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1 POLÍCIA CIVIL DE MINAS GERAIS ACADEMIA DE POLÍCIA CIVIL DE MINAS GERAIS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO BRASIL E ATUAÇÃO POLICIAL Belo Horizonte – 2024 2 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO BRASIL E ATUAÇÃO POLICIAL Coordenação Geral Yukari Miyata Subcoordenação Geral Marcelo Carvalho Ferreira Coordenação Didático-Pedagógica Flávia Portes Teixeira Coordenação de Recrutamento e Seleção Robson Silva de Aguiar Conteudistas Guilherme Cardoso Vasconcelos Isabella Franca Oliveira Lydiane Maria Azevedo Lucas Eduardo Guimarães Nayara Ferreira de Souza Saraiva Revisão e Edição Equipe multidisciplinar da Acadepol / MG Reprodução Proibida Direitos exclusivos cedidos à Polícia Civil de Minas Gerais 3 SUMÁRIO UNIDADE 1 ........................................................................................................ 4 1. REFLEXÕES INICIAIS ................................................................................... 4 2. CONCEITOS IMPORTANTES ....................................................................... 7 3. QUESTÃO RACIAL NO BRASIL ................................................................ 20 4. DADOS SOBRE RAÇA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO ........................ 31 UNIDADE 2 ...................................................................................................... 39 5. MARCOS LEGAIS DO ANTIRRACISMO .................................................... 39 6. CONDUTAS RELACIONADAS À RAÇA QUE SÃO CONSIDERADAS CRIMES NO BRASIL ....................................................................................... 51 7. DIFERENCIAÇÃO ENTRE OS CRIMES DE RACISMO E DE INJÚRIA RACIAL ............................................................................................................ 64 UNIDADE 3 ...................................................................................................... 75 8. IMPLICAÇÕES DO RACISMO E DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NA ATUAÇÃO POLICIAL ...................................................................................... 75 9. ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DA INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO BRASIL ............................................................................................................ 93 UNIDADE 4 .................................................................................................... 104 10. A IMPORTÂNCIA DE POLÍTICAS AFIRMATIVAS PARA IGUALDADE RACIAL .......................................................................................................... 104 11. QUAIS PROVIDÊNCIAS DEVEM SER ADOTADAS EM CASO DE PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO DECORRENTES DA RAÇA .............. 112 12. EQUIPAMENTOS EXISTENTES NA PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL .......................................................................................................... 116 13. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 121 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 123 4 UNIDADE 1 1. REFLEXÕES INICIAIS Neste curso, teremos a oportunidade de abordar aspectos importantes ao entendimento das relações étnico-raciais em nosso país. Ainda que a Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça e cor, etnia, religião ou procedência nacional, tenha completado mais de 30 anos de existência, vivemos em uma nação que enfrenta um significativo cenário de desigualdade racial e de vulnerabilização da população negra. Segundo o Atlas da Violência, no ano de 2020, 76,2% das pessoas assassinadas no Brasil eram pretas ou pardas, sendo que, se contabilizarmos todas as pessoas negras mortas em uma década no país (408.605 pessoas), teremos um número que é superior à população da cidade de Palmas, capital do Tocantins, que é, conforme projeção do IBGE para 2022, composta por 334.454 pessoas. Figura 01: Dados estatísticos sobre homicídio e população negra. Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Assim, primeiramente conheceremos conceitos-chave utilizados em nosso país quando nos referimos a pretos e pardos, como: raça, etnia, racismo, preconceito e discriminação racial. Ademais, discutiremos como a questão racial delineou-se no Brasil e porque trata-se de um tema que não diz respeito exclusivamente ao povo negro. Em seguida, por meio do estudo de dados estatísticos sobre raça no Brasil, compreenderemos alguns dos obstáculos que desafiam o princípio da igualdade para uma representativa parcela da nossa 5 sociedade e a consequente violência que vitimiza a população negra. Depois, perpassaremos por alguns marcos legais contra o racismo no Brasil. Por fim, examinaremos o que diferencia o crime de racismo e o de injúria racial, bem como algumas orientações quanto às providências a serem adotadas caso a pessoa sofra, presencie ou tome conhecimento de algum ato de racismo. Figura 02: Quantitativo de pessoas negras assassinadas nos últimos 10 (dez) anos. Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Diante da amplitude das definições que serão apresentadas, será bastante razoável parecer estranho a quem lê, o enfoque, quase exclusivo, nas relações étnico-raciais entre pessoas brancas e negras. E outros grupos discriminados e minoritários do ponto de vista da pertença racial, como ficam? Os indígenas, judeus, amarelos1? São questões sem dúvida pertinentes. Há sobretudo duas razões práticas para essa escolha – a primeira delas, quantitativa: as pessoas autodeclaradas brancas e negras compõem a imensa maioria da população brasileira. A segunda, que diríamos “acadêmica”, mas que ao fundo é também quantitativa, diz respeito à produção teórica existente sobre as relações racializadas: a variedade de materiais, enfoques e produções sobre a díade brancos e negros é muito maior do que as outras, certamente em razão da própria magnitude populacional. 1 Aqui, repetimos a designação de cor/raça dada pelo IBGE, apesar de termos conhecimento de que há críticas a esse rótulo postuladas por grupos de japoneses, chineses, coreanos e seus descendentes no Brasil. Entretanto, em prol da clareza e da homogeneidade textual, nos limitamos ao nome atualmente estabelecido. 6 Apesar disso, os dispositivos legais, as normas e aparatos institucionais existentes não estão submetidos ao mesmo recorte. Em certa medida, resguardadas as particularidades de diferentes grupos étnico-raciais, boa parte do que se discutirá nas páginas a seguir pode ser usado por analogia para a análise de outros cenários de desigualdade racial. Nesse sentido, esperamos ter sido capazes de apresentar os temas e reflexões de maneira tal que esse aproveitamento se dê facilmente. Ademais, não é excessivo lembrar que este material não é, não pretende ser (e nem poderia ser) definitivo sobre o tema. Pelo contrário, ele é tão somente uma porta de entrada para um assunto sobre o qual ainda há muito por ser discutido. Esperamos que o conhecimento compartilhado neste curso possa contribuir para o entendimento do problema, que figura como pano de fundo de parte significativa das violências evidenciadas no Brasil, bem como os aspectos legais envolvidos. 7 2. CONCEITOS IMPORTANTES Antes de iniciarmos qualquer discussão acerca das relações étnico- raciais no Brasil, é importante que tenhamos em mente qual a definição desse conceito e também de outros relacionados. Para isso utilizaremos, entre outras, as reflexões apresentadas pela professora Nilma Lino Gomes, no texto intitulado “Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão”.Gomes (2005) dialoga com os movimentos sociais a fim de apresentar conceitos-chave utilizados em nosso país quando nos referimos a pretos e pardos. Lembrando que, conforme convencionado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil a população definida como negra é aquela composta pelas pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas. Figura 03: Quadro pintado pela artista plástica Rita Vianna. Antes de falarmos em “identidade negra”, precisamos compreender o que o conceito de “identidade” define. Conforme descrito por Deschamps & Moliner (2014), a psicologia social contemporânea, no bojo das ciências sociais, entende a existência de dois processos identitários: de um lado, a identidade individual, que permite que um indivíduo reconheça a si mesmo ao longo do tempo (aquilo que ele expressa quando lhe perguntam quem ele é); e 8 a identidade social, que é marcada pelo reconhecimento dos grupos sociais aos quais os indivíduos fazem parte. Entretanto, esses processos não são isolados: há elementos na identidade pessoal (ou individual) que são oriundos das relações grupais, enquanto entre pessoas que compartilham uma mesma identidade social, são as identidades individuais que as diferenciam. Para apresentar o conceito de identidade negra, Gomes (2005) nos lembra que a identidade não é algo inato, vez que é decorrente de nossa interação com o mundo que nos cerca, se constrói e se expressa em larga medida por meio de práticas linguísticas, tradições e comportamentos. Esses traços assinalam pertencimentos, marcam nos sujeitos suas vinculações aos diferentes grupos que