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Pierre, Erica e uma conversa sobre a história da arte brasileira Ericki Funes Gutierrez Pierre, Erica e uma conversa sobre a história da arte brasileira Ericki Funes Gutierrez 2015 Texto de Qualificação apresentado ao Programa de Pós-graduação em História - Mestrado Profissional da Universidade de Caxias do Sul como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Profa. Drª Eliana Rela If I had six hours to chop down a tree, I’d spend four hours sharpening the axe. - Autor desconhecido Sobre o autor: Ericki Funes Gutierrez possui graduação em Design pela Faculdade da Serra Gaúcha (2012), e atua na área do Design Gráfico. Mestrando em História pela Universidade de Caxias do Sul, o autor costuma se auto definir como um designer por formação, historiador por vocação e artista por teimosia. Apresentação Prólogo Capítulo 1 - Pierre, Erica, museus e a educação patrimonial Capítulo 2 - A arte indígena pré-cabralina e uma História eurocêntrica da Arte Capítulo 3 - A arte nos primeiros anos de Brasil, o Barroco e Aleijadinho Capítulo 4 - A arte erudita e a indústria cultural Capítulo 5 - A Missão Artística Francesa, Debret e o Academicismo brasileiro Capítulo 6 - A Arte, a História, o repertório e a finalidade disso tudo Capítulo 7 - O fim do Academicismo: o que precede a Arte Moderna no Brasil em meados do Sec. XX Capítulo 8 - O Modernismo brasileiro e suas consequências Capítulo 9 - Estética, alteridade e consciência histórica Capítulo 10 - A arte contemporânea, aura e Romero Britto Epílogo Referências 11 15 17 23 29 36 41 47 53 59 67 72 81 82 Apresentação Por que, afinal, História da Arte? O homem de negócios abre uma revista e encontra um anúncio de vodka em cores saturadas, composto principalmente de vermelho, preto, branco e figuras geométricas simples. Uma adolescente compra o novo álbum de sua banda favorita, entusiasmada também com o trabalho gráfico do pacote que ilustra um rosto feminino com a mão à boca, como que gritasse o nome da banda, em uma imagem preta e branca com apenas uma cor em destaque: o vermelho. Um casal vai ao concerto de uma famosa cantora pop, cujo principal diferencial no cenário musical mundial é seu visual pouco ortodoxo, surrealista, que compõem cenários e atmosferas oníricas e impactantes. Os cenários acima são breves exemplos de que estamos cercados pela História da Arte, mesmo quando não estamos conscientes disso. E essa carga faz muita diferença na forma como consumimos qualquer produto ou linguagem visual. Baseada em Salvador Dali, a artista pop agrega para si e para sua persona um valor extremamente poderoso. Nenhuma linguagem visual representa a Rússia como as cores chapadas e a tipografia angulosa do seu Construtivismo. Há muito tempo a História não é mais a mesma. Ao longo dos tempos, através de diversas transformações no pensamento acadêmico e social, a História vem transformando-se, aos poucos despindo seu surrado e conhecido casaco composto de datas, nomes e acontecimentos heróicos. Tal indumentária serviu por muito tempo, porém, sob uma ótica atual, pode ser considerada desatualizada. A História hoje veste cores diferentes e tecidos mais intrincados. Costuras complexas, que cobrem diversos ângulos, produzem uma nova roupagem para a disciplina, que busca aproximar seus conteúdos com a realidade do século XXI. Passou-se a formular diferentes perguntas. Ao invés de simplesmente conhecer o que aconteceu, o historiador e o leitor possuem maior interesse no como, nos porquês. O singular passou a fazer parte do discurso da História, a Peça de Marketing da vodka russa Stolichnaya., 2007 Todo o marketing da marca Stolichnaya baseia-se fortemente no Construtivismo russo, movimento artístico que foi principalmente influenciado pelo Futuris- mo europeu das primeiras décadas do século XX e que surgiu como uma forma de linguagem direta dentro de uma Rússia recém saída da revolução bolchevique. Através dessa abordagem, a marca busca mostrar um diferencial, identificando -se enquanto um produto verdadeiramente russo. Derrote os brancos com a cunha vermelha. El Lissitsky, 1920 Os cartazes no construtivismo russo utilizavam-se amplamente das formas geométricas e das cores chapadas, principalmente o preto, branco e vermelho, por dois motivos: primeiro, por sua força e impacto visual, mas também pela facilidade e menor custo de reprodução: cartazes com menos cores poderiam ser impressos em maior tiragem. 11 subjetividade passou a dar as cartas nas mais diferentes análises. O cotidiano do pequeno fazendeiro tornou-se tão importante quanto as batalhas vencidas por cavaleiros e reinos distantes. Apesar disso, a História da Arte parece muitas vezes carecer do mesmo cuidado com o seu guarda-roupa. Ao contrário de sua parente próxima, a História da Arte habituou-se a ser ensinada e apreendida em sua forma mais datada e, pois sim, maçante. Professores e alunos mastigam uma disciplina servida em pílulas que encarceram enormes conceitos e amplas redes de relações em celas individuais. Os movimentos artísticos, constantemente apresentados cronologicamente, espremem um pequeno número de artistas em um punhado de páginas, sendo que muitas vezes esses artistas possuem muito pouco em comum em suas obras. Ainda assim, habituou-se a apresentar essas obras em uma lista de ícones a serem admirados, absorvidos e, logo em seguida, deixados de lado, pois o próximo capítulo não lhes menciona. Como se cada momento histórico tivesse uma data objetiva de início e término. Imagine o artista, ao acordar em uma manhã cinzenta e modorrenta, após coçar a barba, declarar ao mundo: - A partir de hoje, não se pinta mais como pintamos até agora, nosso movimento acabou. Devemos mudar nossa arte a partir desse dia, e desse dia apenas. Parece óbvio pensar que, se hoje as mudanças no pensamento vigente acontecem através de longos processos, muitas vezes subjetivos, não há motivos para imaginar que no passado seria diferente. Ao longo da história, tais transformações subjetivas aconteceram igualmente aos poucos, resultado da acumulação de pequenas alterações pontuais, aqui e acolá, que culminam em uma revolução intelectual que pode ser vista apenas em retrospecto, olhando-se para trás. Vivemos em um mundo composto por marcas e produtos, estímulos sensoriais repletos de carga simbólica que fazem parte das vidas de todos nós. Atualmente, pode-se encontrar uma plenitude de exemplos de linguagens visuais profundamente inspiradas no passado, e essa inspiração atribui uma imensa quantidade de valores implícitos na recepção dessas mensagens visuais. E isso não se aplica apenas às artes visuais. A música é constantemente influenciada por antigos ícones e momentos importantes de seu passado. A frequente revisitação aos anos 70 e 80 na música do século XXI não é coincidência: buscando referências no que já passou, a Arte reinventa-se, Capa do album You Could Have Done So Much Better, da banda Franz Ferdinand. 2005 É visível a influência do passado nas linguagens visuais do mundo contempo- râneo. A capa do segundo álbum da banda escocesa é uma releitura da obra Knigi, de Alexandr Rodchenko, de 1924. Knigi. Alexandr Rodchenko, 1924 Peça de propaganda para o governo soviético que buscava incentivar a educação, a trabalhadora grita, confinada em um círculo, “Knigi” (livros), com violência, aos trabalhadores do país. A fotografia retrata uma trabalhadora da cidade, como que anunciando ofertas na feira. A forma como o artista representa a voz dela, porém, simula o impacto de uma bala de revolver. 12 criando novas identidades que entram em harmonia com as demandas da atualidade. O fato é que estamos cercados de referências ao passado. É preciso conhecer o que existe para imaginar o novo e avançar em direção ao desconhecido. O profissional criativo precisa compreender o papel da História da Arteno seu fazer profissional, uma vez que a o mercado hoje exige o aporte de muitas disciplinas fundamentais. Nenhum profissional completo sustenta- se apenas em uma área do conhecimento: a interdisciplinaridade gera no indivíduo a capacidade de adaptar-se a diferentes realidades e circunstâncias. A adaptabilidade é uma competência necessária à vida em sociedade e à atividade profissional. O verdadeiro profissional tem a mente aberta à interdisciplinaridade, agregando ao seu repertório pessoal sempre mais conhecimento. A adaptabilidade é também uma competência necessária à História da Arte e seus professores. Está mais do que na hora de abandonar esses trajes velhos e surrados, e abraçar uma nova vestimenta que leve em conta as necessidades e expectativas do público para o qual se leciona. O mundo contemporâneo não tem tempo para conhecimentos abstratos e inaplicáveis. Relacionar o que se estuda com o que se vive é um quesito básico para um processo de ensinagem1 funcional e proveitoso. É para este leitor que este livro foi escrito. Tanto para o acadêmico que espera mais da História da Arte, como para o profissional que busca abraçar as oportunidades e a interdisciplinaridade no seu dia a dia. Para o educador que pode encontrar nele uma forma de aproximar-se do seu aluno, e para o entusiasta que busca envolver-se com a Arte e deixar-se levar pelos devaneios que apenas a linguagem artística pode provocar, produzindo suas próprias interpretações acerca da Arte e da sua presença no nosso cotidiano. O propósito desse livro é servir como uma introdução a diversos temas da História da Arte brasileira através de uma linguagem simples e, pretende-se, envolvente. A intenção é apresentar constantemente relações entre artistas, obras e movimentos com o tempo em que vivemos, trazendo para a realidade do leitor os conceitos apresentados aqui. Além disso, a ideia desta obra é facilitar esse contato inicial do leitor que possui interesse no assunto, porém não está habituado ou disposto a empreender pelo muitas 1 Ensinagem é um termo cunhado pela pesquisadora Lea das Graças Anastasiou, usado para indicar uma prática social complexa efetivada entre professor e aluno, englobando tanto a ação de ensinar quanto a de apreender, consciente para o enfrentamento na construção do conhecimento escolar. A ensinagem resulta de ações dentro e fora da sala de aula, superando o simples dizer do conteúdo por parte do professor. (ANASTASIOU, 2004) Em alguns shows de sua turnê realizada em 2009, a cantora pop Lady Gaga apresentou- se com um visual e um cenário inspirados diretamente em obras surrealistas de Salvador Dali. É possível ver a influência direta nas longas pernas instaladas no piano e no banco, com mais de 6 metros de altura. A Tentação de Santo Antonio. Salvador Dali, 1946. Musée Royaux des Beaux-Arts, Bruxelas - Bélgica. Como em muitas obras de Dali, a imagem toma curso no mundo dos sonhos, onde as criaturas que amedrontam Santo Antônio são desproporcionais, sua força e maldade muito maiores. 