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DA PRIVACIDADE A PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS CDU-342.721 Diretora de Conteúdo e Operações Editoriais JULIANA MAYUMI ONO Gerente de Conteúdo MILISA CRISTINE ROMERA Editorial: Aline Marchesi da Silva, Diego Garcia Mendonça, Karolina de Albuquerque Araújo e Quenia Becker Gerente de Conteúdo Tax: Vanessa Miranda de M. Pereira Direitos Autorais: Viviane M. C. Carmezim Assistente de Conteúdo Editorial: Juliana Menezes Drumond Analista de Projetos: Camilla Dantara Ventura Estagiárias: Bárbara Baraldi Sabino e Stefanie Lopes Pereira Produção Editorial Coordenação ANDRÉIA R. SCHNEIDER NUNES CARVALHAES Especialistas Editoriais: Gabriele Lais Sant’Anna dos Santos e Maria Angélica Leite Analista de Projetos: Larissa Gonçalves de Moura Analistas de Operações Editoriais: Caroline Vieira, Damares Regina Felício, Danielle Castro de Morais, Mariana Plastino Andrade, Mayara Macioni Pinto e Patrícia Melhado Navarra Analistas de Qualidade Editorial: Ana Paula Cavalcanti, Fernanda Lessa, Rafael Ribeiro e Thaís Pereira Estagiárias: Beatriz Fialho, Tainá Luz Carvalho e Victória Menezes Pereira Capa: Daniele Doneda Controle de Qualidade da Diagramação: Carla Lemos Equipe de Conteúdo Digital Coordenação MARCELLO ANTONIO MASTROROSA PEDRO Analistas: Jonatan Souza, Luciano Guimarães, Maria Cristina Lopes Araujo e Rodrigo Araujo Gerente de Operações e Produção Gráfica MAURICIO ALVES MONTE Analistas de Produção Gráfica: Aline Ferrarezi Regis e Jéssica Maria Ferreira Bueno Estagiária de Produção Gráfica: Ana Paula Evangelista Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Doneda, Danilo Cesar Maganhoto Da privacidade à proteção de dados pessoais [livro eletrônico] : elementos da formação da Lei Geral de Proteção de Dados / Danilo Cesar Maganhoto Doneda. -- 2. ed. -- São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2020. Bibliografia. ISBN 978-65-5065-030-8 1. Direito à privacidade 2. Privacidade 3. Proteção de dados pessoais I. Título. 20-34639 Índices para catálogo sistemático: 1. Privacidade : Proteção de dados pessoais : Direito 342.721 Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427 DA PRIVACIDADE À PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS FUNDAMENTOS DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS DANILO DONEDA 2a edição revista e atualizada © desta edição [2020] THOMSON REUTERS BRASIL CONTEÚDO E TECNOLOGIA LTDA. JULIANA MAYUMI ONO Diretora Responsável Diagramação eletrônica: Linotec Fotocomposição e Fotolito Ltda., CNPJ 60.442.175/0001-80 Rua do Bosque, 820 – Barra Funda Tel. 11 3613-8400 – Fax 11 3613-8450 CEP 01136-000 – São Paulo, SP, Brasil TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais). O autor goza da mais ampla liberdade de opinião e de crítica, cabendo-lhe a responsabilidade das ideias e dos conceitos emitidos em seu trabalho. CENTRAL DE RELACIONAMENTO THOMSON REUTERS SELO REVISTA DOS TRIBUNAIS (atendimento, em dias úteis, das 09h às 18h) Tel. 0800-702-2433 e-mail de atendimento ao consumidor: sacrt@thomsonreuters.com e-mail para submissão dos originais: aval.livro@thomsonreuters.com Conheça mais sobre Thomson Reuters: www.thomsonreuters.com.br Acesse o nosso eComm www.livrariart.com.br http://www.thomsonreuters.com.br http://www.livrariart.com.br Profissional Fechamento desta edição [07.10.2019] ISBN 978-65-5065-030-8 Dedicado à memória de Stefano Rodotà e Giovanni Buttarelli Todo homem tem a possibilidade de diferenciar-se dos outros segundo sua própria lei intrínseca, que é a própria liberdade e, portanto, de ser estimado em modo correspondente à sua diferenciação. NORBERTO BOBBIO (1909-2004) PREFÁCIO A DANILO DONEDA 2a edição da obra Da privacidade à Proteção de Dados Pessoais, 2019 O Prof. Danilo Doneda é autor conhecido e reconhecido pelos leitores, tendo sido acolhida com enorme êxito a primeira edição desta obra, cujo prefácio tive a honra de redigir. De lá para cá, o tema se mantém na ordem do dia e se renova, especialmente à luz das recentes leis que tratam da proteção de dados pessoais. Esta segunda edição, portanto, não poderia ser mais oportuna, de modo a problematizar numerosas questões agora debatidas em contexto diverso, sobretudo com a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais no Brasil (Lei n. 13.709/18 – LGPD). De fato, mais de uma década após o merecido destaque de seu pioneiro estudo, debruça-se agora o autor nos temas introduzidos pela intensificação da circulação de dados, à luz dos novos contornos assumidos pela privacidade. Instiga-se o leitor a repensar a centralidade da pessoa na sociedade da informação, com enfoque no direito à privacidade, promovendo-se estudo denso sobre a base normativa hoje existente em termos de proteção de dados pessoais. Há, portanto, de ser celebrada a segunda edição da obra Da privacidade à Proteção de Dados Pessoais. Atualíssimo, o trabalho reflete o aprofundamento de longa pesquisa do autor em torno do caminho percorrido pela privacidade, examinando no primeiro capítulo todo o itinerário de sua construção, até a consolidação de perfil compatível com os dias atuais e atento à necessidade de pleno exercício da autodeterminação existencial e informacional da pessoa humana. Alude o autor ao cenário de proteção de dados na perspectiva não apenas de suas consequências individuais, mas sobretudo de suas implicações sociais complexas, cujo reconhecimento requer a busca pela harmonização dos vários interesses sobrepostos. Em tal perspectiva, a obra ganha contornos contemporâneos, também em sua segunda parte, que verifica a estreita relação entre a informação pessoal e os valores protegidos pela privacidade, introduzindo instrumentos pelos quais se dá a tutela dos dados pessoais. Tomando-se por referência outros sistemas jurídicos, em especial os modelos norte-americano e europeu, bem como diplomas de direito internacional, Danilo Doneda propõe, no terceiro capítulo, tratamento minucioso acerca dos principais diplomas normativos que repercutem na proteção de dados. Empenha-se na tarefa de incrementar o repertório de instrumentos regulatórios, analisando com acuidade importantes diplomas, como o recente Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), em vigor para todos os membros da União Europeia em 2018, bem como seus principais impactos nos diversos sistemas. O regulamento europeu funciona como modelo de referência que países como o Brasil deverão levar em conta tanto na interpretação e aplicação de suas leis nacionais quanto na própria elaboração de legislação acerca da temática, em cotejo com o almejado fluxo de informações e convergências derivadas de diplomas em nível internacional. Ainda, no que concerne à circulação internacional de dados pessoais, aborda o autor, além dos acordos safe harbour, agora também os privacy shield, novo marco regulatório para intercâmbio de dados pessoais entre países da União Europeia e os Estados Unidos. Merece destaque a preocupação do autor em atualizar também o estudo dos elementos à disposição para a proteção de dados pessoais, especialmente no sistema jurídico brasileiro e a pluralidade de fontes normativas incidentes nesta seara, associando-os à lógica dos direitos fundamentais. Nesse momento, à luz da temática do consentimento para o tratamento de dados e da conveniência da implantação de órgão de garantia para a proteção de dados, traz à tona os principais problemas surgidos no ordenamento brasileiropor conta da recente Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD. Daqui a importância da presente obra que, em boa hora, retorna à editoria jurídica como objeto de consulta obrigatória para estudiosos do Direito Civil. GUSTAVO TEPEDINO PREFÁCIO À 1a EDIÇÃO A tutela da privacidade destinava-se, tradicionalmente, à proteção contra intromissões indesejadas na esfera pessoal. Todavia, o progresso tecnológico e a intensificação do fluxo e do processamento de informações alteraram quantitativa e qualitativamente a noção de intromissões indesejadas na vida privada. Quantitativamente, cresceu assustadoramente o volume de informações em mãos de sujeitos públicos e privados. Do ponto de vista quantitativo, os dados disponíveis tornaram-se bem jurídico valiosíssimo, por vezes utilizados inescrupulosamente, contendo informações que permitem aos seus detentores conhecerem e traçarem perfis sobre hábitos de consumo, saúde, características genéticas e comportamentais de grande parte da população. O tratamento de informações pessoais, portanto, transforma-se em atividade que possibilita o acesso à esfera privada. O recôndito mundo privado, antes garantido pelo chamado direito à privacidade, passou assim a demandar modelos jurídicos específicos para sua proteção – para a qual não bastam as ações individuais ressarcitórias, associadas à noção de privacidade como isolamento e reserva, na perspectiva tornada clássica por Warren e Brandeis no inicio do século XX. Torna-se imperioso, no mundo globalizado, impedir que os dados pessoais sejam tratados como simples ativo empresarial, controlando-se as finalidades de sua utilização e especialmente suas transferências – usualmente ditadas por opções do mercado –, de modo a se evitarem abusos e interferências nos mais variados campos de atuação da vida privada. Tal é o pano de fundo no qual se insere a atualíssima problemática trazida a lume, pela primeira vez no mercado editorial brasileiro, pelo Prof. Danilo Doneda na obra ora apresentada ao público. O livro passa em revista o estado atual de desenvolvimento da matéria na experiência estrangeira, demonstrando a inadequação dos instrumentos disponíveis no Brasil para o controle pelos cidadãos das próprias informações. A partir dai, o autor propõe critérios e indicações a serem utilizados para a implementação de instrumentos de efetiva proteção da pessoa e de sua privacidade, por meio do respeito aos seus dados pessoais. Danilo Doneda é Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Mestre