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DADOS DE ODINRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe eLivros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo. Sobre nós: O eLivros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: eLivros. Como posso contribuir? 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Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros - RJ O89p Osborne, Roger, 1936-2007 Do povo para o povo: [recurso eletrônico] : uma nova história da democracia / Roger Osborne ; tradução Ludimila Hashimoto. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 2014. recurso digital Tradução de: Of the people, by the people: a new history of democracy Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-286-1741-2 (recurso eletrônico) 1. Democracia - História. 2. Livros eletrônicos. I. Título. 13-1132 CDD: 320.9 CDU: 32(09) Todos os direitos reservados pela: EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. Rua Argentina, 171 — 2º. andar — São Cristóvão 20921-380 — Rio de Janeiro — RJ Tel.: (0XX21) 2585-2070 — Fax: (0XX21) 2585-2087 Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora. Atendimento e venda direta ao leitor: mdireto@record.com.br ou (0XX21) 2585-2002 Produzido no Brasil SUMÁRIO PRÓLOGO CAPÍTULO 1: Atenas e o Mundo Antigo O Cidadão Envolvido CAPÍTULO 2: Parlamentos e Afins O Cidadão Representado CAPÍTULO 3: Aldeias Medievais e Cidades Repúblicas O Cidadão Burguês CAPÍTULO 4: Democracia nos Alpes O Cidadão Comunal CAPÍTULO 5: A Revolução Inglesa O Cidadão Súdito CAPÍTULO 6: Democracia na América O Cidadão Eleitor CAPÍTULO 7: França, 1789-95 O Cidadão Ativista CAPÍTULO 8: Repúblicas da América Latina O Cidadão Subjugado CAPÍTULO 9: Europa no Século XIX O Cidadão Rejeitado CAPÍTULO 10: Aceitar e Recuar O Cidadão Idealizado CAPÍTULO 11: Índia O Cidadão Independente CAPÍTULO 12: O Ocidente Pós-Guerra O Cidadão Consumidor CAPÍTULO 13: Democracia e Descolonização O Cidadão Explorado CAPÍTULO 14: O Colapso do Comunismo na Europa O Cidadão Triunfante CAPÍTULO 15: Democracia desde 1989 O Cidadão Informado Notas Referências e Leituras Complementares Créditos das Imagens Índice V PRÓLOGO amos deixar claro de início: a democracia é a conquista mais admirável da humanidade. Pode ser idealizada, deturpada, maltratada, mal aplicada, parodiada e ridicularizada; sem dúvida, já foi cortejada por amantes infiéis, acolhida por falsos amigos e traída por aliados inescrupulosos, mas a democracia enquanto modo de vida e sistema de governo é a via pela qual os seres humanos modernos podem satisfazer sua necessidade de construir vidas dotadas de significado. Mais do que todos os quadros e esculturas do mundo, mais do que todos os poemas, peças e romances, e mais do que todas as invenções científicas e tecnológicas juntas, a democracia revela o que há de mais criativo e inovador na humanidade. A democracia é um empreendimento contínuo e coletivo que nos une, ao mesmo tempo que nos permite viver como indivíduos. Enquanto ela durar, existe esperança; sem a democracia, o mundo está em desamparo. Quando buscamos uma maneira de pensar sobre a democracia, a mudança é um bom ponto de partida. Em 2009, Barack Obama pautou sua campanha para a presidência dos Estados Unidos pelo seguinte slogan: “Mudar É Preciso.” Em 2010, David Cameron disse ao povo britânico: “Votem na Mudança”, enquanto futuros aliados do partido Liberal Democrata prometiam “Mudanças que Funcionam”. Ainda que nossos líderes possam não gostar, a melhor forma de mudar é votar para que deixem seus cargos. A sanção máxima contra qualquer governo é tirá-lo do poder, e a grande vantagem da democracia é permitir que isso ocorra de forma pacífica. Os momentos coreografados em frente ao Capitólio dos Estados Unidos, quando o novo presidente faz o juramento de posse diante do predecessor derrotado, e a ida do primeiro-ministro britânico à Downing Street para dizer ao mundo que ele (ainda, quase sempre, do sexo masculino) está deixando o cargo e espera passar mais tempo com a família são exemplos de rituais fundamentais da democracia — equivalem ao funeral público, em que se marca a morte para que a vida prossiga. Essas e outras cenas semelhantes em Paris, Berlim, Nova Délhi, Tóquio e Santiago são expressões formais do acordo feito por nossos governantes de atuarem apenas com o consentimento do povo — e, quando esse consentimento é retirado, eles têm de partir. Transições pacíficas de poder, governo mediante consentimento, eleições livres e justas, sufrágio universal — todos são elementos da democracia, porém, quando tentamos encontrar uma definição exata, nos vemos procurando agulha em palheiro. O problema é que, toda vez que nos aproximamos de uma definição ou compilamos uma lista de condições que qualquer democracia deve cumprir, encontramos exemplos de democracias em pleno funcionamento que não a satisfazem, ou de sociedades que não são consideradas democráticas, mas que atendem a alguns dos critérios. Além disso, qualquer democracia que já tenha existido foi diferente de todas as outras, e, quanto mais as conhecemos, mais percebemos que é impossível defini- las. Uma razão para essa dificuldade é que, embora seja uma invenção aparentemente ocidental, a democracia entra em conflito com uma das principais tradições intelectuais do Ocidente. Desde Platão, os pensadores ocidentais assumem a tarefa de examinar o mundo de forma conceitual. Dedicaram-se à construção de ideias, como justiça, verdade e virtude, na crença de que nelas está o caminho para a sabedoria, o conhecimento e a compreensão. Assim como outros termos descritivos, por exemplo “civilização”, a democracia tem o azar de receber o status de conceito,1 e, portanto, precisa ser definida, analisada e contestada para que possamos obter uma compreensão maior do mundo. Tal impulso é compreensível. Se pudéssemos determinar a natureza essencial da democracia, se pudéssemos redigir um manual, seria possível aplicar um “diagrama da democracia” a qualquer sociedade. No entanto, as raízes da democracia estão na tradição inversa à do Ocidente, que surgiu em paralelo ao universo dos conceitos abstratos e como uma crítica a ele, isto é, baseiam-se na experiência prática e na contínua interação humana. A democracia, apesar dos esforços de filósofos e cientistas políticos, despreza teorias, arregaça as mangas e enfrenta a tarefa diante de si. Ela não busca a perfeição, e, nos momentosem que seus seguidores o fazem — seja por meio de Constituições rígidas ou leis imutáveis —, é comum que precipitem seu fim. Em vez disso, ela permanece em contínua adaptação. A verdade de que não existe um diagrama da democracia pode causar consternação a alguns especialistas e consultores políticos, mas deveria nos encher de alegria. Nos jornais, nos programas de TV e rádio, nas conversas do dia a dia, assim como nos livros e nas revistas acadêmicas, o significado de democracia gera discussões sem fim. E acabamos percebendo que a natureza infinita do debate dá uma pista para sua própria conclusão. A democracia está sempre mudando, sempre se adaptando, e não pode ser explicada por fórmulas justamente porque sua função principal é sustentar sociedades em que a mudança e a adaptação possam ocorrer livremente. As democracias — tanto a instituição de governos como a prática de governar de forma democrática — existem numa relação simbiótica com a sociedade em que estão inseridas. Quando as sociedades resistem às mudanças, as políticas democráticas não podem agir. Quando as instituições e práticas democráticas são petrificadas, a sociedade se fossiliza. Tal natureza evasiva e adaptativa pode ser motivo de celebração, mas deixa em aberto a questão de como escrever uma história da democracia — e do que incluir e excluir. No entanto, também temos aqui uma resposta. Em vez de partirmos para a produção de uma história definitiva da democracia, devemos contribuir para a própria democracia, mostrando diferentes aspectos de seu passado, revelando a complexidade, a diversidade e a criatividade que fundamentam sua existência fugidia. O objetivo deste livro, portanto, não é amarrar as pontas soltas ou deixar o assunto guardado num lugar seguro, mas fornecer um contexto histórico estimulante que traga informações para pensarmos a democracia e o modo como nossas sociedades são governadas. Com isso em mente, este livro conduzirá o leitor por uma viagem com início nos mercados abarrotados de Atenas e Roma antigas, onde vemos não apenas a fundação da democracia ativa, mas a construção da multiplicidade de instituições necessárias para sua fundamentação. O mundo antigo também nos apresenta uma república em funcionamento: um Estado sem um monarca em que os cidadãos são soberanos. Do Mediterrâneo, partimos para os grandes agrupamentos tribais do povo escandinavo, que revelam uma compreensão sofisticada da participação no poder. De lá, passamos aos Parlamentos da Europa medieval, que introduziram a representação política, e às cidades prósperas dos Países Baixos e da Itália, onde a lealdade cívica e as necessidades práticas de governo levaram à fundação do Estado moderno. A próxima parada é o cantão de Grisões, nos Alpes suíços, o primeiro Estado verdadeiramente democrático dos tempos modernos, que sustenta a democracia como a maior expressão da vida pública. Em seguida, viajamos para o salão de uma igreja em Putney, onde soldados recém-chegados dos campos de batalha da Guerra Civil Inglesa, com Bíblias vernáculas em mãos, defenderam o direito de todo homem a ter voz ativa no governo. Do outro lado do Atlântico, vemos como a prática da democracia chegou ao continente americano, com origem nos encontros em igrejas, reuniões de eleitores e nas convicções dos imigrantes colonizadores. A França da década de 1790 apresenta as maiores contradições de nossa jornada — a Revolução Francesa combinou a crença apaixonada na igualdade e na democracia com a violência política. As novas democracias das Américas Central e do Sul no século XIX revelam como o governo está inserido na história cultural da sociedade e como é difícil superar interesses arraigados. Na Europa, o turbulento século XIX mostra que as reformas políticas foram introduzidas, a princípio, exatamente para proteger a democracia, mas o governo democrático logo foi forçado a enfrentar a realidade do poder do trabalho industrializado e da conveniência política. No início do século XX, veremos a democracia se espalhar pelo planeta, até o seu recuo mundial e catastrófico na década de 1930. O período pós-1945 apresenta destinos divergentes na história da Índia e de outras ex-colônias, ao passo que, na década de 1950, a democracia dos Estados Unidos enfrentou seu maior desafio interno. Em 1989, o comunismo europeu desmoronou, deixando um mundo em que a democracia se tornava o passaporte para a comunidade internacional. No fim de nossa viagem, examinamos as condições para a democracia na China, destinada a se tornar a maior potência econômica do mundo, para então observarmos, finalmente, as mudanças na democracia das sociedades ocidentais. Nem todas as sociedades que examinaremos cumprem todos os requisitos de uma democracia completa. Porém, em todos esses lugares e épocas, testemunhamos o desenvolvimento da prática democrática (tal como o voto) ou de instituições (como os Parlamentos) que vieram a ser adotados mais tarde como ingredientes fundamentais. As sociedades criam soluções para seus problemas específicos, algumas das quais ficam disponíveis para ativistas políticos e reformadores de outros lugares, ávidos para adaptá-las mais uma vez às suas próprias circunstâncias. Antes de embarcar nessa jornada histórica, há uma questão a ser lembrada. A narrativa cronológica parece insinuar um desenvolvimento, e isso pode nos levar a falsas conclusões. Primeiro, que as democracias aprenderam com o que já ocorreu. Na verdade, quase todas as democracias tiveram de criar instituições e práticas democráticas ao seu modo. Acreditamos, por exemplo, que Thomas Jefferson concebeu a Constituição americana com base em seu conhecimento sobre Atenas e Roma clássicas; mas, como veremos no capítulo 6, a democracia americana foi muito mais influenciada pela prática das eleições, que seus cidadãos haviam trazido da Grã- Bretanha, e pela administração das igrejas puritanas, do que pelo mundo antigo. A segunda suposição falsa seria a de que desenvolvimento indique melhora. Essa afirmação pode ser derrubada mais facilmente ainda. A Atenas antiga teve, sob muitos aspectos, a democracia mais bem desenvolvida que já existiu, ao passo que, em tempos recentes, ela passou por episódios contínuos de declínio, retrocesso e crescimento. Nossa história mostra que existem democracias em tempos diferentes, mas que a democracia não evolui necessariamente com o tempo. A democracia está sempre em estado de sítio, porém ela é a nossa defesa, não apenas contra um Estado opressor, mas contra o poder enraizado do privilégio e das riquezas individual e corporativa. Não se trata de um conceito intelectual árido, mas de um conjunto de convicções e pressupostos inserido em nossa cultura — algo pelo qual vale a pena lutar. Por mais imperfeita que seja, a democracia tenta solucionar o grande dilema da vida humana: como prosperar como indivíduo e, ao mesmo tempo, fazer parte de uma comunidade. Com tudo isso em mente, vamos embarcar na história imperfeita de um tema indefinível. A 1 ATENAS E O MUNDO ANTIGO O Cidadão Envolvido o caminhar de Elêusis a Atenas, é possível notar um aumento no número de viajantes. Atravesse o Portal Sagrado, onde o rio Erídano corre para a cidade e as muralhas se agigantam, depois siga pela Via Panatenaica no sentido sudeste, rumo à ágora e ao centro da cidade. Há homens que vieram de toda a Ática, alguns após viajarem um dia inteiro, e o espaço aberto da ágora está cada vez mais cheio de gente. Os comerciantes se esforçam para fazer negócios, enquanto homens se reúnem em grupos, conversando e discutindo. Estão cercados de monumentos que enaltecem sua cidade — templos em que é possível agradecer aos deuses pela boa sorte, homenagens a heróis derrotados e prédios públicos onde são tratadas questões governamentais. É uma cidade majestosa. A sudeste fica a colina da Acrópole, coroada pelo recém-construído templo Partenon. Logo ao sul está o Areópago, ponto de encontro do conselho de nobres. A oeste, encontra-se o templo de Hefesto, no alto de uma encosta. Em torno da ágoraestão: o Bouleuterion, local de encontro do Conselho dos Quinhentos; dois tribunais de justiça com um terceiro em construção; a casa da moeda com os oficiais de pesos e medidas à disposição; o Strategeion, local de encontro dos generais; o Tholos, residência oficial do líder do conselho; e uma série de stoas, “varandas” cobertas, usadas para cultos e aulas. Entre eles também estão os templos a Apolo e Afrodite, e o altar aos doze grandes deuses da Grécia. Por fim, dentro da ágora, do lado oeste, estão as estátuas dos heróis que dão nome aos dez grupos pertencentes à Cidade-Estado, ou pólis.1 Estamos no ano do mandato do arconte Lisímaco — 436-35 a.C. — e Atenas está no auge do poder e do prestígio. De repente, a ágora começa a esvaziar, quando os homens vão subindo a colina em direção à Pnyx, o vasto anfiteatro esculpido na encosta da Colina das Ninfas. Como cidadãos, é seu direito e dever juntarem-se na assembleia dos cidadãos, ou ekklesia, que ocorre a cada dez dias durante todo o ano. Assistentes passam cordas lambuzadas em tinta vermelha pela ágora para desestimular a demora dos cidadãos. O trabalho da assembleia terá sido preparado pelo Conselho dos Quinhentos, do qual todo cidadão faz parte durante um ano, em sistema de revezamento. Os quinhentos membros sentam em bancos diante de uma assembleia com cerca de 6 mil participantes, acomodados nas arquibancadas esculpidas em rocha bruta. Porém, antes do início dos trabalhos, é feito um sacrifício a um dos deuses: os atenienses acreditam que a democracia lhes foi concedida como uma graça divina. Em seguida, os cidadãos se revezam sobre um pequeno palco, de onde se dirigem à assembleia antes do início da votação, que pode ser realizada pelo gesto de levantar a mão ou pela colocação de pedras em diferentes urnas. A assembleia não é dividida em partidos (conspirar é ilegal), e cada cidadão vota de modo individual. As decisões são registradas e guardadas nos arquivos da cidade. As reuniões são respeitosas, mas, de vez em quando, os ânimos se exaltam. A cobrança de impostos e as obras públicas são debatidas, e figuras importantes fazem discursos ardentes, deixando à assembleia a escolha entre guerra e paz. As decisões dizem respeito à aceitação de pedidos de paz feitos por inimigos da cidade, à sanção de invasões e expedições navais e à escolha entre serem vizinhos pacíficos ou uma potência agressiva. Quando os trabalhos do dia terminam, os cidadãos saem em filas e voltam para casa, para retomar a vida de fazendeiros, comerciantes, artesãos e navegadores. Acabamos de testemunhar a democracia em ação, mas as reuniões abertas representavam apenas parte de sua estrutura na Atenas antiga. No início dessa que foi a primeira democracia registrada de forma completa, os cidadãos atenienses perceberam que, para que seu desejo fosse devidamente aprimorado, articulado e concretizado, tinham de criar um grande número de instituições para dar suporte aos encontros. Primeiro, o Areópago, ou conselho de nobres, analisava cada medida aprovada pela assembleia. Depois de 460 a.C., essa função foi transferida para os tribunais de júri, que tinham uma função política e judicial. Os poderes políticos do jurado eram corroborados por ainda outra medida. De acordo com a lei ateniense, qualquer cidadão poderia contestar uma medida aprovada pela assembleia, com o argumento de ser ilegal ou, usando um termo mais controverso, injusta. O tribunal do júri e os direitos dos cidadãos sustentavam e regulavam o poder da assembleia, mas o centro da democracia ateniense era o Conselho dos Quinhentos, formado por meio de um sistema complexo de sorteio em todas as partes da pólis. O conselho elegia os oficiais que serviriam por um ano e avaliava seu desempenho. Esses oficiais cuidavam de programas de obras, limpeza de ruas, festivais, procissões e pesos e medidas. Serviam como jurados, magistrados civis e militares e, por último, mas não menos importante, strategoi, ou generais. Os atenienses tinham uma percepção aguçada com o risco de sua democracia ser minada por aqueles que pretendiam adquirir poder pessoal; portanto, além de monitorar os oficiais, introduziram o famoso sistema de ostracismo para se livrarem do excesso de ambição política.2 O elemento-chave desse sistema complexo era a transparência. Na maioria das sociedades antigas, as decisões cruciais eram tomadas de modo confidencial, os cidadãos podiam ser punidos sem o recurso de apelação pública e os julgamentos ocorriam a portas fechadas. Apesar de não sabermos todos os detalhes da vida na Atenas antiga, podemos concluir que as principais decisões políticas eram tomadas após discussões públicas, enquanto todo cidadão tinha o direito de encarar seus acusadores e ser julgado em público. O conceito de sociedade aberta tornou-se popular entre os filósofos do século XX,3 mas Atenas já unia a prática da democracia à ideia de transparência 2.500 anos antes. A cultura que nos deixou a palavra democracia (demos = povo; kratos = governo) fornece indícios de seu funcionamento prático durante um período de aproximadamente 200 anos, mais tempo que o de quase todas as democracias modernas: a Cidade-Estado de Atenas foi uma democracia por volta de 507 a 323 