13 vezes excessivamente complexo mundo da História acadêmica que permeia a bibliografia da Historia da Arte. A presente obra está dividida em capítulos curtos, que podem ser lidos separadamente quando houver interesse em assuntos pontuais. Porém, é inevitável que a leitura completa da obra produza outras relações de conhecimento e uma diferente experiência de leitura. Alguns capítulos tratam de momentos da história da arte brasileira de forma cronológica, enquanto outros trabalham conceitos teóricos da Arte, da História e da sociedade. Essa estrutura foi pensada unicamente para servir ao propósito de ilustrar como a História da Arte não deve ser isolada em movimentos e estilos separados uns dos outros, mas sim como uma ampla rede de relações, onde cada pequeno fato influencia no seu tempo e no futuro. Além disso, ao fim de cada capítulo há uma lista de referências bibliográficas e audiovisuais para o leitor que busca ampliar seus conhecimentos e seu repertório acerca dos assuntos tratados naquele capítulo. Todos os vídeos indicados nessas sessões estão disponíveis livremente na internet, ao alcance de qualquer pessoa que os procurar. É importante frisar que, apesar de ficcionais, os diálogos, nomes e locais presentes nesta obra tratam de assuntos, obras e artistas históricos. Diversas informações serão assinaladas ao longo do texto para que, caso o leitor possua interesse, encontre facilmente mais informações acerca daquele assunto e sua fonte histórica ao final do livro. Assim sendo, esta obra aborda uma ampla gama de conceitos, obras de arte e artistas, porém, por motivos óbvios, não se estende ou se aprofunda além do necessário. Então convoco a você, leitor, para uma viagem pela História da Arte um tanto quanto diferente, porém com um final conhecido. Tomaremos o caminho mais longo e, felizmente, prazeroso, afinal, se nossa jornada é tão importante quanto o destino, nada mais justo que a aproveitemos em seus detalhes. Ao final dessa empreitada, o importante é que possamos ver a História da Arte em roupas novas. O autor 31/05/2015 14 O clima tempestuoso, o céu cinzento e a chuva forte que caía sobre as calçadas da cidade grande mais pareciam uma metáfora sobre o estado de espírito de Pierre. O homem havia acabado de sair de uma reunião nada animadora com seu editor. A pressão para lançar um novo livro agora estava definitivamente lhe atacando. Pierre observava a chuva pesada sentado ao volante do seu carro, parado no estacionamento da editora, refletindo sobre o que fazer em seguida. Havia recebido um ultimato: ou apresentava um rascunho até o final da semana, ou perderia o vínculo com sua editora. Pierre pensava que, após tantos anos de uma relação amigável com seu editor, ele fosse ser mais complacente quando, depois de seis meses de espera, Pierre ainda não tinha nada para lhe apresentar. Seu bloqueio criativo era um problema. Romancista, Pierre estava finalmente, após mais de quinze anos de dedicação à literatura, recebendo atenção da mídia, criando uma base de fãs e, consequentemente, tendo algum retorno financeiro de suas obras. Isso tudo, porém, aumentava a demanda e a pressão para que novos lançamentos acontecessem com maior frequência. O homem odiava essa lógica de mercado. - Vá se inspirar! – dizia o editor, zangado, durante a reunião, como se fosse a coisa mais simples do mundo. – Vá ler um livro, ou dois, ou dez! Vá a um museu, ou um parque, ou um bar! Vá viver, e me traga uma história que valha a pena ser contada. Entretanto, mesmo se esforçando como nunca, dessa vez, Pierre parecia incapaz de escrever. Nada do que rabiscava lhe deixava minimamente contente, e, durante os últimos cento e oitenta dias, debateu-se inutilmente entre ideias mortas e personagens enfadonhas, nada que lhe satisfizesse enquanto artista, ou mesmo enquanto ser humano. Pierre escrevia ficção, mas buscava imbuir sua obra de algum valor teórico, humano, reflexivo. Seus livros discutiam as regras não escritas que regem as sociedades, os comportamentos que são determinados por muitos outros elementos, além da própria vontade individual. Pierre escrevia sobre seres humanos que escreviam sua própria história, porém cercados por um mundo complexo, real e, por isso, um tanto opressivo. Moveu os olhos pela rua movimentada, os carros zunindo de um lado a Prólogo 15 outro, a cidade pulsando caos e barulho na hora do rush. Suspirou, e ligou o rádio. Uma melodia dos anos oitenta que cantava a solidão e o amor invadiu o carro repleto de papéis espalhados pelos assentos, e o escritor achou irônico. - Será que todas as pessoas que escrevem sobre o amor possuem um amor para escrever a respeito? – Perguntou em voz alta, para ninguém. Tamborilou com os dedos no volante, perdido em devaneios, até a música chegar ao fim. Então, como se saísse de um transe, coçou os olhos por debaixo dos óculos. - Bom, é melhor seguir o conselhoe ir viver um pouco. Ligou o motor do carro, e partiu lentamente em direção a um lugar de que gostava muito: uma enorme galeria de arte. 16 - Não é interessante a arte brasileira? A pergunta tirou Pierre de seus devaneios. Perdido em pensamentos enquanto seus olhos passeavam sem muito foco pelas obras de arte brasileira da galeria, a voz feminina o acordou para o mundo real. Sem que ele sequer percebesse, a mulher havia parado a seu lado, a observar a mesma obra, com olhos analíticos e profundos. O museu estava relativamente vazio, o que dava bastante espaço para contemplações. Apesar do clima tempestuoso do lado de fora da galeria, o silêncio nos corredores e salões era sereno. Uma mulher de olhos curiosos lhe sorria, ao que Pierre rapidamente percebeu ser uma pergunta educada de alguém que claramente buscava, de modo simpático, iniciar uma conversa. Sorriu, assentindo. - Acredita que não sei muito sobre a arte brasileira? – respondeu com uma pergunta. – Admito que gosto muito de arte, mas, por circunstâncias da vida, acabei me concentrando mais nas produções estrangeiras. A mulher sorriu. - A história da arte brasileira é repleta de coisas fascinantes. Uma pena que a maioria dos brasileiros não saiba disso – ela continuou, com um sorriso como que irônico. – Uma obra de arte como essa, em um museu europeu, produzida por uma tribo milenar europeia, provavelmente receberia milhares de visitantes brasileiros todos os anos. Entretanto, aqui está ela, amargando um quase anonimato. Um sinal de alerta imediatamente acendeu-se na mente de Pierre. “Essa conversa tem potencial para ser longa”, pensou de imediato. “Vamos ver o quanto ela está disposta a discutir.” - Bem, penso que essa é uma questão um tanto quanto complexa – começou ele. – É muito fácil colocar a culpa da menor influência do cenário artístico contemporâneo brasileiro em uma “síndrome de vira-latas”, a famosa teoria de que o povo brasileiro prefere consumir o que é estrangeiro. Entretanto, penso que esse fenômeno que você cita está muito mais relacionado à forma como consumimos a cultura como um todo, desde que nascemos, e como lidamos com a cultura e a arte no nosso dia a dia. Por um momento Pierre pensou ter passado dos limites de uma conversa informal, complicando demais o assunto. “É por isso que você não tem uma namorada”, pensou, rindo de si mesmo. Entretanto, ao contrário do que ele esperava, a mulher mostrou-se interessada. Capítulo 1 - Pierre, Erica, museus e a educação patrimonial 17 - Como assim? – Ela perguntou, seus grandes olhos piscando. Pierre respirou aliviado, sentindo como se uma porta se abrisse, e, com um sorriso, continuou. - Bem, eu acredito que existe no mundo uma série de estruturas hipotéticas que podem interferir, ou até mesmo dirigir a ação dos indivíduos. Essas estruturas são construídas socialmente, através da repetição. Para explicar melhor, pense que ao longo do tempo, as pessoas acostumam-se a gostar ou desgostar de certas coisas, e a repetição disso, ao longo de gerações, cria uma espécie de regra não escrita que influencia no comportamento das pessoas.2 - Então você quer dizer, basicamente, que os gostos das pessoas são definidos pelo contexto em que elas se encontram? - Mais ou menos isso. Penso que o gosto e as práticas de cultura de cada um de nós são resultado de um amontoado de condições específicas. É através da socialização, dos nossos amigos, da nossa família, do que consumimos na mídia, do que aprendemos ou deixamos de aprender na escola... Entre muitas outras variáveis. Tudo isso compõe o gosto das pessoas. - É uma boa teoria – ela sorriu. Depois, completou de modo súbito – O mundo contemporâneo possui muita arte, talvez até demais. Mas o Brasil sempre esteve atrasado com relação à Europa, em questão de tempo mesmo. A arte europeia possui muito mais tempo de vida, e o continente aprendeu a valorizá-la de uma maneira que ainda não fomos capazes de emular. O turismo na Europa, apesar de não parecer, baseia-se principalmente na História e na Arte, duas “disciplinas” que não são as favoritas do público em geral, mas que funcionam muito bem nesse aspecto mercadológico dos museus e galerias. - O velho conflito entre arte popular e arte erudita, não é mesmo? – Pierre suspirou. - Pois é, o velho conflito – ela riu. Pierre percebeu que ela sorria muito, e às vezes não sabia dizer se eram sorrisos honestos ou irônicos. Uma pequena pausa, e, após olhar para um par de cadeiras postadas em frente à obra que iniciara a conversa entre os dois, a mulher aproximou-se e estendeu a mão em um cumprimento. - Meu nome é Erica. Gostaria de sentar e conversar um pouco? - Claro. Sou Pierre, a propósito – disse ele, sentando-se com um sorriso. Pierre adorava discussões do gênero. Era do tipo de pessoa que não se contentava com apenas um ponto de vista sobre qualquer coisa que fosse. 