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Fiel presta homenagem a Iemanjá durante festa dedicada a este orixá, em Salvador, capital da Bahia, em 2011. capítulo 24 A religião Excetuadas as atividades culturais ligadas diretamente à sobrevivência do indivíduo e da espécie, podemos dizer que a religião é a atividade cultural mais antiga. Além disso, existe em todas as culturas. Por quê? Porque descobrimos que somos humanos quando temos a experiência de que somos conscientes das coisas, dos outros e de nós mesmos. Se a consciência é a descoberta de nossa humanidade, se a descobrimos porque nos diferenciamos dos outros seres da natureza, graças à linguagem e ao trabalho, podemos atribuir ao fato de sermos dotados de consciência a condição e a causa primordial do surgimento da religiosidade. unidade Viii A experiência do sagrado R a u l S p in a s s é /A g ê n c ia A T a rd e /F u tu ra P re s s 225 INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_U08_225a236_U08_C24.indd 225 5/9/13 3:40 PM A experiência do sagrado u n id a d e V I I I 226 A religiosidade Desde muito cedo os seres humanos percebem re- gularidades na natureza e sabem que não são a causa delas; percebem também que há na natureza coisas boas e ameaçadoras e reconhecem que não são os cria- dores delas. A percepção da realidade exterior como algo independente da ação humana nos conduz à cren- ça em poderes superiores ao humano e à busca de meios para nos comunicarmos com eles. Nasce, assim, a crença na(s) divindade(s). A consciência também é responsável pela desco- berta da morte. Um filósofo disse que somente os se- res humanos sabem que são mortais e outro escreveu: “O animal acaba, mas o homem morre”. O que isso quer dizer? Quando indicamos os principais traços da cultura, observamos que nela e por ela os seres humanos têm a experiência do tempo. Vimos também que outro aspecto fundamental da cultura é a atividade do tra- balho. Ora, ao trabalhar, as pessoas se relacionam com um tempo que não é o presente, e sim o futuro, pois o trabalho é feito em vista de algo que ainda não existe. Vimos também, ao estudarmos a memória, que ela é responsável pelo sentimento da identidade pessoal e da continuidade de uma vida que transcorre no tempo. A percepção do tempo, o trabalho e a memó- ria fazem com que as pessoas sejam capazes de esta- belecer relações com o ausente: o passado lembrado, o futuro esperado. Se reunirmos numa única experiência o sentimento do tempo e o da identidade pessoal, notaremos que os humanos são conscientes de que alguns seres e coisas desaparecem no tempo e outros surgem no tempo. Es- ses seres e coisas permanecem durante certo período porque os humanos são capazes de ligar passado, pre- sente e futuro, isto é, são capazes de perceber que exis- tem e que possuem identidade. Mas também são cons- cientes de que podem desaparecer um dia. Ou seja, sabem que morrem. Ora, por sermos conscientes tanto do tempo como uma presença (o presente) situada entre duas ausências (o passado e o futuro) quanto de nossa identidade e da identidade de nossos semelhantes, concebemos a per- manência dessa identidade num tempo futuro. Isto é, concebemos uma existência futura, num outro lugar ou num outro mundo, para onde vamos após a morte. A crença numa vida futura explica por que uma das primeiras manifestações religiosas em todas as culturas são os rituais fúnebres, que asseguram a entrada dos mortos na vida futura, e a busca de meios para comuni- car-se com eles. A crença em divindades e numa outra vida após a morte define o núcleo da religiosidade e se exprime na experiência do sagrado. Os atores Bengt Ekerot e Max von Sydow em cena do filme O sétimo selo, de 1957, dirigido por Ingmar Bergman. O cavaleiro joga xadrez com a morte na esperança de retardar a ação dela. R e p ro d u ç ã o /E v e re tt C o ll e c ti o n /K e y s to n e O sagrado O sagrado é a experiência da presença de uma po- tência sobrenatural que habita algum ser – planta, ani- mal, humano, coisas, ventos, águas, fogo. Essa potência é tanto um poder que pertence a determinado ser quanto algo que ele pode possuir e perder, não ter e adquirir. O sagrado é a experiência simbólica da dife- rença entre os seres, da superioridade e do poder de alguns sobre outros – sentidos como espantosos, mis- teriosos, desejados e temidos. INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_U08_225a236_U08_C24.indd 226 5/9/13 3:40 PM A religião ca pí t u lo 2 4 227 A sacralidade introduz uma ruptura entre natural e sobrenatural, mesmo que os seres sagrados sejam na- turais (fogo, água, ar): é sobrenatural a força ou a po- tência para realizar aquilo que os humanos julgam impossível contando apenas com a força e a capacida- de humanas. Assim, quase todas as culturas conside- ram que um guerreiro com força, destreza e invencibi- lidade espantosas é habitado por uma potência sagrada. Por sua forma e ação misteriosas, benévolas e malévolas, o fogo é um dos principais entes sagrados. Em regiões desérticas, a sacralização concentra-se nas águas, raras e necessárias. O sagrado opera o encantamento do mundo, ha- bitado por forças e poderes admiráveis que agem ma- gicamente. Criam vínculos de simpatia-atração e de an- tipatia-repulsão entre todos os seres, agem a distância, enlaçam entes diferentes com laços secretos e eficazes. Todas as culturas possuem vocábulos para exprimir o sagrado. Nas culturas da Polinésia e da