a.C. Esses indícios são incompletos, mas imprescindíveis, e nos dão uma imagem convincente de um sistema político sofisticado e plenamente funcional. Embora muitas outras sociedades anteriores possam ter sido governadas, até certo ponto, por meio do consenso e da consulta, Atenas é a primeira democracia plenamente desenvolvida de que temos conhecimento. Como e por que a democracia surgiu nesse tempo e lugar específicos? Os gregos dos séculos VI e V a.C. se viam como descendentes de imigrantes. Seus mitos falavam de cidades fundadas pela benevolência dos deuses do Olimpo, mas há indícios históricos de que os povos que ocuparam a península e as ilhas gregas vieram do norte, nas mesmas migrações do século XII a.C., em que outros povos partiram para o oeste do continente europeu. Isso foi muitos séculos antes do período clássico, mas as atitudes culturais são profundas e duradouras — o mito histórico central dos gregos foi o cerco a Troia, um acontecimento agora datado do século XI a.C., mas recontado infinitas vezes. A percepção de si mesmo como um povo imigrante é significativa por diversas razões. Sociedades migrantes apresentam alto grau de mobilidade social. Com frequência, opõem-se a hierarquias e vivem sem reis, príncipes ou aristocratas. Isso pode se dever ao fato de que o poder social está ligado à posse de terras, ao passo que a passagem para novos territórios dissolve as estruturas sociais baseadas na deferência e possibilita uma cultura e uma sociedade mais igualitárias. Em determinadas épocas e lugares, essas conexões são discerníveis, mas, na maioria das vezes, a oportunidade para que imigrantes mantenham uma sociedade igualitária é anulada quando pequenos grupos assumem o poder. A conquista dos atenienses, como veremos, foi desenvolver um sistema que preservava a estrutura fundamental de sua sociedade. Os séculos que vão do ano mil ao 650 a.C., chamados pelos historiadores de Idade das Trevas da Grécia, são quase um mistério, com pouca ou nenhuma manifestação histórica ou arqueológica da região. No entanto, algumas descobertas mostram que a escrita alfabética entrou no mundo grego entre 800 e 750 a.C.. O alfabeto fenício foi ampliado e desenvolvido pelos gregos, e dois achados do fim do século VIII a.C. — a taça de Nestor, no sul da Itália, e o vaso de Dipylon, em Atenas — têm longas inscrições em que o alfabeto grego está reconhecível. Nessa época, as Cidades-Estado gregas tornavam-se mais prósperas por meio do comércio, da agricultura, da mineração e da manufatura de metais. Algumas dessas cidades começaram a formar colônias às margens do mar Negro e do Mediterrâneo. Erétria, Cálcis, Corinto e Rodes foram colonizadoras notáveis, que fundaram povoações a oeste, até Neápolis (Nápoles), Massília (Marselha) e Saguntum (Sagunto, na Espanha). Atenas não estavaà frente desses desenvolvimentos, e é provável que seu tamanho e sua geografia tenham sido empecilhos. Na época, a Cidade-Estado era mais um conjunto de terras agrícolas, com povoações espalhadas pelos 4 mil quilômetros quadrados da planície ática, do que um centro com uma zona de influência, como seria a definição mais estrita de Corinto e Tebas. O primeiro evento político registrado em Atenas foi a tentativa malsucedida de um homem chamado Cílon de tomar o poder em 632 a.C.. Isso é um sinal de que a pólis Atenas já existia enquanto entidade política. Sabemos que as leis regulares de Atenas e Ática da época eram baseadas no uso da terra. Num sistema conhecido como hektemoriori, os agricultores pagavam um aluguel de um sexto de sua produção aos proprietários das terras. Esses provavelmente adquiriam as terras em acertos de dívidas num processo em que Ática começou a deixar de ser uma sociedade de pequenos agricultores e passou a constituir uma hierarquia de proprietários de terras prósperos e agricultores arrendatários. No entanto, o processo de hektemoriori começou a enfraquecer no final do século VII a.C., quando muitos camponeses que não conseguiam pagar aluguel se tornaram posse dos donos de terras. Esse sistema de servidão por dívida foi tão difundido em Atenas que, como Aristóteles comentou, duzentos anos depois, “muitos se tornaram escravos de poucos”. No século VII a.C., a pólis de Atenas era governada por meio da divisão e do revezamento do poder entre as famílias dominantes. Nessa oligarquia, um grupo de três líderes, ou arcontes, era escolhido por outros nobres. De acordo com Aristóteles, no início, os arcontes eram selecionados para mandatos vitalícios, e depois o período no cargo passou a ser de dez anos. Concluído o mandato, cada arconte permanecia no Areópago até o fim da vida. Esse sistema servia bem à nobreza, mas o restante da população não tinha voz no governo. Embora isso seja algo habitual na história da humanidade, o que ocorreu em seguida parece singular. Em algum momento por volta de 600 a.C., os atenienses decidiram pedir a um cidadão eminente, chamado Sólon, que redigisse um conjunto de leis para o governo da pólis. Essas leis tinham o objetivo de resolver os problemas causados pela servidão por dívida e de fazer de Atenas uma sociedade mais harmoniosa. Mas por que a classe rica e dominante concordaria com isso? Por que Atenas não se tornou uma sociedade polarizada de proprietários de terras e agricultores escravizados? Podemos apenas fazer suposições, a partir das poucas evidências que temos, e alguns fatos podem nos ajudar a entender por que Atenas veio a se tornar uma democracia. É provável que a pólis não fosse tão próspera quanto seus vizinhos e a classe governante possa ter se disposto a acreditar. Havia uma incapacidade de extrair mais riquezas das terras e, em termos de comércio, Atenas tornara-se fornecedora de mercadorias para cidades mais ricas. Pode ter havido a necessidade de reverter essa estagnação. Além disso, após a tentativa de golpe de Cílon, as famílias governantes teriam temido que qualquer um levantasse apoio suficiente dos cidadãos para realizar a tomada do poder. A defesa da pólis também dependia de um Exército voluntário formado por tropas de agricultores e artesãos, e, quando associados, os agricultores pobres tinham mais poder militar que os governantes. A mudança também pode ter ocorrido por motivos culturais. Quando analisamos as sociedades do mundo antigo, vemos uma variedade de modos de permissão, restrição, delegação e reconhecimento de poder, todos muito mais sutis e sofisticados do que sugerem simples classificações, como império, monarquia, clã, tribo, tirania e oligarquia. Os agricultores, pescadores e comerciantes da Ática podem ter passado pela humilhação da servidão por dívida ao mesmo tempo que mantinham uma forte crença nos antigos costumes e práticas que conferiam acesso ao poder, justiça e dignidade a todos os membros da sociedade. Quando a escravidão de agricultores atingiu níveis epidêmicos, a classe dominante pode ter enfrentado uma revolução social. É óbvio que essas razões subjacentes são cruciais para a compreensão de como a democracia ateniense surgiu, mas, infelizmente, são interpretações baseadas em conjecturas. Na história posterior, é frequente o nascimento da democracia a partir de uma crise na liderança política. É frustrante não termos nenhuma informação concreta sobre as circunstâncias que ocasionaram o surgimento da primeira democracia registrada no mundo. De fato, muitos dos indícios que temos do desenvolvimento da democracia ateniense não é historicamente seguro. As fontes mais antigas de quase todas as reformas políticas de Atenas datam de um período posterior ao final do século V, dois séculos após Sólon. O obra descritiva mais importante que sobreviveu, Constituição de Atenas, de Aristóteles, foi escrita por volta de 350 a.C.. É provável que esses textos posteriores não apenas apresentem imprecisões devidas ao lapso de tempo, assim como suposições e distorções propositais que devem ter sido incluídas com propósitos políticos contemporâneos. O que apresentaremos a seguir, portanto, é uma aproximação limitada do desenvolvimento da democracia em Atenas.4 Embora a maior parte das medidas de Sólon, adotadas por volta de 580 a.C., tenha sido econômica, seus efeitos foram altamente políticos. As dívidas contraídas no sistema de arrendamento de terras foram abolidas e toda a terra que fora tomada de agricultores arrendatários foi devolvida. Um boicote na exportação de alimentos — exceto azeite de oliva, que os atenienses produziam com excedente — foi introduzido, e pesos e medidas foram padronizados de acordo com os de Corinto, a principal cidade mercantil da região. Além disso, trabalhadores especializados de outros locais receberam incentivos para se estabelecerem na Ática. Sólon dividiu os cidadãos de Atenas em quatro classes de propriedades — provavelmente um reconhecimento formal da situação já existente — e deu aos membros das três classes superiores a chance de participarem do governo da pólis. Os membros da classe mais alta (os pentacosiomedimni), agora incluindo os ricos, assim como os nobres, podiam ser arcontes, a serem escolhidos por sorteio. O Areópago, formado por ex-arcontes, foi transformado no guardião da Constituição e das leis. As duas classes seguintes — os hippeis (com posses no valor de trezentas medidas) e os zeugitae (duzentas medidas) — podiam ser membros da assembleia, ou boule, agora chamado formalmente de Conselho dos Quatrocentos. Esse grupo era formado por cem membros de cada uma das quatro tribos antigas, ou phylae, de Atenas; também podiam exercer diversos cargos administrativos. Cidadãos da ordem mais baixa, os thetes, podiam participar da assembleia dos cidadãos — a ekklesia que vimos em atividade na encosta de uma colina em Atenas —, embora os poderes desse grupo não fossem tão abrangentes no início quanto viriam a se tornar depois. Thetes com mais de 30 anos podiam atuar como