2 SETTON, 2010 18 Para ele, tudo precisava ser debatido, explorado, problematizado. E quem sabe uma conversa sobre arte com uma estranha pudesse lhe trazer a inspiração que faltava para seus romances. Erica sentou-se a seu lado, visivelmente animada. - Você sabe quando surgiram os primeiros museus? – Ela perguntou. - Até onde sei, havia espécies de museus na Grécia antiga, não? - Em verdade a origem da palavra museu vem do grego mouseion, que denominava o templo das nove musas, construído em Alexandria, no século III a.C. Mas o mouseion era algo muito diferente do que se conhece hoje por museu, embora possa se encontrar semelhanças fundamentais. A Casa das Musas tinha como objetivo proteger todas as obras humanas contra o esquecimento, garantindo a transmissão dos saberes filosóficos, científicos e artísticos às próximas gerações.3 - Como a História, de Heródoto – Pierre ponderou -, cujo principal objetivo era o mesmo: proteger os feitos humanos do esquecimento. Os gregos não possuíam humildade na hora de definir seus objetivos. Erica riu. - De fato. Mas os museus públicos nos modelos de hoje surgiram apenas no século XIX, a partir da Revolução Francesa. As instâncias revolucionárias de então instituíram procedimentos de preservação do patrimônio francês, uma vez que, após a Revolução, os bens do alto clero, da burguesia e da Coroa eram vistos como símbolos da opressão de outrora, e sofriam com a depredação e o ódio.4 Assim, instituíram-se aparatos para a preservação e gestão desses “bens recuperados pela Nação”, afim de que o povo não mais tivesse ódio desses símbolos, mas os abraçasse como parte de sua história, incentivando o civismo e o conhecimento político no país. - O Museu do Louvre nasce aí, não? – Pierre perguntou. Ele sabia um pouco sobre História da Arte, embora não tanto quanto a mulher que havia acabado de conhecer e já estava lhe dando uma aula. Porém, ele estava realmente interessado, tanto na história quanto na mulher que a trazia. Erica parecia muito inteligente, e sorria muito. Pierre adorava sorrisos. - Exatamente. A pretensão inicial do novo governo francês era a instituição de grandes museus em todo o território nacional, porém esse objetivo mostrou-se inviável. O Louvre foi a única grande instituição a nascer com esse propósito, embora as políticas patrimoniais adotadas pela Revolução tenham sido responsáveis pela preservação de inúmeras obras e prédios espalhados 3 ABUD, 2010 4 JULIÃO, 2006 19 pela França que teriam sido destruídos não fosse o trabalho de conscientização patrimonial realizado naquele momento. O Palácio de Versalhes é um exemplo disso, uma vez que muitos revolucionários queriam vê-lo em ruínas por sua relação direta com o Antigo Regime. Felizmente o palácio foi transformado em escola e museu.5 - E a partir de então, os museus com esse objetivo cívico-educativo começaram a se espalhar pela Europa e, posteriormente, pelos outros continentes – concluiu Pierre. – Mas você realmente acha que essa questão temporal, o simples fato de que os museus surgiram antes lá, éo que faz com que os museus de História e de Arte sejam mais visitados na Europa que no Brasil? Quer dizer, é uma visão um tanto quanto simplista, a meu ver. Muitos outros campos estão envolvidos nessa questão. O turismo, os investimentos dos governos na área patrimonial, a própria educação patrimonial e os hábitos culturais particulares... - Mas concordamos que, na Europa, o consumo de museus históricos e artísticos é definitivamente maior que no Brasil? – questionou Erica, em um tom conciliador. - Definitivamente. Lembro-me de uma pesquisa recente acerca dos hábitos culturais do brasileiro que apresentava resultados alarmantes. Segundo ela, mais da metade dos brasileiros não pratica atividade cultural, nunca assistiu uma peça teatral, um espetáculo de dança ou mesmo sequer foi a uma exposição em um museu.6 Isso mostra como esse debate é importante. Qual é o público dos museus no Brasil? Quem os frequenta, quem não os frequenta, e, mais importante, por que não o faz? - Penso que essas questões são muito importantes para diversos segmentos da nossa sociedade, - Erica tomou a palavra rapidamente – não apenas pensando no âmbito cultural, como também na própria questão econômica. O Brasil possui tanto potencial turístico quanto qualquer país da Europa. Possui obras tão qualificadas, e uma história tão rica quanto qualquer lugar do mundo. Ainda assim, quanto desse potencial é desperdiçado devido à falta de investimentos, tanto do Poder Público quanto da esfera privada? Existem inúmeros pequenos museus ao longo de todo o território nacional, mas o investimento público é tão pouco que eles pouco produzem, em um sentido financeiro. As estatísticas baixíssimas de visitantes de museus ao longo de todo o Brasil, salvo exceções pontuais de alguns grandes museus e galerias em grandes centros urbanos como São Paulo e Salvador, apenas 5 PAYNE, 1919 6 Pesquisa divulgada em Abril de 2014, realizada pelo Sesc – Serviço Social do Comércio, em conjunto com a fundação Perseu Abramo. Disponível no site http://www.sesc-se.com.br/noticias/752-pesquisa-inedita-revela-habitos-culturais-do-brasileiro. Último acesso em 20/12/2014. 20 demonstram que as instituições falham em obter maior abrangência. Além disso, a educação patrimonial no Brasil possui tão pouco incentivo que esse quadro não tende a mudar tão cedo. - Mas isso vem mudando aos poucos. – interrompeu-a Pierre – Nos últimos anos, através dos esforços da comunidade acadêmica, vem se produzindo muitas reflexões e trabalhos envolvendo a questão da educação patrimonial no Brasil7 , além de iniciativas, muitas vezes limitadas, é verdade, mas bem intencionadas, nos próprios museus, para ampliar sua abrangência de visitantes e envolver as comunidades locais em torno da educação patrimonial.8 - Até porque – concluiu Erica – para que realmente serve um museu se não para incentivar a educação patrimonial? Essa área do conhecimento tem um imenso potencial transformador para as sociedades. A prática museológica deve ser motivação e estímulo para a construção do conhecimento, não apenas complementando o ensino escolar, mas também abraçando sua utilidade social, possibilitando que as pessoas tenham contato com a história e a cultura de uma maneira tal que nenhum outro veículo poderia proporcionar. A reflexão pessoal é muito importante para que qualquer pessoa possa perceber o impacto que a memória e a história possuem sobre si mesma, mesmo que muitas vezes não perceba. A criação de um conhecimento através da identificação e da atuação sobre o que se investiga é chave para produzir efetivamente esse conhecimento. Um breve silêncio surgiu, e Pierre e Erica sorriram. - Desculpe, estou falando demais? Às vezes penso que sou crítica demais. Ou talvez pessimista – perguntou ela, com um sorriso despreocupado. - De forma alguma – foi a vez de Pierre rir. – Na verdade, estava pensando agora mesmo no quanto sua companhia é agradável para uma visita a essa galeria. O que acha de fazermos um passeio pelo prédio, para conversarmos um pouco mais sobre Arte? Parece que a exposição de arte brasileira foi montada de modo a formar uma viagem cronológica, pode ser uma boa oportunidade para que eu finalmente conheça mais sobre esse assunto. E você parece saber muito sobre a arte brasileira, então estou ansioso para ouvir o que você tem a dizer. Pierre pensou que isso parecia uma boa ideia, e estava genuinamente ansioso. Erica parecia uma pessoa intrigante. O escritor sentia-se prestes a fazer uma grande viagem. Ela assentiu, ainda sorrindo. 7 FIGURELLI, 2011 8 MAGALHÃES, 2013 21 - Será um prazer. Vejo que você gosta de conversar tanto quanto eu – disse ela, levantando-se da poltrona. - Ah, você não faz ideia – Pierre sorriu, pondo-se em pé. Para conhecer mais: Sou Jovem, Meu Patrimônio é o Mundo. Vídeo Documentário, 2010. 10 min. Curta produzido coletivamente por jovens da América Latina que participaram do Fórum Juvenil do Patrimônio Mundial, em julho de 2010, acerca do que é considerado Patrimônio da Humanidade. Museu em Movimento. Série de vídeos, 2012. Episódios de 30 min. Série de 5 programas produzidos pela Univesp TV sobre a origem, o desenvolvimento, as funções dos museus e sua relação com a Educação. ABUD, Kátia Maria. Ensino de História. São Paulo: Cengage Learning, 2010. P. 132. FIGURELLI, Gabriela Ramos. Articulações entre educação e museologia e suas contribuições para o desenvolvimento do ser humano. Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimonio – PPG-PMUS Unirio | Mast – Vol. 4 nº2. 2011. P. 111. JULIÃO, Letícia. Apontamentos sobre a história do museu. 2006. Disponível no site: http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/Museus/File/ cadernodiretrizes/caderno-diretrizes_segundaparte.pdf. Último acesso em 20/11/2014. MAGALHÃES, Leandro Henrique. Educação e ação cultural em museu. Revista Memória em Rede, Pelotas, V.3, n.9, Jul./Dez. 2013. PAYNE, Francis Loring. The Story of Versailles. New York:Moffat, Yard & Company, 1919. SETTON, Maria da Graça Jacintho. Uma introdução a Pierre Bourdieu. 