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2020_Da_Privacidade_a_Protecao_de_Dados_Pessoais_Danilo_Doneda

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DA
PRIVACIDADE
A
PROTEÇÃO
DE DADOS
PESSOAIS
CDU-342.721
Diretora de Conteúdo e Operações Editoriais
JULIANA MAYUMI ONO
Gerente de Conteúdo
MILISA CRISTINE ROMERA
Editorial: Aline Marchesi da Silva, Diego Garcia Mendonça, Karolina de Albuquerque
Araújo e Quenia Becker Gerente de Conteúdo Tax: Vanessa Miranda de M. Pereira
Direitos Autorais: Viviane M. C. Carmezim Assistente de Conteúdo Editorial: Juliana
Menezes Drumond Analista de Projetos: Camilla Dantara Ventura Estagiárias: Bárbara
Baraldi Sabino e Stefanie Lopes Pereira Produção Editorial
Coordenação
ANDRÉIA R. SCHNEIDER NUNES CARVALHAES
Especialistas Editoriais: Gabriele Lais Sant’Anna dos Santos e Maria Angélica Leite
Analista de Projetos: Larissa Gonçalves de Moura Analistas de Operações Editoriais:
Caroline Vieira, Damares Regina Felício, Danielle Castro de Morais, Mariana Plastino
Andrade, Mayara Macioni Pinto e Patrícia Melhado Navarra Analistas de Qualidade
Editorial: Ana Paula Cavalcanti, Fernanda Lessa, Rafael Ribeiro e Thaís Pereira
Estagiárias: Beatriz Fialho, Tainá Luz Carvalho e Victória Menezes Pereira Capa: Daniele
Doneda Controle de Qualidade da Diagramação: Carla Lemos Equipe de Conteúdo
Digital
Coordenação
MARCELLO ANTONIO MASTROROSA PEDRO
Analistas: Jonatan Souza, Luciano Guimarães, Maria Cristina Lopes Araujo e Rodrigo
Araujo Gerente de Operações e Produção Gráfica
MAURICIO ALVES MONTE
Analistas de Produção Gráfica: Aline Ferrarezi Regis e Jéssica Maria Ferreira Bueno
Estagiária de Produção Gráfica: Ana Paula Evangelista Dados Internacionais de
Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Doneda, Danilo Cesar Maganhoto Da privacidade à proteção de dados pessoais [livro
eletrônico] : elementos da formação da Lei Geral de Proteção de Dados / Danilo Cesar
Maganhoto Doneda. -- 2. ed. -- São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2020.
Bibliografia.
ISBN 978-65-5065-030-8
1. Direito à privacidade 2. Privacidade 3. Proteção de dados pessoais I. Título.
20-34639
Índices para catálogo sistemático:
1. Privacidade : Proteção de dados pessoais : Direito 342.721
Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427
DA PRIVACIDADE À PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS
FUNDAMENTOS DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS
DANILO DONEDA
2a edição revista e atualizada © desta edição [2020]
THOMSON REUTERS BRASIL CONTEÚDO E TECNOLOGIA LTDA.
JULIANA MAYUMI ONO
Diretora Responsável
Diagramação eletrônica: Linotec Fotocomposição e Fotolito Ltda., CNPJ
60.442.175/0001-80
Rua do Bosque, 820 – Barra Funda Tel. 11 3613-8400 – Fax 11 3613-8450
CEP 01136-000 – São Paulo, SP, Brasil TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a
reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas
gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a
memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte
desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se
também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos
autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão
e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da
Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
O autor goza da mais ampla liberdade de opinião e de crítica, cabendo-lhe a
responsabilidade das ideias e dos conceitos emitidos em seu trabalho.
CENTRAL DE RELACIONAMENTO THOMSON REUTERS SELO REVISTA DOS TRIBUNAIS
(atendimento, em dias úteis, das 09h às 18h) Tel. 0800-702-2433
e-mail de atendimento ao consumidor: sacrt@thomsonreuters.com e-mail para submissão
dos originais: aval.livro@thomsonreuters.com Conheça mais sobre Thomson Reuters:
www.thomsonreuters.com.br
Acesse o nosso eComm
www.livrariart.com.br
http://www.thomsonreuters.com.br
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Profissional
Fechamento desta edição [07.10.2019]
ISBN 978-65-5065-030-8
Dedicado à memória de Stefano Rodotà
e Giovanni Buttarelli
Todo homem tem a possibilidade de diferenciar-se
dos outros segundo sua própria lei intrínseca,
que é a própria liberdade e, portanto, de ser estimado
em modo correspondente à sua diferenciação.
NORBERTO BOBBIO (1909-2004)
PREFÁCIO A DANILO DONEDA
2a edição da obra Da privacidade à Proteção de Dados Pessoais, 2019
O Prof. Danilo Doneda é autor conhecido e reconhecido pelos leitores,
tendo sido acolhida com enorme êxito a primeira edição desta obra, cujo
prefácio tive a honra de redigir. De lá para cá, o tema se mantém na ordem do
dia e se renova, especialmente à luz das recentes leis que tratam da proteção
de dados pessoais. Esta segunda edição, portanto, não poderia ser mais
oportuna, de modo a problematizar numerosas questões agora debatidas em
contexto diverso, sobretudo com a aprovação da Lei Geral de Proteção de
Dados Pessoais no Brasil (Lei n. 13.709/18 – LGPD). De fato, mais de uma
década após o merecido destaque de seu pioneiro estudo, debruça-se agora o
autor nos temas introduzidos pela intensificação da circulação de dados, à luz
dos novos contornos assumidos pela privacidade. Instiga-se o leitor a
repensar a centralidade da pessoa na sociedade da informação, com enfoque
no direito à privacidade, promovendo-se estudo denso sobre a base normativa
hoje existente em termos de proteção de dados pessoais. Há, portanto, de ser
celebrada a segunda edição da obra Da privacidade à Proteção de Dados
Pessoais.
Atualíssimo, o trabalho reflete o aprofundamento de longa pesquisa do
autor em torno do caminho percorrido pela privacidade, examinando no
primeiro capítulo todo o itinerário de sua construção, até a consolidação de
perfil compatível com os dias atuais e atento à necessidade de pleno exercício
da autodeterminação existencial e informacional da pessoa humana. Alude o
autor ao cenário de proteção de dados na perspectiva não apenas de suas
consequências individuais, mas sobretudo de suas implicações sociais
complexas, cujo reconhecimento requer a busca pela harmonização dos
vários interesses sobrepostos. Em tal perspectiva, a obra ganha contornos
contemporâneos, também em sua segunda parte, que verifica a estreita
relação entre a informação pessoal e os valores protegidos pela privacidade,
introduzindo instrumentos pelos quais se dá a tutela dos dados pessoais.
Tomando-se por referência outros sistemas jurídicos, em especial os
modelos norte-americano e europeu, bem como diplomas de direito
internacional, Danilo Doneda propõe, no terceiro capítulo, tratamento
minucioso acerca dos principais diplomas normativos que repercutem na
proteção de dados. Empenha-se na tarefa de incrementar o repertório de
instrumentos regulatórios, analisando com acuidade importantes diplomas,
como o recente Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), em vigor
para todos os membros da União Europeia em 2018, bem como seus
principais impactos nos diversos sistemas. O regulamento europeu funciona
como modelo de referência que países como o Brasil deverão levar em conta
tanto na interpretação e aplicação de suas leis nacionais quanto na própria
elaboração de legislação acerca da temática, em cotejo com o almejado fluxo
de informações e convergências derivadas de diplomas em nível
internacional. Ainda, no que concerne à circulação internacional de dados
pessoais, aborda o autor, além dos acordos safe harbour, agora também os
privacy shield, novo marco regulatório para intercâmbio de dados pessoais
entre países da União Europeia e os Estados Unidos.
Merece destaque a preocupação do autor em atualizar também o estudo
dos elementos à disposição para a proteção de dados pessoais, especialmente
no sistema jurídico brasileiro e a pluralidade de fontes normativas incidentes
nesta seara, associando-os à lógica dos direitos fundamentais. Nesse
momento, à luz da temática do consentimento para o tratamento de dados e
da conveniência da implantação de órgão de garantia para a proteção de
dados, traz à tona os principais problemas surgidos no ordenamento brasileiropor conta da recente Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD.
Daqui a importância da presente obra que, em boa hora, retorna à editoria
jurídica como objeto de consulta obrigatória para estudiosos do Direito Civil.
GUSTAVO TEPEDINO
PREFÁCIO À 1a EDIÇÃO
A tutela da privacidade destinava-se, tradicionalmente, à proteção contra
intromissões indesejadas na esfera pessoal. Todavia, o progresso tecnológico
e a intensificação do fluxo e do processamento de informações alteraram
quantitativa e qualitativamente a noção de intromissões indesejadas na vida
privada. Quantitativamente, cresceu assustadoramente o volume de
informações em mãos de sujeitos públicos e privados. Do ponto de vista
quantitativo, os dados disponíveis tornaram-se bem jurídico valiosíssimo, por
vezes utilizados inescrupulosamente, contendo informações que permitem
aos seus detentores conhecerem e traçarem perfis sobre hábitos de consumo,
saúde, características genéticas e comportamentais de grande parte da
população.
O tratamento de informações pessoais, portanto, transforma-se em
atividade que possibilita o acesso à esfera privada. O recôndito mundo
privado, antes garantido pelo chamado direito à privacidade, passou assim a
demandar modelos jurídicos específicos para sua proteção – para a qual não
bastam as ações individuais ressarcitórias, associadas à noção de privacidade
como isolamento e reserva, na perspectiva tornada clássica por Warren e
Brandeis no inicio do século XX. Torna-se imperioso, no mundo globalizado,
impedir que os dados pessoais sejam tratados como simples ativo
empresarial, controlando-se as finalidades de sua utilização e especialmente
suas transferências – usualmente ditadas por opções do mercado –, de modo a
se evitarem abusos e interferências nos mais variados campos de atuação da
vida privada.