fazem parte: uma família específica, uma naturalidade, uma classe social, um sexo, um grupo étnico-racial. Nesses termos, as pessoas buscam alcançar a valorização de seus grupos de pertença, porque isso reflete, ao fim e ao cabo, na distinção positiva de si mesmo, como parte daquele grupo socialmente valorizado (MONTEIRO, 2013). Alguns grupos de nossa sociedade, como negros e indígenas, cuja história é marcada por subalternização e marginalidade, têm maior necessidade e dificuldade para valorizar suas diferenças em relação aos demais grupos. Inserida nesse cenário, a identidade negra, se manifesta como uma maneira de fortalecer do modo de existir dessas pessoas perante a sociedade (WOODS, 1987). Figura 04: Significado de subalternização. A construção da identidade do povo negro, assim como outros processos identitários, dá-se gradativamente sob a influência de fatores sociais, históricos e culturais diversos. Segundo Gomes (2005, p.43) “geralmente este processo se inicia na família e vai criando ramificações e desdobramentos a partir das outras relações que o sujeito estabelece.” A autora ressalta o quanto pode ser difícil construir uma identidade positiva em 9 uma sociedade que, desde muito cedo, ensina às pessoas negras que para ser aceito é preciso negar a si mesmo. Figura 05: Charge do artista Thyagão. A utilização do termo raça pode assumir vários sentidos, a depender do contexto no qual é aplicado, de quem fala, como e quando fala. Quando o Movimento Negro e especialistas da área, como sociólogos e psicólogos sociais, utilizam o conceito para dialogar sobre fenômenos como o racismo e a discriminação presentes na sociedade brasileira, o fazem baseando-se na dimensão social e política do termo e não alicerçados na ideia de superioridade e inferioridade biológica, como originalmente era usada no século XIX. Ou seja, o conceito é utilizado para retratar e compreender a realidade das pessoas racializadas. Ao investigar a questão da assim chamada “mestiçagem racial” na sociedade e no pensamento brasileiro, o antropólogo Kabengele Munanga inicia por discutir a própria concepção de raças humanas. Na definição do autor, as denominações raciais (negro, branco, amarelo, mestiço etc.), apesar de possuírem diferenças visualmente perceptíveis e, por meio dessa percepção, carregarem a crença de que são exclusivamente fundadas na biologia são, na verdade, uma “manipulação do biológico pelo ideológico” (MUNANGA, 2020, p. 24). Em outros termos, o que o autor demonstra ao 10 retomar o processo histórico de construção dessas diferenças, é que aquilo que nos parecem distâncias biológicas são, na verdade, distâncias culturais biologizadas: ou, como diria Silvio Almeida (2020), foi o racismo que inventou a raça, não o contrário. Naturalmente, isso não quer dizer que não existem diferenças biológicas, físicas, entre as pessoas. Como dissemos, essas diferenças existem e estão no campo do evidente. O que não existe, do ponto de vista biológico, é a definição de diferentes raças humanas. Estas são na realidade construções históricas, socioculturais e políticas, que emergem nas relações sociais e de poder. Cultural e socialmente nós aprendemos a enxergar as raças, ou seja, aprendemos a perceber as diferenças, a comparar e a classificar a partir de características físicas, como afirma Gomes (2005). O problema começa quando essa percepção da diferença resulta em estereotipização do outro e na hierarquização, a priori, dos grupos em razão de suas características fenotípicas. O emprego do termo etnia é preferido por algumas pessoas que acreditam que a utilização do conceito de raça, mesmo em uma dimensão social e política, pode significar um retorno à sua perspectiva biológica (e consequentemente, sua limitação a esta perspectiva). Além disso, é utilizado para referir-se a um grupo de pessoas que têm certo tipo de consciência acerca de suas origens e interesses em comum (GOMES, 2010). A identidade desse grupo define-se com base no compartilhamento de uma língua, de uma cultura, de tradições, de momentos históricos e territórios já habitados. Não se trata, assim, de um mero agrupamento de pessoas (GOMES, 2010). Figura 06: Fotografia de diferentes pessoas. A aplicação da expressão étnico-racial acaba significando que, para compreensão da realidade do negro em nossa sociedade é preciso considerar, 11 além da classificação racial pautada em características físicas, também a dimensão identitária (GOMES, 2010). Assim, chamamos de relações étnico- raciais aquelas construídas – no processo histórico, social, político, econômico e cultural – em contextos nos quais a raça, em sua dimensão social e política, é utilizada como forma de demarcação das diferenças entre as pessoas. Conforme nos lembra Gomes (2010), para uma análise profunda das relações étnico-raciais é preciso ter em mente que os sujeitos vivem diferentes processos identitários, os quais interferem no modo como é construído seu pertencimento étnico-racial. Por exemplo, a identificação de uma criança negra com outras pessoas negras e com a cultura e história de seus antepassados pode ser influenciada pela maneira como a temática é trazida a ela, ou seja, como os aspectos étnico-raciais são vivenciados no dia a dia. Acerca do conceito de racismo, Almeida (2020, p. 32) o define como: uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam. Gomes (2005) resume de maneira mais direta que o racismo é, por um lado, a aversão, até mesmo ódio, direcionado a pessoas nas quais se observa sinais de pertencimento racial (racializadas), tais como cor de pele e tipo de cabelo; e por outro lado, diz respeito a um conjunto de ideias de grupos que acreditam na existência de hierarquia entre as raças. O racismo pode ser concebido como um fenômeno de natureza individualista, institucional ou estrutural. Novamente, trata-se de uma distinção formal, de algo que efetivamente não se manifesta de maneiras tão desconectadas uma das outras, conformeveremos. Neste momento, nos basta uma distinção superficial de suas manifestações. Assim, a visão individualista do racismo, é aquela que se observa quando indivíduos cometem atos discriminatórios contra outros indivíduos, de maneira singular e dirigida. Esses atos podem se dar desde comportamentos de recusa da interação, até situações de agressão e violência física. Dois exemplos veiculados pela grande mídia são especialmente ilustrativos. No primeiro deles, uma consumidora enviou mensagem ao comércio no qual fizera um pedido com os seguintes dizeres: “Por favor mandem um entregador branco, não gosto de pretos nem 12 pardos [...]”, causando revolta nos funcionários (MARTINS, 2022). O segundo exemplo, certamente bastante cruel, foi vivido por uma criança de 10 anos em uma praia no estado do Rio de Janeiro. Enquanto realizava um ensaio fotográfico vestida com uma fantasia de sereia, a menina ouviu de um homem a frase “Nunca vi sereia preta” (CATRACA LIVRE, 2022). Nessa concepção, pode-se falar menos em racismo e mais em preconceito, posto que se manifesta na ação (comportamento) isolada de indivíduos ou grupos bem delimitados, e supostamente é fruto de uma patologia ou anormalidade, de ordem moral ou orgânica (ALMEIDA, 2020). Já na concepção institucional, o conceito de racismo diz respeito a práticas discriminatórias promovidas pelo Poder Público, pelo Estado ou por outros organismos (as instituições) com o apoio indireto ou chancela do Estado, como o isolamento de negros em determinados espaços; a concessão de privilégios ou desvantagens baseadas na raça; ou a permissividade ante a imagens estereotipadas de personagens negros em livros didáticos ou na publicidade (GOMES, 2005). Para o melhor entendimento dessa concepção, é imprescindível que compreendamos que o termo “instituição” não se refere exclusivamente a estruturas físicas, mas abarca também o funcionamento institucional (DOUGLAS, 1998), manifesto como “somatório de normas, padrões e técnicas de controle que condicionam o comportamento dos indivíduos”, conforme Almeida (2020, p.39). Assim, podemos perceber que o Poder Judiciário, as polícias, o sistema educacional, enfim, o próprio Estado em si, são exemplos de instituições. Figura 07: Propaganda racista. Fonte: https://economia.uol.com.br/listas/propagandas-acusadas-de-racismo.htm 13 A consideração do racismo de natureza institucional se apoia sobre a percepção de que, em diversos momentos da História humana, o racismo foi cometido com o aporte de leis ou do funcionamento regular das instituições. O Holocausto nazista, as leis de segregação nos Estados Unidos ou na África do Sul, para nos limitarmos a uns poucos exemplos, descrevem situações em que a discriminação étnico-racial representou o modo de funcionamento regular do Estado, legalmente amparado. Por fim, cabe discutir a perspectiva estrutural do racismo, conforme apresentada por Silvio Almeida (2020). Ainda que algumas vezes “racismo institucional” e “racismo estrutural” sejam tomados como sinônimos, de acordo com o autor, o racismo estrutural tem caráter mais amplo e transversal, já que “as instituições são racistas porque a sociedade é racista” (ALMEIDA, 2020, p.47). Ou seja, o conceito diz respeito à prática do racismo que decorre da própria estrutura social, a