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O_Discurso_Silente_consideracoes_sobre_l

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GIOVANNA MARINA GIFFONI 
 
O DISCURSO SILENTE: 
Considerações sobre linguagem no Hinduísmo, Budismo e Taoísmo 
 
 
 
 
 
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Literatura: Poética, 
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio 
de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à 
obtenção do título de Doutor em Ciência da 
Literatura: Poética. 
 
 
 
Orientador: Professor Doutor Antonio Jardim 
. 
 
 
 
 
 
 
 
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 
2009 
 2 
SUMÁRIO 
 
APRESENTAÇÃO.....................................................................................................5 
PRIMEIRA PARTE...................................................................................................8 
I - A LINGUAGEM.....................................................................................................8 
II - A DEMANDA......................................................................................................16 
III - O CAMINHO......................................................................................................21 
IV - OS CAMINHOS DA LINGUAGEM.................................................................30 
V - O JOGO................................................................................................................32 
VI - O GESTO............................................................................................................39 
VII - O EQUÍVOCO...................................................................................................42 
VIII - O GESTO IMPOSSÍVEL.................................................................................45 
SEGUNDA PARTE..................................................................................................47 
I: TAT TVAM ASI: O ISTO QUE SE APONTA NO HINDUÍSMO VÉDICO..........47 
i) O antigo caminho, extremamente estreito e extenso, e a estreita esfera do 
conhecimento..................................................................................................................47 
ii) Ouvir à distância: o conhecimento revelado......................................................52 
iii) Ver de perto: o conhecimento secreto...............................................................60 
iv) Ouvir x ver: disputa pelo conhecimento............................................................68 
v) Revela-se o grande conhecimento secreto: a realidade é apenas isto...............75 
II: A GRANDE BALSA E A IMPOSSÍVEL CONTEMPLAÇÃO DO RIO.............88 
i) O claro discurso de obscuros rios.........................................................................88 
ii) A aceitação do curso do rio..................................................................................94 
iii) Grande balsa ao sabor do curso do rio.............................................................99 
iv) O caminho do meio............................................................................................104 
 3 
Entrecaminhos: I Ching.........................................................................................110 
Entrecaminhos: o supremo caminho do não caminho........................................114 
Entrecaminhos: Tao dito tao não é tao.................................................................116 
v) O caminho indescritível......................................................................................119 
TODOS OS CAMINHOS DA LINGUAGEM.....................................................124 
APÊNDICE A: CHANDOGYA UPANISHAD (Capítulo VI).............................131 
APÊNDICE B: O SUTRA DO DIAMANTE.........................................................139 
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................154 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 4 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Quando coisas criadas por mágica são vistas como tais, elas deixam de 
existir. Tal é a natureza de todas as coisas. 
 
(NAGARJUNA. Mahayana Vimsaka, "Vinte [versos] do Mahayana") 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 5 
APRESENTAÇÃO 
 
Isto é um percurso. Nele, percorrem-se três caminhos filosóficos em busca do Isto. Seus 
nomes indicam-nos o caminho sem dar conta da viagem: Hinduísmo, Budismo, Taoísmo. Isto 
é uma busca, a busca de como se dá a busca, a pergunta pelo que é o Isto nesses três 
percursos. Teriam eles realmente se debruçado sobre a questão do Isto? 
 
Isto é o mesmo que perguntar se eles de fato constituem filosofia. Pois Isto e filosofia são o 
mesmo. Por isso, aqui já se assumiu o pressuposto: o de que há o Isto, ou seja, de que há 
filosofia, no que se convenciona chamar por aqueles três nomes, ou por um só: Oriente. 
 
Por muito tempo houve a recusa em reconhecer e estudar as produções "orientais" como 
obras filosóficas. E, mesmo quando passa a haver algum reconhecimento de sua importância, 
ainda são vistas como assistemáticas. Afirmações, que servem convenientemente tanto ao 
menosprezo quanto ao elogio, de que não teriam separação de disciplinas, de que não teriam 
especialização em sua organização (ou "desorganização"), negaram por muito tempo, 
portanto, o fato de elas mesmas terem consciência de serem sistemas1. 
 
Sistema, em filosofia, liga-se à noção de totalidade, um todo organizado, constituído por 
partes desenvolvidas umas a partir das outras. Na totalidade sistemática, portanto, está 
resguardada a unidade do pensamento, sua especialização e seu desenvolvimento, sua 
“evolução”. Não é a totalidade de seu discurso (muito menos ainda sua dedutibilidade) que se 
 
1 Sistema: 1. Uma totalidade dedutiva de discurso. Essa palavra, desconhecida neste sentido no período clássico, 
foi empregada por Sexto Empírico para indicar o conjunto formado por premissas e conclusão ou o conjunto de 
premissas, e passou a ser usada em filosofia para indicar principalmente um discurso organizado dedutivelmente, 
ou seja, um discurso que constitui um todo cujas partes derivam de outras. (ABBAGNANO: 2000, 908. Grifo 
nosso.) 
 
 6 
tem negado à filosofia hinduísta ou budista, mas a sua constituição histórica, documental, 
evolutiva. 
 
No Ocidente as distinções mencionadas aqui [entre as filosofias grega e 
indiana] têm sido tratadas como dicotomias simples e absolutas: história vs. 
atemporalidade, análise crítica vs. misticismo. Devido à sua permanente 
conexão com religião, e, particularmente, à presença preponderante do 
Hinduísmo, o pensamento indiano é frequentemente encarado no Ocidente 
como outra coisa que não – e, implicitamente, menor que – filosofia, algo 
que carece da autonomia e abstração da pura filosofia. (McEVILLEY:2002, 
650)2 
 
Que maior abstração há do que a unidade, no entanto, que concretude alcança ao se 
identificar com a verdade. Ao se negar a abstração no pensamento indiano, nega-se com isso a 
sua unidade, a sua verdade. A verdade é sempre o uno que se depura de uma dinâmica, ou 
mesmo a verdade pode ser a dinâmica da unidade, mas sua propensão ao uno é evidente. 
 
Verdade nada mais é para a filosofia, desde a sua origem sacerdótica, a unidade. Verdade, 
história, evolução, desenvolvimento, são, todas, palavras muito caras à modernidade, 
modernidade que já se inicia com o movimento de se afastar desse âmbito atemporal, onde 
não se podem vislumbrar nem mesmo vestígios de escritas em lápide erodida. O discurso 
silente não-gravado em pedra documenta a presença de uma dinâmica do tempo. É a essa 
dinâmica que se cunha a-histórica. História é verdade, verdade é o testemunho da unidade. É 
por se negar a proferir e professar tal testemunho que as filosofias aqui tratadas são alijadas da 
história, da filosofia, da história da filosofia, da filosofia da história, da verdade. 
 