2010. Disponível em http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/uma-introducao- a-pierre-bourdieu/. Último acesso em 25/06/15 22 Capítulo 2 - A arte indígena pré-cabralina e uma História eurocêntrica da Arte Muiraquitã. Datação incerta. Peça de Jadeíta, original do estado do Amazonas. Ampliação do original. São Paulo, Museu Paulista da USP. Acredita-se que a tradição de produzir muiraquitãs, amuletos de significado místico, tenha se originado na região do Baixo Amazonas, desde muito antes da chegada dos europeus às terras que viriam a ser o Brasil em 1500. Produzidos normalmente a partir de jade ou madeira, retratando rãs, peixes, tartarugas ou figuras humanas (embora esses fossem mais raros), esses amuletos eram produzidos com o intuito de proteger o seu portador de males, além de aumentar a fertilidade da mulher que o possuísse. É possível perceber, através da riqueza de detalhes da peça, que os povos indígenas pré-cabralinos também possuíam um refinamento técnico em suas peças. A simetria era um valor estético muito apreciado, o que pode ser visto também nos padrões de pinturas corporais indígenas. Pode-se analisar a perspectiva impossível da peça do ponto de vista técnico. Como as pinturas egípcias, famosas por apresentarem figuras humanas vistas de perfil e, ao mesmo tempo, de frente, este muiraquitã é produzido de modo semelhante, em que se pode ver diversos ângulos do animal representado em uma única vista. A perspectiva tridimensional na representação artística não era plenamente desenvolvida entre os povos que habitavam o Brasil antes da chegada dos europeus. A peça demonstra como a arte manual era vista nas comunidades indígenas que habitavam o Brasil durante o período pré-cabralino: todas as produções dos indivíduos serviam a um propósito social prático, sendo o misticismo um deles. 23 - Ao observar uma peçaassim, como esse muiraquitã, como não ficar fascinado pela arte indígena do Brasil pré-colonial? – perguntou, em um tom hipotético, Erica. Pierre analisava a peça com atenção redobrada. - É comum pensar que a arte no Brasil inicia-se apenas com o Barroco trazido pelos colonizadores europeus, mas a verdade passa longe disso, não é mesmo? – disse, sem tirar os olhos da peça. – No entanto, a arte indígena possui limites, tanto filosóficos quanto cronológicos, muito difíceis de serem precisados por nós. - Especialmente em se tratando da expressão “pré-história” – respondeu a mulher. – Habituou-se chamar de pré-história todo o período que precede o surgimento da escrita, normalmente possuindo uma datação aproximada em 3500 a.C. Entretanto, os povos americanos não possuíam sistema de escrita quando da chegada dos colonizadores europeus no continente, o que torna as barreiras muito mais difíceis de serem precisadas quando traçamos a história desses povos. - Entendo. Imagino que os poucos registros que existam sobre a arte indígena brasileira pré-colombiana acabem se misturando com os registros pré-históricos de arte rupestre encontradas em sítios arqueológicos, muito mais antigos, não é mesmo? - Isso. E apesar de amplamente utilizado, o termo pré-história carrega um significado eurocêntrico um tanto quanto prejudicial para qualquer discussão – ponderou Erica. – Ela nos induz a pensar que os povos sem escrita não possuem história, ou de que, de alguma forma, sua história é inferior ou pouco relevante. Por isso o termo mais aceito atualmente para designar o período pré-colonial brasileiro é período pré-cabralino.9 Entretanto, mesmo essa designação é ampla demais: ela abarca, aproximadamente, desde 60.000 a.C. até 1500 d.C., a data da chegada dos portugueses ao continente americano. E como muitas peças pré-cabralinas não possuem datação, as fronteiras cronológicas no estudo das artes indígenas brasileiras ficam ainda mais borradas. Ela continuou: - Mas isso é muito importante para que essa perspectiva eurocêntrica que se habituou a ter sobre a história e sobre a arte venha se transformando aos poucos. Tratar das questões acerca da arte indígena brasileira torna muito claro que a história do Brasil está muito ligada à história do resto do mundo, e nossas raízes são muito mais profundas do que se costuma pensar. A chegada 9 CUNHA, 1992 Exemplos de padrões da pintura corporal indígena. Dada a amplitude dos povos e diversidades em suas culturas, é impossível atribuir um senso de unidade nas produções indígenas pré-cabralinas, embora manifestações em pintura corporal, palha trançada e cerâmica são muito expressivos. A pintura corporal é uma das mais conhecidas formas de representação esté-tica da cultura indígena brasileira, e, apesar do conceito de arte como conhecemos ser estranho aos povos que habitavam o Brasil antes da chegada dos europeus, ela possuía uma função social e ritualística muito definida, assim como toda e qualquer produção artística dos povos pré-cabralinos. 24 Pinturas Rupestres. Aproximadamente 10.000 A.C. Sitio arqueológico Toca do Boqueirao da Pedra Furada, no Parque Nacional da Serra da Capivara, Piaui. dos europeus ao continente americano não representa o início de nossa história, nem de nossa produção artística. Pierre sorriu. Gostava do modo como Erica pensava. Ela valorizava coisas que, para outros, não eram tão claras assim. - Gosto de observar o quanto a arte pré-cabralina influenciou e influencia até hoje a produção visual brasileira – ele comentou. – É muito comum que temas como a tão falada “brasilidade” sejam representados por cores, formas e símbolos diretamente relacionados à produção artística indígena brasileira. - Tanto na moda quanto na publicidade, utiliza-se muito a influência indígena para evocar o “espírito brasileiro” em um determinado produto ou peça gráfica. Um uso clássico do simbolismo histórico para atribuir um significado abstrato a alguma coisa, especialmente para usos econômicos – Erica continuou, com um certo desgosto na voz. – A publicidade e o design brasileiros dão a impressão de que toda a identidade brasileira pode ser representada por elementos indígenas e tropicais, florestas, frutas... A Amazônia tornou-se produto de exportação. Pierre concordou com a cabeça, mas apenas parcialmente. - É verdade. Porém, embora haja muito mais no Brasil, é inegável que esses elementos são muito importantes para a nossa famosa identidade nacional. A Amazônia é patrimônio de todos os brasileiros, mesmo dos que nunca se aproximaram de uma floresta. A influência da arte indígena está nos padrões de estampas que a moda nacional produz, está nas cores e nas marcas. São elementos que fazem parte da nossa sociedade, e, direta ou indiretamente, interferem em nossos hábitos e nossos gostos. Tanto Pierre quanto Erica ficaram um momento em silêncio, como se absorvendo as informações que conversaram até então, observando atentamente o muiraquitã à sua frente. Suas formas suaves, seu tracejado firme, sua simetria quase perfeita, eram características impressionantes. Elas colocam em cheque o senso comum que se tem com relação às criações indígenas brasileiras, muito por conta da educação eurocentrista a que costuma-se ter acesso. Elas mostram que os povos brasileiros pré- cabralinos eram capazes de produzir peças sofisticadas e com alto grau de simbolismo e preocupação estética. A arte que havia no Brasil contrasta com o que normalmente se estuda acerca da arte pré-colombiana, normalmente estando enquadrados nessa definição apenas os povos maias, incas e astecas. Entretanto, muitos outros povos viviam nas Américas além desses antes da chegada dos europeus, e no Brasil, um sem-número de tribos e grupos indígenas habitavam as matas intocadas pelos europeus até o ano de 1500. 25 Pintura corporal da etnia Kayapó, feita de Genipapo. 2009 Urna funerária Marajoara. 1000-1250. American Museum of Natural History, Nova Iorque, EUA. É possível ver o refinamento técnico no trabalho de entalhe nos pequenos detalhes da peça, além de deixar claro como a simetria era um elemento bastante apreciado pelas culturas pré-cabralinas. Muiraquitã. Datação incerta. Museu de Gemas do Pará, Belém - PA. Estima-se que, quando da chegada dos europeus, habitavam o território que viria a ser o Brasil cerca de cinco milhões de indígenas. Hoje em dia, esse número não passa de novecentos mil.10 - Você sabe a história dos muiraquitãs? – perguntou Erica fazendo um sinal com a cabeça para a peça que observavam, quebrando o silêncio. Pierre balançou a cabeça em negativo, e a mulher continuou, sua voz suave, porém decidida, ressoando pelos salões vazios da galeria. – Segundo as lendas indígenas, esses eram amuletos criados pelas amazonas icamiabas, mulheres guerreiras que habitavam a região do rio Nhamundá, e que eram dados aos homens que visitassem sua tribo, em troca de seu amor. - E quanto de verdade há nessa lenda? – Perguntou Pierre, interessado. - É possível que essa seja uma lenda antiga até mesmo para os indígenas que aqui estavam durante o Descobrimento, o que explicaria o fato de que a tradição de se manufaturar muiraquitãs esteve presente em muitas tribos indígenas espalhadas pelo Brasil. Cada amuleto é diferente, uma vez que os muiraquitãs podiam possuir formas animais, humanas ou abstratas, embora as mais comuns sejam as formas de rã e de peixe. Acreditava-se que esses amuletos possuíam poderes sagrados, que podiam curar doenças e prevenir a infertilidade entre as mulheres. - As diferenças entre os amuletos também são justificadas pela diversidade entre a produção de artefatos entre cada tribo indígena, não? Cada uma possuía seu estilo. - É verdade, é importante falarmos nisso – comentou Erica. – A produção indígena de então era mais representativa das tradições da comunidade que a produziu do que a do próprio indivíduo que a manufaturava. Os estilos de tecelagem,cerâmica, trançado, pinturas corporais, eram muito próprios de cada tribo, e diferiam muito entre um grupo e outro. É muito prejudicial colocarmos toda a produção indígena pré-cabralina em um grande grupo, ignorando as particularidades de cada uma. Há um enorme campo para se pesquisar, adentrando nas especificidades de cada tribo. Infelizmente sabemos muito pouco sobre o assunto, a bibliografia sobre o assunto não é muito extensa. – Mas ainda sobre o amuleto, o muiraquitã, - Pierre seguiu a conversa – a simetria e a delicadeza da peça são impressionantes. O nível de sofisticação na fabricação demonstra uma preocupação muito grande com a estética da peça, não é mesmo? - Pois sabe que esse é um tópico bastante delicado? O conceito de Arte como conhecemos hoje, e com o qual costumamos abordar essas 10 BRASIL.gov.br. Dados de pesquisa realizada em 2012. 