Tal é o pano de fundo no qual se insere a atualíssima problemática trazida
a lume, pela primeira vez no mercado editorial brasileiro, pelo Prof. Danilo
Doneda na obra ora apresentada ao público. O livro passa em revista o estado
atual de desenvolvimento da matéria na experiência estrangeira,
demonstrando a inadequação dos instrumentos disponíveis no Brasil para o
controle pelos cidadãos das próprias informações. A partir dai, o autor propõe
critérios e indicações a serem utilizados para a implementação de
instrumentos de efetiva proteção da pessoa e de sua privacidade, por meio do
respeito aos seus dados pessoais.
Danilo Doneda é Bacharel em Direito pela Universidade Federal do
Paraná. Mestre e Doutor em direito civil pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, foi Pesquisador visitante na Università degli Studi di Camerino,
na Itália, sob orientação do Prof. Vito Rizzo, e na Autorità Garante per la
Protezione dei Dati Personali, em Roma, sob orientação do Prof. Stefano
Rodotà. Este trabalho é a expressão atualizada da tese de doutoramento
apresentada pelo autor no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, tendo recebido nota 10
com distinção e louvor, perante banca examinadora composta pelos ilustres
professores Luiz Edson Fachin, Luis Gustavo Grandinetti de Carvalho, Maria
Celina Bodin de Moraes, Régis Fichtner Pereira e por mim, que tive o
privilégio de ter sido seu orientador.
Com tais predicados, consegue Danilo Doneda ousar e inovar com
impecáveis densidade científica e coerência metodológica. O livro revela-se,
por tudo isso, utilíssima fonte de consulta e reflexão quanto ao delineamento
dinâmico e mutante em que se situa a privacidade na realidade hodierna,
projetando suas conclusões para a ampla agenda dos mecanismos jurídicos a
serem urgentemente implantados na realidade brasileira, com vistas à tutela
da pessoa humana na sociedade tecnológica.
Petrópolis, novembro de 2005
PROF. GUSTAVO TEPEDINO
APRESENTAÇÃO
A publicação de um novo livro sobre proteção de dados nos dá a
oportunidade de parar e refletir sobre a própria ideia de privacidade e sobre
como ela se desenvolveu como parte de uma ampla luta pela liberdade e pela
democracia. De fato, sem privacidade não haveria um espaço no qual o
indivíduo estivesse livre para pensar, desenvolver as suas próprias ideias,
experimentar e seguir o seu próprio caminho de vida como lhe aprouver e
parecer adequado. Como o autor checo Milan Kundera eloquentemente
percebeu, “público e privado são dois mundos essencialmente diferentes e o
respeito pela diferença é a condição indispensável, sine qua non, para que um
homem viva livre”. Várias décadas se passaram desde que estas palavras
foram escritas, porém elas nunca foram mais verdadeiras do que o são hoje,
em nosso mundo digital. Ao passo que, no passado, as lutas para estabelecer
os direitos e liberdades que hoje cultivamos tiveram lugar “na vida real” –
para usar o jargão da Internet –, hoje e, mais ainda, amanhã, esta luta está
provavelmente sendo travada online. Recentes vazamentos de dados de
enormes dimensões e escândalos sobre compartilhamento de dados, como as
revelações do caso Facebook – Cambridge Analytica, deixam claro o quanto
está em jogo também do ponto de vista coletivo, para a sociedade como um
todo, inclusive para a garantia de uma democracia saudável e para a
integridade do processo eleitoral. Estes e outros desdobramentos nos
lembram o motivo de ser tão importante proteger os dados pessoais como um
direito central do cidadão e como um imperativo democrático, porém também
como uma necessidade econômica: sem a confiança dos consumidores na
forma com que seus dados são tratados, não há como existir desenvolvimento
sustentável da nossa economia cada vez mais orientada para a informação.
Estas são, precisamente, as razões pelas quais o Brasil e a União Europeia
introduziram, quase que simultaneamente, as reformas legislativas às quais o
livro do Professor Doneda é dedicado: justamente no sentido de adaptar os
seus marcos normativos de proteção de dados para os desafios e oportuni
dades da era digital. Em 25 de maio de 2018, o Regulamento Geral de
Proteção de Dados (GDPR) entrou em vigor na União Europeia, enquanto
que, poucos meses depois, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) foi
aprovada por unanimidade no Congresso Nacional no Brasil.
O que poderia ser encarado meramente como uma coincidência temporal,
de fato, simboliza bem mais do que isso. Como este livro explica muito bem,
ambas as reformas são baseadas em valores e objetivos comuns e
compartilhados. Isto se reflete na arquitetura dos novos regimes de proteção
de dados da União Europeia e do Brasil, ambos claramente alicerçados em
uma legislação horizontal e ampla, em um núcleo de salvaguardas e direitos
individuais, bem como na supervisão por uma autoridade administrativa
independente. Em um momento no qual o Mercosul e a União Europeia
acabam de concluir o maior acordo comercial bilateral jamais negociado, a
crescente convergência entre seus respectivos sistemas de proteção da
privacidade também oferece novas oportunidades para facilitar ainda mais as
trocas comerciais e outras formas de cooperação que envolvam a
transferência de dados, inclusive por meio do assim chamado reconhecimento
da adequação.
Construir pontes entre dois sistemas de proteção de dados inclui também
que cada um deles aprenda com o outro. No contexto da implementação de
suas reformas legislativas, Brasil e União Europeia podem se beneficiar
enormemente da troca de melhores práticas e experiências entre seus
reguladores, stakeholders e acadêmicos. Este diálogo é essencial para que se
compreendam as soluções legais e tecnológicas a serem aplicadas e para que
se abordem os novos desafios para a privacidade, que são cada vez mais
globais em sua natureza e âmbito. Este livro, inegavelmente, proporciona
uma contribuição muito significativa para o desenvolvimento de um diálogo
como este. Contando com seu profundo conhecimento dos sistemas de
proteção de dados brasileiro, europeu e de outros países, ninguém é mais
qualificado do que Danilo Doneda para guiar os leitores brasileiros neste
novo panoramada proteção de dados. Esta é uma jornada fascinante, que vai
e vem através do Atlântico. Desejo a este livro toda a atenção e sucesso que
merece.
Boa leitura!
BRUNO GENCARELLI
Chefe da Unidade de Fluxo e Proteção Internacional de Dados da Comissão
Europeia.
NOTA À 2a EDIÇÃO DE “DA PRIVACIDADE À
PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS”
A 2a edição de “Da privacidade à proteção de dados pessoais” surge a 13
anos da primeira. Neste arco de tempo, a disciplina da proteção de dados
pessoais se consolidou como um tema de incontestável protagonismo, não
somente no atual debate jurídico brasileiro, com a promulgação em 2018 da
Lei Geral de Proteção de Dados, mas também com a intensificação do debate
sobre as consequências sociais, políticas e econômicas do tratamento de
dados pessoais.
Esta nova edição procura manter o conteúdo da primeira sem maiores
sobressaltos. Tendo sido obra pioneira na literatura jurídica brasileira, a
manutenção do seu caráter original se justifica tanto pelo seu papel na
consolidação da temática no país como pelo fato dela se propor, antes de
mais nada, como um estudo sobre os fundamentos e desenvolvimento dos
marcos normativos de proteção de dados, descrevendo os institutos e
ferramentas dos quais lançam mão os marcos regulatórios e políticas públicas
na matéria.
Mesmo mantendo seu formato original, a obra sofreu inúmeras
alterações, dado o intenso desenvolvimento da disciplina. Assim, referências
foram atualizadas, bem como desdobramentos ulteriores da disciplina foram
mencionados e, em certos trechos em que se fez necessário, tratados com
maior detalhe.
Para a maturação do texto desta segunda edição foi fundamental a
contribuição, em conversas, escritos e muito mais, de um sem-número de
pessoas. Destas, agradeço especialmente a Laura Schertel Mendes, Rebeca
Garcia, Virgílio Almeida, Yasodara Córdova, Bruno Gencarelli, Miriam
Wimmer, André Sabóia Martins, Deputados Orlando Silva, Bruna Furlan e
Marcos Pereira, Rafael Zanatta, Bruno Bioni, Juliana Pereira da Silva,
Amaury Oliva, Celso Soares, Sophia Martini Vial, Vitor Moraes de Andrade,
Demi Getschko, Hartmut Glaser, Flávio Lenz, Isabella Henriques, Pedro
Hartung, Maurício Barreto, Fabrício Mota, Bia Barbosa, Marília Monteiro,
Bruno Magrani, Carlos Affonso da Silva e Diego Machado.