Melanésia, a palavra que designa o sagrado é mana (e suas varian- tes). Nas culturas das tribos norte-americanas fala-se em orenda (e suas variantes), referindo-se ao poder má- gico possuído por todas as coisas. Entre as culturas dos indígenas sul-americanos, o sagrado é designado por palavras como tunpa e aigres. Nas africanas, há cente- nas de termos, dependendo da língua e da relação mantida com o sobrenatural. Na cultura hebraica, dois termos designam o sagrado: qados , significando aqueles seres ou coisas que são sepa- rados por Deus para seu culto, serviço, sacrifício; e herem, significando seres ou coisas que Deus separa de todos os outros para receberem uma punição, por terem desobe- decido ordens divinas. Por serem coisas separadas por Deus para o culto ou para uma punição, não podem ser tocadas pelo ser humano para seu uso e só podem ser tocadas ritualmente por aqueles que Deus autoriza. Sagrado é, pois, a qualidade excepcional que um ser possui e que o separa e distingue de todos os ou- tros, embora, em muitas culturas, todos os seres pos- suam algo sagrado pelo que se diferenciam uns dos outros. O sagrado pode suscitar devoção e amor, re- pulsa e ódio. Esses sentimentos suscitam outro: o res- peito feito de temor. Nascem, aqui, o sentimento reli- gioso e a experiência da religião. A religião pressupõe que, além do sentimento da di- ferença entre natural e sobrenatural, haja o sentimento da separação entre os humanos e o sagrado, mesmo que o sagrado habite nos humanos e na natureza. A religião Religião significa vínculo. Quais as partes vincula- das? O mundo profano e o mundo sagrado, isto é, a natureza e as divindades que habitam a natureza ou que habitam um espaço sobrenatural. Procissão do Círio de Nazaré, em outubro de 2012. Esse evento religioso anual leva milhares de pessoas às ruas de Belém, capital do Pará, para celebrar a fé em Nossa Senhora de Nazaré. A festa é considerada patrimônio cultural do Brasil. religião Palavra vinda do latim religio, formada pelo prefixo re (‘outra vez, de novo’ ) e pelo verbo ligare (‘ligar, unir, vincular’). Assim, indica a ligação ou reunião entre o natural e o sobrenatural, os seres humanos e os deuses , o passado e o presente, os antepassados e o s descendentes. T a m a r a S a r é /F u tu r a P r e s s INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_U08_225a236_U08_C24.indd 227 5/9/13 3:40 PM A experiência do sagradou n id a d e V I I I 228 Nas várias culturas, essa ligação é simbolizada no momento de fundação de uma aldeia, vila ou cidade: o guia religioso traça figuras no chão (círculo, quadrado, triângulo) e repete o mesmo gesto no ar (na direção do céu, ou do mar, ou da floresta, ou do deserto). Esses ges- tos delimitam um espaço novo, sagrado (no ar) e consa- grado (no solo), no qual se ergue o templo ou santuário. Como se acredita que a fundação do espaço coletivo foi feita pelos ancestrais guiados por deuses protetores, o vínculo se estabelece não só entre os homens e os deuses, mas também entre os descendentes e os ante- passados, os fundadores. Por esse motivo, em inúmeras religiões há cultos também para os ancestrais, que vi- vem uma vida num outro mundo e podem interceder junto aos deuses em nome de seus descendentes. A cerimônia da ligação fundadora aparece, por exemplo, na religião judaica, quando Javé doa ao povo o lugar onde deve habitar – a Terra Prometida –, indica onde o templo deve ser edificado, orienta como deve ser edificado e determina sua finalidade. Nele serão fei- tos os sacrifícios e nele será colocada a Arca da Aliança, símbolo do vínculo que une o povo e seu Deus. A fundação do espaço coletivo circunscreve um lu- gar, e a Arca, que contém a lei divina escrita, é um sím- bolo que recorda a primeira ligação: o sinal natural ofe- recido por Deus a Noé como prova de seu laço com ele e sua descendência, isto é, o arco-íris. Também no cristianismo a religião é explicitada por um gesto de união entre o céu e a terra. Na versão latina do Novo Testamento, o primeiro apóstolo, cujo nome hebraico era Simão, passa a ser chamado de Pedro (em latim, Petrus) para simbolizar a pedra (em latim, petra) sobre a qual é fundada a cidade cristã, isto é, a Igreja. Jesus disse a Pedro: “Tu és Pedro (Petrus) e sobre esta pedra (petra) edificarei a minha igreja e as portas do in- ferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as Chaves do Reino: o que ligares na Terra será ligado no Céu; o que desligares na Terra será desligado no Céu”. Por meio da sacralização e da consagração, a religião cria a ideia de espaço sagrado. Os céus, o monte Olim- po (na Grécia), as montanhas do deserto (em Israel), templos e igrejas (nas nossas sociedades) são santuá- rios. Em certas religiões esses lugares são a morada dos deuses; em outras, o lugar onde o deus se manifesta. O espaço da vida comum separa-se do espaço sagra- do: neste vivem os deuses, são feitas as cerimônias de culto, trazidas oferendas e feitas preces com pedidos às divindades; no primeiro transcorre a vida profana dos humanos. A religião organiza o espaço dando-lhe quali- dades culturais, diferentes das características naturais. A religião como narrativa da origem A religião não transmuta apenas o espaço. Também qualifica o tempo, dando-lhe a marca do sagrado. O tempo sagrado é uma narrativa. Narra a origem dos deuses e, pela ação deles, a origem das coisas, das plantas, dos animais e dos seres humanos. Por isso