e Doutor em direito civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foi Pesquisador visitante na Università degli Studi di Camerino, na Itália, sob orientação do Prof. Vito Rizzo, e na Autorità Garante per la Protezione dei Dati Personali, em Roma, sob orientação do Prof. Stefano Rodotà. Este trabalho é a expressão atualizada da tese de doutoramento apresentada pelo autor no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, tendo recebido nota 10 com distinção e louvor, perante banca examinadora composta pelos ilustres professores Luiz Edson Fachin, Luis Gustavo Grandinetti de Carvalho, Maria Celina Bodin de Moraes, Régis Fichtner Pereira e por mim, que tive o privilégio de ter sido seu orientador. Com tais predicados, consegue Danilo Doneda ousar e inovar com impecáveis densidade científica e coerência metodológica. O livro revela-se, por tudo isso, utilíssima fonte de consulta e reflexão quanto ao delineamento dinâmico e mutante em que se situa a privacidade na realidade hodierna, projetando suas conclusões para a ampla agenda dos mecanismos jurídicos a serem urgentemente implantados na realidade brasileira, com vistas à tutela da pessoa humana na sociedade tecnológica. Petrópolis, novembro de 2005 PROF. GUSTAVO TEPEDINO APRESENTAÇÃO A publicação de um novo livro sobre proteção de dados nos dá a oportunidade de parar e refletir sobre a própria ideia de privacidade e sobre como ela se desenvolveu como parte de uma ampla luta pela liberdade e pela democracia. De fato, sem privacidade não haveria um espaço no qual o indivíduo estivesse livre para pensar, desenvolver as suas próprias ideias, experimentar e seguir o seu próprio caminho de vida como lhe aprouver e parecer adequado. Como o autor checo Milan Kundera eloquentemente percebeu, “público e privado são dois mundos essencialmente diferentes e o respeito pela diferença é a condição indispensável, sine qua non, para que um homem viva livre”. Várias décadas se passaram desde que estas palavras foram escritas, porém elas nunca foram mais verdadeiras do que o são hoje, em nosso mundo digital. Ao passo que, no passado, as lutas para estabelecer os direitos e liberdades que hoje cultivamos tiveram lugar “na vida real” – para usar o jargão da Internet –, hoje e, mais ainda, amanhã, esta luta está provavelmente sendo travada online. Recentes vazamentos de dados de enormes dimensões e escândalos sobre compartilhamento de dados, como as revelações do caso Facebook – Cambridge Analytica, deixam claro o quanto está em jogo também do ponto de vista coletivo, para a sociedade como um todo, inclusive para a garantia de uma democracia saudável e para a integridade do processo eleitoral. Estes e outros desdobramentos nos lembram o motivo de ser tão importante proteger os dados pessoais como um direito central do cidadão e como um imperativo democrático, porém também como uma necessidade econômica: sem a confiança dos consumidores na forma com que seus dados são tratados, não há como existir desenvolvimento sustentável da nossa economia cada vez mais orientada para a informação. Estas são, precisamente, as razões pelas quais o Brasil e a União Europeia introduziram, quase que simultaneamente, as reformas legislativas às quais o livro do Professor Doneda é dedicado: justamente no sentido de adaptar os seus marcos normativos de proteção de dados para os desafios e oportuni dades da era digital. Em 25 de maio de 2018, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) entrou em vigor na União Europeia, enquanto que, poucos meses depois, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) foi aprovada por unanimidade no Congresso Nacional no Brasil. O que poderia ser encarado meramente como uma coincidência temporal, de fato, simboliza bem mais do que isso. Como este livro explica muito bem, ambas as reformas são baseadas em valores e objetivos comuns e compartilhados. Isto se reflete na arquitetura dos novos regimes de proteção de dados da União Europeia e do Brasil, ambos claramente alicerçados em uma legislação horizontal e ampla, em um núcleo de salvaguardas e direitos individuais, bem como na supervisão por uma autoridade administrativa independente. Em um momento no qual o Mercosul e a União Europeia acabam de concluir o maior acordo comercial bilateral jamais negociado, a crescente convergência entre seus respectivos sistemas de proteção da privacidade também oferece novas oportunidades para facilitar ainda mais as trocas comerciais e outras formas de cooperação que envolvam a transferência de dados, inclusive por meio do assim chamado reconhecimento da adequação. Construir pontes entre dois sistemas de proteção de dados inclui também que cada um deles aprenda com o outro. No contexto da implementação de suas reformas legislativas, Brasil e União Europeia podem se beneficiar enormemente da troca de melhores práticas e experiências entre seus reguladores, stakeholders e acadêmicos. Este diálogo é essencial para que se compreendam as soluções legais e tecnológicas a serem aplicadas e para que se abordem os novos desafios para a privacidade, que são cada vez mais globais em sua natureza e âmbito. Este livro, inegavelmente, proporciona uma contribuição muito significativa para o desenvolvimento de um diálogo como este. Contando com seu profundo conhecimento dos sistemas de proteção de dados brasileiro, europeu e de outros países, ninguém é mais qualificado do que Danilo Doneda para guiar os leitores brasileiros neste novo panoramada proteção de dados. Esta é uma jornada fascinante, que vai e vem através do Atlântico. Desejo a este livro toda a atenção e sucesso que merece. Boa leitura! BRUNO GENCARELLI Chefe da Unidade de Fluxo e Proteção Internacional de Dados da Comissão Europeia. NOTA À 2a EDIÇÃO DE “DA PRIVACIDADE À PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS” A 2a edição de “Da privacidade à proteção de dados pessoais” surge a 13 anos da primeira. Neste arco de tempo, a disciplina da proteção de dados pessoais se consolidou como um tema de incontestável protagonismo, não somente no atual debate jurídico brasileiro, com a promulgação em 2018 da Lei Geral de Proteção de Dados, mas também com a intensificação do debate sobre as consequências sociais, políticas e econômicas do tratamento de dados pessoais. Esta nova edição procura manter o conteúdo da primeira sem maiores sobressaltos. Tendo sido obra pioneira na literatura jurídica brasileira, a manutenção do seu caráter original se justifica tanto pelo seu papel na consolidação da temática no país como pelo fato dela se propor, antes de mais nada, como um estudo sobre os fundamentos e desenvolvimento dos marcos normativos de proteção de dados, descrevendo os institutos e ferramentas dos quais lançam mão os marcos regulatórios e políticas públicas na matéria. Mesmo mantendo seu formato original, a obra sofreu inúmeras alterações, dado o intenso desenvolvimento da disciplina. Assim, referências foram atualizadas, bem como desdobramentos ulteriores da disciplina foram mencionados e, em certos trechos em que se fez necessário, tratados com maior detalhe. Para a maturação do texto desta segunda edição foi fundamental a contribuição, em conversas, escritos e muito mais, de um sem-número de pessoas. Destas, agradeço especialmente a Laura Schertel Mendes, Rebeca Garcia, Virgílio Almeida, Yasodara Córdova, Bruno Gencarelli, Miriam Wimmer, André Sabóia Martins, Deputados Orlando Silva, Bruna Furlan e Marcos Pereira, Rafael Zanatta, Bruno Bioni, Juliana Pereira da Silva, Amaury Oliva, Celso Soares, Sophia Martini Vial, Vitor Moraes de Andrade, Demi Getschko, Hartmut Glaser, Flávio Lenz, Isabella Henriques, Pedro Hartung, Maurício Barreto, Fabrício Mota, Bia Barbosa, Marília Monteiro, Bruno Magrani, Carlos Affonso da Silva e Diego Machado. DANILO DONEDA SUMÁRIO INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 PESSOA E PRIVACIDADE NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO 1.1. Um panorama do direito à privacidade 1.2. Progresso, tecnologia e direito 1. Tecnologia e sociedade 2. A noção de progresso e suas implicações 3. O direito frente à tecnologia 1.3. A pessoa e os direitos da personalidade 1. Direito e personalidade 2. Pessoa e ordenamento jurídico 1.4. A caminho da privacidade 1. Terminologia 2. Surgimento 3. Raízes do perfil atual 4. A privacidade e a definição de uma esfera privada CAPÍTULO 2 PRIVACIDADE E INFORMAÇÃO 2.1. Informação e dados pessoais 1. Conceito 2. Classificação 3. Bancos de dados e os dados sensíveis 4. A informação como bem jurídico 5. Informação, informática e direito 6. Formas de tratamento de dados pessoais 2.2. Para além da privacidade 1. O caso do National Data Center, o caso SAFARI e seus desdobramentos 2. A sentença sobre o censo alemão e o direito à autodeterminação informativa 2.3. A proteção de dados pessoais 1. A proteção de dados pessoais 2. Gerações de leis de proteção de dados pessoais 3. Princípios para a proteção de dados pessoais CAPÍTULO 3 A BASE NORMATIVA DA PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS 3.1. O modelo europeu de proteção de dados pessoais e a experiência italiana 1. Dois modelos distintos 2. Antecedentes e formação do modelo europeu 3. Elementos do modelo europeu: a Diretiva 95/46/CE e o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) 4. A formação do direito à privacidade no ordenamento italiano 5. A proteção dos dados pessoais no ordenamento italiano 3.2. A proteção de dados pessoais no ordenamento norte-americano 1. The right to privacy 2. A formação do right to privacy 3. O right to privacy constitucional 4. O right to privacy na tort law 5. Statute Law 6. Elementos de proteção de dados pessoais 3.3. Circulação internacional de dados pessoais 1. A dimensão internacional da proteção de dados pessoais 2. A transferência de dados ao exterior no modelo europeu 3. A via de adequação e a via contratual 4. Os acordos Safe Harbour e Privacy Shield CAPÍTULO 4 ELEMENTOS PARA A PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS NO DIREITO BRASILEIRO 4.1. A evolução da proteção de dados pessoais no direito brasileiro 1. Proteção de dados pessoais no ordenamento brasileiro e os direitos 2. As disposições do Código de Defesa do Consumidor 3. Habeas data 4. A influência do habeas data na América Latina 4.2. A tutela dos dados pessoais e o papel do consentimento 1. Formas de tutela 2. O consentimento na disciplina de proteção dos dados pessoais 3. O “mito do consentimento” e o “paradoxo da privacidade” 4. A natureza jurídica do consentimento 5. A revogabilidade do consentimento 6. A funcionalização do consentimento 4.3. O papel das autoridades independentes na proteção de dados pessoais 1. Autoridades independentes 2. Regulation e deregulation 3. Independência e legitimidade das autoridades independentes 4. Autoridades de garantia e direitos fundamentais 5. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados Conclusões BIBLIOGRAFIA Introdução O palheiro não esconde mais a agulha. John Nockleby A tutela da privacidade como o “direito a ser deixado só”, associada ao isolamento, à reclusão, não permite mais determinar parâmetros para avaliar o que ela representa em um mundo no qual o fluxo de informações aumenta incessantemente, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da tecnologia aumenta as oportunidades de realizarmos escolhas que podem influir diretamente em nossa esfera privada. As demandas que agora moldam o perfil da privacidade são de outra ordem, relacionadas à informação pessoal e condicionadas pela tecnologia. A exposição indesejada de uma pessoa aos olhos alheios se dá hoje com maior frequência através da divulgação de seus dados pessoais do que pela intrusão em sua habitação, pela divulgação de notícias a seu respeito na imprensa, pela violação de sua correspondência – enfim, pelos meios outrora “clássicos” de violação da privacidade. Ao mesmo tempo, somos cada vez mais identificados a partir dos nossos dados pessoais, fornecidos por nós mesmos a empresas e a entidades públicas com as quais mantemos relações; ou então coletados por meios diversos. Estes dados pessoais são indicativos de aspectos de nossa personalidade, portanto merecem proteção do direito enquanto tais. E, para esta proteção, pode bastar que se conceba a privacidade como uma liberdade negativa, que reconheça e tutele a pessoa contra abusos na obtenção e tratamento destes dados. A esta problemática dita “clássica” da privacidade podemos acrescentar, atualmente, um outro elemento: o fato de que somos, perante diversas instâncias, representados – e também avaliados – a partir destes dados. Isto abre uma outra possibilidade de abordar a questão, pela qual a privacidade acaba por ressoar uma série de outras questões referentes à nossa personalidade. Assim, certas formas de tratamento de nossos dados pessoais podem implicar na perda da nossa autonomia, da nossa individualidade e, ainda, da nossa liberdade. Nossos dados, estruturados de forma a significarem uma representação virtual – um avatar – de nós mesmos, são cada vez mais o principal fator levado em conta na avaliação de uma concessão de crédito, na aprovação de um plano de saúde, na obtenção de um emprego, na passagem pela migração em um país estrangeiro, entre tantos outros casos. A utilização de dados pessoais não é, em si, um problema. Na verdade, ela torna possíveis várias atividades, desde o planejamento administrativo até a ação humanitária, passando pela pesquisa de mercado e por mais um número infindável de áreas. Ocorre que a atividade do tratamento de dados pessoais requer instrumentos que a harmonizecom os parâmetros de proteção da pessoa humana presentes nos direitos fundamentais e funcionalizados por instrumentos regulatórios que possibilitem aos cidadãos um efetivo controle em relação aos seus dados pessoais, garantindo o acesso, a veracidade, a segurança, o conhecimento da finalidade para a qual serão utilizados, entre tantas outras garantias que se fazem cada vez mais necessárias. Faz-se necessário que o ordenamento jurídico estabeleça critérios proporcionais de tutela da pessoa nesta área, que é muito fortemente ligada ao desenvolvimento da tecnologia e que não raro, por esta dinâmica, se sobrepõe às diversas tentativas de regulação. E, ainda, o tratamento de dados pessoais possui implicações complexas a ponto de não poderem ser abordadas a partir somente de um estrito controle individual dos próprios dados – a intensidade do fluxo de dados pessoais, a dificuldade em se saber efetivamente quem os detém e como são utilizados e mesmo quais os reais efeitos do seu tratamento tornam a tarefa daquele que pretende ter efetivo controle sobre os próprios dados pessoais, no mínimo, ingrata. Neste quadro, percebemos que o direito à proteção de dados pessoais, em princípio fortemente vinculado ao direito à privacidade, hoje se sofisticou e assumiu características próprias. Na proteção de dados pessoais não é somente a privacidade que se pretende tutelar, porém busca-se a efetiva tutela da pessoa em vista de variadas formas de controle e contra a discriminação, com o fim de garantir a integridade de aspectos fundamentais de sua própria liberdade pessoal. E, ainda, não é mais somente o indivíduo a ser o único afetado – um antigo paradigma do direito à privacidade –, porém inteiras classes e grupos sociais. O problema da proteção de dados, mais do que uma questão individual, possui implicações sociais profundas, que vão desde questões atinentes ao gozo de direitos por coletividades até a viabilidade de modelos de negócio que podem ser intrinsecamente contraditórios com o efetivo controle dos próprios dados pessoais, e mesmo o balanço de poderes no sistema democrático. Ao mesmo tempo, outros interesses dignos de tutela e também ligados à informação se fazem sentir, paralelamente ou mesmo em oposição à proteção de dados pessoais. Ao estabelecer uma tutela para os dados pessoais, situações relacionadas à liberdade de informação e à liberdade de expressão muitas vezes devem também ser levadas em consideração. E há também diversas outras atividades em relação às quais a proteção de dados pessoais tem reflexos, como a segurança pública, ou com o fluxo de informações que acompanha o comércio. Esta obra, elaborada a partir de tese de doutoramento no curso de Doutorado em Direito Civil defendida na Faculdade de Direito da UERJ em 2004, sob orientação do professor Gustavo Tepedino e avaliada por banca composta pelos professores Maria Celina Bodin de Moraes, Régis Fichtner, Luiz Edson Fachin e Luiz Gustavo Grandinetti de Carvalho, foi submetida a processos de adaptação e atualização, procurando traçar a “trajetória” que levou o direito à privacidade a metamorfosear-se na proteção de dados pessoais, verificando a presença de seus pressupostos no ordenamento jurídico brasileiro e nos de outros países. Este trabalho está estruturado em quatro partes. A primeira procura estabelecer o sentido e o alcance do conceito de privacidade, desde suas manifestações originárias até o seu desenvolvimento, bem como estabelecer as bases teóricas e metodológicas para abordá-lo. Para isto, são tratadas questões relacionadas ao desenvolvimento tecnológico e à própria ideia de progresso e suas implicações para a sociedade e para o direito; em seguida, são verificadas as bases da proteção da pessoa pelo ordenamento jurídico, ressaltando a sua posição como valor maior e unitário no ordenamento. Finalmente, trata-se da privacidade, do seu conteúdo e formação histórica até as suas manifestações no ordenamento jurídico. No segundo capítulo desenvolve-se o problema da informação e suas implicações em termos de direitos fundamentais; verificando o crescimento da sua importância, a estreita relação entre a informação pessoal e os valores protegidos pela privacidade, e também os instrumentos pelos quais se implementa a tutela de dados pessoais. O terceiro capítulo fornece uma visão sobre os modelos de proteção de dados pessoais mais influentes, representados pelo modelo europeu – com atenção particular ao italiano – e o modelo norte-americano, para então considerar as implicações da transferência internacional de dados. No quarto capítulo são examinadas as disposições do direito brasileiro sobre proteção de dados e seu enquadramento em um panorama de proteção à pessoa de acordo com suas necessidades na sociedade moderna. Serão examinadas, especificamente: (i) a disciplina do consentimento para o tratamento de dados pessoais; (ii) a possibilidade e conveniência da implantação de um órgão de garantia para a proteção de dados pessoais. Este capítulo foi atualizado para incluir igualmente as novas disposições do ordenamento brasileiro relacionadas à proteção de dados que resultou no surgimento da primeira normativa geral sobre o tema no Brasil. CAPÍTULO 1 Pessoa e privacidade na sociedade da Informação SUMÁRIO: 1.1. Um panorama do direito à privacidade. 1.2. Progresso, tecnologia e direito. 1. Tecnologia e sociedade. 2. A noção de progresso e suas implicações. 3. O direito frente à tecnologia. 1.3. A pessoa e os direitos da personalidade. 1. Direito e personalidade. 2. Pessoa e ordenamento jurídico. 1.4. A caminho da privacidade. 1. Terminologia. 2. Surgimento. 3. Raízes do perfil atual. 4. A privacidade e a definição de uma esfera privada. 