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Pascal e a miséria

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estamos cheios de injustiça.
Eis o estado em que os homens estão hoje. Resta-lhes algum instinto poderoso da felicidade de sua primeira natureza, e eles estão mergulhados nas misérias de sua cegueira e de sua concupiscência, que se tornou sua segunda natureza.
Saí e buscai a felicidade divertindo-vos: e isso não é verdadeiro. Vêm as doenças: a felicidade não está nem em nós, nem fora de nós; está em Deus, tanto fora como dentro de nós.
Temos uma idéia tão grande da alma do homem que não podemos tolerar que sejamos desprezados e não sejamos estimados por uma alma, e toda a felicidade dos homens consiste nessa estima.
A imaginação dispõe de tudo; faz a beleza, a justiça e a felicidade, que é tudo no mundo.
Qualquer condição que se imagine, quando se comparam todos os bens que podem pertencer-nos, a realeza é o mais belo posto do mundo, e, no entanto, imagine-se um rei acompanhado de todas as satisfações que podem tocá-lo, se ele está sem divertimento, deixem-no considerar e fazer reflexões sobre o que é, e essa felicidade languidecente não o sustentará; ele cairá por necessidade nas vistas que o ameaçam das revoltas que podem irromper e enfim da morte e das doenças que são inevitáveis; de maneira que, se está sem o que se chama divertimento, ei-lo infeliz e mais infeliz que o menor dos seus súditos que brinca e se diverte.
Daí resulta que o jogo e a conversação das mulheres, a guerra, os grandes empregos sejam tão procurados. Não é que haja, com efeito, felicidade nisso, nem que se imagine que a verdadeira beatitude esteja no dinheiro que se pode ganhar no jogo, ou na lebre que se persegue. Isso não seria desejado se fosse oferecido. Não é esse hábito indolente e pacato, que nos deixa pensar em nossa feliz condição, que se procura, nem os perigos da guerra, nem o trabalho dos empregos, mas a azáfama que nos desvia de pensar nisso e nos diverte.
Daí resulta que os homens gostem tanto do barulho e do reboliço; daí resulta que a prisão seja um suplício tão horrível; daí resulta que o prazer da solidão seja uma coisa incompreensível E, finalmente, que o maior motivo de felicidade da condição dos reis consista em procurar diverti-los sem cessar e proporcionar-lhes todas as variedades de prazeres.
Têm um instinto secreto que os leva á procurar a diversão e a ocupação fora, que vem do ressentimento de suas misérias continuas; e têm outro instinto secreto que resta da grandeza da nossa primeira natureza, que os faz conhecer que de fato a felicidade consiste apenas no repouso e não no tumulto; e, desses dois instintos contrários, forma-se neles um projeto confuso, que se oculta à sua vista no fundo de sua alma, que os leva a tender ao repouso pela agitação e a imaginar sempre que a satisfação que não têm lhes chegará, se, vencendo algumas dificuldades que encaram, puderem abrir dessa forma a porta ao repouso.
E o homem, por mais feliz que seja, se não está se divertindo e ocupado com alguma paixão ou algum divertimento que impeça que o aborrecimento se espalhe, ficará logo aflito e infeliz. Sem divertimento, não há alegria; com o divertimento, não há tristeza. E também o que forma a felicidade das pessoas de grande condição é que têm uma porção de pessoas que as divertem e o poder de manter-se nesse estado.
Assim, por um estranho desequilíbrio da natureza do homem, resulta que o desgosto, que é o seu mal mais sensível, seja até certo ponto ó seu maior bem, porque pode contribuir mais que todas as coisas para fazê-lo procurar a sua verdadeira cura; e que o divertimento, que ele encara como o seu maior bem, é na realidade o seu maior mal, porque impede, mais que todas as coisas, que ele procure o remédio para os seus males: e ambos são uma prova admirável, da miséria e da corrupção do homem e, ao mesmo tempo, da sua grandeza, de vez que o homem se aborrece de tudo e só procura essa multidão de ocupações porque tem a idéia da felicidade que perdeu e que, não a achando em si, é por ele procurada inutilmente nas coisas exteriores, sem poder contentar-se nunca, porque ela não está nem em nós nem nas criaturas, mas somente em Deus.
Pois enfim, se o homem nunca tivesse sido corrompido, gozaria com segurança, em sua inocência, tanto da verdade como da felicidade. E se o homem nunca tivesse sido senão corrompido, não teria nenhuma idéia nem da verdade nem da beatitude. Mas, infelizes que somos, e mais do que se não houvesse grandeza em nossa condição, não temos uma idéia da felicidade, e não podemos alcançá-la; sentimos uma imagem da verdade, e só possuímos a mentira: incapazes de ignorar em absoluto e de saber com certeza, de tal maneira é manifesto que estivemos num grau de perfeição de que infelizmente caímos!
(Eis o que é o homem para o homem em relação à verdade. Consideremo-lo, agora, em relação com a felicidade que procura com tanto ardor em todas as suas ações.) Todos os homens procuram ser felizes: não há exceção. Por diferentes que sejam os meios que empregam, tendem todos a esse fim. O que faz que uns vão para a guerra e outros não vão é esse mesmo desejo que está em ambos, acompanhado de diferentes opiniões. A vontade não dá nunca o menor passo senão para esse objeto. Esse é o motivo de todas as ações de todos os homens, até mesmo dos que vão enforcar-se. E, no entanto, depois de tão grande número de anos, nunca ninguém, sem a fé, chegou a esse ponto a que todos visam continuamente. Todos se lamentam: príncipes, súditos; nobres, plebeus; velhos, jovens; fortes, fracos; sábios, ignorantes; sãos, doentes; de todos os países, de todos os tempos, de todas as idades e de todas as condições.
Que nos gritam, pois, essa avidez e essa impotência, senão que houve, outrora, no homem, uma verdadeira felicidade, da qual só lhe restam, agora, a marca e o traço todo vazio, que ele tenta inutilmente encher de tudo o que o rodeia, procurando das coisas ausentes o socorro que não obtém das presentes, mas que são todas incapazes disso, porque esse abismo infinito só pode ficar cheio de um objeto infinito e imutável, isto é, o próprio Deus.
Uns o procuram na autoridade, outros nas curiosidades e nas ciências, outros nas volúpias. Outros que, na realidade, mais se aproximaram dele consideram que é necessário que o bem universal, que todos os homens desejam, não esteja em nenhuma das coisas particulares que só podem ser possuídas por um só e que, sendo repartidas, afligem mais o seu possuidor pela falta da parte que não tem do que o contentam pelo gozo da que lhe cabe. Compreenderam que o verdadeiro bem devia ser tal que todos pudessem possuí-lo ao mesmo tempo, sem diminuição e sem inveja, e que ninguém pudesse perdê-lo contra a vontade.. (Compreenderam-no, mas não puderam achá-lo; e, em lugar de um bem sólido e efetivo, abraçaram apenas a imagem vazia de uma virtude fantástica.) O nosso instinto nos faz sentir que é preciso procurar a nossa felicidade fora de nós.
(Eis o que pode o homem por si mesmo e por seus próprios esforços em relação ao verdadeiro e ao bem.) Temos uma impotência de provar, invencível a todo o dogmatismo; temos uma idéia da verdade, invencível a todo o pirronismo. Desejamos a verdade, e só descobrimos em nós incerteza. Procuramos a felicidade, e só achamos miséria e morte, somos incapazes de não desejar a verdade e a felicidade, e somos incapazes tanto de certeza como de felicidade.

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