 
 
2 Todasas citações e apêndices traduzidos são traduções do autor. 
 
 7 
No entanto, a distância alcançada pela filosofia oriental em relação ao percurso ocidental 
não está em ser assistemática ou não. O caminho é o mesmo. A diferença está na linguagem3. 
A linguagem é o que, de um lado, aproxima todos os discursos filosóficos, e, de outro, impõe-
lhes uma barreira e uma distância. 
 
Não conseguimos, portanto, escapar à tarefa de confrontar essa diferença em nosso 
trabalho, principalmente porque todo pensamento é impregnado de linguagem. Assim, antes 
mesmo de passarmos à investigação do que é o Isto para o Hinduísmo, para o Budismo, e para 
o Taoísmo, e antes de investigarmos a busca do Isto em si, traçaremos algumas considerações 
sobre o caminho da linguagem. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
3 Esta tese é, antes de tudo, sobre linguagem. Linguagem aqui não se trata, entretanto, da linguagem entidade 
Linguagem, nem, tampouco, da linguagem instrumento linguagem. Nas páginas que se seguem: linguagem não é 
linguagem: linguagem é a palavra linguagem. 
 8 
PRIMEIRA PARTE 
 
I - A LINGUAGEM 
 
Qual o percurso da linguagem na filosofia ocidental? O que é o Isto da filosofia ocidental, 
da propriamente chamada filosofia? 
 
O pensamento parte da Grécia, já desde os pressocráticos, principalmente com Heráclito e 
Parmênides, como um exercício esmerado de linguagem. Heráclito é quem vai primeiro 
abandonar o caminho da origem do universo para pensar e fazer surgir o Logos. Deste 
primeiro passo surgem os conceitos que, desde os seus mais antigos comentadores, 
permanecem como questões a impulsionar o movimento dos discursos. 
 
O principal objeto dos mais antigos e deliberados esforços para explicar o 
mundo permanece na descrição de seu desenvolvimento a partir de um 
simples, e, portanto, totalmente compreensível, começo. Questões 
concernentes à vida humana pareciam pertencer a um diferente tipo de 
investigação – à tradição poética na verdade, pela qual as antigas crenças 
herdadas, ainda que algumas vezes inconsistentes, eram ainda consideradas 
válidas. Além disso, o estado original do mundo, e o modo como se 
diversificou, eram geralmente imaginados antropomorficamente, em termos 
de um ancestral, ou um par de ancestrais. Esta atitude genealógica persistiu 
mesmo depois do eventual abandono pelos filósofos milesianos da 
tradicional investigação mitológica (...). É parte da originalidade de 
Heráclito que ele tenha rejeitado tal investigação por completo. (KIRK, G. 
S.; RAVEN, J. E. e SCHOFIELD, M: 1983, 8) 
 
 
Ainda entre os pressocráticos, portanto, acontece a separação entre pensar os fenômenos e 
pensar a linguagem. Esta especialização vigora até hoje e foi responsável pela divisão dos 
discursos em filosófico e científico. É devido a esta cisão que muitas vezes se retira o 
pensamento pitagórico do âmbito do pensamento pressocrático, pois passamos a conceber 
 9 
filosofia como o pronunciar-se da linguagem por si só, e não mais "a serviço" de 
investigações científicas, místicas ou míticas. 
 
Para entender o que é esse pronunciar-se da linguagem, basta que comparemos os tipos de 
discurso em que ela se manifesta. Os textos do Budismo Zen lançam mão em particular de 
dois gêneros, o yü-lu (do chinês, "compilação de ditos", "dizeres registrados") e o wen-ta 
("pergunta e resposta"). O cânone pressocrático que nos resta constitui-se de compilações, em 
diferentes épocas, tardias em sua maioria, dos dizeres de diferentes filósofos. Platão utiliza o 
método dialógico, explicado muitas vezes como permanência de uma oralidade que já em seu 
tempo estava com os dias contados, ou mesmo como uma reação ao apelo da escrita, numa 
patente desconfiança. A partir do abandono destes gêneros pelo ocidente, o texto filosófico 
torna-se quase uma entidade, uma verdade que se pronuncia, que se gera. Ninguém pergunta 
por ela, e eis que, de repente, brota, passando-nos a impressão de que não foi obra de um 
filósofo, mas a própria verdade que se pronunciou, que se doou à escuta. 
 
A linguagem não é A Linguagem, não é uma entidade. A linguagem é a palavra linguagem. 
Ao dizer filosofia é linguagem, tendemos a pensar num movimento recíproco que não é 
verdadeiro. Linguagem não é filosofia. Linguagem é sempre predicado, um predicado que se 
quer sujeito, exorbitando a esfera de suas possibilidades. 
 
É por esse tratamento conferido à linguagem que a filosofia de tradição ocidental é 
marcada pela cisão, pela dialética, pela crítica, pelo combate, e, acima de tudo, pelo eterno 
retorno da tentativa de superação de si mesma. Mas uma superação que nunca chega a atingir 
seu fim, pois sempre parte daquele mesmo isto que constitui o objeto a ser superado: a 
linguagem. 
 10 
A cisão empreendida pelo filósofo de Éfeso, além de definir os limites entre filosofia e 
ciência, erigiu uma barreira que separou estas duas instâncias definitivamente do discurso 
mítico, que, primitivamente, reunia em si todas as possibilidades da linguagem. Reunir em si 
todas as possibilidades da linguagem não significa, porém, ser uma linguagem mais "pura", 
significa apenas reunir pensamento cosmológico, pensamento lógico e pensamento da 
linguagem, todos, ainda, como pensamento. 
 
A linguagem, seja para os mitos ou para a ciência, é sempre discurso. Mas, como a 
linguagem da filosofia, após os pensadores originários, tornou-se cada vez mais especializada, 
mais distante de qualquer possibilidade de reunião, houve a necessidade de se resgatar uma 
instância primeira, uma protolinguagem filosófica, aliás, uma linguagem despida de qualquer 
termo adjetivante, uma linguagem substantiva; nem mesmo isso: uma linguagem linguagem. 
Linguagem. 
 
