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LHOS E NOVOS MUNDOS: 
da conquista da .Atnérica 
ao domínio do espaço cósmico 
Sobre heróis e tumbas 
s livros de cavalaria foram escritos 
na Europa, mas foram vividos na 
América, porque, embora as aventu­
ras de Amadis de Gaula tenham sido 
escritas na Europa, é Bemal Diaz dei Cas­
tillo quem nos apresenta o primeiro livro 
autêntico de cavalaria. com sua Historia de 
la conquista de la Nut!Va Espana (Carpen­
tier, 1984:122). Na América, de acordo com 
a proposta do escritor e crít'ico cubanoAlejo 
Carpentier, a fantasia européia se transfor­
ma em vivência. O verbo se encama no 
Novo Mundo. Deslizamos territorial mente 
da idéia à corporalidade, do romance ao 
enfrentamento e da ficção à história. Da 
figura do Ulisses medieval, retratado por 
Dante A1ighieri na Divina commedia (In­
ferno, XXVI), que, com sua travessia 
ocidental à procura de um mundo desco­
nhecido encerra poeticamente a Idade 
Média, transferimo-nos à santa trindade dos 
descobridores-cronistas da Renascença: 
NO/a: Este artiio foi lraduzido por Gloria Rodrfguez. 
Estwdos Hist6ricos. Rio de Janeiro, \/01.4, n. 7, 1991. p. 3·18 
Guillermo Giucci 
Cristóvão Colombo, Pero Vaz de Caminha 
e América Vespúcio. De Francesco Pelrar­
ca, poeta laureado, que em 26 de abril de 
1336 conquista epistolarmente o monte 
Ventoso para inaugurar, com sua carta ao 
professor de teologia Francesco Dionigi 
d'Roberti, a Renascença italiana, passa­
mos, quase dois séculos mais tarde, a 
Hemán Cortés e Francisco Pizarro, mode­
los do guerreiro, conquistadores dos 
impérios asteca e inca. Dante e Petrarca 
privilegiam, também, o âmbito do conheci­
mento e da visão. Descobrir um outro 
mundo desabitado, que se encontraria se­
guindo o Sol, é a motivação explícita do 
navegante medieval; escalar a montanha 
mais alta da região, para observar do seu 
cume a beleza da natureza, é a razão decla­
rada do alpinista. Mas nem o conhecimento 
nem o esteticismo se movem no plano res­
trito do desejo. Pretender decifrar os 
enigmas do planeta transfonna-se em posse 
no contexto do expansionismo europeu. 
Foi o que aconteceu em 12 de outubro 
de 1492. Cristóvão Colombo, afirmando 
4 ES1UDOS H1STÓRlCXJS - 199lf1 
encontrar-se nas costas do extremo oriente 
, 
da Asia, desembarca na ilha de Guanabani, 
no arquipélago das Bahamas, e imediata­
mente toma posse do seu território em nome 
dos reis católicos. Ocorre um caso seme­
lhante em 22 de abril de 1500, data do 
descobrimento do Brasil (Terra de Vera 
Cruz). O cronista português Pero Vaz de 
Caminha, membro da esquadra de Pedro 
, 
Alvares Cabral e escrivão da feitoria de 
Calicut declara - na primeira frase de sua 
carta ao rei d. Manuel de Portugal - que 
escreve para dar "notícia do achamento 
desta Vossa terra nova, que agora nesta 
navegação se achou" (Castro, 1985:75), e 
anuncia a posse que ocorreria de modo for­
mal e ritualizado poucos dias depois. Nos 
dois exemplos mencionados, a denomina­
çao das terras funciona como um marco que 
consolida o poder peninsuJar. As coroas 
ibéricas se consideram as novíssimas e le­
gítimas proprietárias de territórios estra­
nhos, e cumpre redefinir sua identidade. 
Desde então, os emissários de ambas as 
coroas intitulam os domínios ibéricos na 
América a partir de critérios hagiológicos, 
de gêneros comerciais, de semelhanças na­
turais ou do transplante do conhecido para 
regiões recõnditas (no estilo da Nova Espa­
nha), negando autonomia a um quarto con­
tinente que surgia, de forma contraditória 
qualificado de Novo Mundo. 
O fato da denominação, como fonna 
simbólica de domínio sobre as novas terras, 
nos conduz a um horizonte mágico. É evi­
dente que os expedicionários passarão rapi­
damente da palavra oral ao ritual escrito, 
numa teatralização da conquista, dirigida, 
em parte, a índios nus que não podiam 
compreender, nem sequer imaginar, o sig­
nificado agressivo das declarações escritas 
dos estranhos, e, em parte, a legitimar pe­
rante as demais �otências européias rivais 
o direito à posse. 
A seguir, examinaremos as implicações 
da relação de posse mágica estabelecida 
entre os expedicionários e as terras desco-
bertas, forma de relação com o vislumbrado 
que anuncia o irracionalismo que presidiu 
a conquista da América espanhola, para 
passar depois à análise do discurso dos as­
tronautas sobre o empreendimento do do­
mínio do espaço cósmico. 
A varinha de condão de Próspero resolve 
os problemas de uma das últimas obras de 
Shakespeare, A tempestade (1611), comé­
dia cujo marco de referência hispano-ame­
ricano é evidente. Na ilha do desterro, gra­
ças ao estudo das ciências ocultas, Próspero 
vence seu innão Antônio, usurpador do du­
cado de Milão. Mas antes de retomar à 
Europa, renuncia à magia negra, rompe sua 
varinha fantástica e sepulta, muitos palmos 
debaixo da terra, o livro dos feitiços. No 
navio que o conduz de volta à metrópole,já 
desfeitos seus encantos de mágico, Próspe­
ro sente-se um homem simples, reduzido a 
suas forças, acossado pela fraqueza huma­
na. Era como se fora de seu ambiente habi­
tuai, em regiões ignotas, se revelassem os 
lados reprimidos de sua personalidade. E 
com isso voltamos à citação de Alejo Car­
pentier sobre a atualização dos livros de 
cavalaria na América: ser um viajante em 
terras recônditas implicaria a metamorfose 
da fantasia em ação, da lenda em luta cor­
poral e das extraordinárias andanças do ca­
valeiro errante das ('histórias mentirosas" 
nas aventuras "real-maravilhosas" do expe­
dicionário da conquista das Índias Ociden­
tais. 
Se no Novo Mundo americano os guer­
reiras castelhanos se internaram em'regiões 
desconhecidas com uma audácia excessiva, 
se não atroz, isso foi porque perseguiam 
nas fronteiras do vislumbrado ou desconhe­
cido o princípio alquímico da conversão 
das imagens em ouro. Ao transfonnar a 
terra em espaço metálico, procederam co­
mo se tivessem na mão a varinha mágica 
com a qual a personagem de Gonçalo opri­
mia Calibã na ilha enfeitiçada deA tempes­
tade. A busca obsessiva do ouro por parte 
de aventureiros e conquistadores sacramen-
VEUlOS E NOVOS MUNDOS , 
tou a irracionalidade da magia negra e tes­
temunhou a flexibilidade do conceito de 
idolatria. Por causa da adoração de metal­
ou antes, de sua imagem -, o soldado entre­
gou I alma ao diabo contra o qual pretendia 
lutar no Novo Mundo. Sem dúvida, o expe­
dicionário castelhlno apoiou-se emsua c1a­
R superioridade temológica e na cumplici­
dade dos próprios indígenas para subjugar 
o desconhecido; mas também se valeu da 
"onipot!ncia dls idéias", do desejo e do 
voluntarismo que, segundo Freud, caracte­
rizam tanto IS sociedades primitivas quanto 
os neuróticos obsessivos. O conquistador se 
dirigiu para metas precisas - com freqüên­
cia inexistentes - como uma máquina; e 
como um autômato impiedoso subjugou o 
nativo e o ambiente natural e cultural que o 
cercava. 