jurados nos tribunais especiais (dikasteria), cargo que lhes permitia restringir o poder dos ricos. (Os residentes de Atenas abaixo dos thetes — mulheres, estrangeiros e escravos — não eram considerados cidadãos.) Essas quatro instituições — o conselho superior, o Conselho dos Quatrocentos, a assembleia dos cidadãos e os tribunais do júri — se tornariam os pilares da democracia ateniense nos séculos V e IV a.C.; ao participarem delas, os cidadãos de Atenas governavam sua pólis. Sólon saiu de Atenas logo após a adoção das reformas, de acordo com Heródoto, para “evitar a necessidade de revogar qualquer lei que ele criara”.5 Aristóteles conta que ele se cansou das críticas de todos os lados. A ampla participação no poder que Sólon planejara durou apenas algumas décadas, até 546 a.C., quando a autoridade foi dominada por um único governante, Pisístrato. No entanto, para os atenienses Sólon tornou-se uma figura quase mítica: o fundador de sua liberdade e de seu método de governo. Os eventosque anunciaram a era de ouro da democracia ateniense são prejudicados nos feudos familiares e nas fraudes políticas. O tirano Hípias, filho de Pisístrato, foi retirado do poder em 510 a.C. pela aliança entre a poderosa família Alcmeônida e os governantes da vizinha Esparta. O líder dessa família era Clístenes, que manteve o poder diante de rebeliões por parte de outras famílias nobres, buscando a ajuda de classes inferiores — os agricultores, pescadores, artesãos e comerciantes da Ática. Não sabemos os motivos de sua restauração da democracia: ele pode ter ficado ávido por recompensar a base de seu poder entre os cidadãos comuns de Atenas; ele pode ter visto, quando forçado ao exílio, estilos democráticos de governo em outros lugares e decidido imitá-los; ou pode ser que Clístenes tenha sido apenas uma peça num movimento mais amplo de reforma política. Qualquer que tenha sido a natureza exata dos eventos, há fortes indícios para que Clístenes seja considerado o fundador da democracia ateniense. Ele elaborou reformas para as instituições políticas da cidade que concediam poder substancial aos cidadãos, tanto individual quanto coletivamente, e teve influência política para impulsioná-las. Clístenes entendeu que para restaurar os antigos direitos dos atenienses como cidadãos livres, a Constituição de Sólon não seria suficiente. Mais reformas seriam necessárias. Em primeiro lugar, a medida mais radical de Clístenes foi abolir as quatro antigas tribos de Atenas. Elas tinham origem nos tempos em que a pólis era um conjunto desigual de povoamentos e refletia as lealdades baseadas em redes de parentesco e na localização. É provável que o território de Atenas tenha sido dividido originalmente em quatro esferas de influência. Clístenes viu essas tribos como uma importante fonte de poder, por meio de sistemas de proteção e deferência, favorecendo as famílias principais. No lugar delas, ele introduziu novas tribos, organizadas de modo que a participação de cada uma representasse igualmente circunscrições, ou demes, no litoral, no interior e na cidade. Isso não apenas dissolveu as antigas bases do poder, como possibilitou o contato entre pessoas de diferentes partes da pólis, reforçando a noção de identidade comunitária. Essa redistribuição política durou, com pequenas alterações, setecentos anos. Precisamos lembrar que as phylae eram divisões verticais da sociedade, que continham membros de todas as classes, ao passo que as próprias classes — as pentacosiomedimni, hippeis, zeugitae e thetes — eram divisões horizontais baseadas na riqueza. O Conselho dos Quatrocentos de Sólon foi transformado no Conselho dos Quinhentos, com cinquenta membros de cada tribo selecionados anualmente por sorteio, num sistema que garantia que cada deme fosse representada e que cada cidadão atuasse no conselho em rodízio. As próprias demes passaram a ter autonomia de governo para questõescivis, e a participação tornou-se motivo de orgulho, sendo pedido a cada cidadão que acrescentasse o nome de sua deme ao seu próprio,no lugar do nome herdado. A ekklesia também recebeu mais poder e se reunia com mais frequência. Oficiais públicos, que mantinham o cargo por um ano — os strategoi eram a única exceção e podiam permanecer no cargo por tempo indefinido —, eram avaliados ao fim do período por membros do conselho, com punições infligidas aos que não tivessem servido bem à pólis. Os cidadãos não podiam integrar o Conselho dos Quinhentos por dois anos consecutivos, e o limite era de um total de dois mandatos. Encontrar conselheiros suficientes era, portanto, um problema contínuo. Devemos lembrar também que as demes tinham de ser administradas, e por isso os cidadãos ficavam envolvidos numa quantidade de deveres cívicos. Se, por um lado, era provável que, no início, os cidadãos estivessem animados com o sistema político reformado, como seu envolvimento poderia se sustentar com o passar do tempo? Por que os atenienses estavam prontos para dedicar tanto tempo ao governo da pólis? Uma razão deve ter sido o fato de que a vida política fazia com que os cidadãos se sentissem valorizados e iguais entre si. Além disso, a pólis não era uma entidade separada: na esfera política — reuniões, debates, votos —, eles protegiam seu estilo de vida, e sua identidade comum era enfatizada e celebrada. Havia também um forte elemento militar na administração da pólis. Atenas precisava ter uma força de combate efetiva, e toda tribo devia oferecer um regimento de hoplitas, um Exército de infantaria pesada, com seu próprio equipamento. A partir de 501 a.C., um conselho de dez strategoi era eleito anualmente, embora cada general pudesse sempre ser reeleito. O compromisso com a defesa da pólis e o espírito do serviço militar sem dúvida contribuíram para o senso de envolvimento político dos cidadãos. Clístenes é uma figura fascinante para qualquer interessado na prática política. Suas reformas revelam o eterno paradoxo da democracia — o de que a mecânica do sistema democrático deve mudar periodicamente para preservar suas qualidades essenciais. Para retomar as formas habituais de compartilhamento do poder, Clístenes estava pronto para ser totalmente radical. As quatro tribos de Atenas tinham sido a base da sociedade por muito tempo, mas Clístenes acreditava que representavam uma barreira à distribuição da autoridade. Enquanto as quatro tribos existissem, as grandes famílias poderiam controlar a pólis nos bastidores. Acabar com elas talvez tenha sido o acontecimento mais extraordinário na história política de Atenas — engenharia social em larga escala que só poderia ter sido conduzida por alguém que fosse acolhido como um libertador. Clístenes introduziu suas reformas por volta de 507 a.C., e durante os trinta anos seguintes Atenas passou por uma série de eventos críticos. A cidade estava prestes a ser destruída e, no entanto, num período incrivelmente curto, emergiu como um dos Estados mais ricos e poderosos de uma região que havia se tornado uma encruzilhada do mundo eurásico. Em 490 a.C., uma imensa frota persa que levava 25 mil soldados de infantaria e oitocentos a cavalo aportou em Maratona, na costa da Ática. Cidades gregas da costa e das ilhas jônias já haviam sido tomadas pelos persas. A assembleia ateniense reuniu-se e decidiu enfrentar os invasores em vez de permanecer atrás das muralhas da cidade, resistindo ao cerco. Um Exército de cerca de 10 mil atenienses partiu para Maratona, onde acampou num local que permitia a visão de um trecho da estrada para Atenas. Após algumas horas de impasse, elementos do Exército persa começaram a retornar a seus navios, possivelmente com o objetivo de buscar um lugar melhor para o ataque. Dos dez strategoi, cinco queriam atacar os persas antes que saíssem, e os outros cinco defendiam a retirada para Atenas. O líder dos generais, ou polemarco, Calímaco, teve o voto decisivo: os atenienses atacaram e tiveram uma vitória esmagadora sobre o Exército persa. Sabiam que sua vitória surpreendente foi possível graças aos dez strategoi e à bravura do Exército de cidadãos. Foi, em resumo, não apenas uma vitória de Atenas, mas da democracia. Dez anos depois, a frota persa retornou, liderada pelo imperador Xerxes. Dessa vez, com uma estratégia ousada que exigiu a cooperação de toda a população, o povo ateniense evacuou a cidade e encontrou refúgio na ilha próxima, Salamina. Atenas foi tomada e incendiada, mas sua frota atraiu a esquadra persa para os estreitos de Salamina, onde a destruiu. Os atenienses triunfantes voltaram e deram início à reconstrução da cidade. As vitórias em Maratona e Salamina convenceram os cidadãos atenienses de que seu método democrático conferia força especial à pólis. A vitória em Salamina também mostrou a importância do poder marítimo — embora o Exército fosse formado por fortes hoplitas, das duas classes do meio (hippeis e zeugitae), a Marinha tinha remadores vindos da thetes, a classe mais baixa de cidadãos. Depois de Salamina, o poder e a autoconfiança da thetes começaram a alterar a naturezada democracia ateniense. Na década de 460 a.C., uma importante divisão política começou a surgir em Atenas. Embora os conservadores apoiassem o poder ininterrupto do Areópago, os democratas radicais o viam como um obstáculo para a democracia. Em 461 a.C., Címon, líder da facção conservadora, comandou uma tropa de hoplitas para ajudar os governantes de Esparta a reprimirem uma rebelião de seu próprio povo numa expedição controversa, com a oposição da facção radical. Na ausência de Címon, os radicais atacaram. Liderados por Efialtes, conseguiram passar uma medida na assembleia do povo, que transferia os poderes do Areópago ao Conselho dos Quinhentos, e aos tribunais do júri, deixando o conselho dos nobres com o único direito de julgar casos de homicídio. Com 4 mil hoplitas distantes, as medidas