26 Urna funerária Marajoara. 1000-1500. Coleção particular. Cestaria em palha trançada. Datação incerta. American Museum of Natural History, Nova Iorque, EUA. questões referentes à História da Arte, é muito diferente do conceito artístico dos indígenas brasileiros pré-cabralinos.Os indígenas produziram muitos artefatos, isso é fato. Mas geralmente, todas as produções deles possuíam utilidade prática. Diversos autores tratam os indígenas brasileiros como povos essencialmente práticos e diretos. Bardi escreveu certa vez dizendo que os índios eram bastante sistemáticos, contemplando cada necessidade com sua devida resolução. Necessitava fisicamente de apenas poucos objetos, mas possuía um universo mitológico muito complexo.11 - Por isso algumas manifestações indígenas possuíam funções simbólicas, artísticas, por assim dizer, como sua dança, adornos e pinturas corporais, certo? – questionou Pierre. - Claro, mas mesmo essas produções mais subjetivas são repletas de significados práticos. Os guerreiros pintavam-se para intimidar seus inimigos, para obter força espiritual, pintavam-se para louvar seus deuses, para expressar sua posição hierárquica na tribo, garantir seu respeito. Os primeiros registros da pintura corporal indígena datam de 1560, pois essa demonstração artística chamou a atenção do colonizador europeu. Mais tarde ela foi analisada também por vários estudiosos, inclusive por Lévi-Strauss, que esteve entre os indígenas brasileiros em 1935.12 E o uso de adornos corporais possui o mesmo princípio, assim como a música indígena, que possuía um simbolismo místico muito evidente. - Como a famosa dança da chuva, que é atribuída aos indígenas até hoje, não é? – comentou ele, com um sorriso. - Exato – riu Erica. – Embora haja registro de que muitos povos ao longo da história da humanidade praticavam rituais em busca da chuva, como antigos egípcios, maias e astecas, a dança da chuva popularizou-se através das representações dos indígenas norte americanos. Apesar dessa tradição não ser diretamente ligada aos indígenas brasileiros, ela dá uma ideia da mística envolvendo a dança e, por extensão, toda a produção artística indígena. Nenhuma produção artística desses povos refletia apenas o desejo estético ou criador de um indivíduo, como a arte europeia nesse período já fazia. - Falando nas diferenças entre a arte brasileira e a europeia – Pierre lentamente começou a andar, sendo seguido por Erica – o que você tem a dizer sobre essa obra? – e apontou na direção de uma estátua de um colorido vibrante, retratando Jesus em seu calvário. 11 BARDI, 1977. 12 Segundo Lévi-Strauss, “as pinturas do rosto conferem, de início, ao indivíduo, sua dignidade de ser humano; elas operam a passagem da natureza à cultura, do animal ‘estúpido’ ao homem civilizado. Em seguida, diferentes quanto ao estilo e à composição segundo as castas, elas exprimem, numa sociedade complexa, a hierarquia dos ‘status’. Elas possuem assim uma função sociológica.” LÉVI-STRAUSS, 1957. 27 Peças da coleção de Verão/2014 do estilista João Pimenta. É fácil ver a influência da pintura corporal e da escultura indígena na moda brasileira. Na imagem, peças do designer João Pimenta apresentam padronagens que emulam a pintura indígena como uma forma de atribuir um sentimento nacionalista às peças. Logotipo da Copa do Mundo FIFA 2014. O logotipo para a edição da Copa do Mundo de Futebol de 2014, realizada no Brasil, foi desenvolvido para representar de forma visual a famosa brasilidade. Percebe-se a utilização das cores da bandeira nacional, mas os traços imperfeitos, rústicos, que compõe a estilização da taça, e a forma como a palavra “Brasil” foi escrita, remetem à arte indígena pré-cabralina, em um claro esforço dos produtores da marca em buscar a história do Brasil para atribuir um significado simbólico à marca do evento. Para conhecer mais: Vídeo nas Aldeias. Projeto audiovisual, 1986- Projeto de produção audiovisual que em 2000 tornou-se ONG, e que busca apoiar as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais por meio de recursos audiovisuais. Curtas produzidos disponíveis no site do projeto: www.videonasaldeias.com.br Arte Indígena. Documentário, 2008. 10 min. Documentário produzido pelo núcleo cultural da Petrobrás, aborda o trançado de palha das comunidades kaingang enquanto produto de exportação. Índios, os Donos da Terra. Documentário, 2010. 30 min. Documentário sobre a questão indígena no Brasil de hoje, em diversos âmbitos, com relatos da história de uma comunidade tupis-guarani. BARDI, Pietro Maria. História da arte brasileira: pintura, escultura, arquitetura, outras artes. 2.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1977. 228 p. CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. 609 p. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Anhembi, 1957. 444 p. SALÃO NACIONAL DE ARTES PLÁSTICAS 8., 1985 dez.13 - 1986 fev.02, Rio de Janeiro, RJ). A arte e seus materiais: arte e corpo : pintura sobre a pele e adornos de povos indígenas brasileiros. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1985. 103 p. ISBN 8524600152. 28 Capítulo 3 - A arte nos primeiros anos de Brasil, o Barroco e Aleijadinho Jesus Carregando a Cruz, detalhe de Caminho para o Calvário. Aleijadinho, 1796- 1799. Congonhas do Campo - MG Durante os anos de 1796 e 1799, Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, esculpiu as principais peças para a Via Sacra (série de imagens retratando o caminho de Jesus Cristo até sua crucificação e subsequente ressurreição) do santuário de Bom Jesus dos Matosinhos, em Congonhas do Campo. Em Jesus Carregando a Cruz, pode-se ver o excesso de detalhes, indo desde o drapeado das vestes aos cabelos, das pernas ensanguentadas às veias pulsando nas mãos. Ao contrário das esculturas renascentistas, em que figuras sacras eram representadas de forma serena e impassível, a arte barroca traz a emoção e a dor à obra de arte. O rosto assustado de Jesus, suas mãos calejadas e seu rosto magro, deixando às vistas os ossos da face, tornam a figura mais humana, sofrida e, por consequência, aumentam a proximidade do homem retratado com o público que o observa. Com muita dor, emoção e drama, a arta barroca dos séculos XVIII e XIX no Brasil servia o propósito de evangelizar, popularizar a Igreja Católica e, ao mesmo tempo, trazer o assombro das grandes produções artísticas ao público da colônia. 29 - Aleijadinho é, até hoje, considerado um dos maiores mestres da arte brasileira. E eu concordo com isso – Erica declarou, com um sorriso que revelava sua admiração pela obra do artista mineiro. – Quer dizer, veja a riqueza de detalhes dessa obra. É um exemplo clássico da grandiosidade do Barroco brasileiro. As dobras das vestes, o sofrimento no rosto, até mesmo as veias na mão calejada da figura de Jesus... Essa quantidade de detalhes e a perfeição da representação humana era algo inédito no Brasil até o Barroco. - O barroco brasileiro, porém, é muito diferente do Barroco que se desenvolveu na Europano século XVII, não é mesmo? – perguntou Pierre. – O estilo barroco desenvolveu-se por aqui apenas a partir do início do século XVIII, um considerável atraso com relação à Europa, que nessa altura já havia inclusive abandonado o Barroco em favor da arte neoclássica. - Mas isso tem uma explicação bastante simples. Durante os primeiros séculos de Brasil, enquanto colônia puramente exploratória, não se produziu muita arte pelos colonizadores justamente por esse caráter puramente exploratório da ocupação portuguesa. O Brasil era visto apenas como um bem econômico, um local a ser explorado sem grandes preocupações para com o futuro do lugar ou do povo que aqui vivia.13 É por isso que, segundo os livros de história da arte, existe essa lacuna entre a arte indígena produzida durante o período pré-cabralino e o Barroco, como se durante esses mais de cem anos não se houvesse produzido arte por aqui. - E realmente – refletiu Pierre – pelo caráter puramente exploratório da colônia Brasil, não havia motivos para que os colonizadores produzissem ou incentivassem a Arte por aqui. - Exato – Erica concordou. – A influência barroca alcança o Brasil através das missões católicas, especialmente jesuítas, quando o Brasil Colônia passa a florescer economicamente, e a catequização passou a ser de maior importância aos olhos da metrópole. O Barroco então passa a ser a representação artística de maior duração no Brasil, sendo a principal forma de produzir arte durante os tempos coloniais do país. - Além do mais – ela acrescentou, com um sorriso – tudo em uma sociedade baseia-se na economia, não é mesmo? A estagnação crescente de uma economia reflete-se em todas as esferas da sociedade, inclusive em sua arte. Assim como uma economia florescente influencia da mesma forma nessas esferas. Pierre percebeu a mensagem nas entrelinhas, e riu de modo amigável. Erica utilizava muito de razões econômicas para justificar seus pontos de 13 PRADO JÚNIOR, 1979 Teto da igreja de São Francisco de Assis. Manuel da Costa Ataíde, 