Um outro elemento secundou, afiançou 
e completou a irracionalidade voluntarista 
d. magia negra: o poder da palavra. Tanto 
a transformação das imagens em ouro 
quanto I confiança depositada na palavra 
integram um mesmo fenômeno de dignifi­
cação das esperanças, processo que sofreria 
posteriormente na América um violento 
desprestígio, após a seqüência de fracassos 
dos expedicionários. Os indígenas cativos 
se apoiaram no poder da palavra para esti-
• 
mular falazmente as esperanças dos con-
quistadores. Ao se referir à figura do cativo 
indígena durante a conquista espanhola do 
sudeste dos atuais Estados Unidos, Beatriz 
Pastor (1988:18) afirma que "de Lucas 
Vázquez de Ayllon até o próprio Vázquez 
de Coronado foi-se repetindo a presença de 
uma fonte de informação que corroborava 
mitos existentes, inventava outros novos e 
estimulava, em empreendimentos condena­
dos ao fracasso, uma longa série de explo­
radores e conquistadores, cujo objetivo se 
identificava com algum dos reinos míticos 
• respeito dos quais circulavam notícias e 
rumores insistentes em toda a colônia. Tra­
�-se da figura do cativo indígena".Também se apoiaram nas palavras e em 
pequenas amostras de metais preciosos 
aqueles náufragos abandonados que, com 
suas versões das riquezas do interior da 
América do Sul, consolidaram as expecta­
tivas de novas tropelias de expedicionários 
e os induziram a penetrar em terras desco­
nhecidas, em empreendimentos despropo­
sitados. Em seu livro Bistoria crEtica de /os 
mitos de Ia conquirta americana, Enrique 
de Gandia narra como um náufrago da es­
quadra de Solís, Henrique Montes, faméli­
co e esfarrapado, chorava de emoção ao 
relatar a Sebastião Gaboto • história da 
serra da Prata (Gandia, 1929:145-96). Ga­
boto deixou de lado o objetivo declarado de 
sua expedição e se internou - tendo como 
guia o emocionado Montes - em busca da 
encantada serra da Prata. Não a encontrou, 
mas isso não foi motivo suficiente para 
desarticular a esperança coletiva de encon­
trar o monte argênteo que, segundo os ru­
mores, era dominado das alturas por um rei 
branco. 
Em outras ocasiões, onde também inter­
veio o poder da persuasão da palavra, é 
preferível ampliar o espectro teórico para 
além da disputa "mito versus realidade".É 
o caso dos tesouros dos impérios asteca e 
inca e de histórias como as do rei Dourado 
(ElDorado) ou da serra da Pra ta antes men­
cionada. Nesses exemplos, da afluência de 
discursos forjou-se, temporariamente, uma 
imagem maravilhosa. A brevidadebistórica 
do atrativo dessas imagens, pois seu valor 
se limitou, sobretudo, ao século XVI, espe­
cialmente aos setenta primeiros anos, de­
veu-se principalmente ao rato de que, origi­
nadas no desconhecido e viveneiadas como 
extraordinArias durante o intervalo do seu 
consumo - caso dos tesouros asteca e inca 
- ou como simples riquezas - caso do EI 
Dorado e da Serra da Prata - elas não con­
seguiram conter o avanço corrosivo da ha­
bituação. Logicamente, essas imagens fa­
bulosas se transformaram, reforçando uma 
frase absurda do cotidiano, "no que são": o 
• ES11JDOS msTORlaJS -1991/7 
impenldor Carlos V mandou fundir a maior 
parte da ourivesaria peruana para financiar 
as despesas militares na Europa; EI DOnldo, 
após conduzir muita gente l morte, e à 
riqueza os poucos que acharam as areias 
dos afluentes auriferos do Cauca, transmu­
tou-se num simbolo de emigração esperan­
çosa dos europeus nos stculos XIX e XX 
para a América; e até boje a expressão "vale 
um PotosV'lembnl a cobiça de um grupo de 
aventureiros e colonos que preseguiu até a 
morte a prata boliviana e que, uma vez 
exauridas as minas que proporcionavam as 
riquezas, sem mais nem menos as abando­
naram. Mais que a vitória do mito ou da 
realidade, a linguagem dupla que envolve 
toda possível descrição do ignoto tomou 
conta dos exemplos mencionados, até que 
a habituação acabou por desencaná-Ios, 
assim como açabou com aquelas pedras 
asiáticas negras e fumegantes que, para 
Marco Polo, eram ainda um exemplo de 
pedns extIaordinárias e que para nós não 
passam de um simples carvão. 
Aquiles reagia unicamente aos senti­
mentos. Abandonou a luta em Tróia por se 
sentir ofendido e retomou as annas quando 
Pátroclo, seu amigo Intimo, morreu em 
mãos de Heitor. O grande ponto de apoio de 
Aquiles, mais que na vontade dos deuses e 
na sua coragem, tem origem na força cor­
poral. Aquiles é o protótipo do gueneiro 
épico que, soliário, enfrenta os adversários 
até a morte. A epopéia homérica o situa 
inevitavelmente entre os pólos do repouso 
e da ação. Quando em combate, descansa 
nas tendas; quando não descansa,luta como 
o furacão que anasa tudo à sua passagem. 
Em contraposição, o Ulisses de Homero 
tncama o guerreiro da reflexão: simuJa, 
mente, desinfonna, fantasia-se, oculta sua 
identidade, mas nunca se entrega ao chama­
do do imediato. Acompanhar o impulso dos 
sentimentos significa panl Odisseo o cami­
nho mais direto rumo lO fracasso e à perdi­
ção. Ele estuda a psicologia do adversário, 
o examina; decifra e depois derrota, assim 
como derrotou o ciclope Polifemo, duplo 
monstruoso e primitivo de Aquiles. São 
precisamente as astúcias de Aquiles que o 
• 
eternizam na memória do tempo. O cavalo 
de Tróia tem sua marca, I do personagem 
opaco, ambíguo, que transfonua a retórica 
em arma, que se desloca brilhantemente 
pelo plano da representação. Cabe ao enge­
nho di razão e à implacável duplicidade das 
palavras, desde a epopéia bomérica, o lu­
gar de honra na lista dos triunfos inesque­
cíveis da civilização. 
A Castela quinhentista combate os ín­
dios americanos com idtias procedentes da 
Reconquista, com aistãos velhos, cavalos, 
arcabuzes, espadas, intimações e romances 
de cavalaria. A dimensão tpica das vitórias 
castelhanas no Novo Mundo apagou o fatg 
de que a conquista dos impérios asteca e 
inca constitui uma exceção para os inúme­
ros infortúnios que marcaram o domínio 
dos territórios americanos. Vista em con­
junto, I conquisti da América bispinica 
esá tecida·de fracassos e desastres, de múl­
tiplas pequenas Armadas Invencíveis. Ape­
sar da conlgem demonstrada pelos guenei­
ros castelhanos nas Índias, em genll quem 
os denotou foram calamidades natunlis ou 
militares, assim como foram castigados pe­
lo· caráter ilusório das metas inexistentes. 
Por outro lado, a ambição de riquezas vol­
tou-se contra OS próprios conquistadores 
como um bumerangue descontrolado, ge­
rando deserções, enfrentamentos, rebeliões 
e guenas civis. Um a um, até os objetivos 
auríferos mais resistentes, desgastaram-se. 
E, paralelamente ao esgotamento das metas 
maravilhosas, os guerreiros foram perecen­
do. Até um chefe vitorioso como Fnlncisco 
Pilarro morreu assassinado em mãos de 
almagristas (partidários de Diego de A1ma­
gro) em sua residêncil, na cidade de Lima. 
Nas fases iniciais das conquistas impe­
riais, não houve batalha no sentido estrito. 