foram aprovadas por uma maioria de thetes. Quando Címon voltou de Esparta e tentou revertê-las, foi punido com o ostracismo. Historiadores chamaram as reformas de 461 a.C. de revolução — a tomada da autoridade pelo povo e a transformação de um sistema em que os ricos ainda detinham o poder num sistema baseado na igualdade.6 Qualquer que seja a denominação, as mudanças de fato demonstraram a fluidez da política ateniense. Clístenes idealizara uma estrutura baseada na justiça, mas qualquer estrutura está vulnerável à exploração e é plausível que muitos cidadãos tenham se oposto ao uso que o Areópago fazia do poder. Assim, os mecanismos da democracia tinham de ser modificados. Em 460 a.C., Efialtes foi assassinado, possivelmente por rivais políticos, deixando a seu acólito, Péricles, a força dominante no lado da democracia radical. Péricles destacou-se na era dourada de Atenas e na política ateniense pelos trinta anos seguintes, desenvolvendo as políticas interna e externa. Ele não era um chefe de Estado, nem sequer o líder de um partido: era um cidadão numa democracia radical, que usava seu cargo de strategos — posto que manteve de 443 a.C. até sua morte em 429 a.C. —, sua influência pessoal, riqueza e habilidades políticas para influenciar seus concidadãos numa época em que a pólis se tornava o poder primordial no mundo helenístico. De 460 a 430 a.C., Atenas conduziu uma política externa expansionista, usando os rendimentos de suas minas de prata e impostos sobre os aliados para ampliar a força naval de modo a dominar o mar Egeu — uma rota marítima vital no comércio crescente entre o mar Negro e o Mediterrâneo. Seus aliados na Liga de Delos — formada após a derrota da Pérsia em Salamina — se tornaram, em essência, Estados clientes no que tem sido chamado de chantagem protecionista sofisticada. O termo “liga” é enganoso, uma vez que Atenas, de modo muito semelhante ao que a Pérsia tentara, forçava quase toda Cidade-Estado do Egeu a se tornar sua aliada e pagar tributos. Uma denominação mais precisa da liga é Império Ateniense. O objetivo dessa rede de comércio era trazer prosperidade a todos os membros, mas qualquer um que tentasse romper o domínio de Atenas ou se recusasse a pagar impostos para a sua “proteção” recebia punição severa. A prosperidade de meados do século V a.C. financiou grandes projetos públicos. Em 459 a.C., os atenienses ergueram duas muralhas que ligavam a cidade ao porto de Pireu, criando um único espaço defensável com acesso ao mar. As “longas” muralhas mediam 7 quilômetros cada, somando uma circunferência total de 26 quilômetros. A construção do Partenon, na Acrópole, o local tradicional dos templos atenienses, foi iniciada em 447 a.C., seguida por uma série de outras edificações, todas revelando extraordinária inovação em arquitetura, escultura e pintura. Atenas era então o centro do mundo grego, com poetas, músicos, dramaturgos e artistas de todo tipo afluindo à cidade em busca de trabalho e inspiração. Os festivais e procissões periódicos eram eventos espetaculares com todas as formas de entretenimento, de comédias e canções desbocadas às tragédias de Eurípides e Sófocles. Enquanto democracia, Atenas era aberta à crítica interna. O dramaturgo Aristófanes, por exemplo, gostava de lembrar os cidadãos dos perigos da demagogia. Em sua peça Os cavaleiros, o personagem Demóstenes conta como Paflagônio, “um caluniador desprezível e mentiroso”, descobriu como lidar com Demos, o Povo: “Ele o manipulou, como a um sapato velho. E o untou, enxugou e amaciou”.7 Aristófanes também é o responsável pela única perspectiva da democracia ateniense do ponto de vista do cidadão comum. No início de Os arcanianos — apresentada pela primeira vez no Festival das Leneias, em 425 a.C. —, Diceópolis reclama: “Há uma reunião periódica da assembleia fixada para o nascer do sol, e aqui está a Pnyx deserta, enquanto as pessoas tagarelam na Ágora e correm de um lado para o outro, desviando da corda vermelha... Então agora vim absolutamente preparado para gritar, interromper, insultar os oradores, se alguém falar de algo que não seja a paz.”8 No entanto, se no início do século V a.C. escritores, como Ésquilo em sua peça As suplicantes (463 a.C.), defendiam o estilo de vida democrático, dramaturgos posteriores começaram a enfocar a relação problemática entre a pólis e o indivíduo: em Antígona (442 a.C.), de Sófocles, por exemplo, a heroína infringe as leis da cidade num ato pessoal de coragem moral. A democracia pressupõe que a voz e as opiniões do cidadão comum mereçam ser ouvidas. Podemos acreditar que isso seja uma pressuposição contínua na história humana, mas é algo excepcional. Durante o século V a.C., os atenienses demonstraram um interesse crescente na compreensão da humanidade. Escultores e pintores — tragicamente, perdemos quase todas as pinturas dessa época — começaram a retratar pessoas de maneiras altamente realísticas, em vez de usarem formas estilizadas, como objetos que mereciam estudo. Se, antes disso, as histórias de deuses e heróis satisfaziam as plateias gregas, a própria invenção do teatro surgiu da necessidade de representar indivíduos num esforço para lidar com as complexidades de sua própria vida. O registro da história também começou como uma exploração dos motivos pelos quais as pessoas agem como agem, ao passo que a filosofia ocidental se originou em Atenas a partir da necessidade de abordar questões não respondidas por outras formas de expressão cultural, tais como maneiras de se viver bem, de agir de forma justa e de conciliar as demandas de liberdade e ordem. O fim do domínio ateniense no mundo grego veio com a Guerra do Peloponeso, que começou em 431 a.C. e durou, com um intervalo de sete anos, até 404 a.C.. A guerra dividiu o mundo helenístico. Em diferentes momentos durante o conflito, a assembleia ateniense mostrou-se capaz de crueldades (ao ordenar o massacre do povo de Mitilene em 428 a.C.) e misericórdia (ao cancelar a mesma ordem); imprudência (ao enviar a frota numa missão desastrosa à Sicília em 415 a.C.) e negligência de responsabilidade (com a execução de seis generais atenienses após a perda de navios e homens numa tempestade em Arginusae em 406 a.C.). A guerra é conhecida com mais detalhes do que qualquer outra do mundo antigo em virtude do relato escrito pelo ateniense Tucídides, um dos exemplos mais antigos de textos históricos. A passagem mais famosa é um discurso de Péricles, conhecido como a Oração aos Mortos na Guerra Ateniense. É uma celebração passional de uma sociedade livre: “Nossa Constituição não copia as leis de Estados vizinhos; somos mais um padrão para os outros que imitadores. Nossa administração favorece muitos, em vez de poucos; por isso é chamada de democracia.” Depois de definir Atenas como uma democracia, Péricles exalta as virtudes de uma sociedade igualitária: “Se examinarmos as leis, veremos que proporcionam igual justiça a todos em suas diferenças particulares... avanços na vida pública dependem da reputação pela competência, sendo que as considerações de classe não interferem no mérito, nem pode a pobreza ser obstáculo para que um homem sirva o Estado, quando apto para a tarefa, não sendo impedido pela obscuridade de suacondição.”9 Péricles celebrava a abertura de sua cidade, que recebia estrangeiros para preservar seu modo de vida, e criava uma conexão entre democracia, lealdade, justiça, abertura e liberdade que encontra ecos nos ideais modernos do Ocidente. Embora se tratasse de propaganda em meio à guerra, seria a última celebração pública da democracia em 2 mil anos. Apesar das palavras inflamadas de Péricles, há poucas dúvidas de que a guerra e a busca pela glória tiveram um efeito nocivo na democracia ateniense. Permitiram que os strategoi mantivessem o controle das políticas da cidade sem muitos recursos aos procedimentos democráticos e persuadissem a assembleia da necessidade de decisões maléficas na busca pela vitória. Um exemplo conhecido foi a negociação entre Atenas e a cidade de Melos em 415 a.C., numa tentativa de convencê-la a desistir de sua neutralidade. Quando os líderes de Melos se recusaram, a cidade foi tomada, seus homens, massacrados, e suas mulheres e crianças, levadas à escravidão. Um grupo de cidadãos foi então enviado de Atenas para repovoar a ilha de Melos e governá-la de forma democrática. Após a derrota de Atenas em 404 a.C., a cidade passou por um período curto de governo brutal na chamada Tirania dos Trinta, que tinham o apoio de sua inimiga, Esparta. Porém, quando os líderes democráticos que haviam sido eLivross organizaram uma rebelião em 403 a.C., Esparta mudou de lado e apoiou a restauração da democracia. Enquanto o poder de Atenas entrava em declínio no século IV, os processos democráticos ainda continuavam controlando as instituições do governo, o sistema jurídico, as finanças públicas e a política externa. Os indícios mais notáveis dessa resistência vêm dos discursos e textos preservados do orador e estadista Demóstenes (384- 22 a.C.), que lhe renderam a reputação de um dos maiores oradores do mundo antigo. Sua defesa da democracia ainda soa verdadeira no mundo moderno: “Existe uma proteção conhecida, em geral, pelos sábios, que é uma vantagem e representa a segurança de todos, mas especialmente pelas democracias, em relação aos déspotas: a desconfiança.”10 A democracia continuou em Atenas até 323 a.C., quando a pólis foi incorporada ao vasto império criado pelo rei macedônio, Felipe, e seu filho, Alexandre. Anteriormente, neste capítulo, perguntamos como e por que a democracia surgiu e foi mantida nesse tempo e lugar específicos. A resposta a “como” encontra-se na história que tentei elucidar; a resposta a “por que” corre o risco de obscurecer as conquistas de Atenas por meio de explicações superficiais. Parece que, embora seja provável que outras