des-remineralização. O biofilme é um ecossistema microbiano aderido às superfícies dentárias formado por bactérias que mantêm uma estabilidade dinâmica com o dente. Diante da presença frequente de carboidratos fermentáveis e consequente maior produção de ácidos observa-se uma adaptação microbiana que leva à seleção de microrganismos cariogênicos, resultando no desequilíbrio do balanço dos processos de des-remineralização. Assim, há o predomínio de eventos de desmineralização com resultante perda mineral do dente. Uma vez que o ambiente acidúrico esteja estabelecido, o número de microrganismos acidogênicos aumenta, promovendo o desenvolvimento da lesão. Inicialmente, a lesão se apresenta clinicamente como uma mancha branca rugosa e opaca (lesão não cavitada ativa), podendo progredir até a quebra da camada superficial da lesão com formação de uma cavidade. A lesão com cavidade que ainda esteja sofrendo perda mineral, em processo de progressão, é denominada lesão cavitada ativa, podendo se limitar ao esmalte, que terá aparência rugosa e opaca, ou poderá evoluir para a dentina, que terá aspecto amolecido e úmido, geralmente de coloração amarelada. Os mesmos processos de des-remineralização que ocorrem na interface biofilme-esmalte/dentina também podem ocorrer na raiz, na interface biofilme- cemento/dentina radicular, sendo necessário que a raiz esteja exposta ao ambiente bucal. Lesões estabelecidas em estruturas dentárias hígidas são denominadas “lesões de cárie primárias”, enquanto que lesões desenvolvidas em superfícies adjacentes a restaurações prévias são denominadas “lesões de cárie secundárias”, tendo ambas a mesma etiologia. Sendo alcançado um adequado controle do biofilme, assim como a modificação dos hábitos alimentares (consumo moderado de carboidratos) e consequente equilíbrio entre os processos de des- remineralização, a perda mineral será controlada. Assim, a progressão das lesões de cárie é paralisada e suas características clínicas assumem características clínicas de inatividade. As lesões de esmalte inativas apresentam aspecto liso e brilhante, de coloração escura ou branca; lesões cavitadas inativas em dentina coronária têm aspecto endurecido e, frequentemente, escurecido. Toda lesão de cárie, independentemente do seu grau de progressão ou tecido dentário envolvido é passível de paralisação, desde que se restabeleça o equilíbrio entre os processos de des-remineralização. Classificação da lesão de cárie Quanto à localização Lesão de cárie coronária Lesão de cárie radicular Quanto ao sítio anatômico Lesão de superfície lise Lesão de fóssulas e fissuras Quanto à presença de cavidade Lesão de cárie não cavitada Lesão de cárie cavitada Quanto ao tecido envolvido Lesão de cárie em esmalte Lesão de cárie em dentina Lesão de cárie em cemento Quanto à atividade Lesão de cárie ativa Lesão de cárie inativa Quanto à presença ou não de restauração prévia na superfície dentária Lesão de cárie primária Lesão de cárie secundária Interações químicas entre o dente e os fluidos bucais As transformações que os dentes sofrem quando expostos à cavidade bucal estão relacionadas à composição química dos tecidos mineralizados que compõem a sua estrutura (esmalte, dentina, cemento). O principal componente inorgânico desses tecidos, a hidroxiapatita, garante a possibilidade de trocas iônicas com os fluidos bucais, determinando se o dente terá ganho ou perda mineral, assim como se o equilíbrio será mantido, sem alterações importantesna concentração mineral. A composição dos tecidos dentais é única em relação aos demais tecidos mineralizados do corpo. O esmalte, sendo o tecido mais mineralizado do corpo humano, apresenta 95% da sua composição de minerais, estruturados em cristais de hidroxiapatita. Na dentina e no cemento os cristais de hidroxiapatita estão entremeados por uma rede de fibras de colágeno tipo I, modificando as propriedades desses tecidos e como eles resistem aos desafios para a dissolução mineral. A hidroxiapatita é um mineral composto por cálcio, fosfato e hidroxila (Ca10(PO4)6(OH)2) enquanto que a fluorapatita, de forma similar, tem os íons hidroxila substituídos por íons flúor (Ca10(PO4)6F2). Uma vez que o íon flúor é menor que o íon hidroxila, a estrutura mineral da fluorapatita apresenta um melhor arranjo dos íons, caracterizando menor solubilidade em relação à hidroxiapatita. O carbonato (CO32-) pode ocupar o lugar do fosfato ou da hidroxila na estrutura química da hidroxiapatita, desestabilizando o mineral e tornando-o mais solúvel. A hidroxiapatita carbonatada está presente em maior concentração nos dentes decíduos em relação aos permanentes, assim como na dentina radicular em relação à dentina coronária, explicando a maior velocidade de progressão da cárie nos primeiros do que nos segundos. Esmalte e Dentina O esmalte é o primeiro tecido a interagir com a cavidade bucal após a erupção dos dentes, já que é ele quem recobre a coroa do dente. Sua composição mineral (cerca de 95%) o leva a se comportar como um material que responde às alterações dos fluidos bucais que aumentam ou diminuem a solubilidade da hidroxiapatita. A dentina apenas entra em contato com a cavidade bucal em situações de exposição radicular (quando o cemento se desgasta pelo atrito da escovação), ou nas lesões de cárie cavitadas em dentina. A exposição da dentina representa