Por isso, há o retorno ao caminho iniciado por Heráclito. Ao chegar lá, os filósofos do 
ocidente olham para trás e tudo o que veem são os mitos já bastante degenerados, já bastante 
dispersos, fragmentados, que se conservam esparsamente em Homero e Hesíodo4. O que fazer 
com um discurso em ruínas, o que fazer com ecos que mal podem ser ouvidos da distância? O 
pensador toma então uma nova decisão. Tenta resgatar os mitos como origem do pensamento, 
como fonte de toda linguagem, como linguagem propriamente, uma linguagem concreta, e, a 
partir deles, tenta novamente refazer o caminho de volta até nossos dias. 
 
 
4 Esta afirmação, que soará estranha a alguns, não intenta de modo algum diminuir a importância destes mitos 
para a nossa cultura, sobretudo a nossa cultura enquanto fundamentada numa época idealizada de Homero e 
Hesíodo. Como não cabe aos propósitos deste trabalho estender-nos sobre este assunto, indicamos alguns 
pesquisadores que tratam da questão do processo de degenerescência do discurso mítico na Grécia Antiga. Ver 
KIRK, G. S., RAVEN, J. E. e SCHOFIELD, M com relação aos mitos do oriente próximo e OTTO, W. para uma 
confrontação com os hinos homéricos, e sobre uma possível heterodoxia daqueles autores. 
 11 
Acredita-se, dessa forma, que possa haver uma linguagem concreta, que traria em si uma 
experiência originária. Esta é uma via que nasce da própria negligência com a verdade de 
fazer o caminho em direção a si mesmo, em conhecer-se: a linguagem em que se funda a 
filosofia ocidental, e, não só ela, mas toda linguagem, é abstrata, é raciocínio, é logos. Ir à 
origem não quer dizer necessariamente encontrar uma linguagem originária. Origem só pode 
ser entendida a partir de um movimento de fora, ou seja, de quem já se encontra longe da 
origem. Mas, é verdade que estamos fora da origem? Se estamos, como compreendê-la, se 
não estamos, por que buscá-la? 
 
A cisão que houve nos modos de pensar nãopode ter havido na linguagem. Não há 
linguagem anterior, ou posterior, ou concreta, ou abstrata, ou originária. Ela é sempre 
originária, pois é sempre condição humana, a partir dela tudo o que é humano brota. A menos 
que tivesse ocorrido uma cisão também no humano, poderíamos distinguir dois apelos da 
linguagem e estaríamos à procura igualmente desse outro que ficou para trás. O homem é 
sempre o mesmo, pois a linguagem é sempre a mesma. A linguagem do homem, portanto, não 
é a linguagem do homem. É a linguagem, que lhe confere existência. 
 
No pensamento oriental essa experiência traduz-se numa angústia. O filósofo oriental 
sente-se assolado pela linguagem, como o filósofo ocidental sente-se assolado pela existência. 
Em lugar de se encontrar para além de uma instância do ser, a existência conferida pela 
linguagem no pensamento oriental é, antes de tudo, uma instância delimitada por ela, 
determinada por suas infinitas manifestações. É preciso cessar esse mostrar, esse aparecer da 
linguagem sob diferentes formas, é preciso dominá-la. 
 
 12 
"A palavra que eu pronuncio me domina, a que eu não pronuncio é dominada por mim" 5. 
Eis uma conduta que se apresenta de uma maneira bastante heterodoxa aos nossos olhos 
carregados de linguagem. Dominar a linguagem é para nós, no mínimo, estéril, sem o extático 
prazer de se deixar dominar por ela. No entanto, esta frase constitui um princípio, constante 
em todo o pensamento oriental. 
 
Um pensamento que não se deixa dominar pela linguagem, que evita os discursos. Isso, 
contudo, não quer dizer que não produza obras filosóficas; é extensa a produção na Índia, na 
China, no Japão, na Pérsia. É, por outro lado, uma produção que apresenta um cuidado com a 
linguagem bastante diferente. Tentaremos daqui para frente dar algumas indicações do que 
seria esse cuidado, entretanto, isso só pode de fato ser sentido num contato direto. Assim, 
estudaremos nos próximos capítulos uma ínfima parte, é certo, dessa extensa produção, tendo 
sempre em mente a busca do Isto nos diferentes modos de pensar, bem como o caminho 
trilhado em cada busca. 
 
Mas, em que, verdadeiramente, constitui esse domínio? Dominar significa tornar-se 
senhor. E já não são os homens, todos, senhores da linguagem? 
 
Não. 
 
É um lugar-comum a ideia de que a linguagem é o que diferencia os homens dos demais 
habitantes da Terra. Aliás, é com e pela linguagem que é ele o único a habitá-la. Enfim, é ela 
que confere a humanidade do humano. 
 
5 Esta frase encontra-se no Kalila e Dimna, tradução para a língua árabe de uma versão persa de uma obra 
considerada, pelo saber que encerrava, um tesouro da Índia, cobiçado por muitos reis: o Pañcatantra. Como 
nada que é dito num texto de tradição oriental, principalmente nas fábulas, diz o que está dizendo, deve-se tomar 
o cuidado com a "palavra". 
 13 
A linguagem é própria à condição humana. Desse modo, todos os homens compartilham 
essa condição e, mais do que isso, sofrem essa condição. A linguagem é, a um tempo, 
condição e gênero. A partir dela todo humano brota, nela habita o homem; a partir dela o 
homem constrói, nesta construção habita o homem; a partir dela o homem destrói, nesta 
destruição habita o homem; a partir dela. 
 
Como pode, então, o homem diferenciar-se dos outros seres se, como todos eles, sofre 
também uma condição, a condição de sua humanidade? Se está sempre correspondendo à 
linguagem? Esse humano corresponder é o voo da águia e o rastejar da serpente. De que 
modo, pode, então, dominar a linguagem se, mesmo quando ela cessa, correspondemos com o 
silêncio. Haveria um meio de escapar à condição humana? 
 
O homem nunca duvidou dessa possibilidade nem por um segundo em toda a sua humana 
trajetória. Ele cria, busca, questiona. Sempre de novo e novamente. Para cada criar, uma 
resposta, para cada busca, uma resposta, para cada questão, uma nova questão. E cuida, assim, 
através da criação, escapar à condição – ao constituir mundo. Entretanto, constituir mundo é 
próprio do homem, que, habitando este mundo, humanamente o sofre. O homem sofre o 
mundo em que habita. Sustenta-o como a tartaruga ao seu casco. A linguagem, genus de todo 
movimento e criação, é humano casco. 
 