a nar- rativa religiosa sempre começa com expressões como: “no princípio”, “no começo”, “quando o deus X estava na Terra”, “quando a deusa Y viu pela primeira vez”, etc. Cerimônia do Ano-Novo Tibetano no templo Yonghe, ou templo Lama, em Pequim, na China, em fevereiro de 2012. A comemoração sagrada serviu também de protesto político contra a opressão do governo chinês em relação ao Tibete. M a rk R a ls to n /A g ê n c ia F ra n c e -P re s s e INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_U08_225a236_U08_C24.indd 228 5/9/13 3:40 PM A religião ca pí t u lo 2 4 229 A narrativa sagrada é a história sagrada, que os gregos chamavam mito. Este não é uma fabulação ilusória, uma fantasia sem consciência, mas a maneira pela qual uma sociedade narra para si mesma o seu começo e o de toda a realidade. Só tardiamente, quando surgiu a filosofia e, depois dela, a teologia, a razão exigiria que os deuses não fossem apenas imor- tais, mas também eternos, sem começo e sem fim. Antes, porém, da filosofia e da teologia, a religião nar- rava teogonias (do grego theos, ‘deus’; gonia, ‘gera- ção’), isto é, a geração ou o nascimento dos deuses, semideuses e heróis. O contraste entre o dia e a noite (luz e treva), entre as estações do ano (frio, quente, ameno, com flores, com frutos, com chuvas, com secas), entre o nasci- mento e a desaparição (vida e morte), entre os tipos de animais (terrestres, aquáticos, voadores, ferozes, dóceis), entre os tipos de humanos (brancos, negros, amarelos, altos, baixos, peludos, glabros), as técnicas obtidas pelo controle sobre alguma força natural (fogo, água, ventos, pedras, areia, ervas) evidenciam um mundo ordenado e regular, no qual os humanos nascem, vivem e morrem. A história sagrada ou mito narra como e por que a ordem do mundo existe e como e por que foi doada aos humanos pelos deuses. Assim, além de ser uma teo- gonia, a história sagrada é uma cosmogonia: narra o nascimento, a finalidade e o perecimento de todos os seres sob a ação dos deuses. Assim como há dois espaços, há dois tempos: o ante- rior à criação ou gênese dos deuses e das coisas – tem- po do vazio e do caos – e o tempo originário da gênese de tudo quanto existe – tempo do pleno e da ordem. Nesse tempo sagrado da ordem, novamente uma divi- são: o tempo primitivo, inteiramente divino, e o tempo do agora, profano, em que vivem os seres naturais, in- cluindo os seres humanos. Embora a narrativa sagrada seja uma explicação para a ordem natural e humana, ela não se dirige ao intelecto dos crentes, mas ao coração deles. Porque se dirige às paixões do crente (esperança, temor, amor, espanto), a religião lhe pede uma só coisa: fé, ou seja, a confiança, a adesão plena ao que lhe é ma- nifestado como ação da divindade. A atitude funda- mental da fé é a piedade, o respeito pelos deuses e pelos antepassados. A religião é crença, não é saber. A tentativa de transformar a religião em saber racional chama-se teologia. Ritos Porque a religião liga humanos e divindade, porque organiza o espaço e o tempo, os seres humanos preci- sam garantir que a ligação e a organização se mante- nham e sejam propícias. Para isso são criados os ritos. O rito é uma cerimônia em que gestos, palavras, objetos, pessoas e emoções determinados adquirem o poder misterioso de presentificar o laço entre os humanos e a divindade. Para agradecer dons e benefí- cios, suplicar novos dons e benefícios, lembrar a bonda- de dos deuses ou exorcizar sua cólera, as cerimônias ri- tualísticas são de grande variedade. No entanto, uma vez fixada a simbologia de um ritual, sua eficácia depen- derá da repetição minuciosa e perfeita do rito, tal como foi praticado na primeira vez, porque nela os próprios deuses orientaram os gestos e as palavras dos humanos. Um rito religioso é repetitivo em dois sentidos prin- cipais: a cerimônia deve repetir um acontecimento es- sencial da história sagrada (por exemplo, no cristianis- mo, o ritual da eucaristia e da comunhão repete a Santa Ceia); e, em segundo lugar, atos, gestos, palavras, obje- tos devem ser sempre os mesmos, porque foram, na primeira vez, consagrados pelo próprio deus. O rito é a rememoração perene do que aconteceu numa primei- ra vez e abole a distância entre o passado e o presente. Cerimônia de bar mitzvah em 2012, em Jerusalém. O bar mitzvah (’filho do mandamento’, em hebraico) é a cerimônia que insere o jovem judeu como membro adulto da comunidade judaica. Quando se trata de uma menina, diz-se bat mitzvah (‘filha do mandamento’). R ie g e r B e rt ra n d /h e m is .f r/ A g ê n c ia F ra n c e -P re s s e INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_U08_225a236_U08_C24.indd 229 5/9/13 3:40 PM A experiência do sagrado u n id a d e V I I I 230 Os objetos simbólicos Os seres e objetos simbólicos usados nosritos são retirados de seu lugar costumeiro, assumindo um sentido novo para toda a comunidade – protetor, perseguidor, benfeitor, ameaçador. Sobre esse ser ou objeto recai a noção de tabu. É assim, por exemplo, que certos animais se tornam sagrados, como a vaca na Índia e o cordeiro perfeito consagrado para o sa- crifício da Páscoa judaica. É assim, por exemplo, que certos objetos se tornam sagrados ou tabus, como o pão e o vinho consagrados pelo sacerdote cristão du- rante o ritual da missa, que só podem ser consumi- dos ritualisticamente pelos fiéis. Certos objetos se tornam símbolos sagrados into- cáveis, como os pergaminhos