Apesar da evidente superioridade numtrica 
dos astecas, o IIder Moctezuma foi feito 
prisioneiro por Cortés de fonul anti-herói-
-
VEllIOS E NOVOS MUNDOS 7 
ca.E O impendor inca Atahualpa deixou-se 
captunr por Pizuro de maneira tíio infantil 
que - quase um s6culo depois - o inca 
Garcilazo de la Vega se veria forçado a 
argumentar em seus Comentarios reales de 
los incas, que a conquista do Peru era um 
fato inexplicável se não fosse considerada 
a interferência da mão do Deus cristíio no 
golpe de Cajamarca. 
Os impérios americanos sofrenm lI1lgi­
camente sua inadequação no que diz respei­
to ao mundo do impreviito.
2 
Sua férrea 
estnllUI1l teocnltica e as múltiplas hostilida­
des regionais contnbuiram pan seu exter­
minio. A verdadeira batalha entre os caste­
lhanos e os astecas só se lI1lvou depois que 
Moctezuma, que, apesar das vacilações es­
pirituais, acolheu Cortés como um Deus e 
se resignou il fatalidade anunciada pelas 
profecias, perdendo de fato sua posição de 
lfder indiscutlvel. Quando Cauahtémoc as­
sumiu o poder, conseguiu dizimar IS tropas 
de Conés, que deixou de lado a auréola da 
divindade manipulável e empreendeu a re­
tinda protegido pela escuridão, num episó­
dio conhecido atualmente como" a Noite 
Triste" (19 de junho de 1520). Mas, um ano 
depois, o exército de Cortés, acrescido por 
um poderoso contingente Uaxcalteca, cóm­
plice dos invasores, retomou lO lugar da 
batalha. E a guerra só chegou ao fim com 
uma espécie de suicídio coletivo do povo 
asteca, que resistiu até a morte il tomada de 
Tenochtitlán pelas tropas indo-castelhanas. 
Paralelamente, em 15 de novembro de 
1532, o analfabeto Pizarro capturou, com 
apenas 160 soldados, na emboscada de Ca­
jamarca, o orgulhoso impendor Atahualpa. 
Este óltimo chegou ao encontro dos espa­
nhóis precedido por servidores que varriam 
o caminho real. Ele vinha numa Iiteira sus­
tentada por oitenta senhores e sentado nu­
ma pequena cadeira com um coxim de ouro. 
Chegou com uma coroa na cabeça, um 
grande colar de esmeraldas no pescoço e 
protegido por um contingente de uns cinco 
mil combatentes semidesarmados. Enquan-
to isso, a poucos quilômetros de Cajamarca, 
outros 45 mil soldados incas permaneciam 
de prontidão, sob ocomando do cacique 
Ruminagui. E ante da iminência do encon­
tro com 50 mil incas, os 160 castelhanos 
sentiram-se perdidos em nzão da i. nferiori­
dade numérica, conforme relato de protago­
nistas. do golpe de Cajamarca. Miguel de 
Estete narra em sua Noticia dei Perú que, 
na manhã de 15 de novembro os espanhóis 
assistiram i. missa e se encomendaram lO 
Senhor "suplicando-lhe que nos sustentasse 
com sua mão". O seaetário de Pizano, 
Francisco de Jeréz, que tenta ocultar o pi­
nico castelhano, registra o esforço do capi­
tão para infundir coragem em seus solda­
dos, "dizendo a todos que de seus corações 
ftzessem fortalezas, pois não tinham outras, 
nem outro socono senão o de. Deus, que 
socorre nas maiores necessidades quem es­
tá a seu serviço" (Verdadera relación de la 
conquista dei Perú). Pedro Pizarro é muito 
mais direto. Em sua Relación dei descubri­
miemo y conquista dei Perú assinala que o 
"índio dizia a verdade, porque ouvi muitos 
espanhóis que sem o perceber urinavam nas 
calças de puro temor". E o cronista Francis­
co López de Gómara, que fundamenta seu 
relato em fontes orais e informações escri­
tas, chega ao extremo de afirmar que "Pi­
zarro falou aos espanhóis, porque a alguns 
se soltava o ventre por verem de tíio peno 
tantos !ndios de guerra, estimulando-os il 
batalha com o exemplo da vitória de Tum­
bes e Puná" (Historia general de las [ndias, 
"Prisión de Atabaliba'} 
Diz� lenda que Francisco Pizarro jamais 
conheceu o medo. Seja como for, o fato t 
que no momento em que considerou opor­
tuno ou necessário, deu o grito de guerra e 
se lançou diretamente sobre o inca a fim de 
derrubá-lo da litein. Com a queda do Uder, 
o império dos incas paralisou-se. Todas as 
testemunhas presentes que narraram o 
evento da emboscada de Cajamarca coinci­
dem em afirmor que os Indios nio opuseram 
resistSncia. E no espaço de duas horas 
• ESlUDOS HlSTóRI<X>S - 199lí1 
Umorreram" (versão espanhola da carnifici­
na de Cajamarca) <nlre dois mil e Irês mil 
soldados incas - cifra que o Anônimo Sevi­
lhano aumenta, em sua Conquista dei Perú, 
para seis mil ou sete mil -, mas nenhum 
espanhol. Somente uns anos depois, na ca­
pital, Cuzco, aconteceria a rebelião dos in­
cas comandada por Manco lI, apelidado de 
I�O Fugitivo", rebelião que, apesar das hos­
tilidades existentes entre os bandos dos par­
tidários de Pizarro e de A1magro, os espa­
nhóis se encarregariam de dominar. 
A ambição doviajante quinhentista foi o 
enriquecimento, Mas nas Índias Ociden­
tais, as aspirações dos expedicionários, as­
sim como seus códigos de guerra, desloca­
ram-se com freqüência para o terreno do 
inesperado, onde produziram exemplos no­
táveis de "improvisação do poder' e de 
"manipulação do sagrado", Stephen Green­
blatt, que cunhou a expressão "improvisa­
ção do poder", define-a como a "dupla ba­
bilidade de capitalizar sobre o imprevisto e 
de transformar os materiais dados dentro do 
cenbio de si mesmo". E acrescenta que o 
essencial da improvisação dos europeUs é 
sua habilidade de, "vez por outra, insinua­
rem-se dentro de estruturas preexistentes 
dos nativos - políticas, religiosas e mesmo 
psíq\licas - e transformarem essas estrutu­
ras em beneficio próprio",3 Em situações 
vantajosas para o europeu, essa ronna de 
conquista manifestou-se alravés da capaci­
dade do viajante de Iransfigurar a coação 
ideológica em vontade própria do nativo, 
Na Newen Zeytung aus BresiJlg Landt (No­
va Gazeta da Terra do Brasil), opúsculo 
escrito em alemão por volta de 1515 e onde 
se narra uma viagem comercial ao Brasil, o 
autor informa que os indígenas embarca­
ram nos navios portugueses certos de que 
seriam levados à terra prometida, Que o 
destino dos nativos fosse a escravidão. s6 
demonstra a vitória da improvisação, que 
triunfa, como afirma GreenblaU, quando 
Iransforma a realidade do outro, percebida 
por este como fIxa e estável. numa fi�o 
manipulável. 