qual é consolidada nas relações cotidianas, políticas, econômicas, jurídicas etc. Conforme discutido pelo psiquiatra martinicano Frantz Fanon (2020), a subalternização das populações negras é tomada como um dado natural, fazendo-se presente, ainda que imperceptível de imediato, no funcionamento normal das sociedades contemporâneas. Fruto do colonialismo moderno (séculos XVIII e XIX, sobretudo), o racismo estrutural carrega consigo a noção de uma sub-humanidade do negro (CÉSAIRE, 2020), que faz da sua existência algo de menor valor, inclusive exterminável (MBEMBE, 2018). A manifestação da faceta estrutural do racismo torna-se evidente quando observamos, por exemplo, a maior pré-disposição ao uso desmedido da força por agentes de segurança contra indivíduos negros tomados, de partida, como agressores (FANTTI, 2023). Entretanto, o racismo estrutural não se encerra na ação individual de quem, como no caso citado, puxa o gatilho: está também na percepção coletiva desse ato, que o sopesa e normaliza, com frases como “mas será mesmo que ele não fez nada de ameaçador?” e outras semelhantes. Essa orientação discriminatória de nossa coletividade, marcada pela diferença racial, chega a criar zonas de permissividade ou, nas palavras do filósofo camaronês Achille Mbembe (2018), “espaços de exceção”, nos quais a lei funciona diferente e direitos fundamentais ficam indisponíveis (ADORNO, 2017). 14 Figura 07: Conceitos importantes sobre racismo estrutual. No entanto, Almeida (2020) também chama atenção que entender o fenômeno como estrutural não isenta quem comete atos racistas de sua responsabilidade individual quanto à intolerância praticada, pelo contrário: compreender que o racismo é parte de uma estrutura social e não um ato isolado torna todos ainda mais responsáveis pelo seu enfrentamento. Dito 15 numa metáfora, ainda que o racismo monte o palco e seja o material do qual é feito todo o cenário, ainda serão pessoas de carne e osso, os atores, que atuam sobre esse palco, que interagem nesse cenário. Na prática, o racismo estrutural está presente no nosso cotidiano na naturalização de muitas práticas, como por exemplo: ● quando, independente do seu nível de instrução, a remuneração da população negra é inferior ao valor pago à população branca em igual posição; ● quando não encontramos pessoas negras em cargos de liderança; ● quando se constata que a população negra é mais atingida pela violência do que a população não-negra, inclusive em índices fatais; ● ao nos depararmos com uma escassez de produções culturais (como filmes e novelas) em que há pessoas negras em papel de destaque, ou mesmo a sua sub-representação nessas mesmas produções, quando comparada à população geral; ● no preconceito em relação às religiões de matriz africana (racismo religioso); ● em nosso círculo social, quando fazemos e/ou toleramos piadas de cunho racial ou utilizamos frases que inferiorizam os grupos racializados; ou ● quando, automaticamente, um homem negro se torna sinônimo de perigo e acaba sendo vítima de violência. Um ponto importante precisa ser colocado acerca daquilo que popularmente é rotulado como “racismo reverso”. Sua existência é tanto uma impossibilidade lógica quanto conceitual. Do ponto de vista lógico, afirmar a existência de um racismo reverso exige que se reconheça que há um “racismo normal” – no qual o negro é inferiorizado – e um racismo “incomum”, que inverte essa normalidade ao inferiorizar a população branca. Desnecessário chamar atenção de que não há racismo que possa ser tomado como natural ou normal, visto que não existe condição de subordinação de grupos humanos a priori, fora do contexto social de interação. 16 No que diz respeito à impossibilidade conceitual, lembremos que o racismo é um processo político de discriminação sistêmica que influencia a organização e funcionamento da sociedade (ALMEIDA, 2020). Ele é sofrido, enquanto tal, por quem não domina as posições de poder e mando. Ou seja, não é razoável pensar que negros (ou outro grupo étnico-racial subalternizado) tenham condições materiais de submeter brancos (ou outro grupo étnico-racial socialmente dominante) a processos de discriminação, em razão de sua própria condição como subalternizados. Abordaremos a seguir a distinção entre preconceito e discriminação racial, mas antes precisamos desatar um último nó que pode ter restado acerca do chamado “racismo reverso”. É possível que alguns de nós tenhamos vivenciado, ou até experienciado,atitudes discriminatórias ou de preconceito vindas de pessoas negras – seja dirigido a pessoas brancas ou até mesmo a outras pessoas negras (ED., 2023) – e, nos lembrando dessas situações, tenhamos dificuldade em compreender o racismo reverso como uma impossibilidade. Entretanto, o ponto fundamental diz respeito à efetividade e amplitude social desses atos discriminatórios. Novamente, nas palavras de Almeida: Há um grande equívoco nessa ideia porque membros de grupos raciais minoritários podem até ser preconceituosos ou praticar discriminação, mas não podem impor desvantagens sociais a membros de outros grupos majoritários, seja direta, seja indiretamente. Homens brancos não perdem vagas de emprego pelo fato de serem brancos, pessoas brancas não são "suspeitas' de atos criminosos por sua condição racial, tampouco têm sua inteligência ou sua capacidade profissional questionada devido à cor da pele. (ALMEIDA, 2020, p.53) Acerca dos demais conceitos, Gomes (2005) e Almeida (2020) diferenciam ainda preconceito e discriminação racial. O preconceito racial manifesta-se por meio de julgamento prévio, baseado em estereótipos (em geral negativos) sobre os indivíduos que compõem um grupo étnico-racial. Trata-se de uma opinião descolada da realidade, generalizante (“negros são preguiçosos”, “judeus são avarentos”, “mulheres brasileiras são fáceis”). É importante destacar que ninguém nasce preconceituoso, é um comportamento aprendido socialmente e que, a despeito de existir e ser disseminado, dificilmente veremos quem goste de assumir-se preconceituoso. 17 O conceito de discriminação racial, por sua vez, pode ser definido como a efetivação do preconceito racial e do racismo. Conforme nos ensina Gomes (2005, p.55), “enquanto o racismo e o preconceito encontram-se no âmbito das doutrinas e dos julgamentos, das concepções de mundo e das crenças, a discriminação é a adoção de práticas que os efetivam” ou, nos termos mais amplos de Almeida (2020, p.32) a discriminação racial é “a atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupo racialmente identificados”. Figura 08: Afirmação importante. A discriminação pode ser ainda diferenciada como direta ou indireta, positiva ou negativa: a forma direta deriva de atos ostensivos de discriminação de uma pessoa, expressamente, em razão de sua cor – como no mencionado episódio de xingamento à criança de 10 anos no Rio de Janeiro. Já a forma indireta resulta de políticas públicas ou práticas administrativas que, apesar de aparentemente neutras do ponto de vista racial (numa lógica conhecida como color blindness, quando as diferenças objetivas entre os grupos raciais é desconsiderada, restringindo-se à igualdade formal), possuem potencial discriminatório. Isso porque as condições concretas de existência dos grupos minoritários impactam diretamente na existência desses grupos e nas possibilidades de seus indivíduos acessarem recursos coletivamente disponíveis. Sua manifestação afronta o Princípio da Igualdade da Pessoa Humana, conforme resumido pela máxima aristotélica: deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade. Sua marca é percebida “quando os resultados de determinados indicadores socioeconômicos são sistematicamente desfavoráveis para um 18 subgrupo racialmente definido em face dos resultados médios da população” (GOMES, 2005, p. 56). Por fim, Almeida (2020) chama atenção para a possibilidade de uma discriminação racial indireta e positiva, em atenção restrita ao princípio da igualdade: é ela que destacamos quando pensamos no “tratamento desigual aos desiguais, na medida de sua desigualdade”. Sua existência se funda na lógica de color consciousness, qual seja, numa perspectiva que considera a existência das diferenças sociais entre os grupos raciais, e atua na medida dessas diferenças, instaurando um regime de igualdade material entre os grupos. Configuram discriminações positivas, por exemplo, programas de ações afirmativas como as cotas. Resumindo... Figura 09: Resumo de termos importantes do capítulo. Figura 10: Resumo de outros conceitos importantes para a compreensão do capítulo. 19 Uma vez tendo repassado conceitos fundamentais à compreensão da questão racial em nosso país, partimos ao estudo do percurso histórico do tema até os dias de hoje2. 2 Antes de avançar, se faz necessário apontar uma nota em relação a figura 10: o termo “dororidade” foi cunhado pela pensadora Vilma Piedade e apresentado em 2017 em livro homônimo. Criando em complemento ao termo feminista “sororidade” (do latim soror – irmã e ~eidade, conjunto irmandade feminina), dororidade visa destacar que há dores que unem as mulheres negras que vão além daquelas consequentes do machismo (MARIA, 2022). 