a interação de um tecido mais solúvel com os fluidos bucais. Ela possui cristais de hidroxiapatita menores e com estrutura menos perfeita que os cristais do esmalte, que são formados a partir de um arranjo guiado pela matriz proteica do esmalte. Na dentina, os cristais são formados em meio a uma matriz colágena, com maior conteúdo de carbonato, explicando sua maior solubilidade. A maior solubilidade da dentina é de relevância clínica, já que o pH crítico para solubilizar o esmalte é de 5,5, enquanto que o valor crítico para a dentina é de 6,2-6,3. Uma vez dissolvido o mineral da dentina, sua rede de fibras colágenas fica exposta, sendo degradada por colagenases presentes no biofilme bacteriano ou mesmo por enzimas latentes na dentina, que são ativadas em pH baixo. Em uma lesão de cárie em dentina, tanto o processo de dissolução mineral quanto o de degradação proteica ocorrem concomitantemente. A capacidade da saliva de manter um estado supersaturado em relação à hidroxiapatita sem que ocorra a precipitação dos minerais está relacionada à presença de proteínas que mantêm esses íons estabilizados, diminuindo seu potencial de precipitação. O biofilme também se encontra supersaturado em relação à hidroxiapatita quando comparado ao tecido dentário, mesmo em estágios de repouso ou jejum, sendo supersaturado também em relação à saliva, uma vez que está em íntimo contato com a superfície do dente. Quando há exposição do biofilme a açúcares fermentáveis, os microrganismos ali presentes fermentam produzindo ácidos, baixando o pH do biofilme, que se torna brevemente subsaturado e, como consequência, leva à dissolução dos minerais presentes na superfície dentária. Dissolução do mineral da estrutura dental em baixo pH A relação de equilíbrio entre os minerais da estrutura dental com o meio bucal é resultado da relação entre os íons da hidroxiapatita (Ca++, PO43-, OH-) e os cristais presentes no dente. A equação que descreve este equilíbrio é: [𝐶𝑎!"(𝑃𝑂#)$(𝑂𝐻)%]& ←→ 10𝐶𝑎'' + 6𝑃𝑂#() + 2𝑂𝐻) mineral sólido íons em solução O equilíbrio descrito na equação acima será sempre mantido, de modo que o excesso de íons na solução causará em precipitação de minerais sólidos (remineralização), enquanto que a redução desses íons causará a dissolução do sólido (desmineralização). Essa dinâmica é explicada pelo “Princípio de Le Chatelier”: Qualquer sistema em um equilíbrio químico estável, sujeito à influência de uma causa externa que tende a alterar sua temperatura ou sua condensação (pressão, concentração, número de moléculas por unidade de volume), tanto num todo como em suas partes, só pode se modificar internamente se sofrer mudança de temperatura ou condensação de sinal oposto àquele resultante da causa externa. Este princípio pode ser simplificado da seguinte maneira: Se um estresse é aplicado a um sistema em equilíbrio, a condição de equilíbrio é perturbada; uma reação ocorre na direção que tenta aliviar o estresse, e um novo equilíbrio é obtido. O estresse descrito na definição se refere à perturbação do equilíbrio, sendo que sempre haverá a tendência de dissolução ou precipitação de minerais quando o meio estiver sub ou supersaturado em relação a eles. O principal estresse que ocorre na cavidade bucal e perturba o equilíbrio entre o mineral e os fluidos bucais é a queda do pH, cujo efeito na solubilidade da hidroxiapatita está descrito abaixo: [𝐶𝑎!"(𝑃𝑂#)$(𝑂𝐻)%]& ←→ 10𝐶𝑎'' + 6𝑃𝑂#() + 2𝑂𝐻) ↓ 𝐻' ↓ 𝐻' 𝐻𝑃𝑂#%) 𝐻%𝑂 ↓ 𝐻' 𝐻%𝑃𝑂#) ↓ 𝐻' 𝐻(𝑃𝑂#) A solubilidade da hidroxiapatita é influenciada por oscilações de pH por possuir íons que reagem com prótons (H+). Assim, quando há queda de pH, a concentração de PO43-, íon responsável pelo fator de solubilidade da hidroxiapatita, diminui, se transformando em formas menos dissociadas de fosfato (HPO42-, H2PO4-...). Essa subsaturação momentânea de fosfato fará com que mais hidroxiapatita da estrutura dentária se dissolva para manter o equilíbrio. Considerando a solubilidade do mineral dental em meio ácido, alterações acontecerão em virtude da dieta, com a estrutura mineral gradativamente se solubilizando para o meio, levando ao aparecimento de lesões de cárie. As lesões de cárie no esmalte se iniciam pela desmineralização dos cristais de hidroxiapatita localizados na superfície do esmalte, resultando clinicamente em aspecto poroso e com perda de brilho. No caso da dentina não há a formação de lesão branca já que, por conta da presença de colágeno, há o amolecimento superficial de sua estrutura, com consistência semelhante à do couro. As lesões também podem sofrer remineralização. No caso do esmalte, há uma área superficial porosa, que permite a entrada de ácido e a saída de minerais da região subsuperficial. Esses poros resultam clinicamente no aspecto rugoso da lesão de mancha branca ativa, mas uma vez que o processo carioso seja controlado, ocorrerá tanto a remineralização da camada superficial (pela ação da saliva) e a abrasão pela escovação, resultando em um aspecto endurecido e brilhoso. O processo de remineralização da dentina resulta no endurecimento da lesão ativa podendo, muitas vezes, ser acompanhado pela pigmentação da lesão pela ação de pigmentos oriundos da alimentação. MALTZ, Marisa et al. Cariologia: Conceitos Básicos, Diagnóstico e Tratamento Não Restaurador: Série Abeno: Odontologia Essencial-Parte Clínica. Artes Medicas, 2016.