1801-1812. Ouro Preto - MG. Igreja de São Francisco de Assis. Aleijadinho, 1765-1812. Ouro Preto - MG. 30 vista, e, embora ele não concordasse plenamente com essa ideia, era capaz de aceitar muitos dos argumentos que sua companheira de debate apresentava. A tempestade que caía ao longe, do lado de fora da galeria, parecia agora simbolizar as diferenças ideológicas entre Pierre e Erica. Ele, porém, estava ansioso por continuar a conversa. - Já no fim do século XVII – ele acrescentou, disposto a não deixar a conversa abrandar – a arquitetura das mais prósperas cidades brasileiras, especialmente no nordeste do país, começou a sofrer transformações através da influência barroca. Salvador, Recife e João Pessoa são exemplos do início do Barroco no Brasil. A igreja de São Francisco, em Salvador, impressiona até hoje pela sua rica decoração interior, em que praticamente tudo é revestido em talha dourada. Era uma obra de extrema opulência, para um Brasil colonial. - Pois é interessante perceber que na Europa barroca, a Igreja Católica e as cortes dividiam o mecenato artístico, encomendando obras dos artistas daquele tempo. Entretanto, o Barroco brasileiro surgiu em um contexto muito diferente, quando a colônia era pesadamente explorada. Com a corte além do oceano, a Igreja abraçou o Brasil de modo a exercer uma forte influência, tanto social quanto política. Os religiosos comandavam boa parte do espaço social na época: eles dominavam o ensino, hospitais, orfanatos, asilos... - Por extensão, - concluiu Pierre – a Igreja dominou a produção artística brasileira de então. Pierre e Erica continuaram a caminhar lentamente, observando as obras Barrocas expostas na galeria, refletindo sobre as características dessa arte. A arte barroca brasileira foi uma arte muito funcional, prestando-se bem aos fins para os quais foi proposta: além de sua função estética, o principal objetivo da arte Barroca era propagar o catolicismo e ampliar sua influência. Através da arte, era mais fácil tornar a doutrina católica compreensível para os indígenas e, posteriormente, os negros. Erica, de súbito, quebrou o silêncio. - Você disse antes que o Barroco europeu desenvolveu-se praticamente um século antes do brasileiro, não é mesmo? – ela indagou. - Sim. O Barroco surge no início do século XVII, como uma reação direta dos acontecimentos ligados ao século anterior, em especial a Reforma Protestante iniciada na Alemanha e que, em seguida, expandiu-se por muitos outros países. - Pois é – Erica concordou, – a Reforma teve consequências muito drásticas, que ultrapassaram as questões de fé. Detalhe dos entalhes do portal da Igreja de São Francisco de Assis. Aleijadinho, 1790-1794. Ouro Preto - MG. Bandeira da Procissão de Cristo. Joaquim José da Natividade, datação incerta (entre 1785 e 1824). Museu Afro-Brasil, São Paulo - SP. 31 - A mentalidade da época foi alterada – Pierre concluiu o pensamento. – A Reforma serviu para mostrar ao europeu que as nações poderiam libertar- se da submissão ao papa e à Igreja, que representava o maior poder político até então. Ela favoreceu o surgimento dos Estados nacionais e dos governos absolutos, propondo essa libertação religiosa. - E após a divisão do cristianismo ocidental, a Igreja Católica teve de se organizar contra a Reforma, a fim de recuperar sua autoridade, combatendo a fé protestante. A Contra-Reforma, que visava eliminar os abusos nos mosteiros e fortalecer a vida espiritual, passou a enfatizar a divulgação dos ideais religiosos por meio das imagens, com mais exatidão na representação de narrativas bíblicas e com obras que podiam despertar um fervor religioso renovado.14 Isso explica as diferenças claras entre o Barroco e o estilo artístico do período que o precedeu, o Renascimento. O Barroco, surgido na Europa no início do século XVII, foi uma reação imediata contra o classicismo do Renascimento, cujos ideais conceituais baseavam-se no perfeito equilíbrio entre ciência e arte, no equilíbrio formal, na racionalidade e na simetria. Assim, o caminho óbvio a ser percorrido pelos artistas barrocos era exatamente o contrário. A estética barroca primou pela emoção, pelo excesso, pela assimetria, pela irregularidade, pelos sentimentos extremos. O Barroco europeu apresenta uma nova forma de compor imagens: em diagonal, ampliando a dinâmica das obras, e criando assim uma maior sensação de movimento nas telas. Da mesma forma, os artistas barrocos exageram ainda mais no contraste entre claro-escuro15, criando-se contrastes e iluminações impossíveis na vida real, mas que, na obra, intensificam os sentimentos retratados. - As formas barrocas surgem através do foco sentimental dos artistas, - Pierre disse – por isso esquecem as regras formais e científicas. Ainda, essas formas expressam movimento, recobrem-se de efeitos decorativos, curvas, drapeados e, especialmente, do dourado, cor de opulência, mas também de emoção vibrante. - O Barroco brasileiro então usou essa direção básica, criando igrejas opulentas e obras vibrantes e emocionais, certo? – perguntou Erica, sorrindo. Pierre sentiu um tom de ironia na pergunta, mas decidiu responder assim mesmo, como que para ver onde sua parceira queria chegar. 14 FARTHING, 2011 15 Os pintores barrocos tornam-se mestres na técnica do chiaroscuro (do italiano “claro-escuro”), para acentuar o contraste de ilu- minação em suas obras, destacando os volumes e ampliando a sensação de movimento. Caravaggio (1571-1610) é considerado um dos maiores pintores barrocos, e suas obras são um claro exemplo do chiaroscuro nas obras barrocas. A ceia dos Emaús. Caravaggio, 1601. National Gallery, Londres - Inglaterra. Caravaggio criou através da luz um efeito dramático. A refeição noturna oferece um pretexto óbvio para mostrar uma sala imersa na escuridão, na qual os personagens surgem apenas graças à vários pontos de luz individualmente direcionados, comoera parte da obra de Caravaggio Êxtase de Santa Teresa. Bernini, 1645. Capela Cornaro, Santa Maria della Vittoria, Roma. É possível ver na obra de Bernini o Barroco europeu exemplificado. Fortes emoções estão presentes tanto na composição da cena, quanto nos rostos e corpos dos personagens. O anjo apresenta um sorriso enquanto envia uma seta de amor para Santa Teresa, que sofre, ao mesmo tempo em que é possuída pelo êxtase do sentimento. Curvas voluptuosas, tecidos elaborados e faces repletas de sentimento, caracte- rísticas da arte barroca que também podem ser vistas na obra de Aleijadinho, e em toda a produção barroca brasileira. 32 - Sim, embora o estilo barroco tenha se espalhado por todo o Brasil, não ficando restrito apenas ao nordeste e Minas Gerais, onde é geralmente mais conhecido. O Barroco mineiro é geralmente considerado o mais expressivo, pois Minas Gerais era o estado de maior efervescência na época devido à exploração do ouro e pedras preciosas, mas Rio de Janeiro, São Paulo, e até mesmo o Rio Grande do Sul tiveram obras barrocas. - Entretanto – Erica interrompeu – essas obras foram construídas levando-se em conta as capacidades econômicas de cada local. Afinal, o Barroco paulista foi muito menos opulento que o das áreas mais ricas da Colônia, como Minas Gerais. - Sim. Poucos lugares no país, além dos grandes centros urbanos, tinham capacidade econômica e interesse para contratar artistas conhecidos e produzir obras de grande porte. Centros produtores mais importantes acabavam possuindo maior população e, por consequência, recebendo maior atenção da Igreja. Nas regiões onde não existia nem açúcar e nem ouro, a arquitetura era mais modesta, com talhas mais simples e trabalhos realizados por artistas de menor expressão que profissionais que viviam nas regiões mais ricas da época. 16 - Viu, eu não disse que tudo acontecia por causa da economia? – Erica soltou uma risada. Pierre também riu. - É, nesse caso, sim. A Igreja precisava ir onde era mais interessante politicamente e, naquele momento, era onde se produziam as riquezas coloniais. - Uma coisa leva à outra – disse ela, debochada. – Apesar das construções barrocas coloniais inicialmente não terem o mesmo refinamento que as europeias, aos poucos prédios maiores e mais opulentos foram surgindo. Construções de madeira foram dando lugar a prédios de pedra, porém, ainda sem as curvas características do Barroco europeu. As igrejas barrocas brasileiras eram construídas em estruturas simples, de paredes paralelas, formando naves retangulares. - Seriam consideradas um ultraje pelos artistas barrocos europeus – Pierre riu. - Claro. O Barroco brasileiro assemelha-se ao europeu apenas em alguns casos, em que a opulência da construção aproxima-se da europeia, como a Igreja de São Francisco, como você bem citou anteriormente, ou a Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto. Essa, particularmente, uma das minhas obras favoritas em todo o mundo. 16 BARDI, 1977 Ruínas de São Miguel das Missões. 1735- 1745. São Miguel das Missões, RS. Altar de Santa Ifigênia. Igreja de São Francisco. 1767, Salvador - BH. 33 - Ah sim, você é uma grande fã de Aleijadinho, não é? - E como! Aleijadinho foi o maior expoente do Barroco brasileiro, tendo produzido mais de quatrocentas obras, entre talha, projetos arquitetônicos, relevos e estátuas, todas realizadas em Minas Gerais. Além disso, as lendas sobre o senhor Antônio Francisco Lisboa, verdadeiro nome dele, apenas acrescentam à sua figura intrigante. - Ah, mas é importante ressaltar que muito dessas lendas não é comprovado – divergiu Pierre. – Quer dizer, por mais que seja romântico imaginar a figura do artista perturbado, o gênio mulato, apaixonado pelo ofício, muito dessa imagem é criada pelos modernistas do século XX, que buscavam em Aleijadinho um ideal de brasilidade. Um mulato deficiente era um ótimo símbolo para representar a multiplicidade étnica do Brasil, além de ser um artista que transformou a herança europeia da arte barroca em algo original e, para eles, genuinamente brasileiro. 