1.1. Um panorama do direito à privacidade Privacy itself is in one sense irrational: it is all about people’s feelings. But feelings are there, they are facts. Paul Sieghart É própria do nosso tempo a preocupação com a privacidade e como garanti-la. E a forma pela qual o direito a abordou durante muito tempo foi pela sua associação à busca de alguma forma de isolamento, refúgio ou segredo. A formação do conceito de privacidade, no entanto, aponta para elementos referentes a necessidades diversas, como a busca da igualdade, da liberdade de escolha, do anseio em não ser discriminado, entre outros. E, ainda, a privacidade está fortemente ligada à personalidade e ao seu desenvolvimento, para o qual é elemento essencial, em uma complexa teia de relações ainda a ser completamente vislumbrada pelo direito. Eventualmente, ocorre que nos encontremos em um dos momentos em que se verifica uma certa defasagem entre a carga semântica de um conceito e o que ele efetivamente representa. E é o exame dessa “defasagem” o ponto de partida que tomamos para verificar como a noção de privacidade se formou e, posteriormente, plasmou-se com outros elementos de forma a dar origem à proteção de dados pessoais. A noção de privacidade, em si, não é recente – com os diversos sentidos que apresenta, pode ser identificada nas mais variadas épocas e sociedades. Porém, a privacidade começou a ser concretamente abordada pelo ordenamento jurídico somente no final do século XIX para, enfim, assumir as suas feições atuais apenas muito recentemente1. Praticamente não havia lugar para a tutela jurídica da privacidade em sociedades nas quais as condutas humanas estavam condicionadas a outra ordem de mecanismos – fosse uma rígida hierarquia social ou então uma determinada arquitetura dos espaços públicos e privados; fosse porque eventuais pretensões a esse respeito fossem neutralizadas por um ordenamento jurídico de caráter corporativo e patrimonialista; fosse, então, em determinadas sociedades nas quais a privacidade representasse não mais que um sentimento subjetivo que não poderia nem deveria ser tutelado. O despertar do direito para a privacidade ocorreu justamente num período em que muda a percepção da pessoa humana pelo ordenamento e ao qual se seguiu a juridificação2 de vários aspectos de sua vida cotidiana.A moderna doutrina do direito à privacidade, cujo início podemos considerar como sendo o famoso artigo de Brandeis e Warren, The right to privacy3, apresenta uma clara linha evolutiva. Em seus primórdios, marcada por um individualismo exacerbado e até egoísta, portava a feição do direito a ser deixado só4. A esse período remonta o paradigma da privacidade como uma zero-relationship5, pelo qual representaria, no limite, a ausência de comunicação entre uma pessoa e as demais. Essa concepção foi o marco inicial posteriormente temperado por uma crescente consciência de que a privacidade seria um aspecto fundamental da realização da pessoa e do desenvolvimento da sua personalidade6. Mesmo hoje, com a privacidade consagrada como um direito fundamental7, alguns traços do contexto individualista do qual é originária ainda se fazem notar. Talvez nem possa ser diferente, até pelo seu grande potencial de ressaltar as individualidades na vida em relação – é prudente não abstrairmos o fato de que se trata de um direito que já foi qualificado como “tipicamente burguês”8 na chamada “idade de ouro da privacidade” – a segunda metade do século XIX9, não por acaso o apogeu do liberalismo jurídico clássico. Mas foram essas mesmas relações, potencializadas pelo crescimento do fluxo de informações pessoais, que lançaram luz sobre um outro aspecto da privacidade: a sua importância para uma sociedade democrática como pré-requisito fundamental para o exercício de diversas outras liberdades fundamentais. Resta, no entanto, um elo de continuidade entre a privacidade como vista pelos seus modernos “fundadores” – Warren e Brandeis – e o complexo problema em que ela se transformou10: o centenário diagnóstico realizado pelos autores, à época advogados em Boston, continua valioso, tanto que seu artigo The right to privacy é até hoje lido e citado com invejável constância. Para a sua interpretação, no entanto, deve-se valer da consciência de seus desdobramentos e da constatação de que a privacy hoje compreende algo muito mais complexo do que o isolamento ou a tranquilidade – algo de que o próprio Brandeis, tendo se ocupado do assunto posteriormente, tinha ciência. Quando um direito à privacidade foi inserido em ordenamentos jurídicos de cunho eminentemente patrimonialista, o perfil da privacidade era de uma prerrogativa reservada a extratos sociais bem determinados. A bem da verdade, o substrato individualista em torno da proteção da privacidade foi dominante durante muito tempo. Com o distanciamento que somente o tempo proporciona, podemos comparar a crônica judiciária referente à privacidade no passado (e, em boa parte, também no nosso tempo) com algo semelhante a um elenco de celebridades: na Inglaterra, o caso que é mencionado como o exórdio da matéria nos tribunais envolvia os literatos Alexander Pope e Jonathan Swift11 e outro ainda o próprio casal real, Príncipe Albert e Rainha Vitória12; na França, o primeiro caso que envolveu a vie privée foi o affaire Rachel, envolvendo a então famosa atriz francesa Elisa Rachel Félix13; na Itália, entre os primeiros julgados que envolviam (propriamente ou não) a privacidade, encontramos envolvidos nomes como o do tenor Enrico Caruso14 ou o ditador Benito Mussolini e sua amante Clara Petacci15. Seria, portanto, a privacidade meramente um apanágio das pessoas “de bem”, com uma determinada projeção social? A absoluta preponderância de demandas relacionadas à privacidade por parte de pessoas com elevada projeção social parece sugerir uma resposta positiva. Esse certo “elitismo” que marcou a acolhida da privacidade pelos tribunais durou, como modelo majoritário16, pelo menos até a década de 1960. Vários motivos contribuíram para uma inflexão dessa tendência, e entre tantos citamos os desdobramentos de um modelo de Estado liberal que se transmudava no welfare state, a mudança do relacionamento entre cidadão e Estado, uma demanda mais generalizada de direitos como consequência dos movimentos sociais e das reivindicações da classe trabalhadora, assim como o aludido crescimento do fluxo de informações, consequência do desenvolvimento tecnológico – ao qual correspondia uma capacidade técnica cada vez maior de recolher, processar e utilizar a informação17. Ao mesmo tempo que esse fluxo crescia, aumentava a importância da informação. Enfim, não eram mais somente as figuras de grande relevo social que estavam sujeitas a terem sua privacidade ofendida com o aumento no tratamento de dados pessoais, porém uma parcela muito maior da população, em uma gama igualmente variada de situações. A informação pessoal – que compreende toda informação que se refere a uma pessoa – assume, portanto, importância por pressupostos diversos. Podemos estabelecer, de início, dois fatores que estão quase sempre entre as justificativas para a utilização de informações pessoais: a eficiência e o controle. Uma série de interesses se articula em torno desses dois fatores, envolvendo o Estado como entes privados, sobre os quais é útil traçar uma síntese preliminar. Em primeiro lugar, foi o Estado que por primeiro se encontrou na posição de utilizar largamente informações pessoais. Os motivos são razoavelmente claros: um pressuposto para uma administração pública eficiente é o conhecimento tão acurado quanto possível da população18 (não por acaso, à formação do welfare state seguiu-se um período de voraz demanda por informação pessoal por parte do Estado), o que implica, por exemplo, a realização de censos e pesquisas19 e o estabelecimento de regras para tornar compulsória a comunicação de determinadas informações pessoais à administração pública. Em relação ao controle, basta acenar às várias formas de controle social que podem ser desempenhadas pelo Estado e que seriam potencializadas com a maior disponibilidade de informações sobre os cidadãos, aumentando seu poder sobre os indivíduos20 – não é por outro motivo que um forte controle da informação é característica comum aos regimes totalitários21. Fora da esfera estatal, a utilização de informação era limitada, basicamente por um motivo estrutural a princípio quase que generalizado: a desproporção de meios computacionais dos organismos privados em relação ao Estado. Tal atividade não era atraente para os privados pelos seus altos custos, tanto para o tratamento dos dados quanto da sua própria coleta. Essa predominância do uso estatal de informações pessoais durou até que fossem desenvolvidas tecnologias que facilitassem sua coleta e processamento por organismos privados, não somente baixando os custos como também oferecendo uma nova e extensa gama de possibilidades de utilização dessas informações, o que aconteceu com o desenvolvimento das tecnologias de informação, em especial com o avanço da informática das últimas décadas. Dessa forma, a importância da informação aumenta à medida que a tecnologia passa a fornecer meios para, a um custo razoável, torná-la útil. Assim, a tecnologia, em conjunto com as mudanças ocorridas no tecido social, vai definir diretamente o contexto no qual a informação pessoal e a privacidade atualmente se relacionam; portanto, qualquer análise sobre esses fenômenos deve levar em consideração o vetor da técnica como um dos seus elementos determinantes. Sem perder de vista que o controle sobre a informação foi sempre um elemento essencial na definição de poderes dentro de uma sociedade22, a tecnologia operou especificamente a intensificação dos fluxos de informação e, consequentemente, de suas fontes e seus destinatários. Essa mudança, a princípio quantitativa, acaba por influir qualitativamente, mudando a natureza e os eixos de equilíbrio na equação entre poder – informação – pessoa – controle. Isso implica a necessidade de conhecer a nova estrutura de poder vinculada a essa nova arquitetura informacional. Uma das chaves para compreender essa estrutura é a verificação do papel da tecnologia e de como utilizá-la para uma eficaz composição jurídica do problema da informação. Há de se verificar como o desenvolvimento tecnológico agesobre a sociedade e, consequentemente, sobre o ordenamento jurídico; há de se considerar o potencial da tecnologia para imprimir suas próprias características ao meio sobre o qual se projeta – e não somente para ressaltar as possibilidades latentes nesse meio. Entra em cena, portanto, a