judaicos que contêm os textos sagrados antigos, certas pedras usadas pelos chefes religiosos africanos, etc. Do mesmo modo, em inúmeras religiões, as virgens primogênitas das princi- pais famílias se tornam tabus, como as vestais, na Roma antiga. Os tabus se referem ou a objetos e seres puros ou purificados para os deuses, ou a objetos e seres impu- ros, que devem permanecer afastados dos deuses e dos humanos. É assim que, em inúmeras culturas, a mulher menstruada é tabu (está impura) e, no judaísmo e no islamismo, a carne de porco é tabu (é impura). Manifestação e revelação Há religiões em que os deuses se manifestam: sur- gem diante dos humanos em beleza, esplendor, perfei- ção e poder e os levam a ver outra realidade, escondida sob a realidade cotidiana, na qual o espaço, o tempo, as formas dos seres, os sons e as cores, os elementos en- contram-se organizados e dispostos de outra maneira, secreta e verdadeira. A religião é manifestação da ver- dade. Era isso, como vimos no Capítulo 12, o que signi- ficava a palavra grega alétheia, a verdade como mani- festação ou iluminação. Há também religiões em que o deus revela verdades aos humanos sem fazê-los sair de seu mundo. Podem ter sonhos e visões, mas o fundamental é ouvir o que a divindade lhes diz, porque dela provém o sentido pri- meiro e último de todas as coisas e do destino humano. O que se revela não é a verdade do mundo por meio da viagem visionária a outro mundo: o que se revela é a vontade do deus, na qual o crente confia e cujos desíg- nios ele cumpre. Era isso o que significava, como tam- bém vimos no Capítulo 12, a palavra hebraica emunah, ‘assim seja’. Judaísmo, cristianismo e islamismo são reli- giões da revelação. Nas duas modalidades de religião, porém, tanto a manifestação da verdade quanto a revelação da vonta- de divina exprimem o mesmo acontecimento: aos hu- manos é dado conhecer seu destino e o de todas as coisas, isto é, as leis divinas. A lei divina Os deuses são poderes misteriosos. São forças perso- nificadas e por isso são vontades. Misteriosos porque suas decisões são imprevisíveis e, muitas vezes, incom- preensíveis para os critérios humanos de avaliação. Vontades porque o que acontece no mundo manifesta um querer pessoal, supremo e inquestionável. A reli- gião, ao estabelecer o laço entre o humano e o divino, procura um caminho pelo qual a vontade dos deuses seja benéfica e propícia aos seus adoradores. A vontade divina pode tornar-se parcialmente co- nhecida dos humanos na forma de leis: decretos, mandamentos, ordenamentos, comandos emana- dos da divindade. Assim como a ordem do mundo de- corre dos decretos divinos, também o mundo humano está submetido a mandamentos divinos, dos quais os mais conhecidos, na cultura ocidental, são os Dez Man- damentos, dados por Javé a Moisés. Também são de origem divina as Doze Tábuas da Lei que fundaram a república romana e as leis gregas expli- citadas na Ilíada e na Odisseia, de Homero, bem como nas tragédias. O modo como a vontade divina se manifesta em leis permite distinguir dois grandes tipos de religião. Há religiões em que a divindade usa intermediários para revelar a lei. É o caso da religião judaica, em que Javé se vale, por exemplo, de Noé, Moisés, Samuel, para dar a conhecer a lei. Também nessa religião a divindade não cessa de lembrar ao povo as leis, sobretudo quando es- tão sendo transgredidas. Essa rememoração da lei e das promessas de castigo e redenção nela contidas é a tare- fa do profeta, arauto de Deus. tabu Palavra do tonganês (idioma d as ilhas de Tonga, na Polinésia) que significa ‘intocá vel’: algo que não pode ser tocado nem manipulado p or ninguém que não esteja religiosamente autoriza do para isso. INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_U08_225a236_U08_C24.indd 230 5/9/13 3:40 PM A religião ca pí t u lo 2 4 231 Também na religião grega os deuses se valem de in- termediários para manifestar sua vontade. Esta, por ser misteriosa e incompreensível, exige um tipo especial de intermediário, o oráculo, que interpreta os enigmas di- vinos, vê o passado e o futuro e os expõe aos humanos. Há religiões, porém, em que os deuses manifestam sua lei diretamente, sem recorrer a intermediários. São religiões da iluminação individual e do êxtase místico, como é o caso da maioria das religiões orientais, que exigem, para a iluminação e o êxtase, uma educação especial do intelecto e da vontade dos adeptos. Frequentemente, profetas e oráculos entram em transe para receber a revelação, mas a recebem não porque tenham sido educados para isso, e sim porque a divindade os escolheu para manifestar-se neles. O tran- se dos profetas e dos oráculos difere do êxtase místico dos iluminados porque, no primeiro, o indivíduo tem acesso a um conhecimento que pode compreender e por isso pode transmiti-lo aos outros, enquanto no se- gundo não há conhecimento, não há atividade intelec- tual que depois seja transmissível a outros – o que há é mergulho e fusão do indivíduo na divindade, numa ex- periência intraduzível e intransmissível. As religiões reveladas – diferentes, portanto, das reli- giões extáticas, do êxtase – realizam, conservam e transmitem, por escrito ou oralmente, a revelação rece- bida em visões e sonhos por profetas e oráculos. A vida após a morte Vimos que o sentimento religioso e a experiência da religião são inseparáveis da percepção de nossa morta- lidade e da crença em nossa imortalidade. Toda