cidades antigas da Grécia e do Mediterrâneo tenham tido elementos de democracia, Atenas foi uma casualidade histórica. Um conjunto específico de circunstâncias ocorreu em um tempo e em um lugar: um território difuso; uma oligarquia dividida; uma classe de pequenos agricultores com relativo poder; um vácuo de poder; uma cultura de autonomia e compartilhamento de poder; minas de prata como fonte de prosperidade; ameaças externas uniram o povo; uma cultura compartilhada com outras cidades que permitiu a imigração de pessoas talentosas do mundo grego — a lista não termina aqui, mas não fornece uma receita definitiva para uma sociedade democrática. Podemos apenas nos admirar com o fato histórico da democracia ateniense e com a preservação milagrosa de documentos e artefatos que contam sua história.11 Além de proporcionar um exemplo excepcional de uma democracia em funcionamento, a Grécia antiga foi o berço da política teórica. Antes, as sociedades funcionavam por meio de relações complexas de parentesco e deferência, e por meio da permissão e restrição da autoridade, usando conjuntos de costumes e rituais enraizados. A democracia em Atenas gerou um novo tipo de política, no qual os conflitos sociais eram levados à atenção de todos — e debatidos no conselho e na assembleia — e mantidos dentro dos fóruns. Essa foi uma inovação tão impressionante nas questões humanas que os escritores gregos levaram décadas para começar a compreender sua importância. A teoria política, em outras palavras, ficou defasada em relação à prática. É importante compreendermos o que os escritores gregos escreveram sobre a democracia, porque suas declarações deixaram um legado duradouro. Ainda assim, poderíamos nos surpreender ao descobrir que a democracia que nos causa tanta admiração não era vista dessa forma por contemporâneos da mais profunda influência. A questão central colocada por pensadores gregos foi: como uma sociedade pode alcançar tanto a liberdade quanto a ordem? Se, por exemplo, todos eram livres para se apresentarem ao serviço militar quando quisessem, como a cidade poderia se defender de forma confiável? Se as pessoas podiam escolher não educar seus filhos, como a sociedade futura funcionaria? Se os cidadãos podiam dar o voto que quisessem, como alguém podia garantir que as decisões seriam boas para a sociedade? A resposta a essas perguntas veio de duas formas diferentes. Os mais influentes de todos os escritores gregos, Platão e Aristóteles, abordaram o problema por meio da investigação racional e da observação. Platão nasceu numa família nobre de Atenas que estava envolvida na Tirania dos Trinta no fim do século V a.C. e era seguidor de Sócrates, que foi condenado à morte por um tribunal do júri democrático em 399 a.C.. Se a obra de Sócrates nunca foi escrita, Platão compôs uma série extraordinária de obras tendo seu professor como figura central. Esses diálogos formariam a base da filosofia ocidental. O pupilo de Platão, Aristóteles, chegou a Atenas por volta de 366 a.C. para estudar na academia montada por seu mentor antes de fundar o Liceu. Platão buscou isolar conceitos abstratos, tais como justiça e virtude, antes de imaginar uma sociedade em que esses ideais pudessem florescer. Sua teoria política resolvia qualquer conflito possível entre as necessidades da pólis e as do indivíduo — entre a ordem e a liberdade —, diminuindo a distância entre eles. O indivíduo deveria se tornar parte de um sistema altamente estruturado que determinava não apenas o governo, mas também a criação dos filhos, a religião, a cultura e todos os aspectos da vida. Se a pólis e o indivíduo estão unidos, o conflito interno e a confusão política desaparecem. Na sociedade perfeita de Platão, descrita em A república, todas as dificuldades são solucionadas por um sistema abrangente de governo justo concebido e conduzido por homens racionais, com todas as pessoas vivendo de acordo com um conjunto estrito de regras.12 Aristóteles, por outro lado, examinou as diferentes formas de governo do mundo antigo, classificando-as e as analisando. Ficou impressionado com a pretensão da democracia de dar voz a cada cidadão e restringir o poder dos tiranos. Sua abordagem racional, no entanto, levou-o de volta à questão de como a concessão de poder à maioria poderia garantir que o resultado fosse bom para a sociedade. A resposta de Aristóteles foi a restrição da cidadania àqueles que pudessem ser considerados virtuosos. Estavam incluídos aqueles com boa educação, uma vez que o conhecimento ajudava a infundir a virtude e certo grau de riqueza — Aristóteles argumentara em outro momento que ser bem-sucedido no mundo era um sinal de virtude. Essa pequena parte da sociedade então governaria em nome de todos e, sendo sábia e virtuosa, tomaria as decisões que fossem boas para a sociedade. Ao mesmo tempo que reconhecia a capacidade de a democracia trazer liberdade e igualdade, Aristóteles descreveu-a como o governo dos pobres. Isso o levou a ser citado mais tarde pelos opositores da democracia como tendo se referido ao governo das massas ignorantes. Embora suas abordagens fossem diferentes, Aristóteles seguiu Platão na concepção de uma pólis em que o conflito interno fosse eliminado. A política de Atenas, que expunha o conflito abertamente e o restringia aos fóruns das assembleias públicas, desapareceria na sociedade ideal de Platão e de Aristóteles. A outra tendênciaprincipal do pensamento político grego apresentava uma visão totalmente diferente. Protágoras e Demócrito examinaram Atenas e viram que, por meio das circunstâncias e das ações do povo, ela conseguira unir liberdade e ordem. Protágoras (485-15 a.C.) era um professor da Trácia que acreditava que conceitos teóricos não podiam ser separados da experiência prática. Só se pode chegar ao entendimento por meio da observação de como as pessoas se comportam na vida real — daí sua frase famosa: “O homem é a medida de todas as coisas.” Protágoras argumentava que a comunidade política não elimina nem deveria eliminar o conflito entre a pólis e o indivíduo, entre pessoas diferentes ou grupos de interesse. Em vez disso, precisa aceitar o conflito e resolvê-lo por meio da abertura e da discussão. Essa resolução, no entanto, nunca é definitiva — e como o conflito é inevitável, a política será sempre necessária. Porém, como a política resolve o problema da liberdade e da ordem? De acordo com Protágoras, os cidadãos de uma democracia exercem o poder pela expressão coletiva e criam a ordem por meio do autocontrole coletivo — reconhecendo que seus interesses são comuns e não pessoais. A recompensa para esse autocontrole existe no mundo real, pois dá ao homem a forma mais elevada de realização ao interagir, no governo, com pessoas de diferentes classes e origens, e possibilita sua autonomia, liberdade e excelência. Assim como Protágoras, Demócrito (460-370 a.C.) exaltava o funcionamento prático da democracia. Demócrito também era da Trácia e se tornou uma figura proeminente em Atenas. O fato de um pensador tão renomado não ter encontrado lugar nos escritos de Platão e Aristóteles levou alguns historiadores a suspeitarem de uma conspiração — talvez Demócrito tenha sido um filósofo tão formidável que nenhum de seus dois rivais quisesse preservar ou promover as ideias dele. Conhecemos seu pensamento principalmente por referências de outros escritores.13 Demócrito afirmou que não deveríamos passar o tempo imaginando um futuro ideal, mas sim tentando lidar bem com o presente. Ele entendia que as pessoas eram tanto boas como ruins: “Não existe nenhum dispositivo na forma atual da sociedade que impeça a transgressão de oficiais, por mais perfeitamente bons que possam ser.” Portanto, a tarefa da pólis era supervisionar e recompensar os oficiais públicos, enquanto enfrentavam o fardo pesado da vida pública, que é crucial para o bem-estar da sociedade. Longe de ser um democrata ideológico, Demócrito realçou a ideia que destacou em seu trabalho de que a desordem e a confusão da vida política deveriam ser administradas, não eliminadas.14 O último pensador nesse grupo é Tucídides, o historiador da Guerra do Peloponeso. Escrever a história implica seleção e interpretação, mas, ao expor os reais acontecimentos de seu tempo, Tucídides buscava de forma explícita uma alternativa às abordagens teóricas de seus contemporâneos, assim como uma ruptura com a narrativa mítica do passado. Ele analisou o poder relativo dos Estados e das facções dentro deles, observando seus interesses estratégicos e as avaliações para decidirem quando declarar guerra ou paz. Em seu mundo, as demandas conflitantes dos Estados e dos indivíduos, seus medos, ambições, ganância, submissão e generosidade são a matéria de que é feita a política. E, quando a política deixa de reconhecer e resolver o conflito humano, o resultado é guerra e opressão. Embora a democracia ateniense tenha acabado com as conquistas de Felipe e Alexandre da Macedônia, foi a ascensão de Roma que alterou de forma definitiva o mundo mediterrâneo antigo. Alexandre criara um império vasto, que se estendia a leste até a Índia. Roma controlou grande parte desse Império Helenístico de 215 a 148 a.C., além de realizar conquistas ao norte, oeste e sul. Durante o processo, Roma foi tão influenciada pela cultura grega que, pelo menos no leste, o que surgiu foi uma cultura greco-romana. A história política de Roma introduz o outro conceito político chave que herdamos do mundo antigo: a res publica, o república. A república é um Estado no qual o poder supremo está nas mãos do povo — ele é soberano. Isso veio a representar um Estado sem monarca, mas o verdadeiro significado é mais profundo e carrega o sentido de que, não importa a estrutura em que o governo seja concebido, o povo é a autoridade maior. Isso não é o mesmo que democracia; no entanto, o entrelaçamento