20 3. QUESTÃO RACIAL NO BRASIL Para discutirmos a questão racial no Brasil é preciso voltarmos na História, a fim de compreender a razão do contexto brasileiro de racismo, preconceito e discriminação estar tão relacionado a acontecimentos que extrapolam o próprio território do país, bem como porque a discussão da temática racial não deve ser exclusiva do povo negro. Trata-se de uma questão social, política e cultural de todos/as os/as brasileiros/as e da comunidade internacional (GOMES, 2005). Segundo Carula (2016), o termo “raça” começa a ser utilizado na Europa durante o período da Reconquista da Península Ibérica pelos cristãos (entre 718 e 1492). Supostamente, sua origem está no termo árabe “ra’s”, que designa o chefe de um clã ou grupo. No uso cristão, o uso de raça (como “raza”) servia para indicar a origem e descendência de alguém. Esse destaque tão remoto é particularmente importante para esclarecer que o termo, em princípio, não servia para designar separações humanas baseadas em características fenotípicas. Pelo contrário, antes do século XVII, o paradigma de distinção social mais relevante era o religioso: de um lado os cristãos (brancos) e do outro os não cristãos (pagãos, muçulmanos, judeus) – não- brancos, portanto (CARULA, 2016). Figura 11: Atenção ao conceito de colonização. O uso do termo numa acepção mais próxima àquela da contemporaneidade se deu com a publicação de Nouvelle division de la terre, par les diferentes espèces ou races d'hommes qui l'habitent (“Nova divisão da 21 terra pelas diferentes espécies ou raças de homens que a habitam”, em tradução livre), de François Bernier, em 1684 (CARULA, 2016, p. 156). Nela, o autor defende a classificação da humanidade em quatro ou cinco raças de homens, conforme sua cor de pele, características físicas e dados geográfico- espaciais. Isso trouxe consequências diretas para aquilo que nos acostumamos a chamar de “colonização do Novo Mundo”, que significou para as populações nativas (sobretudo ameríndios e africanos) a utilização das diferenças fenotípicas como elementos de segregação, bem como a violência das práticas aplicadas naquela época com base nessas distinções. O tráfico de pessoas negras de África para as Américas atrelava-os à noção de inferioridade decorrente da própria condição como escravizados. As pessoas negras eram coisificadas e comercializadas sob a justificativa de sua sub-humanidade, alicerçada em crenças religiosas e filosóficas. Figura 12: Atenção ao conceito de Novo Mundo. Conforme descreve Berkenbrock (2012), estimativas apontam que, no período em que perdurou o tráfico transatlântico de pessoas (encerrado oficialmente em 1852), aproximadamente 3.600.000 negros escravizados foram trazidos à força para o Brasil. Isso representou algo em torno de 38% do total de cativos tirados do continente africano em direção às Américas. Se levarmos em conta que esses números são imprecisos, possivelmente subestimados (sobretudo pela destruição dos documentos do períodoescravista pela República), e que muitos escravizados morriam na travessia do oceano, perceberemos que é real a possibilidade de que o número de pessoas efetivamente sequestradas de África seja ainda maior. É no século XIX que dois fatos históricos importantes ocorreram, e foram responsáveis por trazer ao centro do debate jurídico e científico de então o 22 conceito de raça e a prática do racismo: a consolidação dos Estados Nacionais como forma primordial de ordenamento político e territorial – o que transparecia a emergência do capitalismo e de um sistema de classes que exigia o reordenamento de grupos sociais; e o imperialismo europeu que, a partir de sua expansão moderna, intensificou as relações dos estados europeus com os outros povos e nações (HEILBORN et al, 2010). Figura 13: Atenção ao conceito de Imperialismo. A partir desse momento, os países, caracterizados como Estados Nacionais, precisavam solidificar suas bases culturais, bases estas que deveriam cumprir o papel de criar nas pessoas um sentimento de pertença à nação. Ou seja, elas deveriam reconhecer-se como pertencentes a um mesmo grupo, com os mesmos costumes. E foi nesse contexto que o conceito de raça assumiu uma gama de significados, os quais caracterizavam uma noção nova de “raça nacional” (HEILBORN et al, 2010). Figura 14: Atenção ao conceito de Estado-Nacional. 23 No entanto, como nos lembram Heilborn et al (2010), unificar povos implicava no fato de dar à nação uma origem comum, ratificada na História, e a definição de um Outro, o diferente que permite a afirmação da semelhança entre os nacionais. Esse movimento se consolida na ideia de que as raças europeias eram superiores às demais e deu força para teorias raciais que justificavam cientificamente tal superioridade. Desde a colonização das Américas, as discussões sobre o conceito de raça foram evoluindo por campos diversos. Durante muitos anos, o uso do termo nas ciências, na política ou na sociedade, esteve ligado de um modo geral à dominação político-cultural de povo e de nações, como a exemplo do domínio nazista da Alemanha no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939- 1945) (GOMES, 2005). Figura 15: Atenção para o termo Segunda Guerra Mundial. Fortemente apoiada nas propostas do chamado “racismo científico” do final do século XIX e início do século XX, a ideia vigente era a de que a raça ariana era superior às outras raças em termos biológicos, sociais e culturais (HISTÓRIA FM, 2023). Muitas atrocidades foram cometidas em nome dessa suposta hierarquização das raças. Entretanto, para autores como o martinicano Aimé Césaire (2020), o sul-africano Steve Biko (WOODS, 1987) e o camaronês Achille Mbembe (2018), o horror nazista vivenciado pelos europeus em seu próprio território foi a transposição do terror que colônias e ex-colônias nas 24 Américas, na África, na Ásia e na Oceania já conheciam desde o século XVI. Para Mbembe (2018), as torturas e execuções em massa, o Holocausto, foram o auge da aplicação de ferramentas de domínio que haviam sido aprimoradas – sem grande censura da comunidade internacional – nos espaços coloniais. Nas palavras de Aimé Césaire: [...] o que ele [o europeu típico do começo do século XX, “muito humanista e muito cristão”] não perdoa em Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, é a humilhação do homem branco, é de haver aplicado à Europa os procedimentos colonialistas que atingiam até então apenas os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África. (CÉSAIRE, 2020, p.18. grifos no original) Somente no final da Segunda Guerra Mundial as discussões ganharam alguma tração e assumiram definitivamente um viés político e sociológico. Criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para investigar as motivações raciais da guerra, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) introduziu no campo científico estudos que comprovaram a diversidade de culturas humanas, bem como a legitimidade da existência das mesmas (HEILBORN et al, 2010). Falaremos sobre tais estudos mais adiante. A questão racial no Brasil só passou a ser de alguma forma tematizada a partir do século XIX, às vésperas da abolição da escravização. No final do século esteve em voga no mundo o darwinismo racial, cujo principal expoente brasileiro era o médico Raimundo Nina Rodrigues. Segundo essa corrente teórica, as raças biológicas, por corresponderem a espécies diferentes, não seriam passíveis de cruzamento, assim a miscigenação representaria a degradação humana (SCHWARCZ, 1998). Foi baseado nessa teoria pseudocientífica que se incentivou, por meio da massiva imigração europeia, o branqueamento da população brasileira a fim de purificar o país até então constituído por uma maioria negra, indígena e mestiça (HEILBORN et al, 2010). 25 Figura 16: Darwinismo racial. Outra vertente, de certo modo complementar, propunha a miscigenação como ferramenta de embranquecimento. O quadro “A redenção de Cam”3, pintado em 1895 pelo espanhol radicado brasileiro Modesto Brocos, resume a teoria cientificista do branqueamento. Essa obra ilustrou um artigo do médico, e então diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda no Congresso Universal das Raças de 1911, em Londres. Na ocasião, João Batista descreveu a imagem como “O negro passando a branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças” (RONCOLATO, 2018). Figura 17: Quadro “A redenção de Cam”, de Modesto Brocos (1895). 3 A obra de Modesto Broncos faz referência a trecho bíblico do livro do Gênesis (Gn 9, 18-28), segundo o qual os negros seriam descendentes de Cam, filho de Noé que foi amaldiçoado pelo pai após vê-lo nu e embriagado (BERKENBROCK, 2012). 