A rota de fuga traçada pelo homem só o tem levado cada vez mais ao centro do labirinto. 
E, quanto mais ao centro, mais próximo da linguagem; quanto mais em sua proximidade, mais 
acredita que escapou à sorte dos outros seres. Quanto mais afirma sua humanidade, mais 
afirma sua condição; quanto mais nega essa condição, mais afirma sua humanidade. Nunca do 
mesmo modo, e, portanto, sempre do mesmo modo, o homem corresponde. Não há como 
 14 
fugir. Uma leoa, que, num dia caça uma zebra, em outro um bisão, e, em, outro, se não sentir 
fome, descansa à sombra, está sempre caçando. Assim também é o homem com sua própria 
determinação. 
 
O homem é um ser determinado. Imaginando a determinação como movimento voluntário 
e criativo, não desperta para o fato de que voluntário e criativo é o corresponder determinado 
do homem. O homem não está desperto, mas é preciso que desperte para tentar dominar a 
linguagem. Mas, ainda, pouco antes de despertar, o homem desespera. Para desesperar é 
preciso ainda um outro movimento: é preciso que se depare. 
 
O homem se depara quando percebe o movimento. Percebê-lo é parar. Quando para, o 
homem depara-se com alguma coisa. Esta coisa faz com que se desespere. O que é isto que o 
faz desesperar? Esporadicamente o homem depara-se com a morte e isso muitas vezes o faz 
desesperar. O desespero causado pela visão da morte leva-o a criar cada vez mais. É um 
deparar que não para o movimento. Ao contrário, perpetua-o. 
 
O deparar-se com a morte é um deparar estático de algo que, em cessando, faz com que o 
homem deseje o movimento, impulsionando-o sempre de novo, a cada nova morte. Ao desejar 
escapar da cessação da morte, o homem esquece que ela também é a linguagem que o atira 
sempre em frente e o domina. Como cessação não consegue angustiar o homem tanto como a 
sua outra faceta, que tanto pode levar à criação quanto à não-criação. Esta outra manifestação 
da linguagem é a mutação. 
 
Antes de se deparar com a morte, o homem depara-se perplexo com a transitoriedade. Na 
vida de Buda, o consciente da transitoriedade por excelência, isto fica bem claro. Suas quatro 
 15 
visões, ao contrário do observado em hagiografias católicas, não têm nada de 
"extraordinário": são o próprio extraordinário que possui morada no comum, em todas as 
partes. Mais do que visões, a experiência de Buda é de contemplação. É uma contemplação 
no espelho de um rio em curso, a impossível contemplação, pois tudo flui em águas sempre 
turvas pelo seu revolver constante. Sua contemplação perfaz o seguinte curso: 
 
A visão do ancião; 
A visão do enfermo; 
A visão do cadáver; 
A visão do asceta. 
 
A morte, portanto, é apenas mais um entre os aspectos da mutação. A morte é uma entre as 
mudanças. Não ocupa uma posição privilegiada no rol das angústias humanas. Não é A-
Questão-Humana. Talvez, nem mesmo exclusiva do homem. Esta constatação provoca o 
homem, incitando-o a desejar a superação da transitoriedade e partir em busca. A busca acaba, 
como acontece sempre que se quer mudar o destino, por fazê-lo aproximar-se cada vez mais 
da verdade da triste constatação: tudo passa. Mas, enquanto em busca, não se dá conta de que 
aquilo que busca, o permanente que permanece diante de todas as transformações – o Uno, a 
Essência, o Vazio, o Tao, ou o Isto – também é impermanente. Não há mundo que gira, pois 
isso necessitaria de uma perspectiva, de um ponto de vista, de uma visão de fora. Só há o 
movimento, e nele, ele mesmo, tudo, passa. Ignorar essa verdade é partir em busca. E a busca 
só aumenta a velocidade das transformações transitórias. 
 
 
 
 16 
II - A DEMANDA 
 
Umdos mais importantes rituais hindus era o rito de consagração do kshatrya6 herdeiro de 
um determinado reino. Este ritual, em que há o sacrifício do cavalo, é o chamado asvamedha. 
Uma importante etapa do asvamedha é o digvijaya. 
 
Durante um digvijaya, "conquista das direções", um rei, desejando ser aclamado 
imperador, libertaria um cavalo para vagar à vontade em torno de vários reinos adjacentes. 
Algum rei que não aceitasse a jurisdição do aspirante a imperador poderia capturar o cavalo e, 
desse modo, provocar uma confrontação. Outros, permitindo ao cavalo transitar pelos seus 
reinos, atestariam sua subserviência, e deles se esperaria o pagamento de tributos. 
 
O cavalo, nos primórdios da cultura indo-européia, está sempre associado aos rituais de 
conquista do outro mundo. Ele era o elemento que unia os dois mundos. Está, por isso 
mesmo, associado à água, aos oceanos. É montaria de Possêidon, cultuado em Tróia; é 
associado a V�runa, deus dos oceanos no Hinduísmo. Contudo, ao longo dos séculos e das 
conquistas arianas nas quatro direções, este papel do cavalo foi-se esvaecendo, seu status 
sagrado dos rituais védicos, e, profano, de ligação com os reinos ínferos, apagou-se da 
memória das gerações. Com a expansão das conquistas, expande-se o sentido do digvijaya, 
expandem-se suas proporções, seu poder bélico. 
 
Isso se encontra muito bem ilustrado nos grandes épicos hindus: o Mahabharata e o 
Ramayana. Aí, o ritual perde muito de seu simbolismo para se tornar apenas uma prática arma 
 
6 Os termos em Sânscrito ou Chinês que não tenham sido incorporados ao Português, ou com os quais não 
tenhamos familiaridade, não estão transcritos foneticamente, mas transliterados de modo convencional, sem uso 
de símbolo especial. O sh representa dois sons distintos em Sânscrito que correspondem mais ou menos ao nosso 
dígrafo (ch). O ch, por sua vez, deve ser pronunciado como uma africada, semelhante ao inglês chair. Todos os 
demais h devem ser pronunciados com uma aspiração como no inglês madhouse ("mad-house"). 
 17 
de dominação. Representando todo o poder bélico de um determinado clã, o cavalo é agora 
um entre muitos, utilizados como montarias a serviço de bigas que conduzem jovens 
guerreiros com seus exércitos. A conquista não é mais uma questão sagrada, mas terrena, com 
homens e armas terrenos, sem mitos, sem mistério. Desta maneira, o antigo ritual torna-se 
uma questão sangrenta, de invasões, de violência. Ao dominado não é mais permitido prestar 
reverência a um ser divino, a contemplar uma visão extraordinária. Esta mudança de conduta 
irá operar uma nova mudança do digvijaya. 
 