tecnologia como um elemento dotado de características próprias, abrindo a discussão em torno do que seria a “vontade da técnica”. A tecnologia pode dar origem ou sustentar uma determinada tendência, tornando-se cada vez mais uma variável a ser levada em conta na dinâmica da sociedade. Não é difícil ilustrar essa afirmação com exemplos como esse, fornecido por Arthur Miller: na década de 1960, o departamento do Censo dos Estados Unidos passou a colher dados dos cidadãos norte-americanos sobre suas habitações privadas e sobre a história pessoal dos próprios ocupantes. Mais tarde, na década seguinte, cresceu a “curiosidade” desse órgão, que passou a exigir que os cidadãos que tivessem rompido seu matrimônio esclarecessem quais foram os motivos23. Deixando de lado, por ora, considerações sobre o caráter e proporcionalidade das informações requisitadas, podemos aventar que provavelmente não foi o crescimento da necessidade do Estado de conhecer mais os detalhes dos insucessos matrimoniais de seus cidadãos que originou tal medida; muito mais provável é que simplesmente se tornou factível, para a tecnologia da época, processar essas informações e delas extrair alguma utilidade. A novidade, portanto, não era a demanda em si, porém o fato de sua obtenção ser possível, o que acabou criando a demanda. Tudo em acordo com o que já foi aventado como um verdadeiro “postulado” da vontade da técnica: “o que pode ser feito, será feito”24. Para além desse exemplo, a “vontade da técnica” penetrou em muitas instâncias da vida cotidiana, moldando-as segundo seus padrões, em uma lógica segundo a qual haveria claras vantagens: uma maior eficiência, rapidez ou mesmo uma frequentemente aludida infalibilidade das novas soluções tecnológicas25. No entanto, as consequências da técnica podem ser diversas, conforme sejam examinadas no âmbito das situações patrimoniais ou no das não patrimoniais. Talvez haja maior maleabilidade no âmbito das situações patrimoniais; talvez por conta de sua própria interdependência com a tecnologia. Assim, no momento que ruía o mito que relacionava aprioristicamente o progresso tecnológico com o bem-estar, abriu-se o leque de situações não patrimoniais sobre as quais a tecnologia poderia ter fortes implicações, causando, primeiramente, insegurança. Quanto aos problemas relacionados à privacidade – inicialmente associados a superestruturas obscuras como a do big brother de Orwell –, eles foram de início interpretados como uma ameaça: alarmes, mais ou menos fatídicos e sensacionalistas, foram correntes na literatura, jurídica ou não, que examina o problema das informações pessoais. Notícias sobre “o fim da privacidade” ou sobre a formação de uma “sociedade de dossiers” chamaram atenção para novos problemas e situações, porém por vezes vinham acompanhadas de uma tendência para o fantástico, chegando a sobrevalorizar o papel da tecnologia em um mundo no qual o arsenal de controles democráticos ainda não fora exaurido. Essa exposição do tema da privacidade em chave fatalista, seja em círculos especializados como na mídia, causou uma espécie de reação de parte de alguns estudiosos, que denunciaram o que foi denominado de privacy exceptionality – o equivalente a “um excesso de atenção à tutela da privacy em detrimento de outros bens comuns igualmente dignos de proteção”, o que pode ser lido como uma forma tanto de expiar a responsabilidade pela criação de determinados riscos como de emprestar certa aura de “normalidade” e conformismo a situações que podem merecer, na verdade, exame atento e intervenção. Tal menção aos problemas de uma concepção por demais abrangente e até mesmo alarmista dos problemas relacionados à privacidade merece consideração. Se não por outros motivos, para não descurar dos mecanismos que deram origem a essa sua “excessiva” abrangência – que, de uma maneira geral, continuam atuais, mas, por serem tão frequentemente enunciados em forma de hipérbole, correm o risco da banalização. Certamente alguns dos “mitos” ou lugares comuns relacionados à privacidade somente podem ser compreendidos quando mais bem examinados. Assim ocorre, por exemplo, com algumas noções que acompanham a praxis nessa área, como a ideia de que o potencial perigo para a privacidade dos cidadãos, representado inicialmente pelo Governo, deu lugar a outra ideia segundo a qual o setor privado representaria uma ameaça ainda maior. Permanecem, latentes e plausíveis, porém, as hipóteses de rastreamento e controle invisível por parte do governo como perigo potencial para um futuro, que inclusive pode tomar proporções trágicas caso sociedades totalitárias tenham acesso às tecnologias necessárias26. Outros “mitos” da privacidade pertencem à mesma ordem de ideias como a noção de que grandes bancos de dados centralizados seriam as grandes ameaças à privacidade. Certamente, o processamento distribuído de informações27 e o desenvolvimento de noções como a do Big Data de certa forma “democratizaram” essa arquitetura, fragmentando o tratamento de dados pessoais, porém as questões referentes aos grandes bancos de dados continuam pertinentes e presentes, por exemplo, nas discussões referentes à adoção de um número de identificação único ou de cartas de identidade digitais28 Esse discurso sobre um “excepcionalismo” revela, no entanto, um paradoxo: ao lado de uma superexposição do tema da privacidade, abundam os sinais de incompreensão ou de pura indiferença com problemas causados pela utilização abusiva de dados pessoais. Tal postura é, a princípio, fruto da grande dificuldade em compreender o que de fato implicam as novas tecnologias, agravada pela consciência de que o saber pode não ser de grande ajuda, perante a escassez de meios para controlá-las dentro de uma perspectiva regulatória tradicional. Esse processo, ao mesmo tempo, pode ser entendido como uma tentativa de neutralização do impacto tecnológico, cujo objetivo seria a lenta absorção pela sociedade de uma perspectiva na qual a privacidade é menos relevante, fazendo com que a sua erosão fosse ao cabo admitida como uma “consequência natural”29 – um fato da vida, naturalizado pela valorização de determinados valores da sociedade de consumo. Um processo desse gênero está associado ao que Denninger chamou de “explosão de ignorância”: o fato que a abundância de informações típica da pós- modernidade acaba por se traduzir em menos conhecimento efetivo30. Em um panorama como esse, surge com certa facilidade o espaço para que diversas propostas e leituras do fenômeno tecnológico sejam postas em discussão, desde denúncias como as que mencionamos, bem como o entusiasmo visionário pelo porvir. Neste último sentido professaram alguns dos chamados cyber-libertarians na década de noventa, logo que a comunicação por redes e especificamente a Internet despontaram como um novo modelo de comunicação. Esses sujeitos identificaram na rede um potencial quase transcendental para estabelecer algo semelhante a um novo tipo de humanismo, pretensamente livre das amarras de espaço e de tempo e de convenções políticas e sociais, produto da comunicação “livre” e “ilimitada” que proporcionava. John Perry Barlow, um dos seus maiores expoentes, iniciava assim sua Declaration of Independence of Cyberspace: “Governos do Mundo Industrial, fatigados colossos de carne e aço, eu venho do ciberespaço, o novo lar da Mente. Em nome do futuro, peço a vocês do passado que nos deixem em paz. Vocês não são benvindos entre nós. Vocês não têm soberania aqui onde estamos.”31. Hoje, pode parecer até um pouco estranho que tais palavras foram levadas a sério com certa literalidade, ou que a muitos elas tenham soado, no não tão longínquo ano de 1996, como um prólogo da sociedade que se delineava – que fosse esse o futuro vislumbradohá tão pouco tempo pode até causar certa espécie. O mundo no qual Barlow redigiu seu manifesto parece não ter seguido o caminho que ele previa (ou auspiciava): algumas estruturas de poder que naquela época pareciam prestes a serem definitivamente suplantadas estão hoje em processo de recomposição e não foram substituídas por uma outra ordem – algumas, pode-se até aventar que tenham se recrudescido. No campo do direito autoral, por exemplo, que pareceu ser um dos primeiros objetivos dessa “revolução”, assistimos a uma lenta reorganização da indústria na qual o status quo não foi propriamente destruído32. Nesse caso, em particular, são criadas normas e técnicas que, a depender de como forem implementadas pela indústria e aceitas pelo mercado, serão capazes de restringir ainda mais a circulação de informação nos meios eletrônicos do que ocorria em outras formas de distribuição. Quanto à quebra de fronteiras geográficas, outro tema recorrente, alguns sinais indicam que necessidades jurídicas e políticas fazem com que, aos poucos, ergam-se “barreiras virtuais”, implementadas pela própria tecnologia, que simulam os limites geográficos e até mesmo incrementam as limitações espaciais33 – enfim, as velhas estruturas tendem a metamorfosear-se. Podemos ter chegado a um marco inicial de maturação da relação entre a técnica e os valores presentes no ordenamento jurídico, no qual não há mais uma possibilidade tão clara de escolher entre o apoio às novas tecnologias ou a sua recusa. Reforça essa constatação o desenvolvimento de diversos mecanismos e institutos que procuram construir um espaço para coexistência das novas tecnologias e dos vários interesses em questão com o respeito aos direitos fundamentais; e os mais interessantes deles não são propriamente “revolucionários”, porém os que privilegiam uma abordagem mais pragmática e consciente tanto das limitações quanto das diversas possibilidades do ordenamento jurídico para tratar a matéria34. Esse pragmatismo é indispensável a qualquer tentativa de trabalho no campo jurídico com a proteção da privacidade. Sem considerá-lo, várias tentativas de definir ou delimitar o conteúdo do “direito à privacidade” hoje soam parciais ou, na pior das hipóteses, falsas