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Apostila Obras Literarias VR 2023-13-14

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@vestibularesumido
13
com o pedreiro-livre” mandava recoveiros a 
Santo Tirso, a S. Gens, levar ao Rei fiambres, 
caixas de doce, garrafas do seu vinho de 
Tarrafal, e bolsas de retrós atochadas de peças 
que ele ensaboava para lhes avivar o ouro. E 
quando soube que o Sr. Miguel, com dois velhos 
baús amarrados sobre um macho, tomara o 
caminho de Sines e do final desterro – Jacinto 
Galião correu pela casa, fechou todas as janelas 
como num luto, berrando furiosamente:
— Também cá não fico! Também cá não fico! 
Não, não queria ficar na terra perversa de onde 
partia, esbulhado e escorraçado, aquele rei de 
Portugal que levantava
na rua os Jacintos! Embarcou para França com a 
mulher, a Sra.D. Angelina Fafes (da tão 
falada casa dos Fafes da Avelã); com o filho, o 
Cintinho, menino amarelinho, molezinho, coberto 
de caroços e leicenços; com a aia e com o 
moleque. Nas costas da Cantábria o paquete 
encontrou tão rijos mares que a Sra. D. Angelina, 
esguedelhada, de joelhos na enxerga do beliche, 
prometeu ao Senhor dos Passos de Alcântara 
uma coroa de espinhos, de ouro, com as gotas de 
sangue em rubis do Pegu. 
Em Baiona, onde arribaram, Cintinho teve 
icterícia. Na estrada de Orleães, numa noite 
agreste, o eixo da berlinda em que jornadeavam 
partiu, e o nédio senhor, a delicada senhora da 
casa da Avelã, o menino, marcharam três horas 
na chuva e na lama do exílio até uma aldeia, 
onde, depois de baterem como mendigos a 
portas mudas, dormiam nos bancos duma 
taberna. No “Hotel dos Santos Padres”, em Paris, 
sofreram os terrores dum fogo que rebentara na 
cavalariça, sob o quarto de D. Galião, e o digno 
fidalgo, rebolando pelas escadas em camisa, até 
ao pátio, enterrou o pé nu numa lasca de vidro. 
Então ergueu amargamente ao céu o punho 
cabeludo, e rugiu:
— Irra! É demais!
Logo nessa semana, sem escolher, Jacinto Galião 
comprou a um príncipe polaco, que depois da 
tomada de Varsóvia se metera frade cartuxo, 
aquele palacete dos Campos Elísios, no 202. E 
sob o pesado ouro dos seus estuques, entre as 
suas ramalhudas sedas se enconchou, 
descansando de tantas agitações, numa vida de 
pachorra e de boa mesa, com alguns 
companheiros de emigração (o desembargador 
Nuno Velho, o conde de Rabacena, outros 
menores), até que morreu de indigestão, duma 
lampreia de escabeche que mandara o seu 
procurador em Montemor. Os amigos pensavam 
que a Sra. D. Angelina Fafes voltaria ao reino.
Mas a boa senhora temia a jornada, os mares, as caleças 
que racham. E não se queria separar do seu Confessor, 
nem do seu Médico, que tão bem lhe compreendiam os 
escrúpulos e a asma.
— Eu, pôr mim, aqui fico no 202 (declarara ela), ainda
que me faz falta a boa água de Alcolena...
O Cintinho, esse, em crescendo, que decida.
O Cintinho crescera [...] no seu aferro de sombra, não se 
quis arredar da Teresinha Velho, de quem se tornara, 
através de Paris, a muda, tardonha sombra. Como uma 
sombra, casou; deu mais algumas voltas ao torno; cuspiu 
um resto de sangue; e passou, como uma sombra. Três 
meses e três dias depois do seu enterro o meu Jacinto 
nasceu. Desde o berço, onde a avó espalhava funcho e 
âmbar para afugentar a sorte-ruim, Jacinto medrou com a 
segurança, a rijeza, a seiva rica dum pinheiro das dunas. 