17 - Você não acredita que a arte de Aleijadinho seja genuinamente brasileira? – Perguntou Erica, em um tom acusatório. - Acredito que o Barroco brasileiro eventualmente transformou-se em um movimento artístico com muitas características locais. Afinal, após tanto tempo, devido à influência local, a produção arte acabaria sendo transformada em algo diferente do seu gênese europeu. Porém, Aleijadinho é uma figura emblemática na história da arte brasileira, especialmente por essa aura que o envolve: a aura da doença. Muitas vezes tratado como a figura misteriosa do gênio sofrido, monstruoso, ampliando-se o efeito da doença para que fique nítido o esforço sobre-humano de sua obra e para que o belo ganhe realce na moldura da lepra. - Bom, isso é verdade. Tanto é que o Barroco acaba estando presente em muito do nosso dia-a-dia até hoje. Veja o nosso carnaval, por exemplo – Erica disse, caminhando lentamente por entre as obras. – O carnaval é uma festa essencialmente barroca. A cultura da festa barroca está impregnada da mentalidade no fazer e sentir brasileiro, na mentalidade da sociedade. Apesar dos museus e da arte erudita ser contemporânea, as festas populares possuem uma marca barroca muito profunda. 18 - Como assim? - As raízes do carnaval brasileiro formam-se ainda no período colonial, em que festas de origem portuguesa acabavam sendo transformadas e readaptadas para a realidade local. E a tensão entre a liberdade individual, 17 GOMES JÚNIOR, 1998 18 MALUF, 2001. Coleção Primavera 2012 Dulce & Gabanna. De clara inspiração barroca, a coleção da famosa grife italiana possui intrincados detalhes florais e longos drapeados, característica do Barroco europeu do século XVII. Carnaval brasileiro. 2015 A opulência presente nas fantasias e carros alegóricos, o excesso de ornamentos e acessórios remete à uma tradição barroca que pode ser vista também no famoso carnaval de Veneza. Fantasias e máscaras características do Carnaval de Veneza. 2010. 34 da experimentação e expressão pessoal, chocando-se contra um sentimento arcaico de limitação radical, é uma síntese do Barroco. - Pensando bem – Pierre coçou a cabeça – o carnaval é uma festa de excessos. - Como o Barroco em si. O gosto pela profusão, e o horror ao espaço vazio, são características claras das raízes barrocas que ainda estão profundamente enraizadas na cultura brasileira. - E não apenas no carnaval, mas diversas outras festas populares do nosso país apresentam essas características. As festas do Bumba-meu-boi maranhense, com suas máscaras zoomorfas e suas decorações excessivas, também tem suas origens no Barroco. - Todos esses exemplos nos fazem ver a extensão do legado barroco em nossa sociedade. Por isso, quando se fala no Barroco brasileiro, não se pode resumir apenas ao que convencionou-se chamar de obra de arte. O estilo continua vivo, se não nas galerias, na cultura popular. Para conhecer mais: O Aleijadinho. Documentário, 1978. 22 min. Um inventário sobre a obra de Aleijadinho, contextualizando a produção barroca mineira no período colonial. BARDI, Pietro Maria. História da arte brasileira: pintura, escultura, arquitetura, outras artes. 2.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1977. 228 p. FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011, p. 212 GOMES JÚNIOR, Guilherme Simões. Palavra peregrina: o Barroco e o pensamento sobre artes e letras no Brasil. São Paulo: EdUSP, 1998. pp. 59-60 MALUF, Marcia. O aspecto barroco das festas populares. REVISTA OLHAR . ANO 03 . N 5-6 . JAN-DEZ/01. Disponível em http://www.ufscar.br/~revistaolhar/ pdf /olhar5-6/maluf_corrigido.pdf PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 16.ed. São Paulo: Brasiliense, 1979. 391 p. 35 Capítulo 4 - A arte erudita e a indústria cultural - Essa questão, – Pierre iniciou, enquanto vagueavam novamente pela galeriadesértica – de que o Barroco não está mais nas galerias mas está presente na cultura popular brasileira... - Sim? - Isso me faz pensar naquela questão que mencionamos anteriormente. Quem decide o que é arte clássica, erudita, e o que é arte popular? - As classes dominantes, é claro! – respondeu Erica de pronto. – Desde a aurora das sociedades, a produção artística é definida pelos que compõe as classes mais poderosas economicamente em sua época. As principais, talvez únicas, obras de arte que se conhece da Grécia Antiga, por exemplo, advém de templos religiosos, prédios administrativos e políticos, ou da morada de nobres e governantes. A Igreja dominou a arte Renascentista e Barroca, enquanto, depois da Revolução Francesa, o nascimento da burguesia fez surgir, também, novas demandas de arte. - Sim, mas... Será mesmo que a resposta é tão simples assim? – Pierre questionou. Não costumava aceitar repostas curtas para qualquer pergunta. – Será que, de um momento para o outro, essas pessoas determinaram essas regras, e, a partir de então, toda a arte deveria ser diferente, sob pena de ser marginalizada? - E não é o que acontece hoje com a moda, por exemplo? – Perguntou ela. – A coleção que uma marca lança este ano não torna sua coleção anterior, automaticamente, desatualizada e obsoleta? E não precisamos falar apenas em roupas: as modas visuais. Um cartaz, uma ilustração, uma capa de livro. Qualquer um desses artigos, se produzido há dez anos atrás, não é completamente diferente do que é produzido hoje? Produzir um artigo visual com essa roupagem, não tornaria o trabalho datado? - Os códigos visuais mudam muito rapidamente, de fato. Cada momento possui uma tendência, e produtos que funcionavam ontem podem não funcionar amanhã. Porém, será que apenas um grupo de pessoas determina isso, de modo consciente? Erica ficou em silêncio, esperando que Pierre continuasse sua linha de pensamento. - É fato que a produção de bens artísticos se divide em dois campos: a produção erudita, e a indústria cultural. Gosto de pensar que a diferença básica entre elas está no público-alvo desses bens culturais produzidos. O 36 campo da produção erudita destina sua arte a um público de produtores de bens culturais, enquanto o campo da indústria cultural destina-se aos não- produtores, ou seja, o grande público.19 - Certo. - Isso acontece a partir do século XV, na Europa. Como comentamos anterior-mente sobre o Barroco, durante toda a Idade Média, a produção artística era pautada pela ordem religiosa, atendendo suas demandas éticas e estéticas. A partir do Renascimento, a aristocracia passa a encomendar obras de arte, dividindo o mecenato e, por consequência, o poder de criação artística a partir de então. E essa libertação artística, gradual porém definitiva, passa a tornar o artista capaz de se libertar das imposições estéticas, e expressar-se enquanto artista, modificando a forma de produzir e consumir a arte. Passa a ter grande importância a relação que os artistas mantém com os não-artistas e, do mesmo modo, com outros artistas, o que causa uma nova definição da função do artista e de sua produção: ele agora tem o direito de legislar sobre seu próprio campo. - O campo da forma e do estilo artístico – Erica concluiu. - Exato. E a partir daí, podemos dizer que a produção erudita começa a legislar sobre si mesma, em prol do seu público. E o público determina a própria produção em si. - Sim, claro – Erica concordou. – O público-alvo é um conceito básico para qualquer produção, seja artística ou não. É de suma importância saber para quem se está produzindo, e o que essas pessoas buscam ou desejam. - O campo da produção erudita, então, produz suas próprias normas de produção e avaliação, e existe, exclusivamente, em nome da concorrência pelo reconhecimento cultural concedido pelos pares, que são, ao mesmo tempo, clientes e concorrentes. - Ah, isso eu conheço bem – exclama ela. – O mundo das artes funciona como um ringue, uma constante luta pela legitimidade, pelo reconhecimento do próprio mundo das artes. Por isso mesmo há aquela famosa questão dos críticos de arte, que se habituam a fornecer interpretações... inspiradas, digamos assim, à obras de arte. Essas interpretações garantem um afastamento da arte erudita com o grande público. - Essa é a minha teoria. Para mim, os próprios artistas criam suas próprias regras, sobre o que vale e o que não vale nessa luta pelo reconhecimento cultural. Mas não apenas eles, e sim todas as forças envolvidas nesse embate. 