religião, portanto, explica não só a origem da ordem do mundo natural, mas também a dos seres humanos e lhes ensina por que são mortais e o que podem ou devem esperar após a morte. Na quase totalidade das religiões o mistério da mor- te é sempre explicado como consequência de alguma falta cometida contra algum deus ou de alguma ofensa que os homens fizeram aos deuses. No princípio os ho- mens eram imortais e viviam na companhia dos deuses ou de Deus; a seguir, alguém ou alguns cometem uma transgressão imperdoável (um pecado) que leva à gran- de punição: a mortalidade para todos. No entanto, a imortalidade não está totalmente perdida, pois os deu- ses (ou Deus) concedem aos mortais uma vida após a morte, desde que, na vida presente, respeitem a von- tade e a lei divinas. Como é a imortalidade? Algumas religiões afirmam a imortalidade do corpo humano assegurando que este possui um duplo, feito de outra matéria, que per- manece após a morte. Esse duplo, por ser feito de maté- ria sutil, pode penetrar no corpo de outros seres para se relacionar com os vivos. Outras religiões acreditam que o corpo é mortal, mas habitado por uma entidade – espírito, alma, sombra imaterial, sopro – que será imor- tal se os decretos divinos e os rituais tiverem sido respei- tados pelo fiel. No caso do judaísmo e do cristianismo, além disso, a imortalidade também depende de o gêne- ro humano ter recebido o perdão divino pelo pecado dos ancestrais, Adão e Eva. Por acreditarem firmemente numa outra vida, os adeptos das religiões realizam ritos funerários, encar- regados de preparar e garantir a entrada do morto na outra vida. O ritual fúnebre limpa, purifica, adorna e perfuma o corpo morto e o protege com a sepultura. Pelo mesmo motivo, os cemitérios, na maioria das re- ligiões e particularmente nas africanas,indígenas e ocidentais antigas, são lugares consagrados, cam- pos-santos, nos quais somente alguns, e em certas condições, podiam penetrar. Em algumas religiões, como nas do Egito e da Gré- cia antigos, a perfeita preservação do corpo morto, isto é, de sua imagem, era considerada essencial para que ele fosse reconhecido pelos deuses no reino dos mortos e recebesse a imortalidade. No caso dos egípcios, havia uma instituição social, a Casa dos Mor- tos, encarregada de embalsamar os cadáveres, prepa- rando-os para a preservação na vida futura. No caso dos gregos, era preciso que o corpo morto permane- cesse inviolado para que dele nascesse sua imagem viva e inteira, sua sombra, pois era esta que partia para o outro mundo e se tornava imortal. Nas religiões do encantamento, como a grega an- tiga, as africanas e as indígenas das Américas, a morte é concebida de diversas maneiras, mas em todas elas o morto fica encantado, isto é, torna-se algo mágico. Em algumas, o morto deixa seu corpo para entrar num outro e permanecer no mundo sob formas varia- das; ou seu espírito deixa seu corpo para permanecer no mundo, agitando os ventos, as águas, o fogo, ensi- nando canto aos pássaros, protegendo as crianças, ensinando os mais velhos, escondendo e achando coi- sas. Em outras, o morto tem sua imagem ou seu espí- rito levado ao mundo divino e ali desfruta das delícias de uma vida perenemente perfeita e bela; se, porém, INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_U08_225a236_U08_C24.indd 231 5/9/13 3:40 PM A experiência do sagrado u n id a d e V I I I 232 suas faltas terrenas foram tantas e tais que não pôde ser perdoado, sua imagem ou espírito vagará eterna- mente pelas trevas, sem repouso e sem descanso. O mesmo lhe acontecerá se os rituais fúnebres não puderem ser realizados ou se não tiverem sido realiza- dos adequadamente. Esse perambular pelas trevas não existe nas religiões de reencarnação. Nestas, em lugar dessa punição, o espírito deverá ter tantas vidas e sob tantas formas quantas necessárias à sua purificação, até que possa participar da felicidade perene. Nas religiões da salvação, como é o caso do judaís- mo, do cristianismo e do islamismo, a felicidade pere- ne não é apenas individual, mas também coletiva. São religiões em que a divindade promete perdoar a falta originária, enviando um salvador que, sacrificando-se pelos humanos, garante-lhes a imortalidade e a re- conciliação com Deus. Como a falta ou queda originária atingiu a todos os humanos, o perdão divino e a redenção decorrem de uma decisão divina, que deverá atingir a todos os hu- manos, se acreditarem e respeitarem a lei divina escrita nos textos sagrados e se guardarem a esperança na pro- messa de salvação que lhes foi feita por Deus. Nesse tipo de religião, a obra de salvação é reali- zada por um enviado de Deus – daí vêm, do hebraico, messias, e, do grego, cristo. As religiões da salvação são messiânicas e coletivas. Um povo – povo de Deus – será salvo pela lei e pelo enviado divino, que vem realizar a esperança de felicidade perene no mundo, após sofri- mentos profundos, por meio da regeneração, purifica- ção e libertação dos seres humanos. A essa esperança é dado o nome milenarismo. O bem e o mal As religiões ordenam a realidade segundo dois prin- cípios fundamentais: o bem e o mal (ou a luz e a treva, o puro e o impuro). Nesse aspecto, há três tipos de religiões: as politeís- tas, nas quais há inúmeros deuses, alguns bons, outros maus, ou até mesmo deuses que podem ser ora bons, ora maus; as dualistas, em que a dualidade do bem e do mal está encarnada e figurada em duas divindades