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Diálogos entre mito, Arte e Filosofi a CAPÍTULO Estudaremos neste capítulo: 21 Rupturas entre mito e Filosofi a A voz dos poetas Mito e tradição Mito: uma concepção de mundo 2 Habilidades da BNCC: EM13CHS101 EM13CHS104 EM13CHS106 EM13CHS202 EM13CHS203 EM13CHS204 EM13CHS303 EM13CHS501 Narciso, de Caravaggio, 1594-1596. Óleo sobre tela de 112 cm 3 92 cm. R e p ro d u ç ã o /G a le ri a N a c io n a l d e A rt e A n ti g a d o P a la c io B a rb e ri n i, R o m a , It a lia Observe a imagem da abertura deste capítulo e responda: 1. Serão os mitos meras histórias fantasiosas sem um sentido real? 2. Como essas histórias sobrevivem por tantos séculos? Quando Narciso morreu, o seu lago de prazer passou de uma taça de doces águas para um cálice de lágrimas salgadas, e as Ninfas dos Montes lamentaram-se, enquanto atravessavam os bosques, no seu dever de cantar ao lago e reconfortá-lo. E quando elas viram que o lago tinha mudado de uma taça de doces águas para um cálice de lágrimas salgadas, soltaram as tranças verdes dos seus cabelos e choraram para o lago, dizendo-lhe: — Não estamos admiradas que mergulhes dessa maneira no luto por Narciso, tão belo ele era… — Mas, o Narciso era belo? perguntou o lago. — Quem o poderá saber melhor do que tu? responderam as Ninfas. — Por nós passou ele sempre passou, mas foi por ti que procurou e se deitou nas tuas margens e olhou para ti. E foi no espelho das tuas águas que re� etiu a sua própria beleza. E o lago respondeu: — Mas eu amei Narciso porque enquanto ele se alongava sobre as minhas margens e olhava para mim, em baixo, no espelho dos seus olhos, eu vi sempre a minha beleza re� etida. WILDE, Oscar. Poema em prosa. Trad. Possidónio Cachapa. Lisboa: Cavalo de Ferro, 2002. O mito está ligado às tradições dos povos, constituindo as referências fundamentais que lhes conferem uma identidade, pois traduz a sua primeira compreensão de mundo, ajudando-os a compreender e ordenar o cosmos, dando-lhe um sentido. O nascimento da Filosofi a provoca uma ruptura nessa concepção de pensamento. Ao fazerem da Razão (em grego, Logos) e não mais do Mito (Mythos) o fundamento de sua compreensão e interpretação dos fenômenos, foi criada uma nova concepção de ciência e de pensamento. 1. Os mitos fazem parte das tradições dos povos, constituindo as referências fundamentais que lhe confere uma identidade. Suas histórias e seus personagens sobrenaturais não são uma ilusão ou mentira, mas arquivos históricos das crenças coletivas acumuladas pelas culturas e transmitidas pela oralidade, que traduzem sua primeira compreensão de mundo, aquilo que os ajuda a ordenar o cosmos, dando-lhe um sentido. 2. As histórias narradas pelos mitos representam o imaginário humano de diferentes épocas, denunciando medos, desejos, sentimentos e violências enraizados na consciência humana. O mito dirige-se ao interior do humano que, identifi cando-se com suas lendas e histórias criadas e organizadas pela memória coletiva, sente-se tocado profundamente. 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 21 08/09/20 08:04 2222 Mito: uma concepção de mundo Neste capítulo, você vai estudar o universo do pensamento mítico e suas especificidades como forma de conhecimento. Não se pretende aqui esgotar os mitos gregos, descrevendo cada um, em suas características e funções. O trabalho exigiria uma quan- tidade tão grande de informações, que nenhum livro teria espaço suficiente. Mas é possível afirmar, com inspiração em Sócrates (você se lembra?), que a quantidade de informações não é sufi- ciente para a compreensão da essência do mito como forma de conhecimento. Porque o mito é, acima de tudo, formação, e qual- quer forma de traduzi-lo, a partir de um acúmulo de informações, reduziria a significância dessa forma de saber. Inicialmente, é necessário compreender como se processa a leitura do mundo por meio do mito. Para isso, aqui está presente aquilo que funda o mito como forma de saber, com orientações co- muns a todos eles. Esta é uma das importantes funções do filoso- far: olhar o tema em sua totalidade e filtrar, do seu conhecimento, aquilo que é de fato relevante. Ao estudar mitologia grega, primei- ramente, é preciso se despojar de determinadas ideias preconcebi- das, com base nos modelos disponíveis atualmente. Não é possível medir a importância do pensamento mítico comparando-o a outras formas de conhecimento, mas compreendê-lo como uma forma de saber em suas especificidades que nada deixam a desejar, em ter- mos de profundidade e de inteligência, a outras formas de saber. Entre milhares de histórias da mitologia, todas relevantes em suas expressões, foi escolhido o mito de Narciso, considerando seus múltiplos significados, suas releituras e sua atualidade, sendo um dos signos mais representativos do indivíduo contemporâneo. Por meio dele, pela sua história e representações antigas e atuais, você conseguirá compreender um pouco sobre o conhecimento mítico, essa produção cultural milenar sobre a condição humana. Espelho: o lago de Narciso O espelho, traduzido no mito grego como o lago de Narciso, é um tema muito presente nos contos e mitos de diferentes culturas. Entre os temas e reflexões que esse objeto promove, um dos mais significativos se refere à questão do conflito entre ocultamento e revelação da identidade. O espelho possui uma dualidade: ele tanto pode refletir uma identidade com o real, como encobrir e, até mesmo, deformar essa realidade, traduzindo um olhar oposto ao do sujeito que está à sua frente. O texto de abertura deste capítulo é uma releitura do mito de Narciso num poema do irlandês Oscar Wilde. Em síntese, o mito original é a história de um belo rapaz que, todos os dias, ia con- templar seu rosto num lago. Era tão fascinado por si mesmo que, certa manhã, quando procurava admirar-se mais de perto, caiu na água e morreu afogado. Do lugar de onde caiu, nasceu uma flor, que recebeu seu nome. Wilde agregou ao mito uma maneira dife- rente de terminar a história. Antes de continuar, reflita com seus Foco no tema colegas sobre os diferentes finais das duas versões do mito – a original e a de Wilde – com base nos seguintes questionamentos: Que consequências a paixão pela própria imagem se reflete na solidão do lago de Narciso? De que forma a contemplação da vida, expressada na visão de Narciso refletida no lago e do lago refletido em Narciso, dificulta o acesso à vida real? Agora, o mito será apresentado em outra forma de lingua- gem: a pintura. Observe como esse personagem atravessou o tempo e como é referenciado e expressado de diferentes formas e em diversos períodos da História, ao mesmo tempo que man- tém suas especificidades. Ou seja, embora sua representação agregue conotações diferentes de acordo com a época em que é traduzido, o mito original se mantém intacto, sem perder sua raiz fundamental. Narciso, de Caravaggio, 1594-1596. Óleo sobre tela de 112 cm 3 92 cm. R e p ro d u ç ã o /G a le ri a N a c io n a l d e A rt e A n ti g a d o P a la c io B a rb e ri n i, R o m a , It a lia A metamorfose de Narciso, de Salvador Dalí, 1937. Óleo sobre tela de 51,1 cm 3 78,1 cm. A la m y /F o to a re n a © S a lv a d o r D a li, G a la -S a lv a d o r D a li F o u n d a ti o n / D A C S , L o n d re s 2 0 2 0 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 22 08/09/20 08:04 23 F il o s o f ia A primeira representação de Narciso foi produzida no contexto da estética barroca, no final do sé- culo XVI. Caravaggio apresenta o personagem como um belo jovem, com traços físicos e contornos bem definidos, debruçado sobre o lago e mirando sua própria imagem refletida no lago. Os elementos selecio- nados pelo artista e seus detalhes é uma expressão fiel à sua narração pela mitologia grega. Já a segunda imagem, produzida no século XX, embora respeite o contextooriginal com seus elemen- tos primordiais – o personagem debruçado sobre o lago –, representa o personagem de forma figurada, no contexto da arte surrealista, numa releitura do mito grego que descarta a necessidade de imitação do real. A obra se compõe numa duplicidade de personagens, cada uma representando, o que Salvador Dalí denominou A metamorfose de Narciso. A tela se compõe por dois personagens: de um lado, em amarelo, admirando seu reflexo no lago; acompanhado por uma espécie de sombra, a figura em branco, simboli- zando a mutação de Narciso, após a sua morte, transformado em uma flor. Na atualidade, depois de tantas releituras pela literatura, pela psicanálise e pelo cinema, a profundi- dade sobre o conteúdo desse mito se alarga, agregando-lhe novos elementos. A obra de René Magritte também se refere ao duplo no espelho. Os elementos da tela refletidos no espelho (o homem e o livro) são contraditórios, sugerindo que a imaginação engana o espelho, desloca o real, nega a identidade do sujeito. O título da obra, A reprodução proibida, já fala por si só. O espelho reflete apenas a aparência. A imagem não é o Ser. O mesmo não acontece com o livro, que ali se reflete na sua forma real. Embora preserve elementos do mito grego, como o sentimento de solidão, marcante do Narciso