Conta-se que foi o rei Ashoka, que viveu entre os séculos III e II a.C., e unificou de 
maneira violenta os reinos da Índia, dominando de maneira mais ou menos direta o vasto 
território compreendido entre o Afeganistão e o Sri Lanka, que operou esta mudança. 
Atormentado pela truculência de suas próprias ações, parte pelo mundo numa outra conquista, 
uma conquista espiritual, de libertação. Ashoka torna-se, por influência de sua esposa, o 
primeiro rei budista e passa a divulgar os ensinamentos de Buda até o sul da Índia. Assim, ele 
instaura um novo digvijaya, o chamado dharmavijaya, a conquista do dharma, da correta 
conduta. 
 
A partir daí opera-se simultaneamente uma transformação no conceito de herói. Vira, que 
antes designava o jovem militar, o jovem príncipe, um kshatrya, ou seja, um membro da casta 
dos guerreiros, começa, pouco a pouco, a designar o sábio ou o santo, como aquele que 
conquistou a si mesmo. A esta mudança na concepção do ritual e do herói corresponde a 
utilização do digvijya como tema literário. E como tema literário possui uma amplitude de 
sentido ainda maior. 
 
 18 
Na literatura contemplamos diferentes buscas, diferentes conquistas em diferentes planos. 
Ainda há a conquista concretizada pelo guerreiro, mas ao seu lado atuam as conquistas 
amorosas (estas são as mais recorrentes), e as conquistas espirituais. Entre o vira guerreiro e o 
vira santo, surge um novo herói, que, comparado aos nobres propósitos de seus antecessores, 
ocuparia uma escala mais baixa de heroísmo. E que se espalharia pelo mundo como o herói 
típico dos romances de aventura, dos romances picarescos, até se traduzir em modelo de herói 
de nossos dias, nós que não buscamos mais nada. 
 
Várias obras iniciam-se com o tema da viagem de jovens príncipes e seus fiéis escudeiros 
em busca da realização, seja ela material (com os reinos e poder), sensual (com mulheres e 
riquezas) ou "dhármica" (com o cumprimento de seus deveres como chefe de estado, ou com 
crescimento espiritual). O digvijaya, deste ponto de vista, como tema literário, é universal – o 
tema da errância, do cavaleiro errante que tão bem ilustram as mais diversas novelas de 
cavalaria. 
 
E, no entanto, tudo isso nasce a partir daquela busca inicial. Da busca buscada por quem 
contempla o transitório estado de tudo. A busca pelo permanente subjacente a toda 
transitoriedade. Não foram só a Buda concedidas aquelas visões, sempre inaugurais. Não é 
preciso ser como os santos para encarar a velhice, a doença, a morte e a outra morte. 
 
E foi essa mesma melancolia incutida por essa mesma busca, que levou o homem a 
desenvolver sistemas filosóficos, a querer compreender o funcionamento, a grande máquina 
do mundo. O que antes lhe advinha como concessão divina, ou como prêmio após a sua 
errância, mas nunca, de fato, chegava, ele teria que conquistar de uma outra maneira, errando 
por outros caminhos – o caminho da linguagem. Assim o homem tem errado nesta outra 
 19 
busca, tida muitas vezes como superação das ingênuas buscas sagrada e literária – a busca 
pelo conhecimento. 
 
O permanente que antes era concebido como a perpetuação de uma vasta dinastia sobre a 
terra ou como a glória de um nome numa obra, agora seria suplantada pelo domínio da 
Verdade. A Verdade é o Isto de todos os sistemas filosóficos. Todos eles querem encontrar, e 
não só isso, mas também sistematizar, uma verdade que seja universal, pura, concreta, e, 
principalmente, imutável. 
 
Um texto clássico da China, e que percorre uma história anterior a 1500 anos antes de 
Cristo até nossos dias, é o tardiamente chamado I Ching (ou "livro", "clássico" – Ching – das 
"mutações" – I). Ele é uma incógnita para nós, mesmo para os chineses, pois lida com 
símbolos que não se encontram em mais nenhum outro lugar. E assim, diversas especulações 
têm sido feitas acerca de seu sentido. É, originalmente, um livro composto apenas por 
elementos, figuras lineares, sem nenhum texto, e assume-se que ele teria sido utilizado em 
rituais divinatórios a princípio, e, mais tarde, também como compêndio filosófico, para 
investigações acerca do conhecimento. Entretanto, estas funções foram atestadas já 
tardiamente pela Dinastia Chou, quando foram escritos textos explanatórios acerca de cada 
elemento do livro. 
 
E, para provar que nada permanece, nem a mais pura das descobertas filosóficas, os textos 
explanatórios também se obscureceram com o tempo, e foi preciso que Confúcio (segundo 
alguns; segundo outros, que seus discípulos) acrescentasse novas explicações àquelas 
providas pelo Rei e pelo Duque da Dinastia Chou. Hoje esta é uma obra que permanece 
inacessível. Toda obra o é. Apesar de não ser visível, como ocorre com os símbolos do "I", 
 20 
todo símbolo é transitório porque é uma coisa e como coisa muda; seu sentido é sempre 
imediato, mesmo quando pensamos estarmos diante de grandes questões universais. 
 
Tudo é "I". E ainda assim há a distinção, criando um ponto de vista, um ponto de partida 
de onde se poderia contemplar a transitoriedade. Quem parte em busca corre sempre o risco 
de descobrir que não há esse eixo em torno do qual giraria o mundo e que caberia a nós 
descobrir para alcançar a eternidade, a cessação,a verdade, o vazio, o tao. Dizer "Tudo é um", 
"Tu és aquilo", "Tudo passa", ainda é crer na possibilidade de contemplação da coisa. A coisa 
nunca pode ser contemplada, pois giramos com ela, e nosso discurso gira conosco, tudo gira 
ao mesmo tempo. Esta é a impossível contemplação do rio. 
 