proposições do problema. Não que tenha havido uma efetiva ruptura com a privacidade de outras épocas – reafirmamos a existência de uma continuidade histórica e uma tendência integrativa das diversas manifestações da tutela da privacidade – mas sim que seu centro de gravidade tenha se reposicionado concretamente em razão da multiplicidade de interesses envolvidos e da sua importância para a tutela da pessoa humana. A privacidade, nas últimas décadas, passou a se relacionar com uma série de interesses e valores, o que modificou substancialmente o seu perfil. E talvez a mais importante dessas mudanças tenha sido essa apontada por Stefano Rodotà, de que o direito à privacidade não mais se estrutura em torno do eixo “pessoa-informação-segredo”, no paradigma da zero-relationship, mas sim no eixo “pessoa-informação-circulação-controle”35. Nessa mudança, a proteção da privacidade identifica-se e acompanha a consolidação da própria teoria dos direitos da personalidade e, em seus mais recentes desenvolvimentos, afasta a leitura segundo a qual sua utilização em nome de um individualismo exacerbado alimentou o medo de que eles se tornassem o “direito dos egoísmos privados”36. Algo paradoxalmente, a proteção da privacidade na sociedade da informação37, a partir da proteção de dados pessoais, avança sobre terrenos outrora improponíveis e nos induz a pensá-la como um elemento que, mais do que garantir o isolamento ou a tranquilidade, serve a proporcionar ao indivíduo os meios necessários à construção e consolidação de uma esfera privada própria, dentro de um paradigma de vida em relação e sob o signo da solidariedade – isto é, de forma que a tutela da privacidade cumpra um papel positivo para o potencial de comunicação e relacionamentos do indivíduo. Tal função interessa à personalidade como um todo e ganha importância ainda maior quando fatores como a vida em relação e as escolhas pessoais entram em jogo – como ocorre nas relações privadas, na utilização das novas tecnologias, no caso da política e, paradoxalmente, na própria vida pública38. Essa tendência de ampliação de suas funções, à qual podemos nos referir como uma “força expansiva” da proteção de dados pessoais, é mais que uma mera característica congênita dos chamados “novos direitos”39; ela se verifica na própria mutação do ambiente pelo qual circulam os dados e no qual se manifestam os interesses ligados à privacidade. Alan Westin elaborou, no início da década de 1970, um modelo pelo qual existiriam três espécies de ameaças de natureza tecnológica à privacidade: a vigilância física (através de microfones etc.), a vigilância psicológica e a vigilância dos dados pessoais40. Ocorre que, com a convergência de variadas tecnologias para o meio eletrônico e a redução de seus outputs ao meio digital como o moderno denominador comum da informação, ocorre um interessante fenômeno de convergência: uma grande parte do que era tomado como vigilância física ou psicológica passa a ser tratado como um forma de vigilância sobre dados pessoais, na qual ocorre um exercício abusivo do poder41. Essa “força expansiva” marca igualmente a evolução do tratamento da privacidade pelo ordenamento jurídico. Nesse sentido, o maior ponto de referência é sua caracterização como um direito fundamental; a partir daí, o seu próprio desenvolvimento deixou de corresponder a certos cânones mais restritivos como aqueles definidos pela sua tutela penal ou sua tutela predominantemente a posteriori, através do direito subjetivo. Esse ponto específico é tanto mais importante quando lembramos que, caso o direito se faça ineficaz ou destacado da realidade à qual deve ser aplicado, cria-se um espaço que pode ser eventualmente preenchido por outro mecanismo social – para Paul Virilio, uma zona de não direito42 – descompromissada com os valores do ordenamento jurídico. E, ainda que zonas de “não direito” não sejam necessariamente ambientes incompatíveis com uma ordem jurídica – pois ocorre que os próprios valores do ordenamento sugerem que a certas áreas e temas possam não ser regulados sob pena de limitar expressões legítimas e fundamentais da personalidade humana, pode ocorrer que a criação desses espaços em ambientes nos quais valores descompromissados com a promoção da personalidade sejam dominantes deem vazão à consolidação de ofensas aos direitos da personalidade. É justamente em meio ao desenvolvimento do direito à privacidade como um direito fundamental que percebemos que a necessidade de funcionalização levou ao seu desdobramento – o que encontra fundamentação na experiência doutrinária, legislativa e jurisprudencial. Esse desdobramento verifica-se sobretudo na forma com que o tema foi tratado na elaboração da recente Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, cujo artigo 7° trata do tradicional direito ao “respeito pela vida familiar e privada”; enquanto seu artigo 8° é dedicado especificamente à “proteção dos dados pessoais”43. A Carta, dessa forma, reconhece a complexidade dos interesses ligados à privacidade e a disciplina em dois artigos diferentes: um destinado a tutelar o indivíduo de intromissões exteriores; e outro destinado à tutela dinâmica dos dados pessoais nas suas várias modalidades44 – sem fracionar sua fundamentação, que é a dignidade do ser humano, matéria do capítulo I da Carta. Assim procedendo, é possível superar uma série de percalços teóricos e práticos que, como verificaremos, tradicionalmente permeiam a matéria. A necessidade de funcionalização da proteção da privacidade fez, portanto, com que ela desse origem a uma disciplina de proteção de dados pessoais, que compreende em sua gênese pressupostos ontológicos muito similares aos da própria proteção da privacidade: pode-se dizer que a proteção de dados pessoais é a sua “continuação por outros meios”.Ao realizar essa continuidade, porém, a proteção de dados pessoais assume a tarefa de abordar uma série de interesses cuja magnitude aumenta consideravelmente na sociedade pós-industrial e acaba, por isso, assumindo uma série de características próprias, especialmente na forma de atuar os interesses que protege, mas também em referências a outros valores e direitos fundamentais. Daí a necessidade de superar a ordem conceitual pela qual o direito à privacidade era limitado por uma tutela de índole patrimonialista, e de estabelecer novos mecanismos e mesmo institutos para possibilitar a efetiva tutela dos interesses da pessoa. O ordenamento jurídico brasileiro contempla a proteção da pessoa humana como o seu valor máximo e a privacidade como um direito fundamental. Uma análise do instrumental disponível para possibilitar a concreta atuação de tais direitos, porém, deixa entrever uma proteção que, embora devesse corresponder a uma proteção integrada e orientada pela tábua axiológica constitucional, atua de forma fracionada, em focos de atuação determinados – sejam eles a ação de habeas data, as previsões do Código de Defesa do Consumidor, sejam outras – que tendem a se orientar mais pela lógica de seus campos específicos do que por uma estratégia baseada na tutela integral da personalidade através da proteção dos dados pessoais. Aqui vale a referência ao fato de que a tutela da privacidade não pode ser apartada das cogitações sobre sua própria estrutura e conteúdo – ela, ao contrário, depende de uma valoração complexa na qual são sopesadas situações concretas de sua aplicabilidade. Daí também um motivo de própria dificuldade para a sua conceituação, bem como da dificuldade de absorvê-la na estrutura do direito subjetivo. Certamente, algumas particularidades históricas podem apontar os motivos dessa determinada configuração da matéria no Brasil; como o pode, até certo ponto, o próprio perfil social do país – que, dada a existência de problemas estruturais de maior gravidade, poderia sugerir que a proteção de dados pessoais seja, ao menos em termos quantitativos, uma demanda de menor apelo45. Uma demanda pela proteção dos dados pessoais não é sentida de forma uniforme em uma população de perfil socioeconômico bastante heterogêneo como a brasileira – pelo simples motivo de que a percepção da relevância da sua tutela desenvolve-se somente depois que uma série de outras necessidades básicas sejam satisfeitas46. A grande parcela de brasileiros que possui menor poder de compra, por exemplo, reflete no fato de que suas informações pessoais possam eventualmente ser de menor interesse para entes privados, que focalizam a coleta de informações nos extratos com maior poder econômico – o que, por si só, afasta a demanda pela tutela, ao menos por esse motivo e em uma determinada faixa da população. Confirma-se, assim, que a necessidade de uma sociedade em estabelecer mecanismos de proteção de dados pessoais varia conforme o padrão médio de consumo de sua população, assim como de outros fatores como sua educação e a própria penetração da tecnologia no cotidiano47, ecoando a sentença de Albert Bendich, de que “privacidade e pobreza são absolutamente contraditórios”48. Tal objeção pode ser contestada no plano jurídico, com a demonstração de que não haveria um direito fundamental de menor magnitude – argumento que pode, infelizmente, ter efeito puramente retórico diante de uma determinada configuração social e política que desencoraje o desenvolvimento equânime da matéria. No entanto, um exame mais acurado do problema mostra que certas características da privacidade podem superar essa objeção, que são a sua dimensão coletiva (que passa, por exemplo, pela conotação política do controle sobre o indivíduo e pelo imperativo da não- discriminação de minorias) e, mais incisivamente ainda, pela própria interdependência da tutela da privacidade com o livre desenvolvimento da personalidade. Stefano Rodotà observa uma tendência à identificação de sujeitos coletivos, minorias (ou mesmo maiorias) de diversas ordens, como entes prejudicados pela violação desse perfil da privacidade, chegando mesmo a afirmar uma tendência à mudança dos sujeitos que demandam pela privacidade, com a predominância da coletividade: “(…) a evocação da privacidade supera o individualismo tradicional e se dilata em uma dimensão coletiva, a partir do momento que não se considera mais o interesse do indivíduo enquanto tal, porém como membro de um determinado grupo social”49. Dessa dimensão coletiva surge, enfim, a conotação contemporânea da proteção da privacidade, que manifesta-se sobretudo (porém não somente) através da proteção de dados pessoais; e que deixa de dar vazão somente a um imperativo de ordem individualista, mas passa a ser a frente onde irão confluir vários interesses ligados à personalidade e às liberdades fundamentais da pessoa humana, fazendo com que na disciplina da privacidade passe a se definir todo um estatuto que englobe as relações da própria personalidade com o mundo exterior. 