DANILO DONEDA
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1
PESSOA E PRIVACIDADE NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
1.1. Um panorama do direito à privacidade
1.2. Progresso, tecnologia e direito
1. Tecnologia e sociedade
2. A noção de progresso e suas implicações
3. O direito frente à tecnologia
1.3. A pessoa e os direitos da personalidade
1. Direito e personalidade
2. Pessoa e ordenamento jurídico
1.4. A caminho da privacidade
1. Terminologia
2. Surgimento
3. Raízes do perfil atual
4. A privacidade e a definição de uma esfera privada
CAPÍTULO 2
PRIVACIDADE E INFORMAÇÃO
2.1. Informação e dados pessoais
1. Conceito
2. Classificação
3. Bancos de dados e os dados sensíveis
4. A informação como bem jurídico
5. Informação, informática e direito
6. Formas de tratamento de dados pessoais
2.2. Para além da privacidade
1. O caso do National Data Center, o caso SAFARI e seus desdobramentos
2. A sentença sobre o censo alemão e o direito à autodeterminação informativa
2.3. A proteção de dados pessoais
1. A proteção de dados pessoais
2. Gerações de leis de proteção de dados pessoais
3. Princípios para a proteção de dados pessoais
CAPÍTULO 3
A BASE NORMATIVA DA PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS
3.1. O modelo europeu de proteção de dados pessoais e a experiência italiana
1. Dois modelos distintos
2. Antecedentes e formação do modelo europeu
3. Elementos do modelo europeu: a Diretiva 95/46/CE e o Regulamento Geral
de Proteção de Dados (GDPR)
4. A formação do direito à privacidade no ordenamento italiano
5. A proteção dos dados pessoais no ordenamento italiano
3.2. A proteção de dados pessoais no ordenamento norte-americano
1. The right to privacy
2. A formação do right to privacy
3. O right to privacy constitucional
4. O right to privacy na tort law
5. Statute Law
6. Elementos de proteção de dados pessoais
3.3. Circulação internacional de dados pessoais
1. A dimensão internacional da proteção de dados pessoais
2. A transferência de dados ao exterior no modelo europeu
3. A via de adequação e a via contratual
4. Os acordos Safe Harbour e Privacy Shield
CAPÍTULO 4
ELEMENTOS PARA A PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS NO DIREITO
BRASILEIRO
4.1. A evolução da proteção de dados pessoais no direito brasileiro
1. Proteção de dados pessoais no ordenamento brasileiro e os direitos
2. As disposições do Código de Defesa do Consumidor
3. Habeas data
4. A influência do habeas data na América Latina
4.2. A tutela dos dados pessoais e o papel do consentimento
1. Formas de tutela
2. O consentimento na disciplina de proteção dos dados pessoais
3. O “mito do consentimento” e o “paradoxo da privacidade”
4. A natureza jurídica do consentimento
5. A revogabilidade do consentimento
6. A funcionalização do consentimento
4.3. O papel das autoridades independentes na proteção de dados pessoais
1. Autoridades independentes
2. Regulation e deregulation
3. Independência e legitimidade das autoridades independentes
4. Autoridades de garantia e direitos fundamentais
5. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados
Conclusões
BIBLIOGRAFIA
Introdução
O palheiro não esconde mais a agulha.
John Nockleby A tutela da privacidade como o “direito a ser deixado só”, associada ao
isolamento, à reclusão, não permite mais determinar parâmetros para avaliar o que ela
representa em um mundo no qual o fluxo de informações aumenta incessantemente, ao
mesmo tempo em que o desenvolvimento da tecnologia aumenta as oportunidades de
realizarmos escolhas que podem influir diretamente em nossa esfera privada.
As demandas que agora moldam o perfil da privacidade são de outra
ordem, relacionadas à informação pessoal e condicionadas pela tecnologia. A
exposição indesejada de uma pessoa aos olhos alheios se dá hoje com maior
frequência através da divulgação de seus dados pessoais do que pela intrusão
em sua habitação, pela divulgação de notícias a seu respeito na imprensa, pela
violação de sua correspondência – enfim, pelos meios outrora “clássicos” de
violação da privacidade.
Ao mesmo tempo, somos cada vez mais identificados a partir dos nossos
dados pessoais, fornecidos por nós mesmos a empresas e a entidades públicas
com as quais mantemos relações; ou então coletados por meios diversos.
Estes dados pessoais são indicativos de aspectos de nossa personalidade,
portanto merecem proteção do direito enquanto tais. E, para esta proteção,
pode bastar que se conceba a privacidade como uma liberdade negativa, que
reconheça e tutele a pessoa contra abusos na obtenção e tratamento destes
dados.
A esta problemática dita “clássica” da privacidade podemos acrescentar,
atualmente, um outro elemento: o fato de que somos, perante diversas
instâncias, representados – e também avaliados – a partir destes dados. Isto
abre uma outra possibilidade de abordar a questão, pela qual a privacidade
acaba por ressoar uma série de outras questões referentes à nossa
personalidade. Assim, certas formas de tratamento de nossos dados pessoais
podem implicar na perda da nossa autonomia, da nossa individualidade e,
ainda, da nossa liberdade. Nossos dados, estruturados de forma a significarem
uma representação virtual – um avatar – de nós mesmos, são cada vez mais o
principal fator levado em conta na avaliação de uma concessão de crédito, na
aprovação de um plano de saúde, na obtenção de um emprego, na passagem
pela migração em um país estrangeiro, entre tantos outros casos.
A utilização de dados pessoais não é, em si, um problema. Na verdade,
ela torna possíveis várias atividades, desde o planejamento administrativo até
a ação humanitária, passando pela pesquisa de mercado e por mais um
número infindável de áreas. Ocorre que a atividade do tratamento de dados
pessoais requer instrumentos que a harmonizecom os parâmetros de proteção
da pessoa humana presentes nos direitos fundamentais e funcionalizados por
instrumentos regulatórios que possibilitem aos cidadãos um efetivo controle
em relação aos seus dados pessoais, garantindo o acesso, a veracidade, a
segurança, o conhecimento da finalidade para a qual serão utilizados, entre
tantas outras garantias que se fazem cada vez mais necessárias.
Faz-se necessário que o ordenamento jurídico estabeleça critérios
proporcionais de tutela da pessoa nesta área, que é muito fortemente ligada ao
desenvolvimento da tecnologia e que não raro, por esta dinâmica, se sobrepõe
às diversas tentativas de regulação. E, ainda, o tratamento de dados pessoais
possui implicações complexas a ponto de não poderem ser abordadas a partir
somente de um estrito controle individual dos próprios dados – a intensidade
do fluxo de dados pessoais, a dificuldade em se saber efetivamente quem os
detém e como são utilizados e mesmo quais os reais efeitos do seu tratamento
tornam a tarefa daquele que pretende ter efetivo controle sobre os próprios
dados pessoais, no mínimo, ingrata.
Neste quadro, percebemos que o direito à proteção de dados pessoais, em
princípio fortemente vinculado ao direito à privacidade, hoje se sofisticou e
assumiu características próprias. Na proteção de dados pessoais não é
somente a privacidade que se pretende tutelar, porém busca-se a efetiva tutela
da pessoa em vista de variadas formas de controle e contra a discriminação,
com o fim de garantir a integridade de aspectos fundamentais de sua própria
liberdade pessoal. E, ainda, não é mais somente o indivíduo a ser o único
afetado – um antigo paradigma do direito à privacidade –, porém inteiras
classes e grupos sociais. O problema da proteção de dados, mais do que uma
questão individual, possui implicações sociais profundas, que vão desde
questões atinentes ao gozo de direitos por coletividades até a viabilidade de
modelos de negócio que podem ser intrinsecamente contraditórios com o
efetivo controle dos próprios dados pessoais, e mesmo o balanço de poderes
no sistema democrático.
Ao mesmo tempo, outros interesses dignos de tutela e também ligados à
informação se fazem sentir, paralelamente ou mesmo em oposição à proteção
de dados pessoais. Ao estabelecer uma tutela para os dados pessoais,
situações relacionadas à liberdade de informação e à liberdade de expressão
muitas vezes devem também ser levadas em consideração. E há também
diversas outras atividades em relação às quais a proteção de dados pessoais
tem reflexos, como a segurança pública, ou com o fluxo de informações que
acompanha o comércio.
Esta obra, elaborada a partir de tese de doutoramento no curso de
Doutorado em Direito Civil defendida na Faculdade de Direito da UERJ em
2004, sob orientação do professor Gustavo Tepedino e avaliada por banca
composta pelos professores Maria Celina Bodin de Moraes, Régis Fichtner,
Luiz Edson Fachin e Luiz Gustavo Grandinetti de Carvalho, foi submetida a
processos de adaptação e atualização, procurando traçar a “trajetória” que
levou o direito à privacidade a metamorfosear-se na proteção de dados
pessoais, verificando a presença de seus pressupostos no ordenamento
jurídico brasileiro e nos de outros países.
Este trabalho está estruturado em quatro partes. A primeira procura
estabelecer o sentido e o alcance do conceito de privacidade, desde suas
manifestações originárias até o seu desenvolvimento, bem como estabelecer
as bases teóricas e metodológicas para abordá-lo. Para isto, são tratadas
questões relacionadas ao desenvolvimento tecnológico e à própria ideia de
progresso e suas implicações para a sociedade e para o direito; em seguida,
são verificadas as bases da proteção da pessoa pelo ordenamento jurídico,
ressaltando a sua posição como valor maior e unitário no ordenamento.
Finalmente, trata-se da privacidade, do seu conteúdo e formação histórica até
as suas manifestações no ordenamento jurídico.
No segundo capítulo desenvolve-se o problema da informação e suas
implicações em termos de direitos fundamentais; verificando o crescimento
da sua importância, a estreita relação entre a informação pessoal e os valores
protegidos pela privacidade, e também os instrumentos pelos quais se
implementa a tutela de dados pessoais.
O terceiro capítulo fornece uma visão sobre os modelos de proteção de
dados pessoais mais influentes, representados pelo modelo europeu – com
atenção particular ao italiano – e o modelo norte-americano, para então
considerar as implicações da transferência internacional de dados.
No quarto capítulo são examinadas as disposições do direito brasileiro
sobre proteção de dados e seu enquadramento em um panorama de proteção à
pessoa de acordo com suas necessidades na sociedade moderna. Serão
examinadas, especificamente: (i) a disciplina do consentimento para o
tratamento de dados pessoais; (ii) a possibilidade e conveniência da
implantação de um órgão de garantia para a proteção de dados pessoais. Este
capítulo foi atualizado para incluir igualmente as novas disposições do
ordenamento brasileiro relacionadas à proteção de dados que resultou no
surgimento da primeira normativa geral sobre o tema no Brasil.
CAPÍTULO 1
Pessoa e privacidade na sociedade
da Informação
SUMÁRIO: 1.1. Um panorama do direito à privacidade. 1.2. Progresso, tecnologia e direito.
1. Tecnologia e sociedade. 2. A noção de progresso e suas implicações. 3. O direito frente à
tecnologia. 1.3. A pessoa e os direitos da personalidade. 1. Direito e personalidade. 2.