26 Transcorrido o ápice do ideal manifesto de branqueamento da nação, na década de 1930 o mestiço converteu-se em ícone nacional. O sincretismo cultural passa a ser valorizado, de forma que produtos como o samba, a capoeira – que foi de ato criminoso à modalidade esportiva nacional em 1937, bem como a feijoada, passaram de elementos marginais a manifestações da tipicidade brasileira (SCHWARCZ, 1998). Entretanto, como aponta Reis (1996), esse enaltecimento da mestiçagem e de elementos da herança cultural negra como representantes do verdadeiro Brasil foi também resultado de um discurso de embranquecimento – um embranquecimento simbólico. O samba, a capoeira, a feijoada, a percussão, entre outros, são desafricanizados: ao invés de construído sobre um passado também africano, o que sustenta o país é um passado mestiço (REIS, 1996, p.40). É nesse contexto que intelectuais começaram a propagar a ideia de uma harmonia entre grupos étnico-raciais, ou seja, uma “democracia racial” no país. A obra de Gilberto Freyre é um exemplo da produção da época. Figura 18: Capa da 51ª edição do livro Casa Grande e Senzala, editora Global. Em seu livro “Casa Grande & Senzala”, publicado no ano de 1933, o escritor pernambucano Gilberto Freyre defende a predominância no Brasil de uma democracia social pautada em uma democracia racial. O livro aborda o 27 cotidiano com manuscritos e documentos que descrevem os costumes e hábitos das pessoas durante a escravização e desloca, pela primeira vez, o foco da raça biológica para a raça social (BASTOS, 1999). Ao tematizar detalhes do cotidiano compartilhado por pessoas escravizadas e seus escravizadores, Freyre (2019) transporta o leitor ao microcrosmo talhado de minúcias sobre as quais, a partir de uma leitura crítica, se assentavam fazeres subalternizantes. O lugar do homem negro escravizado, por exemplo, era também o de entreter o homem branco em circos, coros e bandas, assim como, na presença dos escravizadores, a féobrigatoriamente professada era a Católica, com a sujeição a rezas diárias. Segundo Bastos (1999), na obra de Freyre, a miscigenação entre senhores e mulheres escravizadas – ocorrida durante a colonização, foi tomada como prova da aceitação de uma raça pela outra e, assim, miscigenação e democracia podiam ser relacionadas. Ademais, os negros escravizados cristianizados e que frequentavam a casa-grande foram compreendidos como parte da família e, nesse contexto, transmitiam suas próprias características culturais aos senhores. A propositura de Freyre, entretanto, esbarra na crueza da realidade historicamente conhecida. A miscigenação entre o senhor branco e a mulher escravizada negra é antes uma história de violência do que de amor e integração racial. Transitando pela casa-grande, os escravizados domésticos não eram compreendidos como “parte da família”, mas como “quase da família”. Apesar de transmitir saberes aos senhores, eles não se sentavam à mesa com eles, não dormiam nas mesmas camas. Conforme Nascimento (2021) a crença na “democracia racial”, que nasce do clássico “Casa-grande e Senzala” na verdade é um mito cujo objetivo é esconder a violência das relações raciais no Brasil – desde os tempos de colônia. Desse modo, ao longo das décadas, a negação do preconceito foi tamanha que era “como se as posições sociais desiguais fossem quase um desígnio da natureza, e atitudes racistas, minoritárias e excepcionais” (SCHWARCZ, 1998, p. 179). O racismo é negado ostensivamente, ainda que seja efetivo no dia a dia (SCHWARCZ; REIS, 1996). A partir dos anos de 1950 foram financiados pela UNESCO estudos acerca da suposta “democracia racial” no Brasil, vez que poderia servir de 28 modelo para outras partes do mundo (SCHWARCZ, 1998). Vários especialistas foram contratados para investigar a realidade racial brasileira, entre eles Thales de Azevedo e Florestan Fernandes. Os chamados “ciclos de estudos da UNESCO” diferenciavam-se dos estudos anteriores, sobretudo, por desprezarem a concepção biologizada de raça, em voga no século XIX nos países da Europa e considerarem o termo como um construto social, histórico e político, como ressaltam Heilborn et al (2010). Passava a ser descortinada a verdadeira realidade enfrentada pela população negra no país. Com base no argumento de que no país prevaleceria a equidade racial, o escritor e pesquisador Thales de Azevedo (1975) realizou estudos que evidenciaram o racismo em diversos âmbitos, tais como no mundo do trabalho – eram relegadas aos negros as funções mais subalternas –, e nas relações sociais – não era permitido ao negro entrar em certos hotéis ou encenar peças teatrais em grandes teatros, por exemplo. Assim, Azevedo (1975) acaba por concluir que apesar de normas democráticas que asseguravam a punição de atos discriminatórios (como a Lei Afonso Arinos), havia na sociedade uma forte estereotipagem contra as pessoas negras, o que favorecia uma discriminação velada, muito eficaz à manutenção do mito da “democracia racial". Também na contramão daqueles que afirmavam a equidade racial no Brasil, o sociólogo Florestan Fernandes (1972), em seu livro “O negro no mundo dos brancos”, ressaltou o peso do passado de escravização dos povos africanos no modo como a sociedade brasileira organizou-se anos depois. Segundo Schwarcz (1998), para Florestan, enquanto dissimulava-se o preconceito racial, negando o racismo verdadeiramente praticado nos lares e instituições, a sociedade brasileira assistia ao aumento de privilégios econômicos, sociais e culturais dos brancos. Naquele contexto, sem emprego, renda ou escolarização, restava ao negro o lugar de subalterno. Junto com as décadas de 1970 e 1980 vieram as contestações dos valores vigentes na política, na música e na literatura, bem como as análises das profundas desigualdades entre os negros e demais grupos raciais (SCHWARCZ, 1998). Ficou evidenciada a discriminação racial que impactava cotidianamente no acesso à educação, ao lazer e na distribuição desigual de renda. O senso demográfico realizado na década de 1960 comprovou, por exemplo, que a 29 renda média da população branca era o dobro da renda do restante da população (SCHWARCZ, 1998). A desigualdade racial podia ser percebida, ainda, nas práticas penais brasileiras. Pesquisa realizada pelo sociólogo Sergio Adorno (1996) constatou tratamento diferenciado conforme cor da pele, ou seja, o negro era considerado mais perigoso, sendo mais perseguido pela vigilância policial, enfrentando maiores obstáculos de acesso à justiça, bem como recebendo tratamento penal mais rigoroso. Figura 19: Charge do artista Maurício Pestana. O que se observa, então, é um país culturalmente diverso, com grande assimilação de traços culturais dos povos africanos colonizados, porém, bastante marcado por uma hierarquização social que promoveu, ao longo de séculos, a inferiorização da população negra. Pesquisas e estatísticas oficiais comprovam a lamentável existência do racismo em nossa sociedade, por mais que coletivamente insistamos em negá- 30 lo. Quando comparadas as condições de vida, emprego, saúde, escolaridade e outros índices de desenvolvimento humano, os dados comprovam o abismo social entre negros e brancos (GOMES, 2005). A seguir, observaremos algumas informações que revelam a desigualdade socioeconômica que atinge a população negra no Brasil. 31 4. DADOS SOBRE RAÇA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Figura 19: Releitura em painel urbano da obra “Operários”, de Tarsila do Amaral (1933), pelo artista Mundano (OLIVIERA, 2020). Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do ano de 2019, pretos e pardos correspondem à maioria da população brasileira, representando 56,2% dos habitantes. E apesar de numericamente maior, essa representativa parcela da nossa sociedade convive diariamente com obstáculos resultantes de um duro processo histórico, que a confinam em posição minoritária no acesso a direitos, desafiando o princípio da igualdade. São exemplos claros da discriminação racial indireta, referida pela professora Nilma Lino Gomes (2005), que reverberam a estruturação racista da sociedade em que vivemos. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), pretos e pardos compõem a maior parte da força de trabalho do Brasil, o que pode ser observado especialmente em relação ao trabalho informal. Lembramos que a informalidade do trabalho pode expor o trabalhador a condições precárias de trabalho, além de dificultar o acesso aos direitos básicos, como aposentadoria e salário-mínimo (IBGE, 2019b). No ano de 2018, 32 enquanto 34,6% das pessoas ocupadas brancas estavam em ocupações informais, o percentual entre as pretas e pardas atingiu 47,3%. Figura 20: Dados estatísticos sobre pessoas em ocupações informais. Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018. Nota: Pessoas de 14 ou mais anos de idade. Se pararmos para observar a remuneração da população preta e parda em nosso país, chegamos à conclusão de que, independentemente do seu nível de instrução, ela é inferior ao valor pago à população branca, que é 45% maior (IBGE, 2019b). Em se tratando de cargos de chefia a situação de desigualdade se mantém. Ainda segundo levantamento realizado no ano de 2018, apenas nas regiões Norte e Nordeste há uma maior proporção de pretos ou pardos em cargos de gerência (61,1%), nas demais há uma sub- representação (29,9%). Figura 21: Dados sobre remuneração. 33 Figura 22: Dados sobre rendimento médio real habitual do trabalho principal das pessoas ocupadas. Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018. Nota: Pessoas de 14ou mais anos de idade. No que diz respeito às condições de moradia, pretos e pardos compõem a maioria da população que reside em condições precárias de saneamento básico, estando mais exposta a doenças: 12,5% em locais sem coleta de lixo, contra 6,0% da população branca; 17,9% sem abastecimento geral de água, contra 11,5% da população branca; 42,8% sem esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial, contra 26,5% da população branca (IBGE, 2019b). 