Situação diferente ocorreu quando os 
expedicionários europeus se acharam em 
inferioridade de condições com respeito 
aos indígenas, geralmente isolados de seus 
companheiros e submetidos à vontade dos 
captores. Apelaram então para uma moda­
lidade singular de improvisação de poder, 
estratagema a que chamamos de "manipu­
lação do sagrado", Confundida às vezes 
com os milagres, a manipulação do sagrado 
foi a arma dos europeus escravos. nas rans 
ocasiões em que conseguiram utilizA-la pa- , 
ra fugir do cativeiro. O expedicionário ca. 
tivo contou na América com a vantagem de 
perceber na natureza um objeto sem espíri­
to, sem aquela "virtude" que os índios da 
, . 
ilha do Mal Hado atribuíam aos objetos, 
segundo consta na relação dos Naufragiós 
de A1var Núôez Cabeza de Vaca, e que os 
antropólogos designam com o nome de 
"mana", Forçado pelas circunstâncias, e 
numa série de atos que assinalam o cadter 
consciente da elaboração das ficções, A1var 
Núôez usufruiu da distinção entre o objeto 
e o sujeito em beneficio próprio: redivini­
zou a natureza desdivinizada para ameaçar 
os chefes, dividir a comunidade e infundir 
um temor coletivo entre os índios. Entretan­
to, a meta do cativo já não era a conquista 
- como aconteceu também no caso da his­
tória do arcabuzeiro alemão Hans Staden, 
aprisionado pelos índios tupinambás -, mas 
a simples sobrevivência e a volta à civiliza­
ção européia, 
Está suficientemente provado que a con­
quista da América foi de uma violência 
brutal. Como descrevê-la se não por meio 
do pesadelo do sangue, com suas desditas, 
prantos, lamentos, mortes, suicídios e as­
sassinatos? No Novo Mundo, o enfrenta­
mento de subjetividades não pressupôs o 
verdadeiro reconhecimento da alteridade 
dos indígenas, Os europeus lutaram conin 
o aborígene e, em raras ocasiões, a favor 
dele, como no caso do frade dominicano 
VELHOS E NOVOS MUNDOS 9 
Bartolomé de las Casas. Contudo, até a luta 
ideológica levada a cabo na península e na 
América refletiu a elasticidade das aspira­
ções dos espanhóis; a disputa dos letrados 
sobre a justeza da guerra situou-se entre os 
pólos da violência épica e da colonização 
pacífica. Essa ânsia de incorporar o nativo 
americano ao âmbito da cultura eurocristã 
foi concretizada com um duplo resultado: o 
etnocídio cultural americano e o genocídio 
indígena, ambos ferozmente acelerados na 
América pela difusão das epidemias viróti­
cas provenientes do contato, amiúde beli­
coso, das cul turas. Se algo consegue chocar 
a sensibilidade moderna é essa presença 
excessiva do corpo e do som nas guerras 
quinhentistas. A busca de metais preciosos, 
o domínio a todo custo, o escravismo e as 
matanças percorrem estrondosamente os 
reinos e províncias das índias Ocidentais. 
Na ação, os viajantes prescindiram da suti­
leza; contudo, na reelaboração narrada dos 
eventos apresentaram uma elevada cons­
ciência da importâucia da palavra escrita e 
do lugar de destaque que ela ocupa no mu­
seu da fama. 
. 
Operação conquista do espaço 
O submetimento da alteridade pelas ar­
mas e pelo verbo divino, a improvisação do 
poder, a manipulação do sagrado, as figuras 
do cativo indígena, de náufrago abandona­
do e de índio-intérprete, nada disso existe 
na conquista moderna, a do sistema solar. 
Em compensação, pennanecc a valorização 
da ação e da palavra escrita, numa busca da 
fama talvez mais peremptória que a de an­
tigamente. Mas hoje nos remetemos a uma 
forma de subjugação que se distancia pro­
gressivamente do marco de referência hu­
mano, pois persegue a eliminaç.ão do corpo 
e do som. É a conquista c1ean, infonnatiza­
da, robotizada, que denuncia o anacronis­
mo da fumaça industrial, que desloca a 
transparência terrenal das hierarquias do 
poder rumo ao misterioso plano da abstra­
ção cósmica. 
Para começar, os instrumentos abertos e 
contaminados foram substitllÍdos pelos her­
méticos e higienizados. Do navio ao cavalo, 
essência na conquista do Novo Mundo, pas­
'samos para o avião e o foguete, annas in­
dispensáveis que visam a exploração do 
espaço. Enquanto a armadura do soldado o 
protegiadas flechas e dos ataques do inimi­
go, a proteção da roupa do astronauta tam­
bém serve para isolá-lo do ambiente que o 
ameaça. E das descrições dos cosmonautas 
se deduzem sistematicamente dois fatores 
comuns: o silêncio sepulcral do espaço e a 
perda do peso corporal. Todos percebem 
essa espécie de euforia proveniente da au­
sência da gravidade. Presume-se que Santo 
Tomás de Aquino pesava mais de 150 kg, 
mas Dante teve a ousadia de representá-lo 
dançando no paraíso. Falando em termos 
históricos -e não nos de nossas biografias 
individuais -não está distante o dia em que 
o papa e os líderes das potências mundiais 
se reúnam como plumas flutuantes numa 
plataforma espacial para disputaras proble­
mas que afetam a Terra; tampouco aquele 
dia anunciado da utilização de subúrbios 
satelizados que servirão para distanciar os 
ricos das massas ou para forjar a nova fron­
teira da esperança dos imigrantes em sua 
busca de uma segunda terra prometida. O 
encontro pacífico dos supersatélites russo e 
americano no espaço já é uma realidade, 
desde julho de 1975, evento que recapitula 
a reunião de espanhóis e portugueses na ilha 
de Tidoro, no arquipélago das Malucas, em 
1521. Assim como as diversas regiões do 
planeta ficaram interligadas a partir de 
1521, pois, devido a travessias opostas (oci­
dental e oriental) os navegantes ibéricos 
convergiam na mesma minúscula ilha das 
especiarias, o sistema solar anora, desde 
julho de 1975, como o novíssimo laborató­
rio de experimentação dos países de van­
guarda. 
10 FS11JIX)S HlSTÓRICDS -199m 
No projeto de colonização dos mistérios 
solares despontam os primeiros sintomas 
da dissolução da medida humana que' im­
pregna os empreendimentos colonizadores 
anteriores. Cristóvão Colombo concebeu o 
projeto de atravessar o Atlântico pela rota 
ocidental, para encadear o ouro dos asiáti­
cos aos interesses da Coroa de Castela. 
Bastava, na concepção geográfica do almi­
rante, atravessar o mar Tenebroso (Atlânti­
co) para atingir, pelas costas, os súbditos do 
Grão-Cã. A interferência de uma massa 
continental desconhecida seria um golpe 
violento para os ideais de enriquecimento 
imediato de Colombo e da Coroa castelha­
na. 
Embora de dimensões muito maiores 
que as imaginadas pelo navegante genovês, 
a primeira circunavegação do mundo pela 
expedição de Magalhães-Elcano (1519-
1522) demonstraria que o globo terrestre 
era acesslvel ao domlnio humano: tratava­
se de um formidãvel empório de riquezas 
. para a Europa Ocidental, que coroava sua 
ambição descobridora com o butim plane­
tário e consolidava, dessa fonna, sua posi· 
ção de pantolcrator do poder e da moderni­
dade. E quando, em meados do século XIX, 
Sarrniento proclamava em seu Facundo 
que o mal que assola a república Argentina 
é a extensão, propõe resolver o problema do 
despovoamento com a emigração européia. 
A imensidão da planlcie, das florestas, dos 
rios, do pampa, da selva e do horizonte 
"sempre incerto" preserva uma relação de 
intimidade com o esforço do colonizador. 
Nem a realidade das megalópoles moder­
nas, apesar dos fenômenos da desterritoria· 
Iização e da desintegra' ção dos limites urba­
°nos alegados pelos crlticos, conseguiu 
reduzir a persistente diminuição do planeta 
às dimensões do corpo, ao circulo leonardi­
no, embora tenha contribuído para sacudi­
la. 