origi- nal, totalmente absorvido pelo lago e seus efeitos, este apresenta-se agora envolvido em outro contexto, no qual a tecnologia se sobrepõe ao lago como espelho, gerando novos desdobramentos e preocupações, como pode-se perceber na figura abaixo. O centro do indivíduo situado na cultura narcisista é a necessi- dade do espelho, das imagens. Quando se sente só, sua insegurança aumenta, pois ele precisa de plateia; depende do espelho dos outros para validar sua debilitada autoestima. Ao analisar a relação dos indiví- duos com suas imagens refletidas nas redes sociais, produtoras da realidade virtual, verifica-se a contínua repetição do mito de Narciso. O espelho (rede social), ao refletir uma imagem idealizada, irreal e, portanto, inalcançável, produz um abismo cada vez maior entre o ideal da imagem e o ser do indivíduo que, identi- ficando-se com a imagem, vai se afastando de si, até perder-se completamente. Este afastamento de si se adequa, também, à leitura do espelho de Magritte. Nesse contexto, a forma como são utilizados os instrumentos disponibilizados pela tecnologia, embora esta não seja a causadora, provoca o empobrecimento das relações, devido à priorização das relações virtuais sobre as relações reais, gerando uma negação dos conflitos que dificulta a convivência do homem consigo mesmo e com os outros. A reprodução proibida (retrato de Edward James), de René Magritte, 1937. Óleo sobre tela de 79 cm 3 65,5 cm. Museum Boymans-van Beuningen, Roterdã. R e p ro d u ç ã o /M u s e u B o y m a n s -v a n B e u n in g e n , R o te rd ã ,H o la n d a A obra de Caravaggio em uma releitura contemporânea digital. P a w e l K u c zy n s k i/ A c e rv o d o a rt is ta 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 23 08/09/20 08:04 2424 Ecos de Narciso A partir desse título, analisado sob o olhar de algumas disciplinas, pode-se produzir um roteiro interessante para a realização de uma peça teatral. Cada disciplina contribui com sua análise sobre o tema, aliada à utilização de elementos materiais (cenas curtas de filmes, projeção de pinturas, poemas, músicas) e imateriais (teorias e ideias): Literatura: a versão do mito contada e cantada nos poemas, canções e contos de diversas épocas. Arte: a versão do mito na pintura de diferentes contextos históricos, edição de cenas de filmes que o retratam. Sociologia: a versão contemporânea do mito nas redes sociais, na sociedade do espetáculo e na cultura de consumo. Filosofia: análise da versão do mito na tradição filosófica de origem. Produzam um roteiro e a montagem da peça teatral articulada aos elementos da pesquisa. Conexões Mas, independentemente dos contextos, seja há 3 mil anos como representação do pensamento gre- go, seja no período Barroco, na estética surrealista do século XX ou atualmente, nas redes sociais ou em peças publicitárias de relevância, a essência do mito de Narciso continua viva e presente, eternizando-se e validando a sua contribuição como conhecimento e autoconhecimento da condição humana no mundo. 1. No fundo, o erro mortal do narcisismo não é querer amar excessivamente a si mesmo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si mesmo e seu duplo, dar preferência à imagem. ROSSET, Clèment. O real e seu duplo. Porto Alegre: L&PM, 1988. p. 77-78. Relacionando o texto ao mito de Narciso, explique de que forma o conhecimento mítico contribui para o autoconhecimento do indivíduo. Autoconhecimento, ou conhecimento de si, não é algo que possa ser alcançado pela aquisição de um volume de informações. A ideia inicial é promover a prática da indagação dando início ao movimento do pensar chamado conhecimento, um saber por si próprio que abrirá portas para a compreensão do que se busca. O problema é que as informações, sem uma articulação entre si, são vazias e sem sentido. E o movimento do pensar ocorre a partir de um choque entre duas contradições exigindo uma solução. Quem pensa, está buscando alguma resposta. Se já tem todas as respostas, não precisa pensar. O mito desperta para o conhecimento porque fala do misterioso, da identidade desconhecida, da humanidade para o bem ou para o mal, desvela as sombras que não se quer reconhecer, provocando um confl ito entre o ser e o aparecer, convidando a buscar uma solução. Parada obrigatória A função original do mito é ser espelho, promover o entendimento do mundo e de si mesmo por meio de suas significações. O mito desperta conhecimento por que reflete o misterioso, a identidade desconhecida, a humanidade (para o bem ou para o mal). Ao desvelar as sombras que não queremos reconhecer, ele provoca um conflito interior, entre o ser e o aparecer, nos inquietando e nos convidando a buscar uma solução. Essa é a sua essência. De olho 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 24 08/09/20 08:04 25 F il o s o f ia 1. Analise a obra de René Magritte para resolver as questões. A reprodução proibida (retrato de Edward James), de René Magritte, 1937. Óleo sobre tela de 79 cm 3 65,5 cm. Museum Boymans-van Beuningen, Roterdã. R e p ro d u ç ã o /M u s e u B o y m a n s -v a n B e u n in g e n , R o te rd ã ,H o la n d a a) Com base nos elementos representados na tela, relacione a expressão o “duplo no espelho” ao título da obra de Magritte. b) Explique de que forma o mito re� ete essa duplicidade do espelho. 2. (PUC-RS) Para responder à questão, leia o seguinte trecho do conto “O espelho”, do livro Primeiras Estórias, de Guima- rães Rosa, e as afirmativas, preenchendo os parênteses com V (verdadeiro) ou F (falso). Sim, são para se ter medo, os espelhos. Temi-os, desde menino, por instintiva suspeita. Também os animais negam-se a encará-los, salvo as críveis exceções. Sou do interior, o senhor também; na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozi- nho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, assom- bra-nos alguma outra e medonha visão. Sou, porém, positivo, um racional, piso o chão a pés e patas. Satisfazer-se com fantásticas não explicações? – jamais. Que amedrontadora visão seria então aquela? Quem o Monstro? Sendo talvez meu medo a revivescência de impressões atávi- cas? O espelho inspirava receio supersticioso aos primitivos, aque- les povos com a ideia de que o re� exo de uma pessoa fosse a alma. ( ) O narrador demonstra conhecer crenças antigas a respei- to do perigo de se mirar em um espelho. ( ) Segundo essas histórias populares, nem sempre os es- pelhos projetam a imagem de quem se mira, podendo refletir seres assombrosos. ( ) Por ser racional e realista, o narrador sente-setranquilo em olhar-se no espelho, ciente de que não irá flagrar al- guma visão medonha. ( ) De acordo com as crenças, há certas horas perigosas para refletir-se no espelho, sobretudo quando se está só. A sequência correta de preenchimento dos parênteses, de cima para baixo, é: a) F – V – F – F b) V – F – F – V c) V – V – F – V d) V – F – V – F e) F – F – V – V Parada complementar Verifi que as respostas no Manual do Professor. Teste seu conhecimento: 1 e 2 Mito e tradição Agora já é possível traçar algumas conclusões sobre o tema. O mito é um conhecimento em forma de alegoria, um fenômeno coletivo, construído pelas comunidades para explicar o desco- nhecido, tranquilizando as pessoas diante do mundo imprevisível e assustador. São narrativas em forma de metáforas e símbolos; sem intenção de explicar racionalmente a origem das coisas e a realidade. O mito não fala ao intelecto, mas ao sentimento; dirige-se ao interior do indivíduo que, identificando-se com suas lendas e histórias criadas e organizadas pela memória coletiva, sente-se tocado profundamente. Suas histórias traduzem o ima- ginário humano, denunciando medos, desejos, sentimentos e violências enraizados na sua consciência. Os mitos estão ligados às tradições de um povo, constituindo as referências fundamentais que lhe conferem uma identidade. Seus enredos e seus personagens sobrenaturais não são uma ilusão ou mentira, mas arquivos históricos das crenças coletivas acumuladas pelas culturas e transmitidas pela oralidade, tradu- zindo a sua primeira compreensão de mundo, aquilo que os ajuda a ordenar o cosmos, dando-lhe um sentido. Esse conjunto de saberes da tradição era transmitido de for- ma oral, especialmente pelas mulheres, em seus lares, que os reproduzia às crianças através dos contos e histórias que rece- beram de suas mães e avós. Aos poucos, essas narrativas iam compondo o quadro mental com que, por exemplo, os gregos imaginavam e pensavam o divino e o mundo. Posteriormente, a tarefa de transmissão dessa concepção de mundo passou a ser realizada pela voz dos poetas ou aedos, que, acompanhados de música, se apresentavam publicamente em eventos, banquetes ou jogos, diante da admiração e respeito dos participantes. É importante compreender que essas atividades não eram vivi- das apenas como forma de lazer ou divertimento; aos poucos, elas instituíam nas pessoas uma cultura comum, uma referência, uma espécie de memória social com a qual elas se identificavam e que 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 25 08/09/20 08:04 2626 lhes conferia uma identidade como povo. Essas representações