Pessoa e ordenamento jurídico. 1.4. A caminho da privacidade. 1. Terminologia. 2.
Surgimento. 3. Raízes do perfil atual. 4. A privacidade e a definição de uma esfera privada.
1.1. Um panorama do direito à privacidade
Privacy itself is in one sense irrational: it is all about people’s feelings. But feelings are
there, they are facts.
Paul Sieghart
É própria do nosso tempo a preocupação com a privacidade e como
garanti-la. E a forma pela qual o direito a abordou durante muito tempo foi
pela sua associação à busca de alguma forma de isolamento, refúgio ou
segredo. A formação do conceito de privacidade, no entanto, aponta para
elementos referentes a necessidades diversas, como a busca da igualdade, da
liberdade de escolha, do anseio em não ser discriminado, entre outros. E,
ainda, a privacidade está fortemente ligada à personalidade e ao seu
desenvolvimento, para o qual é elemento essencial, em uma complexa teia de
relações ainda a ser completamente vislumbrada pelo direito.
Eventualmente, ocorre que nos encontremos em um dos momentos em
que se verifica uma certa defasagem entre a carga semântica de um conceito e
o que ele efetivamente representa. E é o exame dessa “defasagem” o ponto de
partida que tomamos para verificar como a noção de privacidade se formou e,
posteriormente, plasmou-se com outros elementos de forma a dar origem à
proteção de dados pessoais.
A noção de privacidade, em si, não é recente – com os diversos sentidos
que apresenta, pode ser identificada nas mais variadas épocas e sociedades.
Porém, a privacidade começou a ser concretamente abordada pelo
ordenamento jurídico somente no final do século XIX para, enfim, assumir as
suas feições atuais apenas muito recentemente1.
Praticamente não havia lugar para a tutela jurídica da privacidade em
sociedades nas quais as condutas humanas estavam condicionadas a outra
ordem de mecanismos – fosse uma rígida hierarquia social ou então uma
determinada arquitetura dos espaços públicos e privados; fosse porque
eventuais pretensões a esse respeito fossem neutralizadas por um
ordenamento jurídico de caráter corporativo e patrimonialista; fosse, então,
em determinadas sociedades nas quais a privacidade representasse não mais
que um sentimento subjetivo que não poderia nem deveria ser tutelado. O
despertar do direito para a privacidade ocorreu justamente num período em
que muda a percepção da pessoa humana pelo ordenamento e ao qual se
seguiu a juridificação2 de vários aspectos de sua vida cotidiana.A moderna doutrina do direito à privacidade, cujo início podemos
considerar como sendo o famoso artigo de Brandeis e Warren, The right to
privacy3, apresenta uma clara linha evolutiva. Em seus primórdios, marcada
por um individualismo exacerbado e até egoísta, portava a feição do direito a
ser deixado só4. A esse período remonta o paradigma da privacidade como
uma zero-relationship5, pelo qual representaria, no limite, a ausência de
comunicação entre uma pessoa e as demais. Essa concepção foi o marco
inicial posteriormente temperado por uma crescente consciência de que a
privacidade seria um aspecto fundamental da realização da pessoa e do
desenvolvimento da sua personalidade6.
Mesmo hoje, com a privacidade consagrada como um direito
fundamental7, alguns traços do contexto individualista do qual é originária
ainda se fazem notar. Talvez nem possa ser diferente, até pelo seu grande
potencial de ressaltar as individualidades na vida em relação – é prudente não
abstrairmos o fato de que se trata de um direito que já foi qualificado como
“tipicamente burguês”8 na chamada “idade de ouro da privacidade” – a
segunda metade do século XIX9, não por acaso o apogeu do liberalismo
jurídico clássico. Mas foram essas mesmas relações, potencializadas pelo
crescimento do fluxo de informações pessoais, que lançaram luz sobre um
outro aspecto da privacidade: a sua importância para uma sociedade
democrática como pré-requisito fundamental para o exercício de diversas
outras liberdades fundamentais.
Resta, no entanto, um elo de continuidade entre a privacidade como vista
pelos seus modernos “fundadores” – Warren e Brandeis – e o complexo
problema em que ela se transformou10: o centenário diagnóstico realizado
pelos autores, à época advogados em Boston, continua valioso, tanto que seu
artigo The right to privacy é até hoje lido e citado com invejável constância.
Para a sua interpretação, no entanto, deve-se valer da consciência de seus
desdobramentos e da constatação de que a privacy hoje compreende algo
muito mais complexo do que o isolamento ou a tranquilidade – algo de que o
próprio Brandeis, tendo se ocupado do assunto posteriormente, tinha ciência.
Quando um direito à privacidade foi inserido em ordenamentos jurídicos
de cunho eminentemente patrimonialista, o perfil da privacidade era de uma
prerrogativa reservada a extratos sociais bem determinados. A bem da
verdade, o substrato individualista em torno da proteção da privacidade foi
dominante durante muito tempo. Com o distanciamento que somente o tempo
proporciona, podemos comparar a crônica judiciária referente à privacidade
no passado (e, em boa parte, também no nosso tempo) com algo semelhante a
um elenco de celebridades: na Inglaterra, o caso que é mencionado como o
exórdio da matéria nos tribunais envolvia os literatos Alexander Pope e
Jonathan Swift11 e outro ainda o próprio casal real, Príncipe Albert e Rainha
Vitória12; na França, o primeiro caso que envolveu a vie privée foi o affaire
Rachel, envolvendo a então famosa atriz francesa Elisa Rachel Félix13; na
Itália, entre os primeiros julgados que envolviam (propriamente ou não) a
privacidade, encontramos envolvidos nomes como o do tenor Enrico
Caruso14 ou o ditador Benito Mussolini e sua amante Clara Petacci15.
Seria, portanto, a privacidade meramente um apanágio das pessoas “de
bem”, com uma determinada projeção social? A absoluta preponderância de
demandas relacionadas à privacidade por parte de pessoas com elevada
projeção social parece sugerir uma resposta positiva. Esse certo “elitismo”
que marcou a acolhida da privacidade pelos tribunais durou, como modelo
majoritário16, pelo menos até a década de 1960. Vários motivos contribuíram
para uma inflexão dessa tendência, e entre tantos citamos os desdobramentos
de um modelo de Estado liberal que se transmudava no welfare state, a
mudança do relacionamento entre cidadão e Estado, uma demanda mais
generalizada de direitos como consequência dos movimentos sociais e das
reivindicações da classe trabalhadora, assim como o aludido crescimento do
fluxo de informações, consequência do desenvolvimento tecnológico – ao
qual correspondia uma capacidade técnica cada vez maior de recolher,
processar e utilizar a informação17. Ao mesmo tempo que esse fluxo crescia,
aumentava a importância da informação. Enfim, não eram mais somente as
figuras de grande relevo social que estavam sujeitas a terem sua privacidade
ofendida com o aumento no tratamento de dados pessoais, porém uma
parcela muito maior da população, em uma gama igualmente variada de
situações.
A informação pessoal – que compreende toda informação que se refere a
uma pessoa – assume, portanto, importância por pressupostos diversos.
Podemos estabelecer, de início, dois fatores que estão quase sempre entre as
justificativas para a utilização de informações pessoais: a eficiência e o
controle. Uma série de interesses se articula em torno desses dois fatores,
envolvendo o Estado como entes privados, sobre os quais é útil traçar uma
síntese preliminar.
Em primeiro lugar, foi o Estado que por primeiro se encontrou na posição
de utilizar largamente informações pessoais. Os motivos são razoavelmente
claros: um pressuposto para uma administração pública eficiente é o
conhecimento tão acurado quanto possível da população18 (não por acaso, à
formação do welfare state seguiu-se um período de voraz demanda por
informação pessoal por parte do Estado), o que implica, por exemplo, a
realização de censos e pesquisas19 e o estabelecimento de regras para tornar
compulsória a comunicação de determinadas informações pessoais à
administração pública. Em relação ao controle, basta acenar às várias formas
de controle social que podem ser desempenhadas pelo Estado e que seriam
potencializadas com a maior disponibilidade de informações sobre os
cidadãos, aumentando seu poder sobre os indivíduos20 – não é por outro
motivo que um forte controle da informação é característica comum aos
regimes totalitários21.
Fora da esfera estatal, a utilização de informação era limitada,
basicamente por um motivo estrutural a princípio quase que generalizado: a
desproporção de meios computacionais dos organismos privados em relação
ao Estado. Tal atividade não era atraente para os privados pelos seus altos
custos, tanto para o tratamento dos dados quanto da sua própria coleta. Essa
predominância do uso estatal de informações pessoais durou até que fossem
desenvolvidas tecnologias que facilitassem sua coleta e processamento por
organismos privados, não somente baixando os custos como também
oferecendo uma nova e extensa gama de possibilidades de utilização dessas
informações, o que aconteceu com o desenvolvimento das tecnologias de
informação, em especial com o avanço da informática das últimas décadas.
Dessa forma, a importância da informação aumenta à medida que a
tecnologia passa a fornecer meios para, a um custo razoável, torná-la útil.
Assim, a tecnologia, em conjunto com as mudanças ocorridas no tecido
social, vai definir diretamente o contexto no qual a informação pessoal e a
privacidade atualmente se relacionam; portanto, qualquer análise sobre esses
fenômenos deve levar em consideração o vetor da técnica como um dos seus
elementos determinantes. Sem perder de vista que o controle sobre a
informação foi sempre um elemento essencial na definição de poderes dentro
de uma sociedade22, a tecnologia operou especificamente a intensificação dos
fluxos de informação e, consequentemente, de suas fontes e seus
destinatários. Essa mudança, a princípio quantitativa, acaba por influir
qualitativamente, mudando a natureza e os eixos de equilíbrio na equação
entre poder – informação – pessoa – controle. Isso implica a necessidade de
conhecer a nova estrutura de poder vinculada a essa nova arquitetura
informacional.