Não teve sarampo e não teve lombrigas. As letras, a 
tabuada, o latim entraram por ele tão facilmente como o 
Sol por uma vidraça. Entre os camaradas, nos pátios dos 
colégios, erguendo a sua espada de lata e lançando um 
brado de comando, foi logo o vencedor, o rei que se 
adula, e a quem se cede a fruta das merendas. Na idade 
em que se lê Balzac e Musset nunca atravessou os 
tormentos da sensibilidade; – nem crepúsculos quentes o 
retiveram na solidão duma janela, padecendo dum desejo 
sem forma e sem nome. Todos os seus amigos (éramos 
três, contando o seu velho escudeiro preto, o Grilo) lhe 
conservaram sempre amizades puras e certas – sem que 
jamais a participação do seu luxo as avivasse ou fossem 
desanimadas pelas evidências do seu egoísmo. Dessa 
forma, o narrador personagem José Fernandes inicia o 
relato sobre a vida de seu amigo de faculdade Jacinto de 
Tormes. Eles se reencontram em Paris depois de “Zé” ter 
passado sete anos administrando as terras de sua família 
em Guiães, uma província de Portugal. Após o narrador 
se afastar do universo intelectual afrancesado da elite 
portuguesa, o amigo urbano e suas ideias progressistas 
pareciam-lhe desgastados e sem sentido. Apesar de viver 
cercado de conforto e das mais impressionantes 
novidades tecnológicas – ou seriam elas parafernálias 
inúteis? –, o próprio Jacinto aparentava infelicidade, e 
tudo à sua volta tinha ares de artificialismo. Por conta de 
problemas em suas terras em Tormes, ele decide partir 
com José Fernandes para Portugal; assim, fazendo o 
percurso da cidade para as serras, Jacinto encontra novo 
sentido para sua vida. Depois de uma péssima primeira 
im- pressão – já que tudo em Tormes parecia parado 
no tempo –, ele ficou encantado com o contato com a 
natureza e com as pessoas que trabalhavam no campo, o 
que permitiu que renovasse, inclusive, suas reflexões 
intelectuais. Por ter se apaixonado por Joaninha, prima de 
José Fernandes, Jacinto decide se instalar em Tormes e, na 
propriedade, conduz reformas que aparentemente 
tornam melhores as condições de vida dos trabalhadores 
daquele local, os quais, por gerações, garantiram a 
comodidade de sua família em Paris.
@vestibularesumido
14
O ALIENISTA
 Machado de Assis 
“O alienista” é um texto que se situa entre o 
conto e a novela – muitos o consideram um conto 
pela sua narrativa íntima, outros o analisam como 
novela pelo tamanho do seu texto (algumas de 
suas edições chegam a somar mais de oitenta 
páginas). Podemos ler “O alienista” como conto 
em razão da profundidade e do tratamento dados 
ao tema,
o qual se centra em uma unidade. 
No conto, Machado nos propõe a reflexão sobre 
os limites entre a “normalidade” e a 
“anormalidade” na mente humana. O “alienista” é 
Simão Bacamarte, um médico especializado na 
mente humana e nos seus desvios, que acata os 
preceitos científicos como fé e dogma. Assim, ele 
passa a considerar loucura todos os 
comportamentos que apresentem algum desvio 
em relação a um critério rígido de normalidade. 
Obcecado pelo tema de estudo, ele funda
a Casa Verde, seu próprio manicômio, e interna 
nele um assombroso número de pessoas, como as 
que rezavam muito e aquelas que eram vaidosas 
(neste último grupo, é internada a sua própria 
esposa, por sua simples indecisão quanto a qual 
colar usar nos bailes).
O médico tem as seguintes teorias durante a narrativa: loucos 
são os que têm um comportamento anormal e diferente da 
maioria; a loucura tem seu campo ampliado (“A razão é o 
perfeito equilíbrio de todas as faculdades, fora daí, insânia, 
insânia e só insânia.”); os loucos passam a ser os que tinham 
perfeito equilíbrio da mente, não os de doentio juízo – assim, 
ele libera os primeiros internos e aprisiona os considerados 
“normais”; o único ser com juízo perfeito em Itaguaí era ele 
próprio, logo deveria ser o único interno da Casa Verde.
Desse modo, em “O Alienista”, Machado de Assis 
satiriza o cientificismo dominante no século XIX, 
ironizando seus excessos, bem salientados no 
Naturalismo. Daí em diante foi uma coleta 
desenfreada. Um homem não podia dar nascença 
ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda 
daquelas que aproveitam ao inventor ou 
divulgador, que não fosse logo metido na Casa 
Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os 
fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os 
curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na 
tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava 
aos emissários do alienista.
Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras,
dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural, e as
segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo ia
do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não
havia regra paraa completa sanidade mental. Alguns cronistas
creem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura,
e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser 
aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura 
autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da 
mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova 
documental ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou 
três onças de sangue godo.
Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à 
Câmara foi enriquecer um ourives, amigo e compadre dele; 
mas, conquanto seja certo que o ourives viu prosperar o 
negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos 
que essa postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; 
pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro 
fim do ilustre médico. Quanto à razão determinativa da 
captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram 
do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí; 
a opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por 
andarem a gesticular, à toa, nas ruas, em casa, na igreja. 
Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo 
caso, é uma simples conjetura; de positivo nada há.

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