Buda percebe que não há caminho, não há permanente, não há verdade, não há essência, 
mas perceber isto é não poder dizer isto, o dizer é um Isto, o não dizer também. E, pela 
errância dos discursos, que superam a nós mesmos (que julgamos ser os pronunciadores dos 
discursos), o Budismo é tanto inaugurado como um sistema filosófico, quanto como religião. 
 
Maior do que a impossibilidade material de se apreender a transitoriedade das coisas, 
maior do que a impossibilidade visual de se contemplar a transitoriedade das coisas, é a 
impossibilidade filosófica, da linguagem, de se pensar, ou melhor, de dizer a transitoriedade 
das coisas. Não há rio, não há ideia que acomode ou desacomode a transitoriedade das coisas, 
pois o rio e a ideia existem tanto quanto as coisas, que não existem, nem não existem. Esta é a 
impossível contemplação do rio. 
 
 
 
 21 
III - O CAMINHO 
 
O percurso da tradição oriental também se faz com e pela linguagem. É preciso que se 
tome conhecimento disto. É exercício de linguagem, é discussão, é pensamento. Os caminhos 
são diferentes, mas existe o caminhar, a busca. E a busca, que é sempre pelo Isto, é também a 
mesma busca desse percurso. 
 
Não só no ocidente há a questão "o que é o Isto?". Não só no ocidente ela vem sendo 
respondida de diferentes modos. As inúmeras escolas de pensamento no oriente, sejam da 
Índia, da China, ou de qualquer outro lugar onde tenha lugar a questão, elaboraram vastas 
obras, promovendo intensas discussões acerca do tema. Neste trabalho procuramos discutir 
como a questão está presente. 
 
Apresentaremos as filosofias orientais como escolas, que trabalham na elaboração de seus 
discursos, que buscam o Isto. Não apenas como filosofias "de vida" que podem ser tomadas 
fora de seus contextos e aplicadas na vida de indivíduos que sigam outro percurso filosófico. 
 
Muitos serão os questionamentos. Hinduísmo não é religião? Budismo não é religião? 
Taoísmo não é religião? Todos eles não são uma espécie de idílio de serenidade e sabedoria 
almejado por uma cultura que caminha numa velocidade atroz rumo ao aniquilamento traçado 
por seu próprio percurso filosófico-científico? Estas "doutrinas" não estão aí a nosso serviço? 
Não são a resposta a todas as nossas ansiedades consumistas? Não são elas apenas "filosofia 
de vida"? 
 
 
 22 
É, no mínimo, curioso o fato de a filosofia ocidental, que vem refazendo seu caminho a fim 
de resgatar os mitos como fundadores, não conseguir reconhecer como filosofia sistemas de 
pensamento que ainda co-habitem com eles, que não se dissociem da religião. Ainda mais 
quando, no fundo, qualquer filosofia é sempre religião, mesmo as que não mais vivenciam a 
proximidade de seus mitos. 
 
Realmente, não se deve confundir mito e religião, nem podemos confundir: 
desconhecemos o que seja mito. E, atualmente, desconhecemos religião. Sim, corremos então 
o risco de confundi-las por nossa própria ignorância. Ambas são um mistério e o que mais se 
aproxima de mistério, o que nos chega sempre como tal é a filosofia. Filosofia requer uma 
iniciação em seus mistérios, há ali sempre um discurso que nos escapa, um fundamento que 
não podemos (não nos é lícito), ou não somos capazes de ver. 
 
Jamais nos iniciamos em filosofia, contudo. Nós a estudamos, como a um objeto, como se 
não o estivéssemos, de certa forma, ajudando a montar. Como se não fosse quase impossível 
desmontá-lo. Queremos conhecer as raízes de uma árvore através de seus ramos mais finos, os 
que nos espetam os olhos, e, por isso mesmo, nos presenteiam com uma cegueira que, de 
modo algum, tem sido passageira. Mas será que desejamos, de fato, conhecer essas raízes tão 
profundamente arraigadas em nós mesmos? Talvez sejamos nós os primeiros a nos arremessar 
violentamente em seus espinhos para que não vejamos: a verdade da origem do nosso 
pensamento. 
 
Buscamos nossa origem de fora, de cima, do alto, ao rés do chão, de forma rasteira ou 
elevada. Nunca descemos, cavamos, desenterramos. Ela sempre parece nos iludir como a 
inscrição tumular que diz ao caçador de tesouros: “Oh, homem, quem quer que sejas e de 
 23 
onde quer que venhas, pois estou certo de que virás, eu sou Ciro, que conquistou o império 
dos persas, e rogo-te não tenhas nenhuma inveja deste pouco de terra que cobre meu pobre 
corpo”7. 
 
Mas não são só tesouros que se encontram sob a terra que cobre o cadáver de alguém. 
Além do cadáver, que lá se encontra, pode haver uma maldição, uma praga, uma peste. Houve 
já um filósofo que desenterrou o cadáver originário da nossa filosofia, e, ao fazer isso, 
despertou um mau cheiro que, se não nos assola desesperadoramente, se não nos 
incomodamos com ele é porque somos nós mesmos que continuamos a exalá-lo em nossos 
próprios corpos, em nossa mente, em nossa filosofia. Quando ele pioneiramente o desencavou 
esperava causar náusea, esperava que nós renegássemos toda uma tradição putrefata que 
contaminava há milênios nosso pensamento. Mas o fato é que já abraçávamos a carniça e o 
seu cheiro nos era costumeiro, mais do que isso, uma fragrância que nos agrada e com a qual 
nos perfumamos diariamente: o cristianismo. 
 