religiosas, com seus deuses e heróis, grada- tivamente, fundam uma comunidade composta de pessoas unificadas entre si por crenças e valores comuns. Caos e cosmos: uma concepção sacralizada de mundo Todo espaço humano se constitui por um conjunto de representações simbólicas. Entre esses símbolos, alguns se referem à religiosidade do indivíduo ao distinguirem determinado espaço, transformando-o em um espaço sagrado. Embora sob diferentes concepções, em todas as épocas, e para todos os povos, essa necessidade da presença divina é um ponto comum. Narra o poeta Hesíodo: “No princípio era o Caos. O abismo cego, escuro e ilimitado. A total ausência, um vazio primordial”. O homem das sociedades arcaicas, tradicionais, tema deste estudo, é um homem religioso. Para o homem religioso, o Caos é o nada. Esse espaço profano lhe causa medo, por ser um espaço desconhecido, sem orientação, sem um sentido prévio dado pelos deuses. A cosmogonia (origem do mundo) destaca-se como o modelo exemplar de toda construção humana. Quando o homem assume a responsabilidade de “criar o mundo” que decidiu habitar, ele se desloca do Caos em direção ao Cosmos e, ao mesmo tempo, sacraliza, santifica o seu Cosmos, tornando-o semelhante ao mundo dos deuses. Sacralizar significa consagrar; nesse processo, o fato ou objeto é retirado do domínio humano, sendo considerado sacrilégio toda forma de violação da coisa consagrada. A construção de uma casa é sempre a fundação de um cosmos num caos e, por isso, a casa é uma imagem do mundo na sua totalidade. […] A organização humana do espaço é, pois, a repetição de um ato dos tempos primi- tivos: “a transformação do caos em cosmos por meio do ato divino da criação”. A morada humana é o microcos- mos que o homem constrói imitando a criação-arquétipo dos Deuses. Para o homem arcaico, há uma homologia entre a criação do mundo e a construção da casa, porque, “organizando um espaço, se reitera a obra exemplar dos Deuses”. Cosmi� car é consagrar e consagrar é repetir ritualmente a cosmogonia. SARAIVA, J. Francisco. Mircea Eliade: a Casa como Imago Mundi, Desenredos, ano III, n. 8, jan.-mar. 2011. Disponível em: www.desenredos.com.br/8_ens_saraiva_258.html. Acesso em: 20 mar. 2020. O homem religioso das sociedades tradicionais sente necessidade de pertencer ao mundo divino como parte do universo, pois acredita que foi assim no começo e que continuará sempre assim. Essa crença o motiva a se deslocar deste caos desorganizado para fundar o seu lugar no mundo, o cosmo, uma forma simbólica de organização de um lugar sagrado, fundamento norteador de suas ações futuras. A manifestação do sagrado orienta, assim, a criação do mundo – cosmogonia – sugerindo um centro, o ponto de referência que vai orientar e dar sentido à existência. O sentido da vida é algo que se experimenta emocionalmente, sem que se saiba explicar ou justi� car. É uma transformação de nossa visão de mundo, na qual as coisas se integram como em uma melodia, o qual nos faz sentir reconciliados com o universo ao nosso redor, possuídos por um sentimento oceânico…, sensação inefável de eternidade e in� nitude, de comunhão com algo que nos transcende, envolve e embala, como se fosse um útero materno de dimensões cósmicas. ALVES, Rubem. O que é religião? São Paulo: Loyola, 2005. p. 120. Quarto de Vincent em Arles, de Vincent van Gogh, 1889. Óleo sobre tela de 73 cm 3 92 cm. The Art Institute of Chicago, Chicago. R e p ro d u ç ã o /I n s ti tu to d e A rt e d e C h ic a g o , Il lin o is , E U A O cosmos representado em Casa com telhado de palha, de Vincent van Gogh, 1890. Óleo sobre tela de 73 cm 3 92 cm. Musée d’Orsay, Paris. R e p ro d u ç ã o /M u s e u d ’O rs a y, P a ri s , F ra n ç a 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 26 08/09/20 08:04 27 F il o s o f ia Assim, a revelação de um espaço sagrado, seja uma árvore, a casa, o quarto, a aldeia ou a cidade, fun- da e orienta o mundo, ordenando o caos. Esse ponto em que o mundo é fundado passa a ser a referência por meio da qual o homem vai orientar todas as suas ações, o local primordial, originário, onde os deuses se manifestaram. Ele está no centro do mundo, não de forma física e material, mas de forma espiritual e existencial. O homem religioso vê além das formas, sabe que tudo tem um significado, daí a importância da ritualização do ambiente. Vem alguém à minha propriedade e fala: “Aqui é muito pobre. Só tem algumas pedras, algumas árvores e al- gumas cabras”. Ele não viu a minha propriedade. Aquilo era só o território. O principal estava invisível. O que faz minha propriedade é aquilo que não se vê e que liga as pedras, as árvores e as cabras e me liga a tudo. Antoine Saint-Exupéry citado em BUZZI, Arcângelo R. Introdução ao pensar: o ser, o conhecimento e a linguagem. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 11. A história sagrada é aquela surgida nos tempos primordiais, protagonizada pelos deuses ou heróis, podendo ser reatualizada e vivida novamente por meio dos rituais religiosos. Nas comunidades tradi- cionais, esse processo se dá pelas festas populares anuais, que recriam a cosmogonia. Pelas festas po- pulares e seus rituais, as pessoas se inserem na história sagrada revelada pelos mitos e, seguindo seus modelos exemplares, vão construindo a sua existência. Visto que o tempo sagrado eforte é o tempo da origem, o instante prodigioso em que uma realidade foi criada, em que ela se manifestou, pela primeira vez, plenamente – o homem esforçar-se-á por tornar a unir-se periodica- mente a esse tempo original. Essa reatualização ritual da cosmogonia está na base de todos os calendários sagrados: a festa não é a comemoração de um acontecimento mítico (e portanto religioso), mas, sim, a sua reatualização. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. Lisboa: Edição Livros do Brasil, 1975. p. 93. Dança de casamento de camponeses, de Pieter Bruegel, o Velho, c. 1566. Têmpera em pergaminho aplicado em madeira de 119,3 cm 3 157,4 cm. Detroit Institute of Arts, EUA. R e p ro d u ç ã o /I n s ti tu to d e A rt e d e D e tr o it , M ic h ig a n , E U A Dessa forma, a cada ritual do ano-novo ocorre, simbolicamente, um recomeço do mundo. Essa consa- gração é considerada o gesto divino de instauração do cosmos que estabelece a ordem em razão da qual se desenrolam as relações concretas dos homens, garantindo o sentido das coisas. Para o homem das sociedades arcaicas, conhecer os mitos de origem e seus rituais é aprender o se- gredo da origem das coisas e, conhecendo essa origem, o homem é capaz de repetir o ato criador sempre que se fizer necessário. O mito narra um acontecimento, mas, além disso, o mito trata do mistério, das respostas que a razão humana não é capaz de compreender. 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 27 08/09/20 08:04 2828 Esta questão apresenta as festas populares como rituais carregados de sentido. O tema tratado se refere à recriação da cosmogonia nas comunidades arcaicas, que ocorria anualmente por meio de rituais religiosos e festas populares. A cada ritual do ano-novo ocorre, simbolicamente, um recomeço do mundo. Essa consagração é considerada o gesto divino de instau- ração do cosmos que estabelece a ordem em função da qual se desenrolam as relações concretas dos homens, garantindo o sentido das coisas. Essa reatualização do mito ocorre por meio a) da criação poética dos aedos em suas andanças diárias. b) da recriação da cosmogonia pelos rituais religiosos e festas populares. c) da divulgação dos saberes populares nas populações campesinas. d) do desvelamento e revelação do mundo pela razão humana. e) da compreensão objetiva dos fenômenos da natureza. Resolução: Apesar de o texto de abertura sugerir algumas informações, o tema é complexo e vago, exigindo conhecimentos prévios, como saber como o mito funda o mundo e como esse mundo se reatualiza na concepção mítica. Não é possível responder à questão se você não possuir informações sobre o tema. É preciso analisar cada uma das alternativas. a) Falsa. A poesia, embora contribua nesse contexto, não é capaz por si só de fazer a reatualização do mito. Não é essa sua função; ela descreve, traduz o fato. b) Verdadeira. A reatualização do mito ocorre pela recriação da cosmogonia por meio das festas populares e dos rituais religiosos. A cada ritual, celebra-se a repetição do gesto dos deuses de instauração do cosmos no tempo primordial, ocorrendo, simbolicamente, um recomeço do mundo. c) Falsa. A divulgação de saberes a um grupo especí� co tem a mesma função da poesia, não sendo su� ciente para promover essa atuali- zação. d) Falsa. O mito não é racional, é uma crença fundamentada na fé e na autoridade do narrador, sem necessidade de comprovação. e) Falsa. O mundo não pretende uma objetividade; dirige-se ao sentimento, à fé e às emoções dos participantes. Portanto, a alternativa correta é a b. Como fazer 2. Como um artesão fabricante de instrumentos de cordas agencia, uma a uma, as múltiplas peças de madeira que compõem o objeto sonoro para que todas entrem em harmonia umas com as outras (e se a alma do instrumento, isto é, a pequena barra de madeira branca que liga o dorso e o bojo do violino for mal colocada, ele não soará bem, deixando de ser harmonioso), nós devemos, como Ulisses em Ítaca, encontrar nosso local de vida e alcançá-lo, sob pena de não estarmos aptos a cumprir nossa missão no coração do grande todo do universo e, assim, sermos infelizes: é esta uma mensagem que a � loso� a grega, pelo menos a maior parte dela, conseguiu tirar da mitologia. FERRY, Luc. A sabedoria dos mitos gregos: aprender a viver II. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. p. 23. Explique de que forma essa proposta da mitologia difere de outras formas de conhecimento. Os mitos são narrativas em forma de metáforas e símbolos; sem intenção de explicar racionalmente a origem das coisas e a realidade. O mito não fala ao intelecto, mas ao sentimento, dirige-se ao interior do homem que, identifi cando-se com suas lendas e histórias criadas e organizadas pela memória coletiva, sente-se tocado profundamente. O mito não visa à objetividade nem à realidade enquanto tal. Sua intenção é oferecer signifi cados à existência humana, dando-lhe um sentido, interrogando-lhe sobre o que pode ser uma vida boa num universo ordenado, harmonioso e justo. A ideia fundamental aqui é que nessa ordem cósmica, cada um de nós tem seu lugar, seu “lugar natural”. Nessa perspectiva, a justiça e a sabedoria consistem fundamentalmente no esforço que fazemos para nela nos integrarmos. Parada obrigatória 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 28 08/09/20 08:04 29 F il o s o f ia 3. (Uece) A utilização de sentimentos humanos para a compreensão dos fenômenos da natureza é própria do conhecimento a) cientí� co. b) � losó� co. c) tecnológico. d) mitológico. Parada complementar Verifi que a resposta no Manual do Professor. Teste seu conhecimento: 3 e 4 A voz dos poetas Como trabalhado anteriormente, o mito, como forma de conhecimento, é uma concepção de mundo, de natureza e de homem. Sendo uma crença, não pode ser comprovado e é acessível pela intuição e pela fé na autoridade do narrador, que é, em geral, um poeta ou aedo, considerado escolhido pelos deuses. Sua palavra é sagrada porque se acredita ser derivada de uma revelação divina. Suas lendas e crenças relatam a vida dos heróis e dos deuses, estabelecendo diferenças e, ao mesmo tempo, aproximando o mundo natural (natureza), o mundo humano (cultura) e o mundo divino (sobrenatural), por meio das interações cultivadas pela imaginação mítica. As obras dos poetas Homero e Hesíodo são as maiores expressões do mundo mítico que antecede o nascimento da razão grega e da filosofia. Nos mitos relatados por ambos, encontra-se algo comum: os personagens em busca da excelência huma na, expressão dos modelos exemplares e ideais a serem utilizados na formação dos cidadãos gregos. Agora, você vai ter a oportunidade de conhecer mais sobre o pensamento desses dois poetas. Homero: elogio aos heróis e suas virtudes A época histórica do poeta Homero é questionável entre vários autores; possivelmente ele viveu entre os séculos VIII e IX a.C. São a ele atribuídos os poemas Ilíada e Odisseia, dois clássicos sobre a famosa Guerra de Troia, que apresentam um universo governado por deuses criadores do mundo e con- troladores do destino dos homens. Homero é reconhecido como o educador do homem grego, sendo sua obra considerada a semente da história da educação ocidental, um registro das histórias populares sobre a origem e o sentido das coisas, que eram transmitidas na cultura grega oralmente, de geração em geração. Ulisses e as sereias, de John William Waterhouse, 1891. Óleo sobre tela de 100,6 cm 3 202 cm. Collection National Gallery of Victoria Blue Pencil. R e p ro d u ç ã o /G a le ri a N a c io n a l d e V ic to ri a , M e lb o u rn e , A u s tr á lia 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 29 08/09/20 08:04 3030 Essas histórias, denominadas mitos, faziam parte daquela civilização como crenças, constituindo a cultura do povo helênico. Numa época em que não existiam leis ou normas escritas, nota-se, na obra de Homero, uma intenção educativa: por meio de suas histórias, orientavaos comportamentos a serem seguidos ou repelidos, projetados na figura do herói, e de suas virtudes, ensinadas pelos pais aos fi- lhos. Como em um espelho, os heróis projetavam as características fundamentais de ser humano ideal, um modelo que deveria ser imitado. Os poemas refletem, especialmente, o contexto histórico em que viviam os poetas. No poema Ilía- da, a força bruta é predominante, e o guerreiro e suas atitudes são os temas centrais. As ideias e os valores retratados refletem o tipo de vida da época, um período em constantes guerras, migrações e lutas entre povos. Nesse cenário cultural, o que determina a virtude é a bravura, a coragem e a leal- dade do herói. Na Odisseia, esse cenário se modifica. O herói Odisseu (em grego, na mitologia grega) ou Ulisses (em latim, na mitologia romana) não é apenas o rei, mas o marido e o pai tentando retornar ao seu reino e à sua morada. Cerca de vinte anos após o início da Guerra de Troia, vive-se um novo momento histórico, no qual o mundo grego já está consolidado, deslocando a figura do herói de guerra para um homem e sua morada, sua terra e suas tradições. A transição para esse novo contexto é expressada por Homero ao ressaltar as características do herói: na Ilíada, como força bruta e a força física, representa- das na figura de Aquiles; e na Odisseia, como astúcia e inteligência, representadas na figura de Ulisses ou Odisseu. Essas características definem o herói e, ao mesmo tempo, a sociedade em dois momentos e contextos diferentes, assim como o ideal de homem específico em cada momento. A Odisseia não é uma narrativa de aventuras, nem uma epopeia literária, mas o itinerário filosófico de um homem, Ulisses, que vai da guerra à paz, do ódio ao amor, do exílio à volta para casa, do caos à harmo- nia – em resumo, da vida má à vida boa. Ele busca a solução da questão da qual derivará toda a filosofia: existe uma vida boa para os mortais? E ele nos dá a primeira grande resposta: para se chegar à vida boa, é preciso vencer os medos e fugir da nostalgia do passado, da esperança de um futuro melhor, a fim de viver no presente. Como Ulisses em Ítaca, o sábio se ajusta ao cosmo como uma pequena peça de um quebra-cabeça que se integra ao quadro formado. Ora, como o cosmo é eterno, o próprio sábio se torna um fragmento da eternidade. É uma mensagem grandiosa que atravessa os séculos: a vida boa é a harmonia do homem com a harmonia do mundo. Luc Ferry em entrevista a CÁRCERES, André. Luc Ferry: A grande mensagem dos mitos gregos para o mundo atual, Fronteiras do Pensamento, 11 nov. 2019. Disponível em: www.fronteiras.com/entrevistas/luc-ferry-a-grande-mensagem-dos-mitos-gregos- para-o-mundo-atual. Acesso em: 20 jan. 2020. Um detalhe importante a se destacar é que a educação, na época de Homero, se referia apenas à nobreza. A virtude demonstrada pelas atitudes dos heróis era chamada de areté; o ideal de cavaleiro que reunia o refinamento do comportamento da aristocracia com a força e a bravura do guerreiro, sem conotação moral. Os nobres sabiam que sua posição só se justificava pela areté, pelo compromisso com os ideais de luta e de vitória. O domínio físico sobre o adversário, aliado a uma rígida disciplina consigo mesmo, era, para o homem nobre, a verdadeira prova na busca do reconhecimento de seu valor e de sua honra. A virtude e a honra garantiam-lhe o pertencimento ao estamento dos nobres. Hesíodo: elogio ao trabalho e à justiça Agora, será destacada a inegável importância da obra do poeta Hesíodo, datada do século VIII a.C., que, embora posterior a Homero, compõe, com ele, o ideal de formação do homem grego. Sua obra se constitui por uma narrativa sobre a origem do cosmos e dos seres humanos em seus poemas: Teogonia e Os trabalhos e os dias. Enquanto a obra de Homero trata de personagens e valores da nobreza, das tradições e dos heróis guerreiros; Hesíodo, sendo um homem simples, do campo, desloca a atenção para outra realidade daquela cultura: a vida do campo e dos trabalhadores rurais, priorizando outros valores, em especial, uma acentuada preocupação com os conceitos de trabalho e justiça. Em Hesíodo revela-se a segunda fonte de cultura: o valor do trabalho. […] O heroísmo não se manifesta só nas lutas em campo aberto, entre os cavaleiros nobres e seus adversários. Também a luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores com a terra dura e com os elementos tem o seu heroísmo e exige disciplina, qualidades de valor eterno para a formação do homem. JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1986. p. 85. Assista ao filme: Dersu Uzala. Direção de Akira Kurosawa. Japão, 1975. Fique por dentro 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 30 08/09/20 08:04 31 F il o s o f ia A poesia de Hesíodo mostra que a formação grega não se deu apenas a partir da nobreza, demons- trando a importante contribuição das camadas populares, adicionando a elas os valores do homem rural e a importância daquele que, na vida dura e disciplinada do campo, produz com o fruto de seu trabalho