34 Figura 23: Dados sobre condições de moradia. Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018. Ao analisarmos os dados de 2018 do IBGE sobre educação, percebemos uma taxa de analfabetismo da população com 15 anos ou mais, de 9,1% para pretos e pardos contra 3,9% para brancos, expondo a desigualdade das oportunidades também nesse tema. Sendo a situação mais grave para aqueles que residem no campo (20,7%). Ademais, a proporção de jovens brancos de 18 a 24 anos de idade que frequentavam ou já haviam concluído o ensino superior (36,1%) é quase o dobro da observada entre aqueles pretos ou pardos (18,3%). Figura 24: Dados sobre analfabetismo. 35 Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018. O levantamento de 2018 ainda revela que a proporção de pessoas negras de 18 a 24 anos de idade, com menos de 11 anos de estudo e que não frequentavam escola foi de 28,8%, enquanto a proporção de pessoas brancas na mesma situação era de 17,4%. Acerca dessa mesma faixa etária, 55,6% dos jovens negros puderam ser vistos cursando o ensino superior, contra a proporção de 78% de estudantes brancos. A diferença em relação a essa taxa pode ser explicada, justamente, pela parcela da população que não concluiu o ensino médio ou que o abandonou em razão da necessidade de se inserir no mundo do trabalho. No ano de 2018, 61,8% dos estudantes que precisaram entrar no mercado de trabalho após a conclusão do ensino médio eram pretos ou pardos. Figura 25: Dados sobre a taxa ajustada de frequência escolar. Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018. 36 Figura 26: Dados sobre frequência escolar. Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018. A desigualdade denunciada pelos dados, por si só, já pode ser considerada sob a perspectiva de violência racial, uma vez que, quando a sociedade nega e priva de oportunidades indivíduos, obedecendo a uma lógica racista, também perpetua sua condição de violência – conforme discutimos ao apresentar o conceito de racismo institucional. Trata-se de um fenômeno que constitui pano de fundo para outras violências infligidas à essa parcela da população brasileira. E se nos debruçarmos sobre os dados de violência fatal, chegaremos a conclusões alarmantes. Figura 27: Dados sobre a taxa de conclusão do ensino médio. Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018. As populações preta e parda, quando somadas, são as mais vitimadas por mortes violentas intencionais no país. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA 37 PÚBLICA, 2022), no ano de 2022, os negros representaram 77,6% das vítimas de homicídio doloso, 67,6% das vítimas de latrocínio, 84,1% dos mortos em decorrência de atuação policial e, na outra face da moeda, 67,7% dos policiais assassinados no período. Em termos comparativos, no referido ano a proporção de pessoas brancas vítimas de homicídio caiu 26,5%, enquanto esse índice para a população negra sofreu um aumento de 7,5%. Segundo o Atlas da Violência 2021, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), entre os anos de 2009 e 2019, a redução dos homicídios foi muito maior entre a população não negra. Houve uma redução de 15,5% entre negros e 30,5% entre não-negros. Figura 28: Nota sobre as vítimas de homicídio doloso no Brasil. Figura 29: Dados sobre a taxa de homicídios de negros e não negros. 2009 a 2019. Fonte: IBGE, Atlas da Violência (IPEA, 2021). Se acrescentarmos na análise o recorte de gênero, a perversidade dos índices se mantém: as mulheres negras são as mais assediadas (43,3%), as 38 mais vitimadas em estupros e estupros de vulnerável (52,2%), o maior percentual de vítimas de mortes violentas intencionais (70,7%) e de feminicídio (62%) (FBSP, 2022). Como já discutimos, tal disparidade estatística é um retrato nítido da vulnerabilidade socioeconômica da população negra do país, sustentada, mantida e potencializada por mecanismos institucionais e estruturais de discriminação racial. Juntos, fatores como os índices de pobreza, a baixa escolarização, o desemprego, as deficiências de políticas específicas (IPEA, 2021), bem como a reprodução de estratégias baseadas em critérios raciais e em preconceitos sociais tornam essa população o alvo preferencial das ações das instituições da justiça criminal, como a polícia (SINHORETTO; BATITUTTI MOTA apud IPEA, 2021), reforçando o quadro discriminatório. Os dados são claros. Se pararmos para uma breve análise, chegaremos à conclusão que mais se desejaria evitar: a de que vivemos sim em uma sociedade racista, que a todos os anos assiste à perpetuação de práticas discriminatórias e, consequentemente, ao aumento e reiteração da violência dirigida às pessoas pretas e pardas. O que podemos fazer em relação a essa triste realidade? Cabe a todos nós assumirmos uma posição antirracista, ou seja, contrária à perpetuação de práticas prejudiciais baseadas na cor da pele, que inviabilizam a cidadania de tantas pessoas. A escritora Djamila Ribeiro (2019), no livro “Pequeno Manual Antirracista”, oferece ao leitor uma importante perspectiva quanto a práticas norteadoras de uma conduta antirracista. Entre outros aspectos, ressalta a necessidade de nos informarmos sobre o racismo praticado em nosso país e conversarmos sobre o tema na família, na comunidade e no trabalho, bem como refletirmos sobre o racismo que está internalizado em nós mesmos e que é expresso, por exemplo, na nossa tolerância a expressões racistas como “ela é negra, mas é bonita” ou “negro de alma branca”. A seguir, conheceremos algumas leis que integram o rol de ações afirmativas no campo do Direito. Elas representam marcos legais nacionais e internacionais para coibir e punir crimes baseados no racismo, e resultam da luta antirracista do Movimento Negro e dos demais grupos e organizações pela superação da desigualdade. 39 UNIDADE 2 5. MARCOS LEGAIS DO ANTIRRACISMO “Ninguém nasce odiando o outro pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar.” (Nelson Mandela, “O longo caminho para a liberdade”, 1995) Figura 30: Recorte de matéria jornalista sobre o tratamento penal acerca do preconceito de raça ou cor. O primeiro diploma legal específico no Brasil a incluir a prática de atos resultantes de discriminação por raça ou cor entre as contravenções penais foi publicada em 3 de julho de 1951. Proposta pelo deputado federal Afonso Arinos (UDN-MG), cujo nome posteriormente apelidaria a lei, a proposição da Lei nº 1.390 se deu em razão do episódio de discriminação racial ocorrido em 1950, quando a mundialmente famosa bailarina norte-americana Katherine Dunham foi impedida de se hospedar no Hotel Esplanada, em São Paulo, enquanto fazia turnê no Brasil (WESTIN, 2020). 40 Figura 31: A bailarina Katherine Dunham em imagem extraída de https://blackthen.com/flash- black-photo-katherine-dunham-legends-dance-series/ (acesso em 04/02/2023). Antes de discutirmos de maneira mais detida esta e outras importantesleis com esse enfoque, precisamos lembrar que a história do enfrentamento institucional à discriminação racial no Brasil não começa, evidentemente, com a promulgação da Lei Afonso Arinos. Sejam as irmandades de escravizados e ex-escravidados do período colonial; o grupo de educação noturna e a atuação jurídica de gente como Luiz Gama (o “advogado de todos os tempos”, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil – [BRAUS; SANTOS; OLIVEIRA, 2020]); entre tantos outros, marcam uma luta que é centenária e historicamente farta. Parafraseando o antropólogo Kabenguele Munanga (2021), pode parecer que tudo nasce junto com as inovações políticas, mas não, para que ocorram as inovações políticas, foi (e segue sendo) necessária a atuação de gerações dos movimentos sociais negros. Se nos focarmos especificamente no período republicano (1889 – atualmente), perceberemos o surgimento (já no pós-abolição de 1888) de diversos grupos de cunho assistencialista, artísticos, culturais e de lazer voltados à população negra, conduzidos por pessoas negras. Barbosa (2020) assinala o surgimento do Centro Cívico Palmares, em 1926 na cidade de São Paulo, com um dos primeiros a, além desses aspectos culturais, pautar também a participação política de negros e negras brasileiros. Em resposta às teses eugenistas e de branqueamento populares no período (e que discutimos no Capítulo 2), surge também em São Paulo a Frente Negra Brasileira (1931), https://blackthen.com/flash-black-photo-katherine-dunham-legends-dance-series/ https://blackthen.com/flash-black-photo-katherine-dunham-legends-dance-series/ 41 que aprofunda e expande os temas encampados pelo Centro Palmares. Segundo algumas fontes (BARBOSA, 2020, p.14), a Frente chegou a contar com 200 mil filiados das mais diversas partes do país, com sedes em diversos estados. Em 1936, a Frente se converteu em um partido político, o primeiro partido negro do Brasil, dissolvido no ano seguinte com o início da ditadura getulista. Figura 32: Arte do Movimento Negro Unificado atualizando a capa do jornal da entidade (1991) que endossava a consciência e auto-estima da população negra (Extraído de MNU, s.d.a, s.p.). Mesmo que marcada por contradições, típicas sobretudo