Nietzsche vai desencavar a origem da filosofia ocidental num terreno que a nós sempre 
professa o testemunho enganador da lápide de Ciro. Passamos sempre ao largo desse pedaço 
de terra que, no entanto, parece esconder o nascimento do mundo inteiro: o Oriente Médio. É 
lá que o filósofo alemão vai encontrar o tesouro que buscava. A origem da filosofia ocidental 
encontrava-se nada mais nada menos do que no pensamento judaico, cujo princípio 
inquebrantável é ser sacerdotal, do qual seriam apenas derivações o que chama de 
cristianismo primitivo, em menor grau, e o nosso cristianismo atual, num grau 
acentuadíssimo. A conformação sacerdotal é a própria condição de ser do judaísmo: se não é 
sacerdótico, não é. O próprio ser só é concedido ao divino, e quem o concede ao divino 
 
7 Alexandre avançando com suas tropas pelo território iraniano chega à tumba de Ciro, o fundador do grande 
império persa. Pensando encontrar ali tesouros chocou-se com a simplicidade do sepulcro encontrando apenas 
uma espada, dois arcos cítios e a inscrição citada. 
 24 
unicamente, é o sacerdote. É desse pensamento que deriva a filosofia dita “dos gregos”, dita 
“ocidental”, dita “Filosofia”. Quem concede essa instância privilegiada a ela, quem lhe 
concede o ser são os sacerdotes, os filósofos. Por isso, podem negar o ser, a “Filosofia”, das 
outras filosofias, porque foram eles que negaram há muito tempo o ser de todos os deuses, de 
toda a dinâmica da multiplicidade de todos os deuses para apontar o ser exclusivo do único 
deus, para proferir a profissão de fé da unidade divina, para professar a verdade. A verdade 
está na unidade. Não tão conscientes disso os filósofos atualmente professam a seguinte 
verdade: “Filosofia fala grego e somente grego!” Quão cristão, e quão semelhante não é da 
shahâda islâmica: “Não há deus senão Deus e Maomé é seu profeta.” 
 
Artigo Segundo – Qualquer participação num ofício divino é um atentado 
contra a moral pública. Seremos mais duros para um protestante do que para 
um católico, mais duros para um protestante liberal que para um puritano. 
Quanto mais próximo se está da ciência, maior é o crime de ser cristão. Por 
conseguinte, o maior dos criminosos é o filósofo. (NIETZSCHE: 2000, 129.) 
 
Ao estabelecer as suas “leis contra o cristianismo”, pensava o filósofo que inauguraria a 
partir daí um novo calendário, um dia “da Salvação”. Sua preocupação era menoscom a 
redenção dos homens do que com a da própria filosofia e não percebia que se utilizava 
também de um discurso messiânico, de levar a luz a todos os homens, tão próprio ao judaísmo 
de que se queria salvo. O próprio filósofo que, mais do que todos, embrenhado em sono 
profundo, pensa ser seu o dever de fazer acordar a humanidade. 
 
 
Ao homem, entretanto, convém a crença na verdade alcançável, na ilusão 
que se aproxima de modo confiável.(...) Curiosidade fatídica dos filósofos, 
que possibilitou olhar para fora e para baixo, por uma fresta na cela da 
consciência: talvez o homem pressinta, então, que se apóia no ínfimo, no 
insaciável, no repugnante, no cruel, no mórbido, na indiferença de sua 
ignorância, agarrado a sonhos, como sobre o dorso de um tigre. 
“Deixem-no agarrar-se”, grita a arte. “Acordem-no”, grita o filósofo, no 
pathos da verdade. Mas ele mesmo mergulha em sono ainda mais profundo, 
enquanto acredita estar sacudindo aquele que dorme (...) (NIETZSCHE: 
2005, 29-30) 
 
 25 
Para esta verdade, contudo, ninguém quer estar desperto. Há uma repulsa, convulsão, 
náusea, instantâneas, como as que causa a presença de um cadáver horrendo e podre: Filosofia 
é sempre religião. 
 
Filosofia é sempre religião porque está sempre lidando com a crença. É a crença em 
determinado conceito, em sua validade, que movimenta a roda dos discursos filosóficos e que 
dirige seus fiéis, os filósofos, para a mesma trilha de seus profetas. O caminho em busca do 
Isto de qualquer filosofia é antes de tudo uma peregrinação. 
 
De outra parte, os mitos sempre fundamentaram os discursos filosóficos. A cisão entre 
mito e filosofia foi um empreendimento ocidental, mas não foi um empreendimento 
voluntário. Há muito o conhecimento transmitido por eles já teria se perdido para que 
tivessem se degenerado em meras histórias de deuses, tão criticadas por Platão, cujas críticas 
confundem-se com um moralismo, uma correção, mas que, de fato, refletem essa mesma 
percepção da distância. 
 
Além disso, deve-se sempre levar em conta que a descrença na religião é, também, própria 
dos filósofos, que, em qualquer cultura, são aqueles que tentam dominar o discurso, que têm 
consciência dos discursos, sejam eles religiosos ou filosóficos. A consciência de que o 
discurso religioso é só isso, discurso, e de que como discurso já se encontrava bastante 
inconsistente, levou o ocidente ao desapego da fé religiosa. Entretanto, ainda não acordara 
para o fato de que o discurso filosófico também não passa de discurso, e, por isso, houve uma 
mera substituição do objeto da fé. O ocidente tirou do altar os deuses e colocou o filósofo, a 
Filosofia. 
 
 26 
A fé na filosofia é um princípio da cultura ocidental. E a sua filosofia é linguagem, é o 
caminho da linguagem, a busca da linguagem. Ela é tão cara ao filósofo que, mesmo quando 
nos chegam apenas extratos fragmentários de um determinado pensador, busca-se a sua 
reconstituição. Qualquer palavra é importante nesta trajetória que se faz muitas vezes por uma 
via unicamente filológica. Heidegger (HEIDEGGER e FINK: 1973), por exemplo, distingue 
dois extremos na discussão do pensamento de Heráclito: a filologia pura que julga sozinha dar 
conta de todo o pensamento, e o filosofar instantâneo que se disfarça em muito pensar. Entre 
os dois diz haver uma terceira via que deve buscar na tradição a compreensão, o sentido e a 
interpretação. 
 
A linguagem no percurso filosófico do ocidente é um caminho, ou melhor, o caminho. Para 
as filosofias orientais que estudaremos a seguir a linguagem é um obstáculo, ou melhor, o 
obstáculo. Mesmo sendo ela sempre obstáculo e, em todos os lugares, caminho. 
 
Nem sempre o caminho mais fácil é o mais rápido; nem sempre o mais longo é o mais 
difícil. E tomar o rumo da linguagem é caminho costumeiro de todos os homens, demorar-se 
em suas paragens constitui-se mesmo um vício de linguagem. Difícil é levitar, é não ser 
incomodado por pedras, é não se iludir com a falsa impressão de possibilidades que a 
encruzilhada dá. Difícil é tirar os olhos do caminho, do chão. Este é o caminho mais curto, 
porém. Este, que é o caminho mais difícil. 
 