Uma das chaves para compreender essa estrutura é a verificação do papel
da tecnologia e de como utilizá-la para uma eficaz composição jurídica do
problema da informação. Há de se verificar como o desenvolvimento
tecnológico agesobre a sociedade e, consequentemente, sobre o ordenamento
jurídico; há de se considerar o potencial da tecnologia para imprimir suas
próprias características ao meio sobre o qual se projeta – e não somente para
ressaltar as possibilidades latentes nesse meio. Entra em cena, portanto, a
tecnologia como um elemento dotado de características próprias, abrindo a
discussão em torno do que seria a “vontade da técnica”.
A tecnologia pode dar origem ou sustentar uma determinada tendência,
tornando-se cada vez mais uma variável a ser levada em conta na dinâmica da
sociedade. Não é difícil ilustrar essa afirmação com exemplos como esse,
fornecido por Arthur Miller: na década de 1960, o departamento do Censo
dos Estados Unidos passou a colher dados dos cidadãos norte-americanos
sobre suas habitações privadas e sobre a história pessoal dos próprios
ocupantes. Mais tarde, na década seguinte, cresceu a “curiosidade” desse
órgão, que passou a exigir que os cidadãos que tivessem rompido seu
matrimônio esclarecessem quais foram os motivos23. Deixando de lado, por
ora, considerações sobre o caráter e proporcionalidade das informações
requisitadas, podemos aventar que provavelmente não foi o crescimento da
necessidade do Estado de conhecer mais os detalhes dos insucessos
matrimoniais de seus cidadãos que originou tal medida; muito mais provável
é que simplesmente se tornou factível, para a tecnologia da época, processar
essas informações e delas extrair alguma utilidade. A novidade, portanto, não
era a demanda em si, porém o fato de sua obtenção ser possível, o que acabou
criando a demanda. Tudo em acordo com o que já foi aventado como um
verdadeiro “postulado” da vontade da técnica: “o que pode ser feito, será
feito”24.
Para além desse exemplo, a “vontade da técnica” penetrou em muitas
instâncias da vida cotidiana, moldando-as segundo seus padrões, em uma
lógica segundo a qual haveria claras vantagens: uma maior eficiência, rapidez
ou mesmo uma frequentemente aludida infalibilidade das novas soluções
tecnológicas25. No entanto, as consequências da técnica podem ser diversas,
conforme sejam examinadas no âmbito das situações patrimoniais ou no das
não patrimoniais. Talvez haja maior maleabilidade no âmbito das situações
patrimoniais; talvez por conta de sua própria interdependência com a
tecnologia. Assim, no momento que ruía o mito que relacionava
aprioristicamente o progresso tecnológico com o bem-estar, abriu-se o leque
de situações não patrimoniais sobre as quais a tecnologia poderia ter fortes
implicações, causando, primeiramente, insegurança. Quanto aos problemas
relacionados à privacidade – inicialmente associados a superestruturas
obscuras como a do big brother de Orwell –, eles foram de início
interpretados como uma ameaça: alarmes, mais ou menos fatídicos e
sensacionalistas, foram correntes na literatura, jurídica ou não, que examina o
problema das informações pessoais. Notícias sobre “o fim da privacidade” ou
sobre a formação de uma “sociedade de dossiers” chamaram atenção para
novos problemas e situações, porém por vezes vinham acompanhadas de uma
tendência para o fantástico, chegando a sobrevalorizar o papel da tecnologia
em um mundo no qual o arsenal de controles democráticos ainda não fora
exaurido. Essa exposição do tema da privacidade em chave fatalista, seja em
círculos especializados como na mídia, causou uma espécie de reação de
parte de alguns estudiosos, que denunciaram o que foi denominado de
privacy exceptionality – o equivalente a “um excesso de atenção à tutela da
privacy em detrimento de outros bens comuns igualmente dignos de
proteção”, o que pode ser lido como uma forma tanto de expiar a
responsabilidade pela criação de determinados riscos como de emprestar
certa aura de “normalidade” e conformismo a situações que podem merecer,
na verdade, exame atento e intervenção.
Tal menção aos problemas de uma concepção por demais abrangente e
até mesmo alarmista dos problemas relacionados à privacidade merece
consideração. Se não por outros motivos, para não descurar dos mecanismos
que deram origem a essa sua “excessiva” abrangência – que, de uma maneira
geral, continuam atuais, mas, por serem tão frequentemente enunciados em
forma de hipérbole, correm o risco da banalização. Certamente alguns dos
“mitos” ou lugares comuns relacionados à privacidade somente podem ser
compreendidos quando mais bem examinados. Assim ocorre, por exemplo,
com algumas noções que acompanham a praxis nessa área, como a ideia de
que o potencial perigo para a privacidade dos cidadãos, representado
inicialmente pelo Governo, deu lugar a outra ideia segundo a qual o setor
privado representaria uma ameaça ainda maior. Permanecem, latentes e
plausíveis, porém, as hipóteses de rastreamento e controle invisível por parte
do governo como perigo potencial para um futuro, que inclusive pode tomar
proporções trágicas caso sociedades totalitárias tenham acesso às tecnologias
necessárias26. Outros “mitos” da privacidade pertencem à mesma ordem de
ideias como a noção de que grandes bancos de dados centralizados seriam as
grandes ameaças à privacidade. Certamente, o processamento distribuído de
informações27 e o desenvolvimento de noções como a do Big Data de certa
forma “democratizaram” essa arquitetura, fragmentando o tratamento de
dados pessoais, porém as questões referentes aos grandes bancos de dados
continuam pertinentes e presentes, por exemplo, nas discussões referentes à
adoção de um número de identificação único ou de cartas de identidade
digitais28
Esse discurso sobre um “excepcionalismo” revela, no entanto, um
paradoxo: ao lado de uma superexposição do tema da privacidade, abundam
os sinais de incompreensão ou de pura indiferença com problemas causados
pela utilização abusiva de dados pessoais. Tal postura é, a princípio, fruto da
grande dificuldade em compreender o que de fato implicam as novas
tecnologias, agravada pela consciência de que o saber pode não ser de grande
ajuda, perante a escassez de meios para controlá-las dentro de uma
perspectiva regulatória tradicional. Esse processo, ao mesmo tempo, pode ser
entendido como uma tentativa de neutralização do impacto tecnológico, cujo
objetivo seria a lenta absorção pela sociedade de uma perspectiva na qual a
privacidade é menos relevante, fazendo com que a sua erosão fosse ao cabo
admitida como uma “consequência natural”29 – um fato da vida, naturalizado
pela valorização de determinados valores da sociedade de consumo. Um
processo desse gênero está associado ao que Denninger chamou de “explosão
de ignorância”: o fato que a abundância de informações típica da pós-
modernidade acaba por se traduzir em menos conhecimento efetivo30.
Em um panorama como esse, surge com certa facilidade o espaço para
que diversas propostas e leituras do fenômeno tecnológico sejam postas em
discussão, desde denúncias como as que mencionamos, bem como o
entusiasmo visionário pelo porvir. Neste último sentido professaram alguns
dos chamados cyber-libertarians na década de noventa, logo que a
comunicação por redes e especificamente a Internet despontaram como um
novo modelo de comunicação. Esses sujeitos identificaram na rede um
potencial quase transcendental para estabelecer algo semelhante a um novo
tipo de humanismo, pretensamente livre das amarras de espaço e de tempo e
de convenções políticas e sociais, produto da comunicação “livre” e
“ilimitada” que proporcionava. John Perry Barlow, um dos seus maiores
expoentes, iniciava assim sua Declaration of Independence of Cyberspace:
“Governos do Mundo Industrial, fatigados colossos de carne e aço, eu venho
do ciberespaço, o novo lar da Mente. Em nome do futuro, peço a vocês do
passado que nos deixem em paz. Vocês não são benvindos entre nós. Vocês
não têm soberania aqui onde estamos.”31.
Hoje, pode parecer até um pouco estranho que tais palavras foram
levadas a sério com certa literalidade, ou que a muitos elas tenham soado, no
não tão longínquo ano de 1996, como um prólogo da sociedade que se
delineava – que fosse esse o futuro vislumbradohá tão pouco tempo pode até
causar certa espécie. O mundo no qual Barlow redigiu seu manifesto parece
não ter seguido o caminho que ele previa (ou auspiciava): algumas estruturas
de poder que naquela época pareciam prestes a serem definitivamente
suplantadas estão hoje em processo de recomposição e não foram substituídas
por uma outra ordem – algumas, pode-se até aventar que tenham se
recrudescido. No campo do direito autoral, por exemplo, que pareceu ser um
dos primeiros objetivos dessa “revolução”, assistimos a uma lenta
reorganização da indústria na qual o status quo não foi propriamente
destruído32. Nesse caso, em particular, são criadas normas e técnicas que, a
depender de como forem implementadas pela indústria e aceitas pelo
mercado, serão capazes de restringir ainda mais a circulação de informação
nos meios eletrônicos do que ocorria em outras formas de distribuição.
Quanto à quebra de fronteiras geográficas, outro tema recorrente, alguns
sinais indicam que necessidades jurídicas e políticas fazem com que, aos
poucos, ergam-se “barreiras virtuais”, implementadas pela própria tecnologia,
que simulam os limites geográficos e até mesmo incrementam as limitações
espaciais33 – enfim, as velhas estruturas tendem a metamorfosear-se.
Podemos ter chegado a um marco inicial de maturação da relação entre a
técnica e os valores presentes no ordenamento jurídico, no qual não há mais
uma possibilidade tão clara de escolher entre o apoio às novas tecnologias ou
a sua recusa. Reforça essa constatação o desenvolvimento de diversos
mecanismos e institutos que procuram construir um espaço para coexistência
das novas tecnologias e dos vários interesses em questão com o respeito aos
direitos fundamentais; e os mais interessantes deles não são propriamente
“revolucionários”, porém os que privilegiam uma abordagem mais
pragmática e consciente tanto das limitações quanto das diversas
possibilidades do ordenamento jurídico para tratar a matéria34.