de movimentos com algum pioneirismo como foi a Frente Negra Brasileira, o grupo nasceu do choque de Aristides Barbosa, seu fundador, com o estado de miserabilidade e carestia dos negros na capital paulista. Essa mesma percepção atiçará a juventude quase quarenta anos à frente, na década de 1970. Foi uma década importantíssima para os movimentos sociais não só no Brasil, mas no mundo: desde o protesto dos jovens estudantes franceses em maio de 1968, aos processos de independência de diversos países africanos, passando pelos movimentos de direitos civis nos Estados Unidos, configuram um frame alignment dos interesses vocalizados por diferentes grupos sociais (RODRIGUES, 2020, p.75). No caso específico do Brasil, a efervecência cultural dos jovens visava “descobrir a negritude, assumir-se com orgulho e se 42 lançar aos protestos contra a condição de cidadão e cidadão de segunda classe” (BARBOSA, 2020, p.17). Formalmente, buscava-se o resgate da cultura negra, importante bastião de sobrevivência da identidade negra, reinserida em seu contexto histórico, filosófico e de defesa do grupo (SILVA, 2020). Essa “efervecência cultural” de que fala Márcio Barbosa (2020) ganhou mais e mais corpo à medida que se aproximavam os anos 1980 e a reabertura política dava seus primeiros sinais. Movimentos exclusivamente voltados à questão racial ou em que ela é um dos temas surgirão de norte a sul do país (RODRIGUES, 2020), e em certa medida culminarão com o surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978. Sobre o MNU, afirma o cientista social Cristiano Rodrigues: Sem negligenciar a pluralidade de identidades negras passíveis de serem politizadas, o MNU, já no seu ato de criação, tentou demonstrar como afro-brasileiros têm sido ao longo da história do país tratados como os outros, ainda que o discurso oficial de integração harmônica aponte para o lado oposto, e que as desigualdades sociais presentes no país poderiam – e deveriam – também ser traduzidas em termos raciais. (RODRIGUES, 2020, p.77) Essa não negligência à “pluralidade de identidades negras” de que fala Rodrigues pode soar contraditória com aquela que é uma das grandes conquistas do movimento, qual seja, o agrupamento sob a categoria “negro” de todos os brasileiros que possuem “na cor da pele, no rosto ou nos cabelos, sinais característicos dessa raça [negra]” (MNU, s.d.b, p.1). Longe de ser uma contradição, essa ação busca o reconhecimento, também de parte da vasta população mestiçoa brasileira, de seu lugar social como negros, e não eternas variações de “não-branco” que se colocavam como eufemismos de identificação (MUNANGA, 2020). Entendendo que todo esse esforço só encontra razão de ser na busca por uma sociedade livre de discriminação racial, o próprio Movimento encerra sua Carta de Princípios se afirmando “pela libertação do povo negro” e “por uma autêntica democracia racial” (MNU, s.d.b, p.2). Feito essa breve digressão temporal, podemos retomar a cronologia da legislação antirracista no Brasil. Como dissemos, a Lei nº 1.390/1951 (Lei Afonso Arinos) foi a primeira a criminalizar condutas discriminatórias. De acordo com ela, era considerada contravenção penal “a recusa, por parte de 43 estabelecimento comercial ou de ensino de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno, por preconceito de raça ou de cor”. Como as condutas de racismo eram consideradas contravenções, as penalidades previstas na Lei nº 1.390/1951 eram baixas. Dessa forma, durante os 37 anos de sua vigência, nenhuma pessoa foi presa em razão da prática de tais delitos. Apesar disso, a importância social da lei não pode ser diminuída, tendo trazido à tona o tema do racismo e o definindo como comportamento reprovável. Particularmente relevante foi a justificativa apresentada por Afonso Arinos, um deputado conservador, para sua propositura. Nela, o parlamentar ataca diretamente as ideias do racismo científico que, conforme já discutido, defendiam a hierarquização dos grupos humanos e sua plena separação. Escreveu o deputado: A tese da superioridade física e intelectual de uma raça sobre outras, cara a certos escritores do século passado, como Gobineau, encontra-se hoje definitivamente afastada graças às novas investigações e conclusões da antropologia, da sociologia e da história. Atualmente ninguém sustenta a sério que a pretendida inferioridade dos negros seja devida a outras razões que não ao seu status social. Urge que o Poder Legislativo adote as medidas convenientes para que as conclusões científicas tenham adequada aplicação (ARINOS apud WESTIN, 2020, s.p.) Em 20 de dezembro de 1985 a Lei nº 1.390 foi alterada pela Lei nº 7.437, que incluiu, entre as contravenções penais, a prática de atos resultantes de preconceito de raça, de cor, de sexo ou de estado civil. Em 1988, foi promulgada a Constituição Federal brasileira (CRFB), que estabelece a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito e tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. Tendo contado com a participação de representantes do Movimento Negro entre os constituintes, a Carta Magna trouxe entre seus objetivos basilares construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No artigo 4° da Constituição Federal há previsão de que a República Federativa do Brasil se rege em suas relações internacionais por diversos princípios, dentre eles o de repúdio ao racismo. Ademais, o art. 5º dispõe que 44 todos sãoiguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, e prevê que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Figura 33: Imagem sobre o tratamento constitucional de 1988 acerca do racismo. No ano seguinte, em 5 de janeiro de 1989, entrou em vigor a Lei nº 7.716, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. A lei estabelece penalidades para diversas situações de discriminação, inclusive práticas de incitação à discriminação ou preconceito, que serão estudadas a seguir. Portanto, essa é a lei que prevê o crime de racismo, isto é, a discriminação racial praticada contra uma coletividade e que reitera o entendimento do racismo como crime imprescritível e inafiançável. A Lei nº 7.716/1989 foi posteriormente alterada pela Lei n° 9.459, de 1997, que acrescentou a punição à discriminação e à incitação à discriminação por etnia, religião ou procedência nacional. A Lei nº 9.459/1997 ainda criou a injúria racial, um tipo qualificado de injúria no Código Penal. Neste ano, a Lei nº 14.532, de 11 de janeiro de 2023, realizou novas e importantes alterações na concepção criminal do racismo. Particular que discutiremos em pormenores mais adiante. Já no ano de 2003, a Lei nº 10.639 modificou a Lei de Diretrizes de Base da Educação (Lei nº 9.394/1996), introduzindo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas de ensino fundamental e 45 médio. O conteúdo programático acrescentou o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. Além disso, foi incluído no calendário escolar o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra” (artigo 79-A da Lei nº 9.394/1996). Figura 34: Imagem sobre o Dia da Consciênia Negra. No ano de 2009, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 992, que instituiu a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. O objetivo geral da referida política é promover a saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). São algumas das diretrizes previstas na mencionada portaria: • a inclusão dos temas Racismo e Saúde da População Negra nos processos de formação e educação permanentes dos/as trabalhadores/as da saúde e no exercício do controle social da saúde; • o reconhecimento de saberes e práticas populares de saúde, incluindo aqueles preservados pelas religiões de matrizes africanas; e • o desenvolvimento de processos de informação, comunicação e educação, que desconstruam estigmas e preconceitos, fortaleçam uma identidade negra positiva e contribuam para a redução das vulnerabilidades. 