1.2. Progresso, tecnologia e direito La Raison c’est la folie du plus fort. La raison du moins fort c’est de la folie. Eugène Ionesco 1. Tecnologia e sociedade Carl Schmitt, em seu livro Der nomos der Erde50, confrontava o direito da terra com o direito do mar. A terra, para ele, teria moldado o direito através de sua materialidade; as suas possibilidades e limitações e o processo pelo qual se dá a sua apropriação – o nomos51 – teriam condicionado a própria estrutura do direito. “A Terra traz em seu próprio solo linhas e limites, pedras de confins, muros, casas e outros edifícios. […] Família, estirpe, classe, tipos de propriedade e de vizinhança, mas também formas de poder e de domínio, fazem-se nela publicamente visíveis”52. Ao contrário da terra, o mar se constituiria em um espaço diverso, marcado por uma espécie de liberdade que não se encontra sobre a terra. O direito do mar apresenta, consequentemente, uma gramática diversa, baseada na utilização por diversos sujeitos de um espaço que a princípio é livre53. Mais recentemente, a lição de Schmitt fez-se contemporânea na leitura de dois juristas que nela observaram aspectos diversos, porém complementares, oferecendo-nos um preâmbulo para algumas questões que apresentaremos a seguir. Um deles, Natalino Irti, nota que Schmitt, ao estabelecer a ocupação do espaço como o ato primordial que institui o direito, modelando-o de acordo com seus desígnios, nega o normativismo que pressupõe a norma como autônoma e onipotente, nos moldes propostos por Kelsen54. Para Schmitt, o espaço – em especial o nomos – é elemento formador da própria norma, que nele encontraria sua energia constitutiva e condicionante. Stefano Rodotà, por sua vez, destaca que a análise de Schmitt contemplava o ocaso de um direito cuja matriz é a ocupação da terra e dos espaços, com limites bem delimitados e submetidos a uma única autoridade. A consequência seria o obscurecimento dos limites concretos e palpáveis, uma “de-localização” que induziria à produção de um novo tipo de espaço para a atuação do direito – que, aliás, Schmitt menciona como sendo o caso do direito do mar. Rodotà aproveita ainda para dar uma contribuição à leitura da obra, propondo seu paralelo com a mudança do paradigma tecnológico – de uma tecnologia constrita pelas amarras espaciais para outra, atual, que se caracteriza pela maior fluidez e ubiquidade: “As velhas tecnologias tinham essa vantagem. Eram visíveis, volumosas, rumorosas. Impunham-se com tal materialidade que todos eram constritos a sentir seu peso e, quando pareciam intoleráveis, bastava pedir a alguém para que as suprimisse”55. Essas leituras nos servem a introduzir, respectivamente, dois elementos capitais para nosso estudo, respectivamente: a consciência de que nossa tarefa falhará caso não leve em consideração o direito como um fenômeno que somente atinge sua plena realização depois de ser aplicado à realidade da arquitetura social; bem como o fato de que tal “realidade” é hoje, em boa parte,condicionada pelo desenvolvimento tecnológico. Se hoje a privacidade e a proteção dos dados pessoais são assuntos na pauta cotidiana do jurista, isto se deve a uma orientação estrutural do ordenamento jurídico com vistas à atuação dos direitos fundamentais, tendo como pano de fundo o papel do desenvolvimento tecnológico na definição de novos espaços submetidos à regulação jurídica. A recente e significativa experiência de vários ordenamentos com o tema nos indica que, para esse trabalho, uma certa familiaridade é exigida, não somente com a tecnologia em si – por importante que seja – mas também com o seu modo de operar e influir na sociedade. Nas relações jurídicas mais estritamente ligadas à tecnologia, o grau de indeterminação presente em toda tentativa de regulação feita pelo direito é sensivelmente alto, o que potencializa situações de risco. Portanto, a metodologia utilizada pelo jurista deve levar em consideração as novas variáveis introduzidas, de forma a refletir na modelagem de institutos adaptados a essa realidade. A abordagem do desenvolvimento tecnológico pelo jurista ainda passa pela conscientização sobre seus efeitos, chegando à reflexão sobre o papel do ordenamento jurídico na promoção e defesa de seus valores fundamentais, em um cenário em boa parte determinado pela tecnologia – o que pode implicar, inclusive, reconhecer a insuficiência dos recursos jurídicos tradicionais para tal fim. Essa dificuldade, traduzida em desafio, pode transformar-se em estopim para a tarefa de aproximar o ordenamento do novo perfil que assume a personalidade em uma sociedade que muda velozmente, na qual os centros de poder e o espaço para a atuação do direito na regulação social são menos claros. Podemos estabelecer, assumindo o risco de generalizarmos, a Revolução Industrial, como o momento a partir do qual a tecnologia passou a ocupar um lugar de maior destaque na dinâmica social. Esse processo é contínuo e o mercado passa a depender cada vez mais da tecnologia. Surge a figura do Homo Faber56, destinado pela primeira vez a produzir mais do que poderia consumir e que, subordinado ao imperativo do fazer, restava privado tanto de consciência crítica quanto de responsabilidade sobre seus atos, reduzido que estava pela técnica à essa dimensão quase operacional57. Posteriormente, a tecnologia ganhou novo ímpeto e coloração com o incremento na velocidade do seu desenvolvimento em várias áreas, como a eletrônica, as telecomunicações e tantas outras. Essas tecnologias passaram a condicionar diretamente a sociedade, com sua filosofia de trabalho, seus instrumentos de produção, sua distribuição do tempo e de espaço; além de se identificar diretamente com a substância dos instrumentos e mecanismos de controle que podem causar a erosão da privacidade. A dimensão que o fenômeno tecnológico assumiu passou então a se tornar motivo de reflexão para as ciências sociais, entre elas o direito. O vocabulário (e os fenômenos) próprio da tecnologia era, de início, indiferente ao discurso jurídico, permanecendo assim até o momento em que não foi mais possível deixar de levá-lo em consideração como uma metalinguagem autônoma58. O início dos debates doutrinários sobre o direito à privacidade ocorreu, não por coincidência, como consequência direta da utilização de novas técnicas e instrumentos59 que inauguraram uma época na qual a privacidade era posta em xeque justamente pela tecnologia60. Para além do campo jurídico, por sua vez, o estudo do impacto da tecnologia na sociedade é tema recorrente na literatura e em diversos debates61. Entre a variedade de enfoques que costumam acompanhar essa empreitada, podemos destacar alguns elementos comuns, como a dificuldade em julgar os efeitos da utilização de novas tecnologias – o que já nos dá uma primeira mostra das dificuldades da aplicação do discurso jurídico nesse campo. A tecnologia apresenta um caráter de imprevisibilidade que lhe é intrínseco; sua ação costuma se dar em um universo amplo e complexo a ponto de tornar análises de impacto, projeções e testes, em alguns casos, meras aproximações. Suas possibilidades e seus efeitos, por sua vez, vão além daquilo que o homem jamais teve possibilidade de administrar anteriormente. Ao mesmo tempo, por mais exógena que possa parecer, a tecnologia é um produto do homem e de sua cultura, destinada a relacionar-se com ele. A convivência com essa imprevisibilidade é uma característica do nosso tempo. Um elemento dessa incerteza é o risco que, para Ulrich Beck, é o “enfoque moderno para prever e controlar as consequências futuras da ação humana, os vários efeitos indesejados da modernização radicalizada”62. Para o autor, esse risco, na sociedade da informação, apresenta características particulares: criado voluntariamente pela ação do homem, a decisão de produzi-lo não depende de considerações éticas ou morais porém de um mecanismo decisional fortemente induzido pela tecnologia, um raciocínio matemático no qual se procura prever seus efeitos futuros em termos estatísticos63 – eliminando-se, assim, a importância de considerações particularizadas e tornando o próprio risco algo impessoal, dissociado da ação humana64. Tal discurso parece adequado à tecnologia: sua lógica não costuma ser a da pessoa individualmente considerada, visto que os custos e os meios de produção envolvidos requerem volume para que seja viável; portanto, podemos dizer que esse sistema funciona tendo em vista basicamente os grandes números – dentro dos quais estão diluídos os indivíduos. Tal imprevisibilidade, de toda forma, não é absorvida com facilidade. Sua mera descrição, por si só, apresenta inúmeras dificuldades. Para representá-la, já se recorreu à metáfora do Golem, que mencionamos brevemente, novamente correndo o risco do reducionismo: O Golem, criatura da mitologia hebraica, é um humanoide de argila, feito pelo homem; sua força e seu poder crescem a cada dia. Ele segue as ordens do seu criador, auxilia-o, mas é um pouco tolo e inconsciente de sua força: é capaz, se não for bem comandado, de destruir seu próprio senhor. A ideia de um “Golem tecnológico”, aqui utilizada para nos