Ao mesmo tempo que o corpo humano 
constitui ainda para nós a medida de todas 
as coisas, a positividade conferida desde os 
anos 60 à diversidade cultural contnbuiu 
para tornar válida uma multiplicidade de 
referentes estéticos. Evidentemente, con­
ceitos como simetria, proporção e harmonia 
ainda perduram como coordenadas que re­
gem o cotidiano, embora entrem em contra­
dição com a demanda de originalidade exi­
gida por contextos sociais de acelerada 
competitividade. Este fenômeno de cance­
lamento da unicidade dos referentes estéti­
cos, cuja fase preliminar é levada a cabo 
com a substituição - no século XX - de 
gosto novecentista francês pela estética de 
massas dos Estados Unidos, consolidou-se 
durante a segunda metade deste século com 
o triunfo da instituição do exotismo. Mas os 
modelos que favoreceram o gosto pelo exó­
tico, corrente que se desenvolveu paralela­
mente à redescoberta da alteridade (espe­
cialmente nas décadas de 60 e 70), não 
resistiram ao embate modernizador e hoje 
abandonam seu antigo lugar de honra para 
abrir espaço a um novo tnbuto visual que, 
seguindo o rastro do ouro, imita sem a 
menor dor de consciência desde os pop­
stars e os pilotos de corridas de automóvel 
até milion' rios de toda espécie e os insossos 
apologistas da ecologia. 
Considerado da perspectiva da dimen­
são cultural, o fenômeno da reeducação e 
da bifurcação do gosto estético constitui um 
sinal inequívoco da desvalorização do mo­
delo que depositava sobre as "obras imor­
tais" o acúmulo total do conhecimento. A 
explosão da unidade estética é o outro lado 
do fim do antigo conceito de "cultura", Mas 
já não se entende por cultura uma entidade 
homogênea integrada pelos clássicos euro­
peus, e sim uma saudável diversidade de 
expressões espirituais e materiais.4 Entre­
tanto, o problema de fundo é muito mais 
grave. Porque também a fase da diversidade 
cultural se precipita no abismo, sepultada 
pelo avanço da tecnologia, cultura moderna 
e tecnologia coincidem, associação que 
ameaça reintegrar e centralizar num só pIa­
no a realidade referencial da modernidade. 
• • 
VELHOS E NOVOS MUNOOS It 
Por trás da agonia dos antigos valores, que 
se deslocam rapidamente para a museifica­
ção neutralizadora, perfila·se - de forma 
cada vez mais perturbadora - a gênese de 
uma transformação profunda e dificil de 
captar: o cancelamento da intimidade do ser 
humano com o ambiente natural ou artifi­
cial que o cerca. A participação do micro­
cosmo no macrocosmo, do criador em sua 
obra planetária monumental, está longe de 
ser uma característica da conquista do espa­
ço c6s�ico, pois o projeto solar se abre para 
o infinito como a aventura intenninável dos 
séculos, sob a regência absoluta da mente e 
da tecnologia, no interior de um vazio onde 
as noções de fronteira e de corporalidade 
parecem diluir-se e carecem de substância. 
Ao contrário da conquista da América, 
que perseguiu o ouro e o acrescentamento 
da mensagem de Cristo em terras férteis, as 
m'ttas da exploração do sistema solar não 
são nem transparentes, nem imediatas. De 
fato, a militarização do espaço, que assegu­
ra amplas vantagens em termos de informa­
ção e controle sobre o adversário, explica 
em parte sua vitalidade, meta primária à 
qual seria necessário adicionar a importân­
cia crescente do componente econômico e 
ecológico de corte multinacional. Já num 
plano mais abstrato, a pesquisa solar expri­
me'concomitantemente a curiosidade infa­
tigável do ser bumano por decifrar o além 
desconhecido e seu desejo de domínio ab­
soluto. A travessia do Plus Ultra, emblema 
soberbo da curiosidade científica no fron­
tispício da Instauratio Magno (1620) de 
Franeis Bacon, estava acompanhada, na 
versão terrestre e marítima da viagem da 
curiosidade, pela chegada do aparelho 
coercitivo. Apossar-se das índias Ociden­
tais significou, além do domínio territorial 
castelhano, a imposição do modelo político 
e cultural ibérico. Mas os expedicionários 
europeus quinhentistas mostraram escasso 
interesse por subjugar o tempo. Ao contr.\­
rio do que se cosruma algumentar, a impor­
tância do substrato utópico na construção 
dos remotos reinos e províncias de ultramar 
indianos foi insignificante. Pelo contrário, 
em nenhuma etapa da história os porta-vo­
zes das mudanças manifestaram de forma 
tão taxativa a consciência de se encontra­
rem no limiar de um novo mundo de caráter 
utópico quanto durante a segunda metade 
do sécu10 XX. E nesse caso, próximo ao 
início do terceiro milênio, os porta-vozes da 
mudança são os astronautas. 
Para a humanidade, a consciência da 
transcendência da época espacial supera 
amplamente a reflexão históricados huma­
nistas italianos do Irecento e do quaurocen· 
to. O conceito de Renascença implicava 
uma ressurreição do modelo de Antiguida­
de e uma comparação com ele, indepen· 
dentemente da seletividade e do utilitaris­
mo que reagiam o processo das analogias. 
Termos como 'Ireposição", uredescoberta", 
"restauração" e "devolução" abundam nos 
textos dos humanistas italianos, tennos que 
parecem ligados à influência dos modelos 
clássicos. E é conhecido o fato de que Pe­
trarca criou a noção da unova era" a part'ir 
de suas caminhadas pelas rumas da antiga 
Roma.S Outro descobridor de um novo 
mundo, Cristóvão Colombo, sustentou até 
, 
sua morte, em 1506, que atingira a Asia 
pelo caminho do Ocidente. E o Mundis 
Novus de Américo Vespúcio teve como 
contrapartida o apocalipse das culruras in­
dígenas. A revolução científica também 
não gerou, em sua época, uma visão co1eti­
va da profundidade da mudança. As teorias 
que destacam a passagem do "mundo fe­
cbado para o universo infmito", assim co­
mo o trânsito da fisica aristotélica e da 
mosofia escolástica medieval para a ciên­
cia moderna, são - salvo raras exceções -
conceitualizaçõts do século XX. 
Com freqüência os cosmonautas ligam 
explicitamente a experiência da descoberta 
da América à exploração do sistema solar. 
Marc Garneau, o primeiro astronauta cana­
dense a passar oito dias no espaço 
(5/10/1984), realizando experiências do 
12 ESTUDOS IIISTÓRlOOS -199117 
programa espacial canadense, compara am­
bos os eventos e sustenta que a etapa do 
descobrimento que se inicia será semelhan­
te à de Colombo ao partir do porto de PaIos, 
quinhentos anos atrás. Segundo Gameau, 
Colombo começou o movimento do "Let's 
explore lhe reSI Df our world" - "Vamos 
explorar o resto do nosso mundo" -, propi­
ciador do aluvião de pessoas que se expan­
diu para explorar o mundo além das costas 
-
da Europa e da Asia. E mesmo em 110SS0 
século, acrescenta o astronauta canadense, 
seriam descobertos lugares desconhecidos. 
(White, 1987:255). 
A simplicidade da analogia de Gameau 
é de arripiar. Em todo caso, não supõe um 
retomohist6rico. Implica a incorporação de 
um modelo que é conhecido para o leitor, 
pois a conquista espacial carece de prece­
dentes. Contrariamente à reação dos caste­
lhanos diante da descoberta do quarto con­
tinente, o americano, depositando durante 
considerável espaço de tempo em seu inte­
rior vislumbrado maravilhas dignas de es­
panto, a colonização do espaço tende a des­
valorizar com pavorosa rapidez o exotismo 
dos lugares "a fastados" do planeta, pois sair 
da Terra significa que já se controla uma 
sofisticada máquina de diminuir os obstá­
culos da distância. Bali, Afeganistão ou Ti­
bete encontram-se, para o astronauta mór­
mon e físico D. L. Lind, "jusl around IIU! 
corner" - "logo ali na esquina" (While, 
1987:278). E com o acesso semi-imediato 
(instantâneo no caso da televisão) às mais 
distantes regiões do Morbe, dilui-se O en­
canto derivado do imaginado ou vislumbra­
do. A onipresença dos meios de comunica­
ção que limitam seu comentário aos rituais 
de transição e aos desastres de todo tipo 
conseguiu trans(onnar aqueles lugares que 
antigamente estavam envolvidos pelos 
véus do mistério em pouco mais que peri­
ferias pobres e desgraçadas. 