aquilo que é essencial para a cidade: o alimento que lhe sacia a fome. As quatro estações: Verão, Pieter Bruegel, o Velho, 1568. Óleo sobre painel de 42,5 cm 3 57,5 cm. R e p ro d u ç ã o / M u s e u M e tr o p o lit a n o d e A rt e , N o v a Y o rk , E U A . Conta-se que Hesíodo passava por um problema pessoal quando escreveu Os trabalhos e os dias. Seu pai havia feito a divisão de terras que deixou como herança para ele e seu irmão Perses, mas, devido a uma trapaça, o irmão ficou com todos os bens, deixando Hesíodo na pobreza. Sentindo-se injustiçado e desencantado com a justiça dos homens, fez um apelo à justiça divina em forma de reflexões e ques- tionamentos sobre aspectos culturais e morais de sua época: os limites da essência humana, os valores da honestidade, do trabalho e da justiça, a possibilidade e limites das escolhas humanas perante os poderes divinos. O que era um desabafo tornou-se uma grande obra, cujas ideias serão os embriões das investigações feitas posteriormente pela Filosofia. Os poemas não demonstram revolta, mas traduzem o sentimento humano diante da injustiça que, ao contrário do que se espera, se transforma em valorização da essência humana dotada de possibilidades de ação perante a natureza, o divino e os outros homens pela capacidade de escolha. No seio de uma sociedade que desprezava o trabalho, este ganha um novo significado, exaltado como boa luta, sinal de prosperidade e realização pessoal. Algo louvável, que dignifica o homem, que o torna bom, honesto e justo. Assim também ele mostra a justiça, que acredita ser um valor intrínseco à essência humana e que exalta como o maior bem, considerando um crime irreparável qualquer ofensa a ela. Embora as ideias de Hesíodo, problematizadas na obra Os trabalhos e os dias, possivelmente não tive- ram, para ele, a percepção da sua profundidade reflexiva, tal como é percebida hoje – devido ao contexto em que ele viveu e o alcance na sua época sobre a importância de temas como o trabalho e a justiça –, mas ele inaugurou, sem dúvida, na sua simplicidade e possibilidades, um elogio ao direito diante da injustiça, à honestidade diante da trapaça, à inclusão diante da exclusão, à possibilidade de escolha diante do destino, à esperança diante do desencanto, a valores idealizadores de uma sociedade melhor para todos. Diké e hybris: entre a justiça e a desmedida Hesíodo nos apresenta o humano analisado à imagem e semelhança de si mesmo; o homem situa- do entre o animal e o divino, com seus limites, imperfeições e necessidades, mergulhado no constante desafio da escolha pela justiça ou pela injustiça, e sua responsabilidade na construção do que eles de- nominavam a vida boa. 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 31 08/09/20 08:04 3232 E o que seria a vida boa nesse contexto? A vida em harmonia com a ordem cósmica. Para que isso acontecesse,segundo Hesíodo, a justiça – em grego, diké – foi afirmada como princípio fundante e garantidor da ordem do cosmos. Diké e hybris, presentes lado a lado, oferecem ao homem duas opções igualmente possíveis de escolha. A esse princípio ficam submetidos os deuses e os mortais, sob pena de severa punição em caso de transgredi-la. Hesíodo busca essa harmonia em um ensinamento inspi- rado no Mito das Raças, que ele assimilou e repassou a Perses e a outros, a partir da seguinte fórmula: … escuta a justiça (diké), não deixes aumentar a desmedida (hybris). Diké é a deusa grega encarregada de trazer a justiça do céu para a terra, sendo afirmada como princí- pio fundante e garantidor da ordem do cosmos. Essa ordem cósmica não é linear, mas cíclica, e, de vez em quando, vê-se ameaçada por hybris (excesso), aqui compreendido como tudo que ultrapassa a medida, uma espécie de retorno das forças obscuras do caos, anterior à criação do cosmos. A hybris é descrita como uma tendência natural ao orgulho e à desmedida, que leva os seres mortais e imortais a ultrapassarem o seu limite na ordem universal, como ocorre, por exemplo, no mito de Narciso, expressada na questão da individualidade como condição humana, objeto sobre o qual gira a história desse personagem. Como toda característica da condição humana, a individualidade tem peso e medida, e sua tendência ao extremo ou à falta pode trazer prejuízos à vida do indivíduo e da sociedade. Agora, acompanhe como se desenrola esse tema no mito em questão. A individualidade é uma conquista da liberdade humana, faz parte da nossa essência, da nossa de- terminação perante a possibilidade de ser o que desejamos, de poder fazer escolhas e de se posicionar como pessoa única entre as outras. A falta dessa habilidade não permite ao indivíduo que se posicione e desenvolva uma personalidade, ficando diluído na massa, sem uma identidade que o determine. O individualismo, seu excesso, por outro lado, exclui o outro das nossas necessidades, não permitin- do o desenvolvimento de valores fundamentais ao convívio entre as pessoas, como a empatia, a solida- riedade e a resiliência. No contexto atual de produção capitalista, em que as preocupações materiais são priorizadas sobre “o ser”, o indivíduo torna-se cada vez mais centrado em si mesmo, a individualidade tende ao individualismo, tornando-se, aos poucos, insensível à liberdade do outro e gerando sérias con- sequências, como o egoísmo e as formas mais variadas de exclusão – as doenças do nosso século. A hybris, representada pelo individualismo, é a principal lição refletida no mito de Narciso. No fundo, o erro mortal do narcisismo não é querer amar excessivamente a si mesmo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si mesmo e seu duplo, dar preferência à imagem. O narcisista sofre por não se amar: ele só ama a sua representação. Amar-se com amor verdadeiro implica uma indiferença a todas as suas próprias cópias, tais como podem aparecer para os outros e, pelo viés dos outros, a mim mesmo, se presto muita atenção a eles. Este é o miserável segredo de Narciso: uma atenção exagerada ao outro. Esta, aliás, é a razão por que ele é incapaz de amar alguém, nem o outro nem ele mesmo, já que o amor é um assunto importante demais para que se delegue a outro a responsabilidade de negociá-lo. ROSSET, Clèment. O real e seu duplo. Porto Alegre: L&PM, 1988. p. 77-78. 3. (FCC-MG) Do mito das raças, Hesíodo tira um ensinamento que dirige mais especialmente ao seu irmão Perses, um pobre tipo, mas que vale tam- bém para os grandes da terra, para aqueles cuja função é regulamentar as querelas por arbitragem, para os reis. Hesíodo resume este ensina- mento na seguinte fórmula: escuta a justiça, Diké, não deixes aumentar a desmedida, Hybris. (VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Edusp, 1973, p. 11) Na passagem acima, Vernant vê no mito uma clara relação com a a) metafísica. b) religião. c) ciência. d) política. Parada obrigatória 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 32 08/09/20 08:04 33 F il o s o f ia 4. (UFSC) Com efeito, a história conta a sucessão das diversas raças de homens que, precedendo-nos na Terra, apareceram e depois desapa- receram alternativamente. Em que uma tal narrativa é suscetível de exortar à Justiça? Todas as raças, as melhores e as piores, tiveram do mesmo modo que deixar a luz do sol, no momento chegado. E entre aquelas que os homens honram com um culto desde que a terra os recobriu, há raças que se ilustraram aqui na terra por uma espantosa Hybris. […] Assim, o mito parece querer opor a um mundo divino, em que a ordem é imutavelmente fixada desde a vitória de Zeus, um mundo humano no qual a desordem se instala pouco a pouco e que deve acabar virando inteiramente para o lado da injustiça e da morte. (VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 28.) Considerando a posição sustentada por Vernant no texto e suas informações sobre mito, é INCORRETO afirmar que: a) nas narrativas míticas, há um humanismo que � xa a ideia de que o homem não é somente um “animal homem”, mas tampouco é um deus. b) o conjunto das narrativas míticas conjuga uma série de elementos formadores de uma ideia de condição humana, marcada por ambiguidades e excessos. c) o jogo tenso da relação entre a Hybris e a Díke marca o contexto das diversas contradições que compõem a antropologia das narra- tivas míticas. d) no mito hesiódico, a quinta raça, a raça de ferro, é a que experimenta as duras ambiguidades da vida e enfrenta o trabalho para a sobrevivência, a vida e a morte. e) a vida humana é condicionada pelos deuses. No mito, diversamente das tragédias, a Hybris exprime o alinhamento da ordem divina e humana. 5. (Unicentro-PR) Os poemas homéricos têm por fundamento uma visão de mundo clara e coerente. Manifestam-na quase a cada verso, pois colocam em relação com ela tudo quanto cantam de importante – é, antes de mais nada, a partir dessa relação que se de� ne seu caráter particular. Nós cha- mamos de religiosa essa cosmovisão, embora ela se distancie muito da religião de outros povos e tempos. Essa cosmovisão da poesia homérica é clara e coerente. Em parte alguma ela enuncia fórmulas conceituais à maneira de um dogma; antes se exprime vivamente em tudo que sucede, em tudo que é dito e pensado. E embora no pormenor muitas coisas resultem ambíguas, em termos amplos e no essencial, os testemunhos não se contradizem. É possível, com rigoroso método, reuni-los, ordená-los, fazer lhes o cômputo, e assim eles nos dão respostas explícitas às questões sobre a vida e a morte, o homem e Deus, a liberdade e o destino (…). (OTTO. Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do espírito grego. 1ª Ed., trad. [e prefácio] de Ordep Serra. – São Paulo: Odysseus Editora, 2005 - p. 11.) Com base no texto, e em seus conhecimentos sobre a função dos mitos na Grécia arcaica, assinale a alternativa correta. a) De acordo com os poemas homéricos, os deuses em nada poderiam interferir no destino dos humanos e, assim, a determinação di- vina (ananque) se colocava em segundo plano, uma vez que era o acaso (tykhe) quem governava, isto é, possuía a função de ensinar ao homem o que este deveria escolher no momento de sua livre ação. b) As poesias de Homero sempre mantiveram a função de educar o homem grego para o pleno exercício da atividade racional que surgiria no século VI a.C., uma vez que, de acordo com historiadores e helenistas, não houve uma ruptura na passagem do mito para o lógos, mas sim um processo gradual e contínuo de enraizamento histórico que culminou no advento da � loso� a. c) Os mitos homéricos serviram de base para a educação, formação e visão de mundo que o homem grego arcaico possuía. Em seus cânticos, Homero justapõe conceitos importantes como harmonia, proporção e questionamentos a respeito dos princípios, das causas e do porquê das coisas. Embora todas essas instâncias apresentavam-secomo tal, os mitos não deixaram de lado o caráter � ctício e fabular em que eram narrados. d) O mito já era pensamento. Ao formalizar os versos de sua poesia, Homero inaugura uma modalidade literária bem singular no oci- dente. As ações dos deuses e dos homens, por exemplo, sempre obedeceram a uma ordem preestabelecida, a qual sempre revelou uma lógica racional em funcionamento. e) Os mitos tiveram função meramente ilustrativa na educação do homem grego, pois o caráter teórico e abstrato da cultura grega apagou em grande parte os aspectos que se revelariam relevantes na poesia grega. Parada complementar Verifi que as respostas no Manual do Professor. Teste seu conhecimento: 5 e 6 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 33 08/09/20 08:04 3434 Rupturas entre mito e Filosofia Mito e Filosofia, embora sejam leituras diferentes de mundo, constituem formas de conhecimento que buscam compreender a realidade, atribuindo-lhe um sentido. Embora ambas estejam ligadas, em sua origem, à tarefa de oferecer respostas às inquietações humanas diante do desconhecido, elas se diferem quanto aos métodos e respostas a esses questionamentos. Essa inquietação e a necessidade de superá-la para sentir-se seguro retiraram o ser humano de seu estado de ignorância, em busca de explicações sobre o que percebia e sentia. Essa admiração inicial foi transformada em indagação e, pos- teriormente, em explicação sobre a realidade, dando-lhe um sentido. De fato, os homens começaram a � losofar, agora, como na origem, por causa da admiração, na medida em que, inicialmente, � cavam perplexos diante das di� culdades mais sim ples; em seguida, progredindo pouco a pouco, chegaram a enfrentar problemas sempre maiores, por exemplo, os problemas relativos aos fenô menos da lua, do sol e dos astros e, os problemas relativos à geração de todo o universo. Ora, quem experimenta uma sensação de dúvida e de admiração, reconhece que não sabe; e é por isso, que aquele que ama o mito é, de certo modo, � lósofo: o mito é com efeito, produto de coisas admiráveis. De modo que, se os homens � losofaram para libertarem-se da ignorância, é evidente que buscavam o conhecimento em vista do saber e não por alguma utilidade prática. ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002. p. 11. v. I. O mito constrói, assim, uma infinidade de significados ocultos que nos estimula na compreensão do que somos, compondo uma diversidade de interpretações das nossas ações. É nisso que reside a sua for- ça e o seu poder; ele é uma espécie de memória da humanidade, seus significados oferecem diferentes respostas às necessidades de todos os homens, de todas as épocas e lugares, conferindo-lhes um caráter de universalidade. Segundo Jean-Pierre Vernant, essas referências funcionavam como uma espécie de espelho: […] enquanto a cidade permaneceu viva, a atividade poética continuou a exercer esse papel de espelho que devolvia ao grupo humano sua própria imagem, permitindo-lhe apreender-se em sua dependência em relação ao sagrado, de� nir-se ante os imortais, compreender-se naquilo que assegura a uma comunidade de seres perecíveis, sua coesão, sua duração, sua permanência através do � uxo das gerações sucessivas. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006. p. 16. Com o tempo, no cerne das atividades públicas entre os poetas, manifestaram-se certas inquieta- ções quanto à veracidade de suas narrativas que, aos poucos, se desdobraram em questionamentos aos quais os mitos não eram capazes de responder de forma satisfatória, sendo, por isso, contestados e fragilizados no seu status de verdade absoluta. Claro que isso demorou um longo tempo – muitas centenas de anos, pois uma mudança cultural não se faz da noite para o dia. Nesse contexto, o surgi- mento da História e da Filosofia levanta o problema da veracidade ou falsidade dos mitos, apresentan- do novos argumentos e concepções de interpretação do real. A ruptura entre mito e Filosofia ocorre a partir daquilo que os distingue enquanto formas de conhecimento e leituras de mundo. Enquanto os mitos compõem uma cosmogonia, a Filosofia nasce como cosmologia. A cosmogonia, história do nascimento do cosmos, é uma teogonia – o mundo é fundado pelo nascimento dos deuses e vice-versa. Nela, as explicações sobre as origens do universo são dadas em linguagem metafórica, simbólica, que tem significados dentro da cultura que a gerou. Na cosmologia, as explicações se afastam dessa visão localizada e de influências religiosas em busca de princípios gerais, universais, baseados e estruturados pelo uso da razão. Essa é a diferença entre conhecimento mítico e filosófico. A ruptura ocorre pelo uso da razão no processo de conhecimento em contraposi- ção à crença. Agora, responda: que encanto possuem essas histórias tão antigas e seus personagens sobrenaturais a ponto de sobreviverem tantos anos e se tornarem referências na literatura, na publicidade, no cinema, influenciando até hoje as concepções de ser humano, de sociedade e de mundo? O que você pensa sobre isso? 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 34 08/09/20 08:04 35 F il o s o f ia Atualidade do mito O surgimento da Filosofia no Ocidente e, posteriormente, da ciência moderna são momentos que provo- caram profundas rupturas na concepção mítica. Essas rupturas representam o surgimento de uma nova visão de mundo, onde parecia não ter lugar para mitos. Embora a Filosofia não tenha rompido radicalmente com a mitologia, o novo contexto traduzia os mitos como visão ingênua e fantasiosa da realidade, desmerecendo sua importância histórica e banalizando-os como fonte de conhecimento humano. No entanto, mentes mais sutis e observadoras não os deixaram cair no esquecimento, imortalizando-os. E o mito continua fortemente presente: seja nas histórias e expressões do senso comum, seja no teatro, na literatura, na publicidade, no cinema, na pintura, na música, seja no pensamento de estudiosos brilhantes como Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, Roland Barthes, entre tantos outros, que se utilizaram das suas narrativas como instrumentos de trabalho, tornando-se cada vez mais significativos como referência e fon- te inesgotável de reflexão sobre a condição humana. Campanha publicitária de uma marca de motocicletas inspirada na escultura de Hermes. R e p ro d u ç ã o /h tt p s :/ /p t. s lid e s h a re .n e t/ 1 9 5 0 /a rt e -p ro p a g a n d a Medusa estampa a capa da revista Bravo! de agosto de 2012. R e p ro d u ç ã o /E d it o ra A b ri l Por outro lado, a natureza dos elementos mitológicos e das obras de arte, abordados constantemente pela mídia, reforça que seus elementos se relacionam com os níveis mais profundos do imaginário huma- no. Heróis e mitos formam imagens universais existentes nos seres humanos, incrustadas na sua mente, por muitas gerações, formando um tecido que é sempre familiar, porque transmite segurança e possui for- te apelo às emoções e afetividade humanas. Daí a sua importância como apelo publicitário na atualidade. O problema é que essa exposição do mito e da obra de arte pela mídia desloca-os de seu contexto ori- ginal, gerando interpretações equivocadas. A utilização estereotipada dos mitos e heróis retira deles o seu caráter originalmente contestatório, revelador da verdade, promovendo um processo de desmitologização e empobrecimento do símbolo. Isso significa que, nesse processo, os aspectos ori- ginais do símbolo são abandonados, e, pior, são descaracterizados para serem direcionados a um