moderno entre república e democracia faz da investigação da república romana parte essencial da história da democracia. Infelizmente, assim como com a democracia ateniense, as origens da república estão disponíveis apenas nos mitos e nos escritos de historiadores romanos muito posteriores e notoriamente não confiáveis. Esse material foi verificado e complementado com indícios arqueológicos, resultando num registro fragmentado.15 Acredita-se que a república romana tenha sido fundada por volta de 509 a.C. (aproximadamente a mesma época das reformas de Clístenes em Atenas), com a expulsão do último rei pela união de famílias poderosas liderada por Lúcio Júnio Bruto. Há indícios de que a Cidade-Estado de Roma já possuía um Senado composto de homens de famílias nobres e antigas, e possivelmente uma assembleia popular, embora ambos se sujeitassem ao rei. Bruto restaurou e expandiu o Senado e, depois de 509 a.C., Roma era governada por dois cônsules, escolhidos anualmente entre os senadores. Isso teria transformado a cidade numa oligarquia efetiva, mas, no início da vida republicana, as ordens inferiores da plebe realizaram uma rebelião contra o Senado aristocrático. O preço da paz foi a concessão de certos direitos a todos os cidadãos de Roma. A assembleia da plebe adquiriu status formal, além do direito de eleger dirigentes, conhecido como tribuna, que tinha o poder de preservar os direitos dos plebeus por meio, por exemplo, de intervenções em casos legais e de vetos a leis. As relações entre as famílias aristocráticas que dominavam o Senado, as classes aspirantes de mercadores que queriam mais poder e a massa de cidadãos levaram ao desenvolvimento contínuo da Constituição oral da república romana. Nessa breve história, podemos apenas tirar uma fotografia instantânea do funcionamento da política em Roma num momento específico; portanto, vamos dar uma olhada no estágio final da república, por volta de 150 a.C.. Nesse período, a cidade de Roma era a pátria de mais de 1 milhão de pessoas, uma imensa população que só foi igualada no mundo moderno após a Revolução Industrial. A cidade era repleta de habitações com diversos pavimentos, abarrotada de pessoas ganhando a vida com dificuldade, e sempre correndo perigo de incêndios. Dos mais de 1 milhão de habitantes, 200 mil eram cidadãos plenos, e 300 mil, escravos. O restante eram pessoas livres com direitos limitados, mulheres que tinham as mesmas proteções legais de cidadãs, mas sem direito ao voto, e grupos com status de cidadãos, tal como o de italianos não romanos. Em contraste com Atenas, Roma era generosa em sua cidadania, concedendo com frequência plenos direitos a estrangeiros. O conjunto de cidadãos era classificado em sete grupos, de acordo com a riqueza, que foram usados originalmente para a decisão do nível de serviço militar. A mudança de um grupo a outro e, em particular, ao Senado, tornou-se mais frequente durante o período mais avançado da república: no século I a.C., cidadãos da plebe, tais como Crasso, Pompeu e Cícero, tornaram-se figuras poderosas, enobrecendo efetivamente suas famílias ao longo do processo. A república romana, com todas as suas complexidades políticas, era governada por uma elite. A entrada nela pode ter se tornado mais fácil com o passar dos séculos, mas a soberania do povo, implicada pelo termo república, era mais ou menos negligenciada. Havia algumas áreas, no entanto, em que os cidadãos comuns de Roma podiam exercer o poder. De fato, o sistema político era capaz de funcionar porque o contato entre diferentes níveis da sociedade era mantidode diversas formas. Era esperado que homens de poder e prestígio patrocinassem homens de status inferior, oferecendo proteção e educação em troca de serviços. Essa relação foi multiplicada muitas vezes, levando a redes de conexões entre cidadãos de diferentes níveis da sociedade. Além disso, todos os homens com ambições políticas, de qualquer classe, tinham deveres militares que os levariam a um contato prolongado com seus concidadãos de outras classes. As relações pessoais construídas no serviço militar muitas vezes duravam por toda a vida. Havia outras áreas nas quais o contato era feito entre as classes. Primeiro, era essencial que qualquer político ambicioso fosse eleito para uma série de magistraturas, e, embora essas eleições fossem manipuladas, qualquer candidato que se opusesse aos eleitores corria perigo. Quando Cipião Nasica concorreu ao cargo administrativo de edil, brincou com os cidadãos, dizendo que as mãos de um operário eram tão duras que ele tinha de caminhar sobre elas. Visto como alguém que insultava os pobres, Nasica consequentemente perdeu a eleição.16 Além disso, o cargo antigo de tribuno mantinha parte do significado original de guardião dos interesses do povo: aqueles que o preenchiam no caminho escorregadio de ascensão tinham de estar sempre disponíveis a todos os concidadãos. Por último, mas não menos importante, ainda que a passagem a outras classes fosse restrita, o Senado ainda entendia a necessidade de se renovar por meio da inclusão de homens poderosos e talentosos das classes inferiores. Fazia sentido trazer ao processo político aqueles com poder comercial ou social. A república romana acabou entrando em colapso quando os poderes da elite se tornaram praticamente irrefreáveis. Se a política sempre teve um aspecto competitivo, no período final da república a diferença entre ganhar e perder transformou-se numa questão de vida ou morte. Então os políticos começaram a lançar mão da violência e da manobra política para chegar ao topo. Além disso, Roma anexara tantos territórios que governantes de províncias distantes faziam o que bem entendiam, tornando-se fabulosamente ricos e poderosos. O poder ficou atrelado a generais bem-sucedidos, como Júlio César e Cneu Pompeu, o que resultou em guerras civis travadas pela lealdade a um líder ou outro. Suetônio escreveu, um século depois, por volta de 120 a.C., uma crítica ferina à corrupção da república causada por César: “O restante das palavras e feitos dele [...] supera todas as suas excelentes qualidades [...] ele não apenas se apropriou de honras excessivas, tais como o cargo de cônsul todos os anos, a posição de ditador pela vida inteira e a censura, mas também do título de imperador.”17 Júlio César é um exemplo antigo de um líder que manteve uma estrutura constitucional enquanto ocupava todos os cargos importantes — um padrão que foi seguido por muitos. Em 44 a.C., sua grandiloquência provocou um grupo de conspiradores que estavam desesperados para evitar que a república se transformasse numa monarquia. Porém, o assassinato de César ocasionou outra luta pelo poder, que terminou em 27 a.C., quando Otaviano recebeu do Senado o título de Augusto, ou seja, “o Venerável”. A república romana deu lugar ao Império Romano. A influência da república romana na história política posterior foi imensa. Cidades italianas do século XII começaram a nomear cônsules e, depois, passaram a se autodenominar repúblicas, um eco intencional do passado romano. Os Estados Unidos deram o nome de Senado à câmara superior do governo e colocaram o Congresso no Capitólio (uma das sete colinas de Roma). Embora Napoleão tivesse se vestido como um imperador romano para sua coroação em 1804, foi a Roma Republicana que inspirara os revolucionários de 1789. Para o bem ou para o mal, os líderes europeus do século XIX viram o modelo de um Senado sábio, de grandes homens, como uma herança e falaram de uma Grande Corrente da História, na qual a responsabilidade da civilização fora passada de Roma a eles. Quando os homens cultos e poderosos da Europa Ocidental redescobriram o mundo antigo, ficaram admirados com sua racionalidade, o republicanismo e o governo das classes de patrícios. Com a notável exceção dos Estados Unidos, a democracia foi extinta. E 2 PARLAMENTOS E AFINS O Cidadão Representado xigimos explicitamente que faça com que dois cavalheiros do país supramencionado, dois cidadãos de cidades diferentes do mesmo país, dois habitantes de bairros diferentes, daqueles que são especialmente discretos e aptos ao trabalho, sejam eleitos [itálico meu] sem demora e que venham a nós na hora e no local já mencionados. Eduardo I ao xerife de Northamptonshire, 12951 Estamos habituados ao truísmo histórico de que nenhuma democracia efetiva existiu entre a conquista de Atenas pela Macedônia, em 323 a.C., e a Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1776 — um intervalo de cerca de 2.100 anos. Porém, nem a democracia ateniense nem a americana surgiram do nada. Nos dois casos, costumes, práticas e suposições já existentes foram reunidos para a formação de um sistema de governo coerente e duradouro. Os próximos capítulos se concentram em épocas e lugares em que elementos da democracia — assembleias, Parlamentos representativos, sistemas de voto, igualdade perante a lei — foram estabelecidos e praticados, defendidos e desenvolvidos, incluindo um Estado europeu que foi uma democracia efetiva duzentos anos antes dos Estados Unidos. Neste capítulo, examinaremos qual o indício histórico de práticas e estruturas democráticas no passado distante, antes de analisarmos o desenvolvimento dos Parlamentos medievais e do governo de cidades. Encaixar elementos da democracia numa clara cronologia histórica é um processo quando os indícios são fragmentários. O melhor que podemos fazer é mostrar que certas práticas existiram em determinadas épocas e lugares. Qualquer começo se encontra fora da história registrada. Antropólogos sociais examinaram sociedades não alfabetizadas com meios sofisticados não de compartilhar o poder, mas de realizar julgamentos, tomando decisões coletivas e estabelecendo punições justas com o objetivo de manter a coesão social. Mas não podemos supor que esses tipos de arranjos existiram em todos