Enquanto a descoberta de regiões inex­
ploradas as desmistifica, o enfrentamento 
inicial do viajante com a diferença, antes s6 
imaginada ou esperada, pode provocar um 
profundo impacto de transformação. Edgar 
D. Mitchell participou da terceira alunissa­
gem como piloto do Apolo 14, mas abando­
nou logo a NASA e fundou o Instituto de 
Ciências Noéticas, orientado para a pesqui­
sa da consciência humana. Segundo Mit­
cbeH, a experiência lunar gera a mudança 
de perspectiva mais importante da história. 
"11 is precisely IJUs shift in viewpoint and 
whal it implies for lhe capability of lhe 
human being and for our view of 
lhe universe IIIal makes it so powerful. 
Un l i l t h e last t w e n l y years, ali 
plrUosophers, tllinkers, scientists and 
poets IIave been Earlllbound. Tlley IIad 
an Earlllbound point of view. Space· 
fUgiu is one of IIU! more powerful expe­
riences tlral Immans can lzave, and the 
lecllnological event of breaking IIU! 
bonds of Earlh is far more IIIan IIIe te­
c/mology Ihal went into it, beca use of 
IIIis perspective" (White, 1987:219). 
("É precisamente essa mudança de pers­
pectiva e o que ela implica para a capa­
cidade do serbumano e para nossa visão 
do universo o que a toma tâo poderosa. 
Até os últimos vinte anos, todos os filó­
sofos, pensadores, cientistas e poetas es­
tiveram atados à Terra. Eles tinham um 
ponto de vista amarrado à Terra. A via­
gem espacial é uma das experiências 
mais fortes que os seres humanos podem 
ter, e o evento tecnológico de romper o 
laço da terra é muito mais importante 
que a tecnologia que entrou nele, por 
causa dessa perspectiva. ") 
Nesse sentido, a experiência da conver­
são de perspectivas distancia-se do signifi­
cado da ascensão de Petrarca ao monte Ven­
t o s o . Persiste a fluidez d a relação 
exterior/interior que distingue a peregrina­
ção da simples viagem; e preserva-se a 
transferência de sentido que vai do impacto 
VEl..J{OS E NOVOS MUNOOS 13 
com a exterioridade A transcendência da 
interioridade, das coisas corpóreas às incor­
póreas. Mas o poeta sofre a conversão pela 
palavra. "Os homens viajam" -lê Petrarca 
numa passagem do livro 10 das ConfISsões 
de Santo Agostinho, justo no momenlo em 
que o poeta se encontra no cume do monte 
Ventoso e precisamente após expressar sua 
admiração pelo espetáculo extasiante da 
natureza -upor admirar as alturas dos mon­
tes, e as grandes ondas do mar, e as largas 
correntes dos rios, e a imensidão do oceano, 
e o girar dos astros, e se esquecem de si 
mesmos".6 
Evidentemente. a citação nos remete a 
uma história anterior de conversões letra­
das que o poeta laureado recapitula e de 
passagem aproveita para reinterpretar, da 
perspecliva do humanismo emergenle. Pois 
enquanto Santo Agostinho e Santo Antônio 
lêem trechos da Bíblia e, guiados pela luz 
da palavra divina, abandonam o mundo dos 
prazeres terrestres para se entregarem ao 
serviço de Deus, Petrarca lê a frase de 
Agoslinho e a interpreta como apoio à Epís­
tola 8.5 de Sêneca, na qual o filósofo roma­
no exalta a nobreza da mente: "nada é ad­
mirável ao lado da mente; comparado com 
sua grandeza nada é grande". O trãnsilo do 
sagrado ao profano está nos primórdios de 
sua legitimação. Por outro lado, no exem­
plo da conversão dos astronautas, corpori­
ficado por Mitchell, a mediação da palavra 
carece de valor e a dimensão profana está 
firmemente arraigada em qualquer rilual de 
Iransição. Éa visão orbilal do planeta como 
uno, pequeno e homogêneo, que sacode a 
consciência do ser e se incrusta na artificia­
Iidade da heterogeneidade cultural, com um 
caráter marcadamente universal. Em ter­
mos estritos, não se trata de uma conversão 
religiosa ou política. O conflilo que se insi­
nua tem raízes na inadequação do sistema 
de valores e crenças ao contexto da acele­
ração científica dos países de vanguarda. 
Quem não se emociona, por exemplo, dian­
le do episódio da Díada em que o filho 
Heitor se assusta e chora de medo ao ver seu 
pai com o capacete de guerra? Imagino que 
qualquer criança de hoje teria uma reação 
similar diante da visão diabólica de seus 
pais usando uma máscara antigás, como as 
utilizadas recenlemenle na guerra do Golfo 
Pérsico. A mesma comparação, em tennos 
de tecnologia militar, hoje nos parece sim­
plesmente absurda. Quem compararia, a 
não ser d. Quixote (nem sequer Rambo o 
faria), o poder da furiosa espada de Aquiles 
com a infernal tecnologia m�dema? Em 
conseqüência, se for verdade que as viagens 
espaciais são a metáfora para a tecnologia 
do século XX, como sustenta MitcbeU, en­
tão seu projeto universal de integração en­
tre a consciência e a matéria exigirá vários 
séculos até tornar-se efetivo. 
O que chama a atenção nas apreciaçõesdos asl'ranautas é sua consciência de estar 
criando o futuro. Assistimos, Connulada em 
tennos ideais, à busca de realização da uto­
pia. O espaço projeta em tela cósmica a 
imagem especular de nossos sonhos de fu­
turo. O ser humano nunca esteve tão próxi­
mo dos dons divinos da criação: novas so­
ciedades em lugares remotos, inventadas 
ex-nihilo, planejadas pela razão e levadas à 
prálica pela lêcnica. Ainda "não há tal lu­
gar". Mas no fim do século XX, numa épo­
ca em que a aceleração tecnológica cancela 
a categoria do inconcebível, a percepção do 
caráter imaginário da ciência-ficção perde 
força minulo a minulo. A exploração e a 
ocupação do sislema solar é um fenômeno 
irreversível; sua atualização é questão de 
tempo. Se as sociedades agroindustriais 
ainda estão longe de participar desse novo 
mundo anunciado, isso se deve a quatro 
motivos: primeiro, a pesquisa científica res­
tringe-se a um círculo de nações tecnologi­
camente avançadas; segundo, essa restrição 
tecnológica exclui o imaginário solar do 
imaginário cotidiano; terceiro, a tecnologia 
aparece simplesmente como um instrumen­
to da cultura moderna, e não como sua 
expressão mais vital; quarto, os problemas 
14 ES1UOOS InsTÓRICOS -1991/7 
das sociedades agroindustriais, tanto em 
sua vertente estrutural quanto na conjuntu· 
ral, são de lal gravidade que as preocupa­
ções coletivas dirigem-se necessariamente 
ao âmbito do imediato. 
Ao longo da história, e de modo inevitá­
vel, as utopias refletiram os problemas e as 
esperanças próprias de seu tempo e ambien­
te. 
Os princípios que regulam a Comissão 
Nacional sobre o Espaço (National Com­
mission 00 Space) são testemunha do sonho 
ordenador dos atuais senhores do planeia. 