46 Em 20 de julho de 2010, a Lei nº 12.288 instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, “destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica”. O Estatuto trouxe diversos conceitos relacionados à temática, quais sejam: I – discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada; II – desigualdade racial: toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica; III – desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais; IV – população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga; V – políticas públicas: as ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas atribuições institucionais; VI – ações afirmativas: os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades. O Estatuto prevê que é dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, 47 empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais. Esta lei é considerada o principal marco legal para o enfrentamento da discriminação racial e das desigualdades estruturais de raça aqui estudadas. Trata-se de um instrumento para garantia dos direitos fundamentais desse segmento, especialmente no que diz respeito à saúde, educação, cultura, esporte e lazer, comunicação, participação, trabalho, liberdade de consciência e de crença; acesso à terra e à moradia; além dos temas da proteção, do acesso à justiça e à segurança. O quadro abaixo, retirado da cartilha São Paulo contra o Racismo: Aspectos Legais e Ações Afirmativas, apresenta alguns direitos previstos no Estatuto: Figura 35: Quadro sobre direitos previstos no Estatuto a Igualdade Racial. SAÚDE Art. 6º. O direito à saúde da população negra será garantido pelo poder público mediante políticas universais, sociais e econômicas destinadas à redução do risco de doenças e de outros agravos. EDUCAÇÃO Art. 11. Nos estabelecimentos de ensinos fundamental e médio, públicos e privados. É obrigatório o estudo da história geral da África e da história da população negra no Brasil, observado o disposto na Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996. CULTURA Art. 17. O poder público garantirá o reconhecimento das sociedades negras, clubes e outras formas de manifestação coletiva da população negra, com trajetória histórica comprovada, como patrimônio histórico e cultural, nos termos dos arts. 215 e 216 da Constituição Federal. ESPORTE E LAZER Art. 21. O poder público fomentará o pleno acesso da população negra às práticas desportivas, consolidando o esporte e o lazer como direitos sociais. ACESSO À TERRA Art. 27. O poder público elaborará e implementará políticas públicas capazes de promover o acesso da população negra à terra e às atividades produtivas no campo. MORADIA Art. 35. O poder público garantirá a implementação de políticas públicas para assegurar o direito à moradia adequada da população negra que vive em favelas, cortiços, áreas urbanas subutilizadas, degradadas ou em processo de degradação, a fim de reintegrá-las à dinâmica urbana e promover melhorias no ambiente e na qualidade de vida. 48 TRABALHO Art. 38. A implementação de políticas voltadas para a inclusão da população negra no mercado de trabalho será de responsabilidade do poder público, observando-se: - o instituído neste Estatuto; - os compromissos assumidos pelo Brasil ao ratificar a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965; - os compromissos assumidos pelo Brasil ao ratificara Convenção no 111, de 1958, da Organização Internacional do Trabalho(OIT), que trata da discriminação no emprego e na profissão; - os demais compromissos formalmente assumidos pelo Brasil perante a comunidade internacional MEIOS DE COMUNICAÇÃO Art. 43. A produção veiculada pelos órgãos de comunicação valorizará a herança cultural e a participação da população negra na história do País. Art. 44. Na produção de filmes e programas destinados à veiculação pelas emissoras de televisão e em salas cinematográficas, deverá ser adotada a prática de conferir oportunidades de emprego para atores, figurantes e técnicos negros, sendo vedada toda e qualquer discriminação de natureza política, ideológica, étnica ou artística. LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA E AO LIVRE EXERCÍCIO DOS CULTOS RELIGIOSOS Art. 23. É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Art. 24. O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana compreende: - a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins; - a celebração de festividades e cerimônias de acordo com preceitos das respectivas religiões; - a fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições beneficentes ligadas às respectivas convicções religiosas; - a produção, a comercialização, a aquisição e o uso de artigos e materiais religiosos adequados aos costumes e às práticas fundadas na respectiva religiosidade, ressalvadas as condutas vedadas por legislação específica; - a produção e a divulgação de publicações relacionadas ao exercício e à difusão das religiões de matriz africana; - a coleta de contribuições financeiras de pessoas naturais e jurídicas de natureza privada para a 49 manutenção das atividades religiosas e sociais das respectivas religiões; - o acesso aos órgãos e aos meios de comunicação para divulgação das respectivas religiões; - a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação e em quaisquer outros locais. SINAPIR Art. 47. É instituído o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) como forma de organização e de articulação voltadas à implementação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades étnicas existentes no País, prestados pelo poder público federal. Art. 50. Os Poderes Executivos estaduais, distrital e municipais, no âmbito das respectivas esferas de competência, poderão instituir conselhos de promoção da igualdade étnica, de caráter permanente e consultivo, compostos por igual número de representantes de órgãos e entidades públicas e de organizações da sociedade civil representativas da população negra. OUVIDORIAS PERMANENTES E ACESSO À JUSTIÇA E À SEGURANÇA Art. 54. O Estado adotará medidas para coibir atos de discriminação e preconceito praticados por servidores públicos em detrimento da população negra, observado, no que couber, o disposto na Lei no 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Art. 55. Para a apreciação judicial das lesões e das ameaças de lesão aos interesses da população negra decorrentes de situações de desigualdade étnica, recorrer-se-á, entre outros instrumentos, à ação civil pública, disciplinada na Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985. O capítulo IV do Estatuto estabelece as instituições responsáveis pelo acolhimento de denúncias de discriminação racial e apresenta os mecanismos institucionais existentes que têm como finalidade assegurar a aplicação efetiva dos dispositivos previstos em lei. Com isso, exigiu-se a instituição de Ouvidorias Permanentes em Defesa da Igualdade Racial no âmbito do Executivo e do Legislativo federais, além de implicar o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Poder Judiciário na garantia da igualdade de direitos para a população negra. Em especial, no art. 53 o Estado brasileiro se compromete a adotar “medidas especiais para coibir a violência policial incidente sobre a população negra”, bem como a realizar ações visando a “ressocialização e proteção da juventude negra em conflito com a lei e exposta a experiências de exclusão social”. 50 O Estatuto trouxe ainda diversas alterações na Lei nº 7.716/89, que serão abordadas a seguir. Em suma, o Estatuto da Igualdade Racial é a principal referência para enfrentamento ao racismo e a promoção da igualdade racial, ao atualizar e ampliar o alcance das leis antirracistas anteriores, além de embasar juridicamente políticas públicas direcionadas a diminuir as desigualdades raciais no acesso à plena cidadania. As políticas afirmativas existentes serão estudadas posteriormente. 51 6. CONDUTAS RELACIONADAS À RAÇA QUE SÃO CONSIDERADAS CRIMES NO BRASIL Figura 36: Reportagem sobre caso de racismo. Fonte: https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2022/03/05/empresaria-se-indigna-com-pedido- racista-de-cliente-por-aplicativo-mandem-entregador-branco-nao-gosto-de-pretos-nem- pardos.ghtml. Diariamente a imprensa divulga casos graves de racismo e injúria racial que ocorrem no Brasil, o que reflete o quão nossa sociedade ainda é racista. Neste módulo, serão trazidos os principais crimes referentes à temática, com a pena prevista em cada um deles. A proposta deste curso é apresentar aos alunos as condutas que são consideradas crimes no Brasil e não fazer uma análise jurídica dos mesmos. A Cartilha de Direitos Humanos e Combate ao Racismo da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul apresenta alguns exemplos de práticas que são consideradas racistas, quais sejam: • Apelidar negras e negros de acordo com as características físicas, a partir de elementos de cor e etnia da pessoa. • Inferiorizar as características estéticas de negras e negros. • Considerar uma negra ou um negro inferior intelectualmente, podendo até negar-lhe determinados cargos, funções ou empregos. • Desprezar seus costumes, hábitos e tradições, como na ofensa a religiões de matriz africana. • Duvidar da honestidade e competência da pessoa negra. https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2022/03/05/empresaria-se-indigna-com-pedido-racista-de-cliente-por-aplicativo-mandem-entregador-branco-nao-gosto-de-pretos-nem-pardos.ghtml https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2022/03/05/empresaria-se-indigna-com-pedido-racista-de-cliente-por-aplicativo-mandem-entregador-branco-nao-gosto-de-pretos-nem-pardos.ghtml https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2022/03/05/empresaria-se-indigna-com-pedido-racista-de-cliente-por-aplicativo-mandem-entregador-branco-nao-gosto-de-pretos-nem-pardos.ghtml 52 • Recusar-se a prestar serviços a negras e negros. • Fazer ou se divertir com piadas depreciativas da pessoa negra e, vestimenta e de suas pré-concepções sobre os papéis sociais ou profissionais que crê ser adequados a ela. A Lei nº 7.716/1989 prevê uma série de condutas que são consideradas crimes, quando resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Serão analisados os crimes previstos na referida legislação. • Artigo 3° da Lei nº 7.716/89 Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos. Pena: reclusão de dois a cinco anos. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, obstar a promoção funcional. Este tipo penal criminaliza a conduta que impede ou obsta o acesso no serviço