Esse pragmatismo é indispensável a qualquer tentativa de trabalho no
campo jurídico com a proteção da privacidade. Sem considerá-lo, várias
tentativas de definir ou delimitar o conteúdo do “direito à privacidade” hoje
soam parciais ou, na pior das hipóteses, falsas proposições do problema. Não
que tenha havido uma efetiva ruptura com a privacidade de outras épocas –
reafirmamos a existência de uma continuidade histórica e uma tendência
integrativa das diversas manifestações da tutela da privacidade – mas sim que
seu centro de gravidade tenha se reposicionado concretamente em razão da
multiplicidade de interesses envolvidos e da sua importância para a tutela da
pessoa humana.
A privacidade, nas últimas décadas, passou a se relacionar com uma série
de interesses e valores, o que modificou substancialmente o seu perfil. E
talvez a mais importante dessas mudanças tenha sido essa apontada por
Stefano Rodotà, de que o direito à privacidade não mais se estrutura em torno
do eixo “pessoa-informação-segredo”, no paradigma da zero-relationship,
mas sim no eixo “pessoa-informação-circulação-controle”35.
Nessa mudança, a proteção da privacidade identifica-se e acompanha a
consolidação da própria teoria dos direitos da personalidade e, em seus mais
recentes desenvolvimentos, afasta a leitura segundo a qual sua utilização em
nome de um individualismo exacerbado alimentou o medo de que eles se
tornassem o “direito dos egoísmos privados”36. Algo paradoxalmente, a
proteção da privacidade na sociedade da informação37, a partir da proteção de
dados pessoais, avança sobre terrenos outrora improponíveis e nos induz a
pensá-la como um elemento que, mais do que garantir o isolamento ou a
tranquilidade, serve a proporcionar ao indivíduo os meios necessários à
construção e consolidação de uma esfera privada própria, dentro de um
paradigma de vida em relação e sob o signo da solidariedade – isto é, de
forma que a tutela da privacidade cumpra um papel positivo para o potencial
de comunicação e relacionamentos do indivíduo. Tal função interessa à
personalidade como um todo e ganha importância ainda maior quando fatores
como a vida em relação e as escolhas pessoais entram em jogo – como ocorre
nas relações privadas, na utilização das novas tecnologias, no caso da política
e, paradoxalmente, na própria vida pública38.
Essa tendência de ampliação de suas funções, à qual podemos nos referir
como uma “força expansiva” da proteção de dados pessoais, é mais que uma
mera característica congênita dos chamados “novos direitos”39; ela se verifica
na própria mutação do ambiente pelo qual circulam os dados e no qual se
manifestam os interesses ligados à privacidade. Alan Westin elaborou, no
início da década de 1970, um modelo pelo qual existiriam três espécies de
ameaças de natureza tecnológica à privacidade: a vigilância física (através de
microfones etc.), a vigilância psicológica e a vigilância dos dados pessoais40.
Ocorre que, com a convergência de variadas tecnologias para o meio
eletrônico e a redução de seus outputs ao meio digital como o moderno
denominador comum da informação, ocorre um interessante fenômeno de
convergência: uma grande parte do que era tomado como vigilância física ou
psicológica passa a ser tratado como um forma de vigilância sobre dados
pessoais, na qual ocorre um exercício abusivo do poder41.
Essa “força expansiva” marca igualmente a evolução do tratamento da
privacidade pelo ordenamento jurídico. Nesse sentido, o maior ponto de
referência é sua caracterização como um direito fundamental; a partir daí, o
seu próprio desenvolvimento deixou de corresponder a certos cânones mais
restritivos como aqueles definidos pela sua tutela penal ou sua tutela
predominantemente a posteriori, através do direito subjetivo. Esse ponto
específico é tanto mais importante quando lembramos que, caso o direito se
faça ineficaz ou destacado da realidade à qual deve ser aplicado, cria-se um
espaço que pode ser eventualmente preenchido por outro mecanismo social –
para Paul Virilio, uma zona de não direito42 – descompromissada com os
valores do ordenamento jurídico. E, ainda que zonas de “não direito” não
sejam necessariamente ambientes incompatíveis com uma ordem jurídica –
pois ocorre que os próprios valores do ordenamento sugerem que a certas
áreas e temas possam não ser regulados sob pena de limitar expressões
legítimas e fundamentais da personalidade humana, pode ocorrer que a
criação desses espaços em ambientes nos quais valores descompromissados
com a promoção da personalidade sejam dominantes deem vazão à
consolidação de ofensas aos direitos da personalidade.
É justamente em meio ao desenvolvimento do direito à privacidade como
um direito fundamental que percebemos que a necessidade de
funcionalização levou ao seu desdobramento – o que encontra fundamentação
na experiência doutrinária, legislativa e jurisprudencial. Esse desdobramento
verifica-se sobretudo na forma com que o tema foi tratado na elaboração da
recente Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, cujo artigo 7°
trata do tradicional direito ao “respeito pela vida familiar e privada”;
enquanto seu artigo 8° é dedicado especificamente à “proteção dos dados
pessoais”43. A Carta, dessa forma, reconhece a complexidade dos interesses
ligados à privacidade e a disciplina em dois artigos diferentes: um destinado a
tutelar o indivíduo de intromissões exteriores; e outro destinado à tutela
dinâmica dos dados pessoais nas suas várias modalidades44 – sem fracionar
sua fundamentação, que é a dignidade do ser humano, matéria do capítulo I
da Carta. Assim procedendo, é possível superar uma série de percalços
teóricos e práticos que, como verificaremos, tradicionalmente permeiam a
matéria.
A necessidade de funcionalização da proteção da privacidade fez,
portanto, com que ela desse origem a uma disciplina de proteção de dados
pessoais, que compreende em sua gênese pressupostos ontológicos muito
similares aos da própria proteção da privacidade: pode-se dizer que a
proteção de dados pessoais é a sua “continuação por outros meios”.Ao
realizar essa continuidade, porém, a proteção de dados pessoais assume a
tarefa de abordar uma série de interesses cuja magnitude aumenta
consideravelmente na sociedade pós-industrial e acaba, por isso, assumindo
uma série de características próprias, especialmente na forma de atuar os
interesses que protege, mas também em referências a outros valores e direitos
fundamentais. Daí a necessidade de superar a ordem conceitual pela qual o
direito à privacidade era limitado por uma tutela de índole patrimonialista, e
de estabelecer novos mecanismos e mesmo institutos para possibilitar a
efetiva tutela dos interesses da pessoa.
O ordenamento jurídico brasileiro contempla a proteção da pessoa
humana como o seu valor máximo e a privacidade como um direito
fundamental. Uma análise do instrumental disponível para possibilitar a
concreta atuação de tais direitos, porém, deixa entrever uma proteção que,
embora devesse corresponder a uma proteção integrada e orientada pela tábua
axiológica constitucional, atua de forma fracionada, em focos de atuação
determinados – sejam eles a ação de habeas data, as previsões do Código de
Defesa do Consumidor, sejam outras – que tendem a se orientar mais pela
lógica de seus campos específicos do que por uma estratégia baseada na
tutela integral da personalidade através da proteção dos dados pessoais.
Aqui vale a referência ao fato de que a tutela da privacidade não pode ser
apartada das cogitações sobre sua própria estrutura e conteúdo – ela, ao
contrário, depende de uma valoração complexa na qual são sopesadas
situações concretas de sua aplicabilidade. Daí também um motivo de própria
dificuldade para a sua conceituação, bem como da dificuldade de absorvê-la
na estrutura do direito subjetivo.
Certamente, algumas particularidades históricas podem apontar os
motivos dessa determinada configuração da matéria no Brasil; como o pode,
até certo ponto, o próprio perfil social do país – que, dada a existência de
problemas estruturais de maior gravidade, poderia sugerir que a proteção de
dados pessoais seja, ao menos em termos quantitativos, uma demanda de
menor apelo45. Uma demanda pela proteção dos dados pessoais não é sentida
de forma uniforme em uma população de perfil socioeconômico bastante
heterogêneo como a brasileira – pelo simples motivo de que a percepção da
relevância da sua tutela desenvolve-se somente depois que uma série de
outras necessidades básicas sejam satisfeitas46. A grande parcela de
brasileiros que possui menor poder de compra, por exemplo, reflete no fato
de que suas informações pessoais possam eventualmente ser de menor
interesse para entes privados, que focalizam a coleta de informações nos
extratos com maior poder econômico – o que, por si só, afasta a demanda
pela tutela, ao menos por esse motivo e em uma determinada faixa da
população. Confirma-se, assim, que a necessidade de uma sociedade em
estabelecer mecanismos de proteção de dados pessoais varia conforme o
padrão médio de consumo de sua população, assim como de outros fatores
como sua educação e a própria penetração da tecnologia no cotidiano47,
ecoando a sentença de Albert Bendich, de que “privacidade e pobreza são
absolutamente contraditórios”48.
Tal objeção pode ser contestada no plano jurídico, com a demonstração
de que não haveria um direito fundamental de menor magnitude – argumento
que pode, infelizmente, ter efeito puramente retórico diante de uma
determinada configuração social e política que desencoraje o
desenvolvimento equânime da matéria. No entanto, um exame mais acurado
do problema mostra que certas características da privacidade podem superar
essa objeção, que são a sua dimensão coletiva (que passa, por exemplo, pela
conotação política do controle sobre o indivíduo e pelo imperativo da não-
discriminação de minorias) e, mais incisivamente ainda, pela própria
interdependência da tutela da privacidade com o livre desenvolvimento da
personalidade. Stefano Rodotà observa uma tendência à identificação de
sujeitos coletivos, minorias (ou mesmo maiorias) de diversas ordens, como
entes prejudicados pela violação desse perfil da privacidade, chegando
mesmo a afirmar uma tendência à mudança dos sujeitos que demandam pela
privacidade, com a predominância da coletividade: “(…) a evocação da
privacidade supera o individualismo tradicional e se dilata em uma
dimensão coletiva, a partir do momento que não se considera mais o
interesse do indivíduo enquanto tal, porém como membro de um determinado
grupo social”49.