an- tagônicas que não cessam de combater-se; e as mono- teístas, em que há um único deus, o qual é tanto bom quanto mau, ou, como no caso do judaísmo, do cristia- nismo e do islamismo, é o bem, sendo o mal provenien- te de entidades demoníacas, inferiores à divindade e em luta contra ela. No caso do politeísmo e do dualismo, a divisão bem/mal não é problemática, assim como não o é nas religiões monoteístas que não exigem da divindade comportamentos sempre bons, uniformes e homogê- neos, pois a ação do deus é insondável e incompreen- sível. O problema, porém, existe no monoteísmo ju- daico-cristão e islâmico. milenarismo Originado de uma crença pop ular cristã e com base em passagens bíblicas, esse termo designa a esperança na segunda volta de Cristo, que viria combater os males, vencer o demônio, encarnado num governante perverso (o A nticristo), e instituir o reino de Deus na Terra, com a duração de mil anos de abundância, justiça e felici dade. Ao fim desse período, haveria a ressurreiçã o dos mortos, o Juízo Final e o fim do mundo terren o. O reino de Deus na Terra, portanto, antecederia e prepararia o fim do mundo, ao cabo do qual se in iciaria a vida eterna dos eleitos por Deus. No entanto, o termo milenarismo costuma ser usado no sentido mais amplo e mais geral de esperança num temp o futuro de felicidade, justiça, harmonia, paz e abun dância. Esse tempo será o último tempo ou o fim d os tempos. A “Donzela de Llullaillaco”, a jovem inca sacrificada e mumificada há quinhentos anos, oferecida aos deuses em ritual religioso, é exposta ao público em Salta, norte da Argentina, em 2007. N a ta c h a P is a re n k o /A s s o c ia te d P re s s /G lo w I m a g e s INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_U08_225a236_U08_C24.indd 232 5/9/13 3:40 PM A religião ca pí t u lo 2 4 233 Com efeito, a divindade judaico-cristã e islâmica é de- finida teologicamente como um ser positivo ou afirmati- vo: Deus é bom, justo, misericordioso, clemente, criador único de todas as coisas, onipotente e onisciente, mas, sobretudo, eterno e infinito. Deus é o ser perfeito por ex- celência, é o próprio bem, e este é eterno como Ele. Se o bem é eterno e infinito, como surgiu sua negação, o mal? Que positividade poderia ter o mal se, no princípio, havia somente Deus, eterna e infinitamente bom? Admitir um princípio eterno e infinito para o mal seria admitir dois deuses, incorrendo no primeiro e mais grave dos pecados, pois tanto os Dez Mandamentos quanto o Credo cristão e o Alcorão islâmico afirmam haver um só e único Deus. Além disso, Deus criou todas as coisas do nada; tudo o que existe é, portanto, obra de Deus. Se o mal existe, seria obra de Deus? Porém, se Deus é o próprio bem, como poderia criar o mal? Como o perfeito criaria o imperfeito? Qual é, pois, a origem do mal? A criatura. Deus criou inteligências imateriais perfeitas, os anjos. Entre eles surgem alguns que aspiram a ter o mesmo poder e o mesmo saber da divindade e lutam contra ela. Menos poderosos e menos sábios, são vencidos e expulsos da presença divina. Não reconhecem, porém, a derrota. Formam um reino separado, de caos e trevas, prosseguem na luta contra o Criador. Que vitória maior teriam senão corromper a mais alta das criaturas após os anjos, isto é, o homem? Valendo-se da liberdade dada ao homem, os anjos do mal corrompem a criatura humana e, com esta, o mal entra no mundo. Culto evangélico em templo no bairro do Belém, em São Paulo, em 2002. M A R X , Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 2. ed. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 145. diálogos filosóficos A religião faz o homem? Este é o fundamento da crítica irreligiosa: o homem faz a religião, a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o autossentimento do homem, que ainda não se conquistou a si mesmo ou já se perdeu novamente. Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Esse Estado e sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião [...]é a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui uma realidade verdadeira. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião. A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e do protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo. C ri s ti a n o M a s c a ro /A rq u iv o d a e d it o ra INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_U08_225a236_U08_C24.indd 233 5/9/13 3:40 PM A experiência do sagrado u n id a d e V I I I 234 O mal é o pecado, isto é, a transgressão da lei divina que o primeiro homem e a primeira mulher pratica- ram. Sua punição foi o surgimento dos outros males: morte, doença, dor, fome, sede, frio, tristeza, ódio, am- bição, luxúria, gula, preguiça, avareza. Pelo mal, a criatu- ra afasta-se de Deus, perde a presença divina e a bonda- de original que possuía. O mal, portanto, não é uma força positiva de mesma realidade que o bem, mas é pura ausência do bem, nega- tividade, fraqueza. Assim como a treva não é algo positi- vo, mas simples ausência da luz, assim também o mal é pura ausência do bem. Há um só Deus, e o mal é estar longe e privado d’Ele, pois Ele é o bem e o único bem. O pecado Há religiões da exterioridade e religiões da interiorida- de. Nas primeiras, os deuses possuem forma visível (hu- mana, animal, vegetal ou mineral) e se dirigem às ações externas e visíveis dos seres humanos; suas ordens e seus mandamentos se referem a comportamentos divinos e