os lugares e por toda a história da humanidade — Claude Lévi-Strauss observou que aqueles a quem chamamos povos “primitivos” provavelmente estão tão afastados da condição original da humanidade quanto nós, ainda que em direções diferentes. No entanto, é razoável supor que sistemas coletivos de organização em pequena escala, interpessoais, existem desde os primórdios. Trabalhar junto — um dos elementos fundamentais da democracia — sempre fez parte da sociedade humana.2 Atenas antiga era parte de um mundo de comércio centrado no Levante e no vale mesopotâmico. Sabemos que havia assembleias na Mesopotâmia antiga e nas cidades da Fenícia, que ocupavam aproximadamente a área do atual Líbano com portos satélites ao longo da costa norte da África, incluindo Cartago. Os comerciantes fenícios do primeiro milênio antes de Cristo estavam em contato constante com os gregos e levaram a eles, entre outras coisas, um alfabeto rudimentar. Embora o mundo antigo fosse dominado por impérios, de maneira geral, não eram tão onipotentes como costumamos acreditar. As cidades muitas vezes eram deixadas a seu próprio governo, desde que pagassem impostos a seus imperadores distantes. Os impérios não eram democracias, mas Heródoto conta que Dario, imperador da Pérsia, tomou o poder por volta de 522 a.C. somente após uma longa discussão entre seus companheiros de conspiração a respeito da melhor forma de governo. Um deles fez um apelo apaixonado por uma democracia republicana: “Penso... que passou o tempo em que qualquer um de nós deva ter poder absoluto... proponho que eliminemos a monarquia e levemos o povo ao poder; pois Estado e povo são sinônimos.”3 Enquanto a democracia era discutida na Pérsia, existem estimativas de que metade das cerca de duzentas cidadesda Grécia antiga teve uma forma de democracia em algum momento de sua história, muitas delas antes de sua consolidação em Atenas. E após o colapso do Império Ateniense, por volta de 400 a.C., grupos como as ligas de Arcádia e Eólia funcionavam com princípios, de modo geral, democráticos, com o envio de delegados das cidades para participarem das assembleias. Como vimos no capítulo anterior, o mundo grego foi transformado no século IV a.C. com as conquistas de Alexandre, o Grande. A cultura helenística atravessou o oeste asiático, chegando à Índia e ao sul do Egito, e permaneceu intacta em grande parte durante o domínio de Roma, até a conquista árabe, no século VIII d.C.. Nessa vasta região, é quase certo que as assembleias tivessem um papel importante no governo de cidades separadas. Um historiador recente nos conta que “Cassandreia tinha um conselho (boule), e Tessalônica, um conselho e uma assembleia (ecclesia). Também se confirma a existência de uma assembleia em Filipos e Anfípolis, e parece altamente provável que todas as cidades [da Macedônia]... tinham as duas instituições”.4 Nesses e em outros casos, o poder era negociado entre as instituições da cidade e o governador imperial durante todo o período romano. Enquanto o Império Romano dominava o mundo mediterrâneo e o oeste da Europa até o século V d.C., os arranjos políticos dos povos europeus do outro lado de suas fronteiras são conhecidos principalmente pelos trabalhos de escritores romanos. Por volta do fim do século I d.C., Tácito descreve como os líderes germânicos consultavam toda a tribo (embora, provavelmente, apenas os homens) antes de tomarem decisões importantes: Sobre questões menores, o líder reflete; sobre as mais importantes, a tribo toda. Porém, mesmo quando a decisão final fica com o povo, o caso é sempre discutido amplamente pelos chefes... O silêncio é proclamado pelos sacerdotes, que nessas ocasiões têm o direito de manter a ordem. Então o rei ou chefe, de acordo com idade, nascimento, distinção na guerra ou eloquência, é ouvido, mais porque tem a influência para persuadir do que o poder para comandar. Se os sentimentos dele os desagradam, eles os rejeitam com murmúrios. Se ficam satisfeitos, agitam as lanças. A forma mais favorável de consentimento é expressar aprovação com a lança.5 Não podemos dizer qual a extensão dessa prática, mas documentos escritos que mencionam assembleias no norte da Europa foram preservados a partir do século IX. Na Escandinávia, assembleias formais tinham o nome de ding, ting ou thing. A Lenda de Asgar, registrada no século IX, relata a reunião da Ding em Birka, na ilha sueca de Björkö. Eventos semelhantes podem ter ocorrido na Dinamarca por volta da mesma época. Muito mais é conhecido sobre o Althing na Islândia. Registrada como tendo início em 930, essa assembleia de 36 chefes de clãs se reunia anualmente sob a Lögberg, ou Pedra da Lei, em Thingvelir, e elegia um orador, nomeava juízes e aprovava leis. A eleição por maioria de votos foi introduzida em 1130. A reunião era precedida pelos Farthings, assembleias de quatro áreas da ilha. Sociedades medievais nórdicas posteriores seguiram os padrões das assembleias locais: as terras suecas tinham doze regiões ou províncias, cada uma com seu ding. A Dinamarca tinha três landlings, enquanto a Noruega tinha lögthings. O tynwald na Ilha de Man e o lögting de Feroé têm registros de épocas próximas, embora todas essas assembleias, sem dúvida, existissem há muito mais tempo.6 Existem outros indícios de assembleias realizadas em diferentes partes da Europa antes da virada do primeiro milênio, mas é difícil saber se eram reuniões de nobres selecionados pelo monarca ou de representantes de comunidades locais. É certo que os witans anglo- saxões eram reuniões das pessoas mais poderosas do reino, convocadas por seus reis, mas se essas pessoas eram representantes de determinados grupos, tais como o clero ou a nobreza, ou de regiões, é difícil descobrir. Se, por um lado, a existência de tais assembleias indica que os reis precisavam manter os nobres poderosos junto a si, por outro, não há evidências de amplas participações no governo ou mesmo na escolha de governantes. Era comum que assembleias frequentes fossem realizadas em períodos religiosos importantes (Páscoa e Pentecostes), de modo que questões eclesiásticas e seculares eram agrupadas. Sob a denominação variada de synods, conventus ou witanegemots, 116 encontros aconteceram na Inglaterra entre as invasões viking e normanda (851-1066). Guilherme, o Conquistador, foi nomeado rei em uma dessas assembleias, que continuaram a ser realizadas durante todo o seu reino, e ele decretou que a presença nelas era obrigatória. Como os indícios de reuniões semelhantes pela Europa na época eram numerosos, precisamos examinar com mais detalhes como o continente foi transformado no início da Idade Média. A desintegração lenta do Império Romano deixou uma série de territórios em transição, governados por líderes de clãs locais, governantes dinásticos, condes, patronos romanos, bispos e várias outras autoridades. Nesses territórios teria havido formas de governo local, mas, durante alguns séculos, a Europa foi conduzida sem uma organização ou comércio substanciais em larga escala. No entanto, no século XVIII, uma mudança no centro da Europa marcou o início de um novo tipo de organização política. Nessa época, os francos dominavam a maior parte do que hoje são a França, a Bélgica e o oeste e o sul da Alemanha. As terras francas permaneceram um reino desagregado, com centro nominal em Aachen, até uma revolução palaciana fazer com que a família Martel subisse ao poder em 737. Se antes a nobreza conseguia sobreviver da terra e frequentava uma corte cuja principal preocupação era a caça, Carlos Martel introduziu um novo sistema de posse de terras, sociedade e governo. Martel colocou as terras francas sob o controle legal da nobreza, da monarquia e da Igreja, deixando algumas áreas como terreno compartilhado ou florestas para caça. Porções dessas terras foram então enfeudadas, ou seja, entregues a agricultores e camponeses em troca de trabalho ou serviço militar. Muitos desses acordos foram registrados por escrito e passaram a ter valor legal; de fato, ligaram toda a sociedade, do vassalo ao rei, num único e vasto sistema. Essa pirâmide feudal serviu para retirar riqueza das aldeias e propriedades campesinas e enviá-la aos senhores feudais e ao monarca. O bisneto de Carlos Martel, Carlos Magno, usou-a para fortalecer suas ambições militares, expandindo o reino, incluindo todo o oeste do continente europeu — exceto o sul da Itália e a Península Ibérica —, onde estabeleceu o feudalismo e o cristianismo latino. No século XI, o reino de Carlos Magno havia sido desmembrado, mas a unidade cultural de grande parte da Europa seria restabelecida por um povo extraordinário, os normandos. Descendentes dos invasores vikings que povoaram uma área do norte da França, os normandos marcaram sua independência do rei francês e deram início a um período de expansão e expedição. Nos séculos XI e XII, cavaleiros normandos realizaram uma invasão bem-sucedida na Inglaterra, Sicília, sul da Itália e partes do Império Bizantino. Junto com cavaleiros francos, sua superioridade militar permitiu ainda uma tentativa de conquista do Levante. No fim do século VII, nobres normandos e francos, junto com magnatas visigodos da Ibéria, haviam adotado a mesma cultura e costumavam realizar casamentos entre si. Como um grupo distinto, formavam a elite governante em todos os cantos da Europa ocidental, da Inglaterra à Sicília. O sistema feudal que se firmara no centro do território franco no século IX fora então exportado a quase todas as partes do continente.7 Não é surpreendente, portanto, que desenvolvimentos políticos subsequentes por toda a Europa revelassem certas semelhanças. No sistema feudal, com a introdução de costumes locais, o rei não era um líder supremo, mas o mais importante de um grupo de nobres. Ele recompensava esses
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