objetivo fora dele – no caso, o consumo. Nessa apropriação da cultura popular pela mídia, os mitos, a obra de arte e seus significados originais ficam banalizados, sobrepostos pelo ime- diatismo da mensagem publicitária. Nesse contexto, essas formas de co- nhecimento, arte e mito, que possuem um papel libertador, de movimento, de atividade, são utilizadas para promover a passividade do indivíduo,esti- mulando-o ao aspecto meramente contemplativo, uma vez que a intenção é fazer dele um consumidor. Em contraponto, outro fato interessante e contraditório deve ser aqui destacado: na sociedade contemporânea, a inesgotável oferta de prazer e a aquisição de bens pelo consumo não saciam o desejo humano; aumentando, paralelamente a isso, a valorização do mistério, do mítico e da religiosida- de em busca daquela receita mágica dos antigos, que ajude o indivíduo a compreender e construir a tão sonhada vida boa num universo ordenado, harmonioso e justo. Saiba mais sobre a apro- priação do mito pela mídia e suas consequências no livro de Malena Segura Contrera, O mito na mídia: a presença de conteúdos arcaicos nos meios de comunicação (2. ed. São Paulo: Annablume, 2000). Fique por dentro A série Quarto de Vincent em Arles, de Vincent van Gogh, 1878- 1889, tem um de seus quadros apropriado e transformado em peça publicitária para venda de computadores. R e p ro d u ç ã o /h tt p s :/ /d a b lio s .w o rd p re s s .c o m 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 35 08/09/20 08:04 3636 4. (UFU-MG) A atividade intelectual que se instalou na Grécia a partir do séc. VI a.C. está substancialmente ancorada num exercício especulativo- -racional. De fato, “[…] não é mais uma atividade mítica (porquanto o mito ainda lhe serve), mas � losó� ca; e isso quer dizer uma atividade regrada a partir de um comportamento epistêmico de tipo próprio: empírico e racional”. SPINELLI, Miguel. Filósofos Pré-socráticos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p. 32. Sobre a passagem da atividade mítica para a filosófica, na Grécia, assinale a alternativa correta. a) A mentalidade pré-� losó� ca grega é expressão típica de um intelecto primitivo, próprio de sociedades selvagens. b) A � loso� a racionalizou o mito, mantendo-o como base da sua especulação teórica e adotando a sua metodologia. c) A narrativa mítico-religiosa representa um meio importante de difusão e manutenção de um saber prático fundamental para a vida cotidiana. d) A Ilíada e a Odisseia de Homero são expressões culturais típicas de uma mentalidade � losó� ca elaborada, crítica e radical, baseada no logos. Parada obrigatória 6. (Uece) É no plano político que a Razão, na Grécia, primeiramente se exprimiu, constituiu-se e formou-se. A experiência social só pôde tornar-se entre os gregos objetos de uma re� exão positiva, porque se prestava, na cidade, a um debate público de argumentos. O declínio do mito data do dia em que os primeiros Sábios puseram em discussão a ordem humana, procuraram de� ni-la em si mesma, traduzi-la em fórmulas acessíveis à sua inteligência, aplicar-lhe a norma do número e da medida.” VERNANT, J.-P. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989, p. 94. Com base nessa citação, é correto afirmar que a filosofia nasce a) após o declínio das ideias mitológicas, não havendo nenhuma linha de continuidade entre estas últimas e as novas ciências gregas. b) das representações religiosas míticas que se transpõem nas novas representações cosmológicas jônicas. c) da experiência do espanto, a maravilha com um mundo ordenado e, portanto, belo. d) da experiência política grega do debate, argumentação e contra-argumentação, que põe em crise as representações míticas. 7. (Uema) No contexto histórico da gênese da Filosofi a, deixando de lado a polêmica sobre a ruptura ou a continuidade entre mito e fi losofi a, importa destacar, precisamente, a perspectiva inovadora da fi losofi a nascente. Novidade na fi losofi a é a) a capacidade de fundamentar, racionalmente, as narrativas teogônicas. b) a tendência à argumentação racional, generalizada em torno das coisas. c) o exercício do distanciamento das coisas terrenas pelo pensamento abstrato. d) o estabelecimento de competências argumentativas com justi� cativas para a política e a religião. e) a racionalização da compreensão do mundo e o consequente abandono das crenças nos deuses. Parada complementar Verifi que as respostas no Manual do Professor. Teste seu conhecimento: 7 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 36 08/09/20 08:04 37 F il o s o f ia Síntese Complete o quadro com as informações que aprendeu no capítulo, seguindo os exemplos já preenchidos. DIÁLOGOS ENTRE ARTE, MITO E FILOSOFIA Teogonia origem, genealogia dos deuses. Cosmogonia origem, nascimento do cosmos, Universo. • Primeira compreensão de mundo. • Narrativa sobre a vida dos heróis e dos deuses. • Palavra sagrada, vinda de uma revelação divina. • Diferenças e aproximações entre o mundo natural (natureza), cultural (humano) e sobrenatural (divino). Caos e cosmos: uma visão sacralizada de uma visão sacralizada de mundo.mundo. Recriação da cosmogonia Recriação da cosmogonia e reatualização do mito.e reatualização do mito. Espelho: o lago de Narciso • Conjunto de saberes da tradição transmitidos pela oralidade. • Crenças coletivas construídas para explicar o desconhecido. • Não visa a objetividade nem a racionalidade. Dirige-se ao sentimento e às emoções. Oferece signifi cados à existência dando-lhe um sentido. • Propõe “a vida boa” num universo ordenado, harmonioso e justo. • Distingue e aproxima o mundo natural (natureza), humano (cultural) e divino (sobrenatural). • Não é ilusão, mentira ou mero divertimento. • Não visa a informação, mas a formação do indivíduo. • O duplo no espelho: ocultamento e revelação da identidade. • A solidão consequente da paixão pela própria imagem. • A individualidade como condição humana. • O individualidade e seus excessos. • A vida como contemplação. • Empatia e alteridade. • • Traduzem o imaginárioTraduzem o imaginário humano: medos, desejos e humano: medos, desejos e violências inconscientes.violências inconscientes. • • Tradições de um povo, Tradições de um povo, espécie de memória da espécie de memória da humanidade.humanidade. • • Constituição do quadro Constituição do quadro mental com que os gregos mental com que os gregos pensavam o mundo e o pensavam o mundo e o divino.divino. • • Instituição de uma cultura Instituição de uma cultura comum, memória social, comum, memória social, visando uma identifi cação e visando uma identifi cação e unifi cação.unifi cação. Mito e identidade Mito: uma leitura de mundo A voz dos poetas Homero: elogio aos heróis e suas virtudes. Hesíodo: elogio ao trabalho e à justiça. Mito e Filosofi a continuidade e rupturas Diké e Hybris: entre a justiça e a desmedida “Escuta a justiça (diké), não deixes aumentar a desmedida (hybris).” Hesíodo A ruptura ocorre a partir A ruptura ocorre a partir da cosmologia, oda cosmologia, o uso da uso da razão razão no processo de no processo de conhecimento em conhecimento em contraposição contraposição à crençaà crença. . A A cosmologiacosmologia busca busca aa princípios gerais e princípios gerais e universais, estruturados universais, estruturados pela razão.pela razão. Características 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 37 08/09/20 08:04 3838 Teste seu conhecimento 1. (UPE) Coloque V para Verdadeiro e F para Falso nas afirmati- vas abaixo, referentes à consciência mítica. ( ) Os relatos míticos, apoiados em uma "lógica do sensí- vel", explicam a realidade concreta, conferindo signifi- cado e ordem a um mundo aparentemente caótico e desorganizado. ( ) Os mitos, embora não sejam estruturas lógicas, se consti- tuem, se desenvolvem e se transformam segundo regras operacionais expressas logicamente. ( ) Os mitos não expressam a capacidade inicial do homem de compreender o mundo. ( ) Os mitos surgem como modelos explicativos para satis- fazer a curiosidade e as exigências da mente primitiva, embora desprovidos de conteúdo passível de convencer a razão humana. ( ) A consciência mítica, bem como a consciência filosófica, é a maneira que o ser humano encontrou para organizar um conhecimento sobre a realidade.Assinale a alternativa que apresenta a sequência correta. a) V, V, V, V, F. b) V, V, F, V, V. c) F, V, V, V, V. d) F, F, V, V, V. e) V, V, F, F, V. 2. (Unifor-CE) O Homem que se endereçou Apanhou o envelope e na sua letra cuidadosa subscritou a si mesmo: Narciso, rua Treze, no 21. Passou cola nas bordas do papel, mergulhou no envelope e fechou-se. Horas mais tarde a empregada colocou-o no correio. Um dia depois sentiu-se na mala do carteiro. Diante de uma casa, percebeu que o funcionário tinha parado indeciso, consultara o envelope e prosseguira. Voltou ao DCT, foi colocado numa prate- leira. Dias depois, um novo carteiro procurou seu endereço. Não achou, devia ter saído algo errado. A carta voltou à prateleira, no meio de muitas outras, amareladas, empoeiradas. Sentiu, então, com terror, que a carta se extraviara. E Narciso nunca mais en- controu a si mesmo. BRANDÃO, Ignácio de Loyola. O homem com o furo na mão e outras histórias. São Paulo: Editora Ática, 1998. O conto de Ignácio de Loyola reflete o comportamento do homem contemporâneo, por meio da figura mitológica de Narciso, retratando, sobretudo, a) o pessimismo e a perda de sua vaidade. b) a excessiva vaidade e a arrogância. c) o medo do desconhecido e a perda de sua identidade. d) o individualismo e a sua excessiva vaidade. e) o seu individualismo e a perda da identidade. 