humanos externos e visíveis, e a relação dos homens com os deuses se exprime nos ritos e nas cerimônias. Nas religiões da interioridade, a divindade é concebi- da como puro espírito, invisível para os olhos de nosso corpo, e se dirige ao espírito, à alma do crente, falando à sua consciência e julgando os atos humanos pelas in- tenções interiores do agente. Além dos ritos e cerimô- nias, na religião da interioridade a relação fundamental do homem com o(s) deus(es) é de espírito para espírito. Em algumas religiões da exterioridade, o pecado é uma ação externa visível, cometida voluntária ou in- voluntariamente pela violação de um tabu ou pela má realização de um rito. A falta é irreverência, sentida na forma da vergonha, e traz como consequência uma impureza que contamina o faltoso e o grupo, exigindo rituais de purificação ou sacrifícios expiatórios. Em outras (como as dos babilônios, celtas, budistas, chineses, gregos antigos, hindus), o pecado não é ape- nas uma irreverência vergonhosa, mas também uma culpa causada, seja porque o pecador está possuído por demônios ou maus espíritos, seja porque se torna desmedido, diz, faz e deseja o que não deve. Nesses casos, além dos rituais de purificação e de sacri- fícios, tornam-se necessários os exorcismos (praticados sobre os endemoniados e os enfeitiçados) e purificações individuais (autoflagelação, jejum, abstinência sexual). Nas religiões da interioridade, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, a falta ou pecado é uma ofensa cometida contra Deus por meio de uma ação interna invisível – a intenção – que se manifesta num ato externo visível, tendo como causa ou uma vontade má ou um entendimento equivocado. Quando causa- do por uma vontade má, o pecado é um crime; quan- do causado por um entendimento equivocado, é um erro. É uma transgressão experimentada na forma de culpa, o que exige expiação individual. Nas religiões da exterioridade, o perdão depende exclusivamente de uma graça divina, isto é, a divindade pode ou não perdoar, independentemente dos rituais realizados pelo indivíduo ou pelo grupo. Nas religiões da interioridade, o perdão – que também depende da graça divina – exige uma experiência interior precisa, o arrependimento, isto é, o reconhecimento da falta e a prática de ações que manifestem externamente a dis- posição do arrependido, seja por meio de preces e ora- ções, seja por meio de sacrifícios infligidos a si mesmo (autoflagelação, jejum, abstinência sexual, entrega de bens na forma de esmolas, etc.). Na maioria das religiões da exterioridade, a falta ou pecado é uma fatalidade. O fatum (‘destino’, em latim, também traduzido por ‘fado’) ou a moira (‘destino fa- tal’, em grego) determinou desde sempre que o pecado seria cometido por alguém, para desgraça sua e de seu grupo. A falta não depende da vontade do agente, mas de uma decisão divina, ou da possessão e enfeitiçamen- to do pecador, ou de que ele perdeu a medida do que é permitido aos humanos. Nas religiões da interioridade, a falta nasce da liber- dade do agente, que, conhecendo o bem e o mal, trans- gride consciente e voluntariamente o decreto de Deus. Pecado original No judaísmo, o pecado é infringir a Torá, a lei divina revelada. Como o pecado contamina o grupo, o peca- dor deve não só aceitar, mas também pedir a Deus pu- nição e sofrimentos pelos quais expie a culpa, purifique a si mesmo e ao grupo. Assim, o judaísmo enfatiza as ideias de confissão, arrependimento e penitência. No islamismo, o Grande Pecado é a idolatria (fazer imagens de Alá) e o politeísmo. Os demais pecados são os mesmos do judaísmo, uma vez que o Islã reconhece a lei divina revelada a Moisés. O crente é salvo, apesar de seus pecados, pela constância, pela fé, pelas obras e, aci- ma de tudo, por seu arrependimento e sua penitência. O cristianismo, com São Paulo e Santo Agostinho, introduz a ideia de pecado original. Esse pecado não é apenas o primeiro pecado nem apenas o pecado INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_U08_225a236_U08_C24.indd 234 5/9/13 3:40 PM A religião ca pí t u lo 2 4 235 Declararam também absurdo o antropomorfismo, que atribui aos deuses qualidades e propriedades hu- manas num grau superlativo. A razão, porém, sabe que eles devem ser supra-humanos, ou seja, as qualidades dos seres divinos não podem confundir-se com as da natureza humana. Essas críticas foram retomadas e sis- tematizadas por Platão, Aristóteles e pelos estoicos. Outra crítica à religião foi feita pelo grego Epicuro e retomada pelo latino Lucrécio. A religião, dizem eles, é fabulação ilusória, nascida do medo da morte e da na- tureza. É superstição. No século XVII, o filósofo Espinosa retoma essa críti- ca, mas, em vez de começar pela religião, começa pela superstição. Os humanos, diz ele, têm medo de que ma- les lhes aconteçam e esperança de que bens lhes adve- nham. Movidos por essas duas paixões, não confiam em si mesmos nem nos conhecimentos racionais para evi- tar males e atrair bens. Passional ou irracionalmente, julgam que a origem dos males e dos bens encontra- -se em forças caprichosas, como a sorte e a fortuna, e passam a acreditar nelas como poderes que os gover- nam arbitrariamente. Essa crença é a superstição. Para alimentá-la, criam a religião e esta, para conser- var seu domínio sobre os homens, institui o poder teo- lógico-político. Assim, sacerdotes e teólogos fazem crer que as leis políticas não foram instituídas