Dessa dimensão coletiva surge, enfim, a conotação contemporânea da
proteção da privacidade, que manifesta-se sobretudo (porém não somente)
através da proteção de dados pessoais; e que deixa de dar vazão somente a
um imperativo de ordem individualista, mas passa a ser a frente onde irão
confluir vários interesses ligados à personalidade e às liberdades
fundamentais da pessoa humana, fazendo com que na disciplina da
privacidade passe a se definir todo um estatuto que englobe as relações da
própria personalidade com o mundo exterior.
1.2. Progresso, tecnologia e direito
La Raison c’est la folie du plus fort. La raison du moins fort c’est de la folie.
Eugène Ionesco
1. Tecnologia e sociedade
Carl Schmitt, em seu livro Der nomos der Erde50, confrontava o direito
da terra com o direito do mar. A terra, para ele, teria moldado o direito
através de sua materialidade; as suas possibilidades e limitações e o processo
pelo qual se dá a sua apropriação – o nomos51 – teriam condicionado a
própria estrutura do direito. “A Terra traz em seu próprio solo linhas e
limites, pedras de confins, muros, casas e outros edifícios. […] Família,
estirpe, classe, tipos de propriedade e de vizinhança, mas também formas de
poder e de domínio, fazem-se nela publicamente visíveis”52. Ao contrário da
terra, o mar se constituiria em um espaço diverso, marcado por uma espécie
de liberdade que não se encontra sobre a terra. O direito do mar apresenta,
consequentemente, uma gramática diversa, baseada na utilização por diversos
sujeitos de um espaço que a princípio é livre53.
Mais recentemente, a lição de Schmitt fez-se contemporânea na leitura de
dois juristas que nela observaram aspectos diversos, porém complementares,
oferecendo-nos um preâmbulo para algumas questões que apresentaremos a
seguir. Um deles, Natalino Irti, nota que Schmitt, ao estabelecer a ocupação
do espaço como o ato primordial que institui o direito, modelando-o de
acordo com seus desígnios, nega o normativismo que pressupõe a norma
como autônoma e onipotente, nos moldes propostos por Kelsen54. Para
Schmitt, o espaço – em especial o nomos – é elemento formador da própria
norma, que nele encontraria sua energia constitutiva e condicionante.
Stefano Rodotà, por sua vez, destaca que a análise de Schmitt
contemplava o ocaso de um direito cuja matriz é a ocupação da terra e dos
espaços, com limites bem delimitados e submetidos a uma única autoridade.
A consequência seria o obscurecimento dos limites concretos e palpáveis,
uma “de-localização” que induziria à produção de um novo tipo de espaço
para a atuação do direito – que, aliás, Schmitt menciona como sendo o caso
do direito do mar. Rodotà aproveita ainda para dar uma contribuição à leitura
da obra, propondo seu paralelo com a mudança do paradigma tecnológico –
de uma tecnologia constrita pelas amarras espaciais para outra, atual, que se
caracteriza pela maior fluidez e ubiquidade: “As velhas tecnologias tinham
essa vantagem. Eram visíveis, volumosas, rumorosas. Impunham-se com tal
materialidade que todos eram constritos a sentir seu peso e, quando pareciam
intoleráveis, bastava pedir a alguém para que as suprimisse”55.
Essas leituras nos servem a introduzir, respectivamente, dois elementos
capitais para nosso estudo, respectivamente: a consciência de que nossa tarefa
falhará caso não leve em consideração o direito como um fenômeno que
somente atinge sua plena realização depois de ser aplicado à realidade da
arquitetura social; bem como o fato de que tal “realidade” é hoje, em boa
parte,condicionada pelo desenvolvimento tecnológico.
Se hoje a privacidade e a proteção dos dados pessoais são assuntos na
pauta cotidiana do jurista, isto se deve a uma orientação estrutural do
ordenamento jurídico com vistas à atuação dos direitos fundamentais, tendo
como pano de fundo o papel do desenvolvimento tecnológico na definição de
novos espaços submetidos à regulação jurídica. A recente e significativa
experiência de vários ordenamentos com o tema nos indica que, para esse
trabalho, uma certa familiaridade é exigida, não somente com a tecnologia
em si – por importante que seja – mas também com o seu modo de operar e
influir na sociedade. Nas relações jurídicas mais estritamente ligadas à
tecnologia, o grau de indeterminação presente em toda tentativa de regulação
feita pelo direito é sensivelmente alto, o que potencializa situações de risco.
Portanto, a metodologia utilizada pelo jurista deve levar em consideração as
novas variáveis introduzidas, de forma a refletir na modelagem de institutos
adaptados a essa realidade.
A abordagem do desenvolvimento tecnológico pelo jurista ainda passa
pela conscientização sobre seus efeitos, chegando à reflexão sobre o papel do
ordenamento jurídico na promoção e defesa de seus valores fundamentais, em
um cenário em boa parte determinado pela tecnologia – o que pode implicar,
inclusive, reconhecer a insuficiência dos recursos jurídicos tradicionais para
tal fim. Essa dificuldade, traduzida em desafio, pode transformar-se em
estopim para a tarefa de aproximar o ordenamento do novo perfil que assume
a personalidade em uma sociedade que muda velozmente, na qual os centros
de poder e o espaço para a atuação do direito na regulação social são menos
claros.
Podemos estabelecer, assumindo o risco de generalizarmos, a Revolução
Industrial, como o momento a partir do qual a tecnologia passou a ocupar um
lugar de maior destaque na dinâmica social. Esse processo é contínuo e o
mercado passa a depender cada vez mais da tecnologia. Surge a figura do
Homo Faber56, destinado pela primeira vez a produzir mais do que poderia
consumir e que, subordinado ao imperativo do fazer, restava privado tanto de
consciência crítica quanto de responsabilidade sobre seus atos, reduzido que
estava pela técnica à essa dimensão quase operacional57.
Posteriormente, a tecnologia ganhou novo ímpeto e coloração com o
incremento na velocidade do seu desenvolvimento em várias áreas, como a
eletrônica, as telecomunicações e tantas outras. Essas tecnologias passaram a
condicionar diretamente a sociedade, com sua filosofia de trabalho, seus
instrumentos de produção, sua distribuição do tempo e de espaço; além de se
identificar diretamente com a substância dos instrumentos e mecanismos de
controle que podem causar a erosão da privacidade. A dimensão que o
fenômeno tecnológico assumiu passou então a se tornar motivo de reflexão
para as ciências sociais, entre elas o direito.
O vocabulário (e os fenômenos) próprio da tecnologia era, de início,
indiferente ao discurso jurídico, permanecendo assim até o momento em que
não foi mais possível deixar de levá-lo em consideração como uma
metalinguagem autônoma58. O início dos debates doutrinários sobre o direito
à privacidade ocorreu, não por coincidência, como consequência direta da
utilização de novas técnicas e instrumentos59 que inauguraram uma época na
qual a privacidade era posta em xeque justamente pela tecnologia60.
Para além do campo jurídico, por sua vez, o estudo do impacto da
tecnologia na sociedade é tema recorrente na literatura e em diversos
debates61. Entre a variedade de enfoques que costumam acompanhar essa
empreitada, podemos destacar alguns elementos comuns, como a dificuldade
em julgar os efeitos da utilização de novas tecnologias – o que já nos dá uma
primeira mostra das dificuldades da aplicação do discurso jurídico nesse
campo. A tecnologia apresenta um caráter de imprevisibilidade que lhe é
intrínseco; sua ação costuma se dar em um universo amplo e complexo a
ponto de tornar análises de impacto, projeções e testes, em alguns casos,
meras aproximações. Suas possibilidades e seus efeitos, por sua vez, vão
além daquilo que o homem jamais teve possibilidade de administrar
anteriormente. Ao mesmo tempo, por mais exógena que possa parecer, a
tecnologia é um produto do homem e de sua cultura, destinada a relacionar-se
com ele.
A convivência com essa imprevisibilidade é uma característica do nosso
tempo. Um elemento dessa incerteza é o risco que, para Ulrich Beck, é o
“enfoque moderno para prever e controlar as consequências futuras da ação
humana, os vários efeitos indesejados da modernização radicalizada”62. Para
o autor, esse risco, na sociedade da informação, apresenta características
particulares: criado voluntariamente pela ação do homem, a decisão de
produzi-lo não depende de considerações éticas ou morais porém de um
mecanismo decisional fortemente induzido pela tecnologia, um raciocínio
matemático no qual se procura prever seus efeitos futuros em termos
estatísticos63 – eliminando-se, assim, a importância de considerações
particularizadas e tornando o próprio risco algo impessoal, dissociado da ação
humana64. Tal discurso parece adequado à tecnologia: sua lógica não
costuma ser a da pessoa individualmente considerada, visto que os custos e os
meios de produção envolvidos requerem volume para que seja viável;
portanto, podemos dizer que esse sistema funciona tendo em vista
basicamente os grandes números – dentro dos quais estão diluídos os
indivíduos.
Tal imprevisibilidade, de toda forma, não é absorvida com facilidade. Sua
mera descrição, por si só, apresenta inúmeras dificuldades. Para representá-la,
já se recorreu à metáfora do Golem, que mencionamos brevemente,
novamente correndo o risco do reducionismo: O Golem, criatura da mitologia
hebraica, é um humanoide de argila, feito pelo homem; sua força e seu poder
crescem a cada dia. Ele segue as ordens do seu criador, auxilia-o, mas é um
pouco tolo e inconsciente de sua força: é capaz, se não for bem comandado,
de destruir seu próprio senhor. A ideia de um “Golem tecnológico”, aqui
utilizada para nos aproximarmos um pouco da proposição do problema, pode
induzir à constatação de que se ele não é, em última análise, responsável
pelos seus atos, continua sendo uma criação do gênio humano, por cujos
defeitos devemos responder – do que surge nossa obrigação de conhecê-los a
fundo65.