aproximarmos um pouco da proposição do problema, pode induzir à constatação de que se ele não é, em última análise, responsável pelos seus atos, continua sendo uma criação do gênio humano, por cujos defeitos devemos responder – do que surge nossa obrigação de conhecê-los a fundo65. Nesse cenário, procuraremos demonstrar como a tecnologia deixou de ser vista como uma mera situação de fato, isolada de uma conjuntura, para ser um vetor condicionante da sociedade e, em consequência, do próprio direito. A primeira consideração é que o desenvolvimento da tecnologia cria relações a serem reguladas pelo direito. Consequentemente, uma posição de indiferença em relação ao desenvolvimento tecnológico deixa de ser sequer possível. Sua influência é certa, e o problema passa a ser, segundo as palavras de Bernard Edelman, a forma como o direito absorve a tecnologia: “Se por um lado o direito não julga a ciência, por outro ele não tem dúvidas de que ela existe e de que produz efeitos na ordem jurídica. A biologia revolucionou a visão jurídica do homem e da natureza, a informática, aquela dos direitos de autor e dos direitos da personalidade, a pesquisa nuclear renovou a ideia de soberania e de responsabilidade… Dito de outra forma, a evolução das ciências e das técnicas não é indiferente ao direito.”66 Vittorio Frosini adverte o jurista para a necessidade de adquirir o que ele denomina de consciência informática, um senso de responsabilidade sobre os novos problemas propostos pela tecnologia67. Pressuposto dessa tarefa é que a tecnologia, mesmo não sendo em si ciência, a influencia com sua própria dinâmica, moldando-a de acordo com seu caráter68. Tal ação se reflete na experiência, não somente científica, porém política e cultural de uma sociedade; e um direito incapaz de compreender essa dinâmica perde contato com a realidade social e se torna precocemente obsoleto. Na perspectiva daproteção da pessoa humana como valor máximo do ordenamento jurídico, não levar em conta essas variáveis significa subtrair o direito ao seu próprio tempo, tornando-o anacrônico, incapaz de enquadrar os interesses da pessoa com a velocidade característica da tecnologia. Um conceito hoje razoavelmente arraigado de “técnica” considera, esta como o complexo de atos pelos quais os homens agem sobre a natureza, procurando aperfeiçoar instrumentos que os ajudem a satisfazer suas necessidades69; atos esses reunidos e sistematizados pela tecnologia – que é o estado da técnica em um determinado momento. Assim entendida, a tecnologia apresenta um caráter fortemente instrumental e utilitarista. A tendência de convergir, nesses aspectos, uma noção de tecnologia pela qual ela é basicamente um meio para atingir um fim a ela exterior, é muito forte70. Por outro lado, existe o apelo feito por alguns autores para relativizar ou mesmo negar a sua pretensa neutralidade, que derivaria desse seu caráter instrumental. Um conteúdo ideológico que negue essa sua pretensa neutralidade é algo que dificilmente se pode depreender diretamente da tecnologia, ao menos em uma primeira análise conceitual. Mas também o contrário é de difícil demonstração: uma sociedade percorre os caminhos que lhe permitem as possibilidades técnicas de sua época, e é inegável, por exemplo, o fato de que o desenvolvimento do capitalismo moderno é tributário de uma tecnologia em constante evolução que lhe fornece ambiente propício71. Essa constatação é apenas um indício, embora importante, de que a noção de tecnologia não pertence a um universo alheio a uma determinada conjuntura político-social. Determinar qual é seu papel, porém, é tarefa árdua, e já levou o historiador Melvin Kranzberg a afirmar que “a tecnologia não é boa nem má, nem sequer é neutra”72 – no que foi de certa forma acompanhado por Pierre Lévy73. Um método que pode nos levar a perceber o substrato ideológico presente na tecnologia é considerá-la a partir do seu perfil dinâmico. Isso porque o seu perfil puramente estático a relaciona basicamente com seu aspecto utilitarista – o de ferramenta, instrumento para atingir um fim – o que, além de neutralizar o presente discurso, foge à dimensão histórica intrínseca ao problema. Esse perfil dinâmico, pelo qual observamos precisamente o desenvolvimento tecnológico, é o ângulo de observação possível para abranger o máximo de seus efeitos e colocar em questão todos os seus aspectos relevantes, visto que a realimentação que a sociedade fornece à tecnologia pelas mais diversas formas: financeiras, aceitação social e outras, depende também de juízos de valor. Esse assim chamado perfil dinâmico da tecnologia dialoga diretamente com a noção de progresso e com toda a carga cultural que esse termo representa. 2. A noção de progresso e suas implicações A noção de progresso não é necessariamente vinculada à tecnologia. Inclusive, a própria ideia de progresso deve muito a construções culturais que seriam impensáveis há alguns séculos. Podemos mesmo conjeturar que esse termo recebeu sua conotação atual apenas recentemente. Na antiguidade clássica, por exemplo, a questão nem chegava a se colocar, ao menos nos termos atuais: aos gregos, por exemplo, “é estranha a ideia do progresso, porque não existe no futuro nenhum objetivo a atingir, nenhuma condição humana menos trágica do que a presente”74. Os gregos, portanto, além de tomarem o indivíduo e não a humanidade como ponto de referência, concebiam o tempo como um ciclo75 (o “eterno retorno”), e não como uma progressão. Mesmo muito tempo depois e em outras sociedades, por nada se esperaria que o mundo então conhecido sofresse transformações concretas por conta de descobertas científicas durante o curso de uma vida humana76. A ciência operava em uma dinâmica diversa da atual: o progresso não era algo com o que se contava e nem necessariamente indicava qualquer tipo de melhoria77 ou mesmo de mudança na sociedade78. Foi no Renascimento que passamos a poder identificar sinais de que essa concepção se modificaria. A possibilidade de o homem intervir positivamente sobre as coisas do mundo – e modificá-las – vislumbrava-se na cultura da época, desde, por exemplo, um dos marcos literários do Renascimento e do humanismo: a oração De Dignitate hominis, escrita em 1486 por Pico della Mirandola, em cujo discurso de Deus aos homens (§ 5°) lemos que: “A natureza dos outros seres, uma vez definida, é limitada pelas leis que ditamos. No teu caso serás tu, livre de qualquer limitação, de acordo com o su arbítrio, depositado por mim em suas mãos, a decidir sobre ela.”79 Hoje, verificamos que a consciência do poder da técnica e de suas possibilidades como instrumento de mudança já estava presente desde o Renascimento – basta fazer menção aos tantos projetos de Leonardo da Vinci, uma personalidade que certamente encontrou ambiente cultural propício para conceber ideias que poderiam de fato operar mudança, desde as mais teoréticas até suas “máquinas de guerra” que habitualmente oferecia aos Medici. Além da contribuição de Leonardo, muitos outros exemplos podem ser colhidos – talvez um dos mais fortes seja a importância da invenção da imprensa (a princípio por Gutemberg, por volta de 1461)80. No século XVII, surge uma concepção de progresso que viria a ser associada ao Iluminismo, segundo a qual o progresso se assemelharia a um verdadeiro imperativo lógico, pelo qual cada geração se valeria das conquistas e conhecimentos da geração anterior e as aperfeiçoaria, dando um passo rumo a um estágio maior de civilização, o mesmo valendo para a geração sucessiva e daí em diante, em uma escala onde o que se encontra cronologicamente adiante estaria melhor colocado – uma escala, portanto, valorativa. Essa concepção encontrou expressão na obra de Turgot, em seu discurso Sur les progrès successifs de l’esprit humain81, de 1750, e teve sua sistematização mais famosa na obra clássica do seu discípulo, o enciclopedista Condorcet, Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain, de 179582. A ideia de progresso passa a ser frequente no pensamento do século XIX: presente no positivismo de Augusto Comte, ressonou também nas teses evolucionistas de Charles Darwin e Herbert Spencer, que identificaram uma evolução da vida das formas mais simples até outras mais complexas. Tal “entusiasmo” não foi partilhado por todos: vide Hegel que, por sua vez notava um imobilismo na natureza, da qual nada de realmente novo se poderia esperar – nihil sub sole novi – “nada de novo sob o sol”, reconhecendo em aparentes inovações nada mais que o “jogo polimórfico de suas estruturas”, e constatando que o único espaço no qual poderia surgir algo de “novo” seria o espírito83. No entanto, a ideia de um progresso desejável e com conotações positivas era bastante difundida – e não somente no pensamento liberal. Karl Marx professa claramente a sua crença no progresso histórico (no caso, passando pelo colapso do sistema capitalista), além de reconhecer o impulso à mudança social proporcionado pela técnica: “The hand-mill gives you society with the feudal lord; the stream-mill, society with the industrial capitalist”, escrevia em seu The poverty of philosophy, lição que parece ter reverberado em Lenin, a quem é atribuída a declaração de que “o comunismo é o poder dos soviets mais a eletrificação do país”. Nas formulações vistas, o progresso é tratado como um vetor temporal: é uma relação entre o passado, presente e futuro, em perspectiva que costuma privilegiar o porvir sobre o ser. Nesse sentido, deparamo-nos com um elemento ínsito ao progresso, identificado por Agostino Carrino como a violência – pois a ideia de progresso muitas vezes faz vislumbrar uma situação final que, idealmente, deve se concretizar na sua absoluteza, isto é, desprovida de tolerância84. Pode-se relativizar o caráter absoluto dessa violência em certas instâncias, porém é difícil não reconhecer a potência da tecnologia como propulsora do progresso e o caráter autossuficiente
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