3. (Enem) A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento. Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem- -estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda de liberdade de alguns se justi� que por um bem maior partilhado por todos. HAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000 (adaptado). O filósofo afirma que a ideia de justiça atua como um impor- tante fundamento da organização social e aponta como seu elemento de ação e funcionamento o a) povo. b) Estado. c) governo. d) indivíduo. e) magistrado. 4. (UEL-PR) Leia os textos a seguir. Sim, bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre. (HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. 3. ed. Trad. de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995. p.91.) Segundo a mitologia ioruba, no início dos tempos havia dois mundos: Orum, espaço sagrado dos orixás, e Aiyê, que seria dos homens, feito apenas de caos e água. Por ordem de Olorum, o deus supremo, o orixá Oduduá veio à Terra trazendo uma cabaça com ingredientes especiais, entre eles a terra escura que jogaria sobre o oceano para garantir morada e sustento aos homens. (A Criação do Mundo. SuperInteressante. jul. 2008. Disponível em: Acesso em: 1 abr. 2014.) No começo do tempo, tudo era caos, e este caos tinha a forma de um ovo de galinha. Dentro do ovo estavam Yin e Yang, as duas forças opostas que compõem o universo. Yin e Yang são escuridão e luz, feminino e masculino, frio e calor, seco e molhado. (PHILIP, N. O Livro Ilustrado dos Mitos: contos e lendas do mundo. Ilustrado por Nilesh Mistry. Trad. de Felipe Lindoso. São Paulo: Marco Zero, 1996. p. 22.) Com base nos textos e nos conhecimentos sobre a passa- gem do mito para o logos na filosofia, considere as afirmati- vas a seguir. I. As diversas narrativas míticas da origem do mundo, dos seres e das coisas são genealogias que concebem o nas- cimento ordenado dos seres; são discursos que buscam o princípio que causa e ordena tudo que existe. 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 38 08/09/20 08:04 Teste seu conhecimento 39 II. Os mitos representam um relato de algo fabuloso que a� r- mam ter ocorrido em um passado remoto e impreciso, em geral grandes feitos apresentados como fundamento e começo da história de dada comunidade. III. Para Platão, a narrativa mitológica foi considerada, em cer- ta medida, um modo de expressar determinadas verdades que fogem ao raciocínio, sendo, com frequência, algo mais do que uma opinião provável ao exprimir o vir a ser. IV. Quando tomado como um relato alegórico, o mito é re- duzido a um conto � ctício desprovido de qualquer cor- respondência com algum tipo de acontecimento, em que inexiste relação entre o real e o narrado. Assinale a alternativa correta. a) Somente as a� rmativas I e II são corretas. b) Somente as a� rmativas I e IV são corretas. c) Somente as a� rmativas III e IV são corretas. d) Somente as a� rmativas I, II e III são corretas. e) Somente as a� rmativas II, III e IV são corretas. 5. (UEM-PR) Os antigos, ou melhor, os antiquíssimos, (teólogos), trans- mitiram por tradição a nós outros, seus descendentes, na forma do mito, que os astros são Deuses e que o divino abrange toda a natureza… Costuma-se dizer que os Deuses têm forma humana, ou se transformam em semelhantes a outros seres viventes … Po- rém, pondo-se de lado tudo o mais, e conservando-se o essencial, isto é, se se acreditou que as substâncias primeiras eram Deuses, poderia pensar-se que isto foi dito por inspiração divina …” (Aristóteles, Metafísica, XII, 8, 1074b, apud Mondolfo, O pensamento antigo, I, São Paulo: Mestre Jou, 1964, p.13). Com base nesse excerto e no conhecimento sobre a questão da origem da filosofia, assinale o que for correto. 01) Antes de fazerem filosofia, os gregos já indagavam sobre a origem e a formação do universo; e as respostas a esse problema eram oferecidas sob a forma de mito, isto é, por meio de uma narrativa alegórica que descreve a origem ou a condição de alguma coisa, reportando a um passado imemorial. 02) Na Teogonia, Hesíodo descreve a gênese do mundo coincidindo com o nascimento dos deuses; as forças e os domínios cósmicos não surgem como pura natureza, mas sim como divindades: Gaia é a Terra, Urano é o Céu, Cro- nos é o Tempo, aparecendo ora por segregação, ora pela intervenção de Eros, princípio que aproxima os opostos. 04) Os primeiros filósofos gregos buscaram descobrir o princípio (arché) originário de todas as coisas, o elemento ou a substância constitutiva do universo; elaborando uma cosmologia, não se contentavam com doutrinas divinamente inspiradas, mas tentavam compreender racionalmente o cosmo. 08) Os gregos foram pouco originais no exercício do pensa- mento crítico racional; apropriaram-se das conquistas científicas e do patrimônio cultural de civilizações orien- tais com mínimas alterações. 16) É tese hoje bastante aceita que o nascimento da filosofia na Grécia não foi um “milagre” realizado por um povo privilegiado, mas a culminação de um processo lento, tributário de um passado mítico, e influenciado por trans- formações políticas, econômicas e sociais. 6. (Unesp-SP) Aedo e adivinho têm em comum um mesmo dom de “vidên- cia”, privilégio que tiveram de pagar pelo preço dos seus olhos. Cegos para a luz, eles veem o invisível. O deus que os inspira mostra-lhes, em uma espécie de revelação, as realidades que esca- pam ao olhar humano. Sua visão particular age sobre as partes do tempo inacessíveis às criaturas mortais: o que aconteceu outrora, o que ainda não é. (Jean-Pierre Vernant. Mito e pensamento entre os gregos, 1990. Adaptado.) O texto refere-se à cultura grega antiga e menciona, entre outros aspectos, a) o papel exercido pelos poetas, responsáveis pela transmis- são oral das tradições, dos mitos e da memória. b) a prática da feitiçaria, estimulada especialmente nos perío- dos de seca ou de infertilidade da terra. c) o caráter monoteísta da sociedade, que impedia a difusão dos cultos aos deuses da tradição clássica. d) a forma como a história era escrita e lida entre os povos da península balcânica. e) o esforço de diferenciar as cidades-estados e reforçar o isolamento e a autonomia em que viviam. 7. (Uece) Como se sabe, a palavra mythos raramente foi empregada por Heródoto (apenas duas vezes). Caracterizar um logos (narrativa) como mythos era paraele um meio claro de rejeitá-lo como duvi- doso e inconvincente. […] Situado em algum lugar além do que é visível, um mythos não pode ser provado. HARTOG, F. Os antigos, o passado e o presente. Brasília, Editora da UnB, 2003, p. 37. Sobre a diferença entre mythos e logos acima sugerida, é INCORRETO afirmar que a) o problema do mythos era limitar-se ao que é visível e, por isso, não podia ser pensado. b) a � loso� a e a história nasceram, na Grécia clássica, com base numa mesma reivindicação do logos contra o mythos. c) o mythos não poderia ser submetido à clari� cação argu- mentativa e à prova – demonstração – discursiva. d) em contraposição ao mythos, o logos era um uso argu- mentativo da linguagem, capaz de criar as condições do convencimento. 5P_PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 39 08/09/20 08:04 4040 Referências BUZZI, Arcângelo R. Introdução ao pensar: o ser, o conhecimento e a linguagem. Petrópolis: Vozes, 2006. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. Lisboa: Edição Livros do Brasil, 1975. FERRY, Luc. A sabedoria dos mitos gregos: aprender a viver II. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. Disponível em: www.academia.edu/36568226/A_Sabedoria_dos_Mitos_Gregos_-_Ferry_Luc. Acesso em: mar. 2020. HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte. Trad. Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio. São Paulo: Edições 70, 2010. JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1986. PLATÃO. Teeteto. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2007. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofi a. São Paulo: Paulus, 2006. (Coleção História da Filosofi a). SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. São Paulo: Martins Fontes, 2001. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006. WILDE, Oscar. Poema em prosa. Trad. Possidónio Cachapa. Lisboa: Cavalo de Ferro, 2002. Referências PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 40 9/10/20 4:38 PM Anotações 41 PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 41 9/10/20 4:38 PM Anotações 4242 PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 42 9/10/20 4:38 PM Anotações 43 PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 43 9/10/20 4:38 PM Anotações 4444 PIT_EM_1S_C1_FILO_CA_CAP2.indd 44 9/10/20 4:38 PM FIL_U02