Nesse cenário, procuraremos demonstrar como a tecnologia deixou de ser
vista como uma mera situação de fato, isolada de uma conjuntura, para ser
um vetor condicionante da sociedade e, em consequência, do próprio direito.
A primeira consideração é que o desenvolvimento da tecnologia cria
relações a serem reguladas pelo direito. Consequentemente, uma posição de
indiferença em relação ao desenvolvimento tecnológico deixa de ser sequer
possível. Sua influência é certa, e o problema passa a ser, segundo as palavras
de Bernard Edelman, a forma como o direito absorve a tecnologia: “Se por
um lado o direito não julga a ciência, por outro ele não tem dúvidas de que
ela existe e de que produz efeitos na ordem jurídica. A biologia revolucionou
a visão jurídica do homem e da natureza, a informática, aquela dos direitos
de autor e dos direitos da personalidade, a pesquisa nuclear renovou a ideia
de soberania e de responsabilidade… Dito de outra forma, a evolução das
ciências e das técnicas não é indiferente ao direito.”66
Vittorio Frosini adverte o jurista para a necessidade de adquirir o que ele
denomina de consciência informática, um senso de responsabilidade sobre os
novos problemas propostos pela tecnologia67. Pressuposto dessa tarefa é que
a tecnologia, mesmo não sendo em si ciência, a influencia com sua própria
dinâmica, moldando-a de acordo com seu caráter68. Tal ação se reflete na
experiência, não somente científica, porém política e cultural de uma
sociedade; e um direito incapaz de compreender essa dinâmica perde contato
com a realidade social e se torna precocemente obsoleto. Na perspectiva daproteção da pessoa humana como valor máximo do ordenamento jurídico,
não levar em conta essas variáveis significa subtrair o direito ao seu próprio
tempo, tornando-o anacrônico, incapaz de enquadrar os interesses da pessoa
com a velocidade característica da tecnologia.
Um conceito hoje razoavelmente arraigado de “técnica” considera, esta
como o complexo de atos pelos quais os homens agem sobre a natureza,
procurando aperfeiçoar instrumentos que os ajudem a satisfazer suas
necessidades69; atos esses reunidos e sistematizados pela tecnologia – que é o
estado da técnica em um determinado momento.
Assim entendida, a tecnologia apresenta um caráter fortemente
instrumental e utilitarista. A tendência de convergir, nesses aspectos, uma
noção de tecnologia pela qual ela é basicamente um meio para atingir um fim
a ela exterior, é muito forte70. Por outro lado, existe o apelo feito por alguns
autores para relativizar ou mesmo negar a sua pretensa neutralidade, que
derivaria desse seu caráter instrumental.
Um conteúdo ideológico que negue essa sua pretensa neutralidade é algo
que dificilmente se pode depreender diretamente da tecnologia, ao menos em
uma primeira análise conceitual. Mas também o contrário é de difícil
demonstração: uma sociedade percorre os caminhos que lhe permitem as
possibilidades técnicas de sua época, e é inegável, por exemplo, o fato de que
o desenvolvimento do capitalismo moderno é tributário de uma tecnologia
em constante evolução que lhe fornece ambiente propício71. Essa constatação
é apenas um indício, embora importante, de que a noção de tecnologia não
pertence a um universo alheio a uma determinada conjuntura político-social.
Determinar qual é seu papel, porém, é tarefa árdua, e já levou o historiador
Melvin Kranzberg a afirmar que “a tecnologia não é boa nem má, nem sequer
é neutra”72 – no que foi de certa forma acompanhado por Pierre Lévy73.
Um método que pode nos levar a perceber o substrato ideológico presente
na tecnologia é considerá-la a partir do seu perfil dinâmico. Isso porque o seu
perfil puramente estático a relaciona basicamente com seu aspecto utilitarista
– o de ferramenta, instrumento para atingir um fim – o que, além de
neutralizar o presente discurso, foge à dimensão histórica intrínseca ao
problema. Esse perfil dinâmico, pelo qual observamos precisamente o
desenvolvimento tecnológico, é o ângulo de observação possível para
abranger o máximo de seus efeitos e colocar em questão todos os seus
aspectos relevantes, visto que a realimentação que a sociedade fornece à
tecnologia pelas mais diversas formas: financeiras, aceitação social e outras,
depende também de juízos de valor.
Esse assim chamado perfil dinâmico da tecnologia dialoga diretamente
com a noção de progresso e com toda a carga cultural que esse termo
representa.
2. A noção de progresso e suas implicações
A noção de progresso não é necessariamente vinculada à tecnologia.
Inclusive, a própria ideia de progresso deve muito a construções culturais que
seriam impensáveis há alguns séculos. Podemos mesmo conjeturar que esse
termo recebeu sua conotação atual apenas recentemente. Na antiguidade
clássica, por exemplo, a questão nem chegava a se colocar, ao menos nos
termos atuais: aos gregos, por exemplo, “é estranha a ideia do progresso,
porque não existe no futuro nenhum objetivo a atingir, nenhuma condição
humana menos trágica do que a presente”74. Os gregos, portanto, além de
tomarem o indivíduo e não a humanidade como ponto de referência,
concebiam o tempo como um ciclo75 (o “eterno retorno”), e não como uma
progressão.
Mesmo muito tempo depois e em outras sociedades, por nada se esperaria
que o mundo então conhecido sofresse transformações concretas por conta de
descobertas científicas durante o curso de uma vida humana76. A ciência
operava em uma dinâmica diversa da atual: o progresso não era algo com o
que se contava e nem necessariamente indicava qualquer tipo de melhoria77
ou mesmo de mudança na sociedade78.
Foi no Renascimento que passamos a poder identificar sinais de que essa
concepção se modificaria. A possibilidade de o homem intervir positivamente
sobre as coisas do mundo – e modificá-las – vislumbrava-se na cultura da
época, desde, por exemplo, um dos marcos literários do Renascimento e do
humanismo: a oração De Dignitate hominis, escrita em 1486 por Pico della
Mirandola, em cujo discurso de Deus aos homens (§ 5°) lemos que: “A
natureza dos outros seres, uma vez definida, é limitada pelas leis que ditamos.
No teu caso serás tu, livre de qualquer limitação, de acordo com o su arbítrio,
depositado por mim em suas mãos, a decidir sobre ela.”79
Hoje, verificamos que a consciência do poder da técnica e de suas
possibilidades como instrumento de mudança já estava presente desde o
Renascimento – basta fazer menção aos tantos projetos de Leonardo da
Vinci, uma personalidade que certamente encontrou ambiente cultural
propício para conceber ideias que poderiam de fato operar mudança, desde as
mais teoréticas até suas “máquinas de guerra” que habitualmente oferecia aos
Medici. Além da contribuição de Leonardo, muitos outros exemplos podem
ser colhidos – talvez um dos mais fortes seja a importância da invenção da
imprensa (a princípio por Gutemberg, por volta de 1461)80.
No século XVII, surge uma concepção de progresso que viria a ser
associada ao Iluminismo, segundo a qual o progresso se assemelharia a um
verdadeiro imperativo lógico, pelo qual cada geração se valeria das
conquistas e conhecimentos da geração anterior e as aperfeiçoaria, dando um
passo rumo a um estágio maior de civilização, o mesmo valendo para a
geração sucessiva e daí em diante, em uma escala onde o que se encontra
cronologicamente adiante estaria melhor colocado – uma escala, portanto,
valorativa. Essa concepção encontrou expressão na obra de Turgot, em seu
discurso Sur les progrès successifs de l’esprit humain81, de 1750, e teve sua
sistematização mais famosa na obra clássica do seu discípulo, o
enciclopedista Condorcet, Esquisse d’un tableau historique des progrès de
l’esprit humain, de 179582. A ideia de progresso passa a ser frequente no
pensamento do século XIX: presente no positivismo de Augusto Comte,
ressonou também nas teses evolucionistas de Charles Darwin e Herbert
Spencer, que identificaram uma evolução da vida das formas mais simples até
outras mais complexas.
Tal “entusiasmo” não foi partilhado por todos: vide Hegel que, por sua
vez notava um imobilismo na natureza, da qual nada de realmente novo se
poderia esperar – nihil sub sole novi – “nada de novo sob o sol”,
reconhecendo em aparentes inovações nada mais que o “jogo polimórfico de
suas estruturas”, e constatando que o único espaço no qual poderia surgir algo
de “novo” seria o espírito83. No entanto, a ideia de um progresso desejável e
com conotações positivas era bastante difundida – e não somente no
pensamento liberal. Karl Marx professa claramente a sua crença no progresso
histórico (no caso, passando pelo colapso do sistema capitalista), além de
reconhecer o impulso à mudança social proporcionado pela técnica: “The
hand-mill gives you society with the feudal lord; the stream-mill, society with
the industrial capitalist”, escrevia em seu The poverty of philosophy, lição
que parece ter reverberado em Lenin, a quem é atribuída a declaração de que
“o comunismo é o poder dos soviets mais a eletrificação do país”.
Nas formulações vistas, o progresso é tratado como um vetor temporal: é
uma relação entre o passado, presente e futuro, em perspectiva que costuma
privilegiar o porvir sobre o ser. Nesse sentido, deparamo-nos com um
elemento ínsito ao progresso, identificado por Agostino Carrino como a
violência – pois a ideia de progresso muitas vezes faz vislumbrar uma
situação final que, idealmente, deve se concretizar na sua absoluteza, isto é,
desprovida de tolerância84.
Pode-se relativizar o caráter absoluto dessa violência em certas
instâncias, porém é difícil não reconhecer a potência da tecnologia como
propulsora do progresso e o caráter autossuficiente

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