pelos seres hu- manos, mas pela vontade de Deus ou dos deuses. Esta, por sua vez, teria sido revelada apenas a alguns, que, por isso, têm o direito divino de comandar os demais. Nascida do medo supersticioso, a religião está, por- tanto, a serviço da tirania. Esta é tanto mais forte quanto mais os homens forem deixados na ignorância da verda- deira natureza de Deus, das verdadeiras causas de todas as coisas e da origem humana do poder político e das leis. Confessionário de rua no santuário de Jasna Góra, em Czestochowa, Polônia, em 1981. Todo ano milhares de cristãos peregrinam até lá para participar do Dia da Assunção. P a s c a l M a n o u k ia n /S y g m a /C o rb is /L a ti n s to c k cometido nas origens, quando Adão e Eva viviam no Paraíso. Ele é original porque o estado de pecado que marca a natureza humana se deve à origem dela, ou seja, porque o próprio gênero humano se originou de um pecado. O pecado dos pais poluiu para sempre toda a descendência humana. O pecado original difere dos demais porque nele o homem e a mulher desejaram possuir o mesmo saber e o mesmo poder de Deus. Essa falta não pode ser corri- gida por nenhuma ação humana porque nenhum ser humano possui a mesma dignidade que Deus. Somen- te o próprio Deus pode expiar o pecado original: essa expiação é realizada pelo sacrifício do messias, do cris- to, isto é, do enviado que é o deus encarnado ou o Filho de Deus, Jesus. Para o cristianismo, o pecado é um problema teoló- gico insolúvel, pois Deus é onipotente e onisciente, sabe tudo desde a eternidade e, portanto, conhece previa- mente o pecador. Se pune o pecado, mas sabia que se- ria cometido, não seria injusto por não tê-lo impedido? Se conhece eternamente quem pecará e quem não pe- cará, não será Deus como o fatum e a moira? E como falar na liberdade e no livre-arbítrio do pecador se Deus sabia que ele cometeria o pecado? Críticas à religião As primeiras críticas à religião feitas no pensamento ocidental vieram dos filósofos pré-socráticos, que criti- caram o politeísmo e o antropomorfismo dos deuses. Em outras palavras, afirmaram que, do ponto de vista da razão, a pluralidade dos deuses é absurda, pois a es- sência da divindade é a plenitude infinita; portanto, não pode haver senão uma única potência divina. INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_U08_225a236_U08_C24.indd 235 5/9/13 3:40 PM A experiência do sagrado u n id a d e V I I I 236 A crítica filosófica à religião concentrou-se, pouco a pouco, na afirmação da diferença entre a crença numa divindade sobrenatural que impõe leis aos seres huma- nos e o conhecimento racional da essência de Deus. Isso levou, nos séculos XVII e XVIII, à ideia de uma reli- gião não revelada, não sobrenatural, chamada deísmo. Voltando-se contra a religião revelada e institucio- nalizada como poder eclesiástico e poder teológico- atividades 1. Por que a consciência do tempo nos leva à consciência da morte? Qual é o papel dessa consciência no surgi- mento da religiosidade? 2. O que é a experiência do sagrado? Como ela opera o “encantamento do mundo”? 3. Por que a religião se dirige às emoções? Quais são os pa- péis da fé e da piedade na religião? 4. Qual é a função dos ritos? Ilustre sua resposta com um exemplo. 5. O que é um objeto tabu? Dê exemplos de outros obje- tos simbólicos sagrados e explique sua função. 6. Explique a diferença entre religiões da revelação das leis e religiões da iluminação mística. 7. Como as religiões explicam a morte? O que é a promes- sa da imortalidade feita pelas religiões? 8. Por que o milenarismo diz respeito à esperança por justi- ça e felicidade? 9. O que é o pecado? Como ele ocorre no judaísmo e no islamismo? W a rl e y L e it e /B ra zi l P h o to P re s s /F o lh a p re s s Esta atividade trabalha com conteúdos de Filoso- fia e Sociologia. e Com base nos conhecimentos vistos neste capítulo, escolha uma religião, pesquise sobre ela e indique como seus dogmas e suas crenças entram em choque com questões políticas e morais discutidas na socieda- de em que ela é praticada. a filosofia nas e ntrelinhas 10. Por que o pecado é um problema teológico insolúvel para o cristianismo? 11. Como, com base na superstição, Espinosa criticou as reli- giões? Consulte na linha do tempo o período em que ele viveu e relacione seu pensamento sobre a religião com o contexto em que vivia. Cena do documentário Santo forte, de Eduardo Coutinho. D iv u lg a ç ã o /C E C IP - C e n tr o d e C ri a ç ã o d e I m a g e m P o p u la r IndIcaçãO de fIlme Santo forte Direção de Eduardo Coutinho. Brasil, 1999. Documentário sobre a religio- sidade de moradores da favela Vila Parque da Cidade, situada na zona sul do Rio de Janeiro. O filme se baseia em uma pesqui- sa sobre identidades brasileiras e diversidade religiosa. Manifestação de fiéis ca tólicos, em São Paulo, em março de 2012, contra decisão do S upremo Tribunal Federa l que autorizou o aborto de fetos anencé falos (sem cérebro). -político, os filósofos afirmaram a existência de um Deus que é uma força ou uma energia inteligente, imanente à natureza, conhecido pela razão e contrá- rio à superstição. Observamos, portanto, que as críticas à religião voltam-se contra dois de seus aspectos: o encanta- mento do mundo, considerado superstição, e o poder teológico-político institucional, considerado tirânico. INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_U08_225a236_U08_C24.indd 236 5/9/13 3:40 PM