19 BOURDIEU, 1992 37 Instituições culturais, de ensino, legisladores e políticos, questões econômicas... Tudo isso influencia no campo da arte erudita. E, por essas características, por ser produzida para um público específico e reduzido, a recepção da arte erudita depende do nível de instrução de quem a recebe. Ela exige que seus receptores possuam competências teóricas específicas para que possam compreender os símbolos que lhe são apresentados. - Porém, a arte erudita também está subordinada às regras de mercado. – Erica interrompeu. – Esse conflito surge, no mundo ocidental, com o fim da era do mecenato, após a queda do Império Napoleônico, quando a arte européia volta-se para o Romantismo, um movimento cultural complexo, com clara preferência à natureza em vez da nova sociedade de máquinas e utilitarismo que se erguia rapidamente. Os artistas, julgando-se necessários em oposição ao materialismo do mundo moderno, evitavam a abordagem de temas modernos, voltando-se para o passado, ou retratavam a vida na cidade de modo crítico ou irônico. - Mas na medida em que eles tornavam-se financeiramente dependentes do sucesso de suas obras, - ela continuou – críticos de arte tornam-se figuras importantes nesse mundo, criando uma intermediação entre o artista e o público. Isso dá origem a um jogo engraçado, em que se espera que o artista seja um indivíduo inspirado, dedicado à auto-expressão e que não se importa com o mundo capitalista, mas que também deve produzir obras que serão vendidas a esse mesmo mundo capitalista. E mais: essas obras seriam vendidas justamente por causa desse suposto desprezo do artista por esse mundo. Aí é que surge a ideia da vanguarda, em que os artistas unem-se em um radicalismo estético, mas que implica na aceitação de um legado comum, no qual a nova arte, apresentada como radical e livre do gosto público estabelecido, em pouco tempo se transforma em arte aceita, de beleza universalmente reconhecida.20 - Faz sentido – Pierre concordou. – Penso que a arte popular está subordinada à regras de mercado, mas que são regras diferentes das que são aplicadas à arte erudita. A arte popular é de fácil assimilação, e é pautada pela demanda popular. - E, ao mesmo tempo, – interrompeu Erica novamente – também está subordinada aos detentores dos meios de produção e difusão dessa arte. As grandes gravadoras, por exemplo, no caso da música. Ou as grandes emissoras de TV, para as tendências visuais. É importante frisar que a arte popular baseia- se no retorno financeiro e, para isso, precisa atingir a maior extensão possível de público. Diversas batalhas são travadas nesse campo, para atingir o maior 20 FARTHING, 2011 38 público possível, e garantir o retorno financeiro aos produtores. - Mas isso, de maneira alguma, torna a arte popular inferior à arte erudita, isso seria um julgamento muito equivocado, a meu ver – Pierre disse com um tom conciliador. – Essas duas formas de arte possuem interesses e públicos diferentes, por isso considero perfeitamente normal a coexistência de ambas, sem que uma aja em detrimento da outra. Mas isso explica aquilo que estávamos comentando no início de nossa conversa. As galerias de arte acabam ficando vazias, também, por serem pautadas por códigos que não são compreendidos por todos públicos, justamente por que são criados para não serem compreendidos por todos os públicos. A arte erudita torna-se uma espéciede capital, que diferencia esferas da sociedade entre si. Um pequeno silêncio após essas palavras fez Pierre pensar que havia ido longe demais. - Essas ideias são complicadas, eu sei – ele riu. – Peço desculpas. - Não, não se preocupe – ela disse, com um sorriso despreocupado. – Na verdade, eu estava pensando em como você sabe tanto sobre arte. Pierre surpreendeu-se com o interesse, e soltou uma risada nervosa. - Na verdade eu não entendo tanto assim de arte – disse, um tanto constrangido. Apesar de seu relativo sucesso literário, ele não era muito afeito a elogios. - Apenas gosto de pensar sobre as relações sociais. Entender como as pessoas interagem entre si é um assunto fascinante para mim. - Mas essa é uma teoria bastante complexa para alguém simplesmente curioso sobre o assunto – Erica disse, buscando uma explicação mais convincente. - Bem, eu sou escritor – declarou Pierre, percebendo que, até o momento, eles não haviam dito nada um sobre o outro além de seus nomes. - Ah, isso explica bastante coisa – Erica riu. – E o que você escreve, Pierre? - Romances. A ficção me permite escrever coisas mais reais que qualquer outro gênero. Quer dizer, enquanto escrevo personagens e acontecimentos fictícios, escrevo também sobre a humanidade, sobre sentimentos, emoções reais. - Parece muito legal – Erica declarou, e Pierre sorriu com a espontaneidade do comentário. “Legal” era a primeira palavra que soava casual saída da boca de sua companheira de passeio, sempre tão formal e acadêmica. Essa pequena palavra era como uma nesga de luz entre as nuvens de mistério que encobriam Erica. Pierre queria saber mais sobre aquela mulher que tanto falava e tanto tinha a dizer. 39 - E você, Erica, o que faz? - Essa é uma pergunta difícil – ela disse, e ambos riram. – Na verdade, eu pinto. - Isso também explica bastante coisa. Por isso você conhece tanto sobre arte e sua história – Pierre declarou, sorrindo. Sua expressão, porém, logo após transformou-se em uma expressão de embaraço. – Nossa, eu falei tanto sobre a arte e os artistas, e você nem pra me dizer que era uma! Desculpe-me se disse algo inconveniente ou se a ofendi de alguma forma. - Não, imagine – Erica afastou a preocupação de Pierre com um movimento de mão no ar e um tom despreocupado. – Achei uma teoria bastante pertinente e verdadeira. A arte erudita possui muitas amarras, impostas pelas academias e pelos próprios artistas – Seus olhos passearam pela sala em que se encontravam, até pousar sobre uma pintura do século XVIII. Ela sorriu. – Por falar em academia, por acaso chegamos exatamente em uma ala onde está uma obra de um dos mais conhecidos artistas da história da arte brasileira. O que você acha de Debret? Para conhecer mais: O Assunto É Consumo Cultural. Vídeo, 2011. 6 min. Produzido pela TV PUC-Campinas, o curto vídeo trabalha de modo sucinto as diferenças entre arte erudita e popular. BOURDIEU, Pierre; MICELI, Sérgio. A economia das trocas simbólicas. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. 361 p. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. 2.ed. São Paulo: EDUSP, 1998. 188 p. FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011, p. 212 40 Capítulo 5 - A Missão Artística Francesa, Debret e o Academicismo brasileiro Retrato de Dom João VI (Detalhe). Jean- Baptiste Debret, 1817. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro - RJ. A arte acadêmica de Debret e de todos os outros artistas neoclássicos, era a da exaltação dos valores burgueses e das cortes imperiais. Para os artistas acadêmicos desse período, a beleza era idealizada, não sendo encontrada na natureza, o que significa que a arte deveria ser uma forma esteticamente melhorada do mundo real. Assim, todas os retratos e imagens produzidos por esses artistas, conferiam às pessoas retratadas um ar solene, imponente, poderoso. Na obra em questão, pode-se ver um Don João VI forte, ostentando seu poder de imperador, em trajes oficiais e condecorações militares e de nobreza, idealizado como uma figura altiva e de rosto jovem. Mesmo no calor tropical, a corte portuguesa permanecia vestindo roupas da nobreza europeia, como forma de representar seu poder. 41 - Na verdade, não sei muito sobre Debret além de seu nome – Pierre admitiu, abrindo as mãos em sinal de descontração. - Pois então você está perdendo uma parte bem interessante da história da arte brasileira – Erica declarou, aproximando-se da obra. – Você sabe que a corte portuguesa veio instalar-se no Brasil fugindo de uma invasão napoleônica a Portugal, certo? - Sim, em 1808. Dom João VI e uma comitiva de mais ou menos quinze mil nobres e funcionários reais se mudaram de Portugal para o Rio de Janeiro. Já li sobre isso, há bastante material sobre o assunto. - Pois então, como conversamos antes, o Brasil dessa época não se enquadrava na realidade que as cortes nobres da Europa estavam habituadas. O país era essencialmente agrícola, atrasado, sem grandes atrativos, justamente por ser uma colônia pesadamente explorada pelos portugueses. Porém, quando a corte imperial veio instalar-se por aqui, a realidade local precisou ser transformada. Agora havia uma família real e uma extensa fila de nobres para serem servidos. Assim, diversas reformas administrativas, econômicas e culturais foram realizadas, principalmente no Rio de Janeiro, capital do país na época, para adaptar a realidade às necessidades dessa nobreza. 21 - Aí surgiram instituições como o Banco do Brasil, não é? - Além do Museu Real e a Biblioteca Real, e muitas outras. O próprio Jardim Botânico do Rio de Janeiro foi criado nesse momento. A nobreza necessitava, além de aparatos econômicos e políticos, arte e cultura para manter seu status burguês. Afinal, a corte não sabia se jamais voltaria à metrópole. - Claro, os poderosos não poderiam ver-se vivendo em um ambiente agrário, tão distante das facilidades que sempre possuíram nas cortes européias. Nada mais justo que essa nobreza quisesse tornar sua nova terra um local sofisticado e produtivo. - Exato – Erica concordou. – Além das indústrias e do incentivo às ciências, Dom João VI também incentivou a produção artística brasileira. Um desses incentivos foi a convocação da chamada Missão Artística Francesa, que foi uma comitiva de diversos artistas franceses que atracou no Brasil em 1816. Com a ideia de transformar o panorama das artes no nosso país, esses artistas foram muito bem pagos pela Coroa para afastar a arte brasileira do Barroco, tendência há muito deixada para trás na Europa, mas que aqui ainda era a arte vigente. - E o que esses artistas fizeram? – Perguntou Pierre. 21 CIVITA, 1986 Segundo Casamento de Sua Majestade Imperial D. Pedro I (Detalhe). Jean Baptiste Debret, 1829 Primeira distribuição das cruzes da Legião de Honra, em 14 de julho de 1804. Jean Baptiste Debret, 1812. É possível ver a semelhança entre as duas obras, ambas de Debret. A principal razão de existir da Missão Artística Francesa foi a importação da arte palaciana e burguesa do Neoclassicismo europeu. Debret foi um dos pintores da corte napoleônica, e trouxe a sua arte perfeccionista e pomposa para a corte imperial portuguesa no Brasil. 42 - Inicialmente, foi organizada por eles a criação da Escola Real de Ciências e Ofícios, que ainda mudaria de nome diversas vezes, até ser chamada de Imperial Academia e Escola de Belas-Artes. A Coroa imaginou que, instituindo um novo sistema de ensino superior em artes e ofícios, poderia aos poucos modificar o panorama artístico e também substituir a influência da Igreja no ensino no Brasil.22 Apesar da resistência que sofreu inicialmente, a Missão Artística Francesa deu certo, e a partir desse momento, a arte brasileira passa a ser muito mais acadêmica, influenciada pelas ideias européias do Neo Classicismo. - É fácil de entender essa resistência. O ensino, não apenas da arte, mas em geral, era praticamente medieval no
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