Integrada por nortc- americanos, essa co­
missão considera o sistema solar como a 
'lCasa da Humanidade", sobretudo como 
unossa" casa. 
E a exploração do sistema solar tem por 
objetivo dcc1arado o estabelecimento de 
novas sociedades em novos mundos. 
"The seu/ement of Norlh America and 
olher conlinems was a prelude 10 
humanily's grealer challenge: lhe space 
frontier. As we deve/op new /ands of 
opporlUniJ.y for ourselves and our des· 
cendants, we mllsl carry with llS lhe gua· 
ranlees expressed in OI/r Bill of Righls: 
lO IIIink, comml/nicale, and /ive in free­
dom. We muSI stimulate individual ini· 
lialive and free enterprise in space" 
(National Commissioll 011 Spacc, 
1986:3-4). 
("A colonização da América do Norte e 
de outros continentes foi um prelúdio de 
um desafio maior para a humanidade: a 
fronteira do espaço. A medida que de­
senvolvemos novas tcrras em nosso be­
nefício e de nossos descendentes, 
devemos transportar conosco as garan­
tias que constam em nossa Declaração 
de Direitos: pensar, comunicar e viver 
em liberdade. Devemos estimular a ini­
ciativa privada e a livre empresa no es­
paço.") 
Por baixo da utopia desponta o fantasma 
das relaçõcs de poder. Uma das virtudes 
insubstituíveis da utopia insular da Renas­
cença consistia em que os utopistas eram 
invisíveis para o resto do mundo, enquanto 
os adversários estavam ao alcance dos uto­
pislas. A utopia modem a do poder pennite 
a visibilidade, mas não o alcance. Ser ina­
tingível para os outros enquanto estes per­
manecem a nosso alcance: tal será, se ainda 
não é, o sonho máximo dos ditadores do 
futuro. 
Durante a década de 50, o soviético K. 
Guilzine, em seu livro Viagem aos mundos 
distantes, referia-se à época extraordinária 
que cabia à humanidade viver. 110 que hoje 
é impossível amanhâ será possível", assina­
la a epígrafe do primeiro capítulo de seu 
livro, onde o autor associa a conquista in­
terplanetária aos avanços materiais e mo­
rais do comunismo soviético. Se o poder 
sobre a natureza aumentou de maneira for­
midável, em contrapartida refinou nosso 
distanciamento com respeito a ela. Hork­
heimer e Adorno também notaram, no exí­
lio norte-americano e no contexto da ascen­
são dos regimes total itári os, q u e a 
triunfante dialética da Ilustração consolida­
va a alienação do sujeito social com relação 
aos poderosos e incentivava a atrofia da 
imaginação. Suprimido o mana dos primi­
tivos, esfumava-se o âmbito do desconhe­
cido espiritual. O extennínio do fantasma­
górico, que signi ficava para Freud um 
indício inequívoco do progresso da civili­
zação, ameaça transferir-se do círculo da 
intimidade à totalidade do universo. Seja 
como for, a exploração das regiões desco­
nhecidas do espaço ser.! uma das tarefas 
insubstituíveis do futuro próximo. Louvar a 
ordem interna mas transgredir os limites do 
conhecido revela a marca do espírito do fim 
do século. Nada mais sofisticado, organiza­
do e ordenado do que uma nave espacial; 
nada mais transgressor. Nossa época assis­
te, em tela panorâmica, à duplicidade que 
marcou o processo civilizador desde suas 
VEl.JiOS E NOVOS MUNDOS 
origens: conquistar poder sobre a a"sência 
de sentido. 
Por uexperiência" , Maquiavel se referia 
à trajetória da vida política, à acumulação 
de êxitos e fracassos do homem público, 
sucessos que lhe permitiam delinear uma 
teoria sobre a natureza do ser humano e 
esboçar uma série de regras político-morais 
visando maximizar a efidcia do governo e 
a manutenção dos principados, por parte do 
príncipe. Sua fonte de reflexão preferida, 
além da observação dos dramas políticos de 
seu tempo, foi a leitura dos historiadores 
antigos. E a análise do presente histórico 
surgia diante de seus olhos como a confIr­
mação do substrato psicol6gico inerente ao 
ser humano, que os antigos se encarregaram 
de registrar e o escritor florentino de inter­
pretar e explicar. A "nova rota" da qual fala 
Maquiavel no pr610go de seus Discors; 
edetenninei entrar pela via que, não segui­
da até agora por ninguém, ser-me-á dil'ícil 
e trabalhosa'1, constitui a expressão de um 
pensamento revolucionário diante do an­
daime ideol6gico de omissões eocultações 
de uma realidade política flagelada pelo 
desejo de conquista e pelo exercício do 
poder. NeSse sentido, a ruptura se consagra, 
o discurso sagrado cede seu trono ao profa­
no e a análise da realidade política adquire 
um estatuto científico. Mas a ruptura deve 
ser entendida em relação às distorções ha­
bituais dos ide61ogos, e não à tradição, pois 
Maquiavel extrai desta última a maior parte 
do material teórico que contribui para con­
solidar sua visão pouco romântica da natu­
reza do ser humano. 
Apesar da referência ao usempre tão pe­
rigoso descobrir novos e originais procedi­
mentos como mares e terras desconheci­
das", assinalada à maneira de desafio no 
pr610go dos Discors;, nem a descoberta do 
Novo Mundo - como seu corolário, a cons­
ciência da diversidade - nem a invasão da 
ciência matemática na redução do planeta a 
coordenadas numéricas e abstratas - como 
seu corolário, a tecnificação do conheci-
mento -integra de fonna substancial o pen­
samento de Maquiavel. 
Por um lado, a experiência decorrente da 
• 
conquista da América criou tensões no vín­
culo entre o mundo renascentista e I Anti­
guidade. Aampliação do limite das frontei­
ras territoriais lançou o europeu contra 
realidades até então insuspeita das. No fim 
do século XVI, manifestam-se indícios ine­
quívocos da ascensão da importlincia da 
descoberta do Novo Mundo para a Europa, 
não só em termos econômicos como tam­
bém espirituais. Um pensador como Mon­
taigne, embora de formação clássica e exí­
mio conhecedor dos antigos, j á não 
consegue conceitual izar a noção de "expe­
riência" a partir do estudo da hist6ria e da 
observação de seu próprio meio social. Em 
seu famoso ensaio Sobre a experiência, ele 
inclui como parâmetro de referência os ín­
dios tupinambás, que lhe servem de instru­
mento demonstrador da historicidade das 
f6rrn.ulas culturais européias. A América 
cump�e, em relação ao pensamento ordena­
dor do século XVI, um papel semelhante ao 
que a antropologia do século XX desempe­
nha com respeito às teorias psicanaHticas 
de Freud: desmascara sua historicidade. 
. Por outro lado,e com uma repercussão 
muito mais profunda que o reconhecimento 
da diversidade e do questionamento da frá­
gil solidez do mundo, perfila-se na segunda 
metade de século XVI a ascensão do com­
ponente científico-tecnol6gico, embora es­
te ainda não se estenda à vida cotidiana. 
Atualmente, a proliferação de mecanismos 
cada vez mais sofisticados para encurtar as 
distâncias tempo-espaciais tende a apagar o 
contexto de precariedade no qual se origi­
naram as antigas invenções tecnológicas 
que possibilitaram a transgressão das fron­
teiras geográficas. As primeiras caravelas, 
os primeiros aeroplanos e foguetes espl­
ciais mais parecem brinquedos infantis do 
que verdadeiras obras de arte. Se há um 
elemento a distinguir entre I contempora­
neidade e a Renascença· de Maquiavel, é o 
\6 ESTIJDOS HISTÓRICDS - 199V1 
nosso vago sentimento de que uma parcela 
da humanidade, guiada pela infonnática, 
ingressou, de fonna irreversível, num Mun­
do Novo, fenômeno cujos primeiros sinais 
despontam em meados do século XVI e se 
acentuam notavelmente nas últimas déca­
das do século XX. 
Nada expressa melhor esse sentimento 
de "novomundismo" que a crença genera­
lizada da inutilidade dos pensadores pré­
iluministas para a compreensão das socie­
dades pós-industriais e para o conhecimen­
to dos seres humanos que as habitam. De 
fato, argumentou-se que a aceleração verti­
ginosa das inovações científico-tecnológi­
cas produziu profundas mudanças nos paí­
ses de vanguarda, dando lugar, ali, a uma 
era pós-industrial que fonnou sociedades 
terciário-cibernéticas. As repúblicas ideais 
de Pia tio, as consolações pela filosofia de 
Boécio, as cidades divinas ou profanas de 
Santo Agostinho, as histórias calamitosas 
de Pedro Abelardo, as sumas teológicas de 
São Tomás de Aquino, os cavaleiros quixo­
tescos ou sanchopancescos de Cervantes, 
esse passado pré-industrial, em certas oca­
siões e o pr6prio passado industrial, pare­
cem sofrer o impacto da tecnologia e serem 
postos de lado, junto com a roca e o tear. A 
ciência, na paráfrase da orgulhosa frase de 
Arnstrong, deu um passo gigantesco quan­
do o astronauta pousou a bota norte-ameri­
cana na lua. Ela apregoa, com seus triunfos 
aterradores, o fim do diálogo com a autori­
dade da letra, seja sagrada ou secular. 
Abelardo, São Tomás de Aquino e Lute­
ro dialogavam, com mestria e originalida­
de, com a tradição clássica. as Sagradas 
Escrituras ou Agostinho; Maquiavel, com 
Aristóteles e Tito Lívio, entre outros. Inde­
pendentemente das críticas à tradição, suas 
visões do ser humano e da história não 
pressupunham a supressão dos ensinamen­
tos do passado. Todavia, assim como os 
cronistas quinhentistas espanhóis foram 
forçados a revisar e ajustar sua cosmovisão 
a partir da descoberta e da conquista da 
América, os pensadores do século XXI não 
poderão deixar de relletir sobre a relação do 
ser humano com a divindade e com a socie­
dade a partir de um fenômeno radicalmente 
novo: a conquista do espaço cósmico. Ca­
berá às que chamamos de "filosofias nu­
cleares" - em uma época terciária-ciberné­
tica tão extraordinária que não se poderá 
companr com nenhum período do passado 
- a tarefa da ordenação teórica do sentido 
do Novo Mundo. Paradoxalmente, se forem 
confinnadas as tendências sociais em as­
censão - em especial a da substituição da 
busca do ser pela prova de seus limites - a 
maioria dos habitantes deverá ajoelhar-se 
diante do empobrecimento espiritual. Des­
providas de interesse pela experiência an­
cestral, presas à simultaneidade sem vincos 
da imagem, submetidas pela suplantação 
incansável dos heróis da indústria cultural. 
angustiadas pela aceleração do rilmo histó­
rico e pela vertigem das inovações da tec­
nologia, as novas gerações que aOoram fa­
zem u m alarde patético de sua 
mediocridade vivencial. A etapa que se ini­
cia para a humanidade - a etapa interplane­
tária -, que o viajante norte-americano do 
espaço Amslrong confunde com o progres­
so da ciência e da tecnologia, pode não ser 
agradável nem justa, mas irrompe no cená­
rio da história sem se preocupar com os 
matizes e possuída de uma vontade férrea 
de cxtenninar, não s6 Deus e o passado, 
como o próprio planeta Terra. 
Notas 
l.a. T. Todorov, La conquêu: de I'Améri­
que. Editions du Seuil, 1982� Grcenblatt, "Ma­
ravilhosas possessóes", em Estudos Históricos. 
trad. F. de Castro Azevedo, Rio de Janeiro. 1989, 
v. 2, n.3, p. 43-62. Em 1507, a partir da homena­
gem por parte de um obscuro grupo de humanis­
tas da rorte do duque de Lorena ao piloto e 
VEUlOS E NOVOS MUNOOS 17 
cartógrafo América Vcspúdo. autor da epístola 
Mundus no\IUS, .de 1503 - e como resultado 
direto do expansionismo mercantil europeu -
inicia sua trajetória triunfal o vocábuloAmérica. 
ou terras de Amirico. O termo América Latina 
SÓ surgirá no século XIX, no contexto do expan­
sionismo francês, cuidando de seus interesses 
diante da ameaça do avanço anglo-saxão. 
2. Para uma análise das desvantagens da 
estabilidade hierárquica no que diz respeito à 
conquista do império asteca por Cortês, ver T. 
Todorov, op. dI. capo 2. 
3. a. Stephen Grecnblatt, Renaissallce se/F 
lashioning: from More toShakespeare, Chicago, 
University af Chicago Press, Chicago, 1980, p. 
227. "I shall call lha I mode improvisation, by 
which I mean lhe ability bolh to capitalizeon lhe 
unrorcsccn and to lransform given materiais into 
onc's own sccnaria ( ... ) What is essencial in lhe 
Europeans' ability again and again to insinua te 
themselves into the preexisting political, reli­
gious, even psychic struClures of lhe natives and 
lO tum those structurcs to lheir advantage." 
4. Em seu famoso ensaio Ariel. de 1900, o 
esaitor uruguaio José Enrique Rodó proclama­
va que a cultura latino-americana estava integra­
da por uma estética grega e uma ética cristã. De 
um modo geral, os filhos da geração de 20 não 
fugiram à noção de que a cultura letrada exce­
desse os limites do compêndio nominal dos au­
tores considerados "clássicos", lista que passou 
a incluir entre eles os consagrados ao marxismo­
leninismo e que encerrava sua ilustre genealogia 
com o desespero k.alliano (ruptura diferencial 
que é, no exemplo particular dos nasddos na 
geração de 20, ainda muito mais taxativa no caso 
da pintura e da música). Também os defensores 
do nativismo, inclusive os '"calibanistas"'. não 
tiveram a suficiente lucidez crítica para estabe­
lecer a diferença entre mitificação e cultura mo­
d e r n a . S u a c o n t r i b u ição hi stórica no 
reconhecimento do valor da cultura 18Iino-ame� 
ricana foi um passo indispensável para que sua 
modernidade emergisse. Hoje constitui um obs� 
táculo injustificável para sua evolução. Mas, no 
âmbito da discussão deste trabalho, a controvér­
sia latino�americana entre arielistas e calibanis­
tas não tem a menor importância, e revela 
somente a inadequação das partes às condições 
do mundo contemporâneo. 
5. Ver, por exemplo, o artigo de Erwin Pa� 
norsky, -Renacimiento, autodcrinicHHI " ;IU-
toengaflo?" em Renacimiento y renacimi�nlos 
en eI arle occidenta� trad. M. L. Balseiro, Ma­
drid,AJianza Universidad, 1975 (título original: 
Renawance and rena.scenas in Western art, 
Slockhol m, 1960). 
6. '"Letter to Francesco Dionigi de'Roberti 
dei Borgo San Sepolcro, professor of theology 
in Paris. Malaucene, April 26,1336". em The 
Renawance phi/osoplry 01 man, Oticago, 1be 
Unive",ilY o[ Oliaogo Press, 1971, p. 44. A 
versão em espanhol citada provém das Confesio­
nes de San Agustín, X, 8. 15, Madri, Biblioteca 
de A utores Cristianos, 1974, p. 402. O original 
em latim diz o seguinte: "Et cunt homines mirari 
alta montium et ingentes nuetus maris et latissi­
mos lapsus numinum et oceani ambitum el gyros 
sidcrum et relinquunl se ipsos" (id. ibid.). 
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