Empenho mais acurado com a linguagem é procurar evitá-la. É, fazendo-a aparecer, resistir 
a ela. Mostrar que é um empecilho, não uma via. É por esse motivo que é muito difícil estudar 
as filosofias ditas orientais. Não porque elas trabalhem com a linguagem de modo a torná-la 
inacessível, mas porque a própria linguagem dificulta o acesso. 
 27 
Entretanto, assumimos que mesmo esse cuidado com a linguagem é um cuidado com a 
linguagem. Pensamento é linguagem. A linguagem é tudo o que nos é possível, é tudo o que 
conhecemos. Os mitos, a religião, a filosofia, a ciência, e mesmo a descrença em tudo isso é 
sempre linguagem. 
 
Todo pensamento é linguagem. Quando se afirmou anteriormente que o Isto da filosofia 
ocidental era a linguagem, havia o intuito de se chamar atenção para o seu percurso, o seu 
caminho e a sua busca. E, esse buscar da linguagem revela-se como perseguição, 
infinitamente seguindo os passos de uma tradição em direção à superação pela linguagem. 
 
Na tradição do pensamento ocidental, o cuidado com a linguagem dá-se no cuidado como 
cultivar, acolher, resguardar do logos; crê-se no logos como lugar onde habita a verdade e não 
é por acaso que o mito no ocidente cedo se transformou em logos. Em textos filosóficos do 
Budismo ou Taoísmo, o cuidado com a linguagem é o cuidado de quem se resguarda do seu 
domínio. 
 
A possibilidade de linguagem deve necessariamente pré-existir sua 
descoberta e uso. Seu ponto de partida recai, não na mudança de costumes, 
mas em princípios eternos. O rol de nossas possibilidades de conhecimento é 
determinado pelos limites da linguagem. (DANIÉLOU: 1987, 252) 
 
 
A certeza de que os limites da linguagem impõem limites ao pensamento, ao próprio 
conhecimento, leva o sábio a desejar transcender a linguagem. A linguagem é o caminho, a 
via por onde almeja chegar à superação o filósofo. Ao pensar escolher o caminho a seguir, 
não percebe que caminha pelo único caminho possível. Um caminho que, longe de levá-lo ao 
lugar que procura, cerceia os seus horizontes. Ao pensar escolher o caminho, o filósofo 
imagina-o pleno de possibilidades, como via de infinitas possibilidades. Assim, não tira os 
 28 
olhos do caminho, não sabe se percorre tranquilas pradarias floridas ou desertos áridos e 
tempestuosos. Ao pensar que escolhe o caminho, pensa que é o guia e não que é guiado, como 
um cego que não tirasse os olhos do chão. 
 
A crítica feita a Platão ao longo dos séculos tem se revelado infrutífera com relação à 
tentativa de superação da ideia. Localiza-se a origem do pensamento abstrato, discutem-se 
seus efeitos na trajetória do pensamento ocidental, busca-se o resgate de um modelo 
originário, mais concreto, através dos mitos. Mas não se chega a reconhecer que o resgate é 
debalde, pois não se questionou a origem de toda abstração que mora na linguagem. Os mitos 
são, de fato, o que mais se aproxima de uma experiência concreta (ou, talvez, apenas não nos 
tenha chegado a totalidade de suas abstrações), mas, ao tentar resgatá-los, o filósofo tende a 
fazê-lo com uma linguagem racionalizante, com investigações etimológicas, históricas ou, 
mesmo, mitológicas. Portanto, o mito já há muito se tornou o que talvez sempre tenha sido: 
logos. 
 
Mito é logos porque o mito diz. Dizendo, o mito pronuncia-se. O que diz o mito? Quando 
essa questão é feita acerca dos mitos fundadores do ocidente, torna-se muito difícil de ser 
pensada. 
 
Ainda não se atentou para o fato de que mesmo o mais "concreto" dos discursos ainda é 
linguagem, a mais "concreta" manifestação da linguagem é fenomênica. Como dizer e 
mostrar, o fenômeno não exclui o dizer, não é livre do dizer. É bem difícil ver (justamente 
porque é o ver que está em questão), mas, mesmo no mostrarnão há concretude. É essa 
confusão que faz com que vejamos concretude nos mitos, que vejamos concretude nas origens 
do pensamento ou no Oriente. 
 29 
É claro que, comparado à nossa forma de dizer, de ar-ti-cu-lar pensamento, um discurso do 
Budismo ou de tempos anteriores parecerá mais concreto. Mas só o que todos eles são: 
discurso. Sobre as origens não se pode saber mais do que aquilo que elas nos trazem de ecos, 
mas o pensamento budista tem consciência disto, não pretende fugir da linguagem, sabe que 
isso não é possível, pois é ela que determina e limita o caminho do próprio conhecimento, 
mas seu cuidado e desconfiança com ela é que são, digamos, mais "concretos". 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 30 
IV - OS CAMINHOS DA LINGUAGEM 
 
Em diversas escolas filosóficas do Budismo, o conhecimento percorre etapas que vão do 
mais baixo, mais elementar, e, por isso, mais acessível – transmitido por meio do fala – passa 
pelo estágio do gesto, até chegar ao silêncio. Não devemos cair na fácil armadilha de 
comparar esta instância ao hermetismo em que se movimenta grande parte dos discursos 
filosóficos, porque, no fundo, eles muitas vezes se revelam apenas como um jogo de palavras: 
quem detém as regras básicas de seu esquema pode "decifrá-lo", além disso, podem ser, 
algumas vezes, apenas uma espécie de idioleto de cada filósofo. 
 
Coloquemos, desse modo, lado a lado, dois discursos, dois extratos filosóficos originários: 
 
O Discurso da Flor 
Nos tempos antigos, em uma reunião no Pico do Abutre, Buda apanhou 
uma flor e mostrou-a para a multidão. 
Todos permaneceram em silêncio, exceto pelo santo Kashyapa, que abriu 
um sorriso. 
Buda disse: “Eu tenho o tesouro do olho da verdade, a inefável mente do 
nirvana, o mais sutil dos ensinamentos da aformal forma da realidade. Isto 
não é definível em palavras, mas é transmitido fora das doutrinas. Eu o 
confio a Kashyapa, o ancião”. 
 
 
Fragmento 50 
Ouvindo não a mim, mas ao logos, é sábio dizer: tudo é um. 
 
 
É bem grande a diferença dos discursos. No primeiro texto, tudo o que se acrescenta ao 
primeiro enunciar – que é o gesto – se contrapõe a este, é para se contrapor a este, para validá-
lo ainda mais pela ausência de discurso. O discurso proferido por Buda vai de encontro ao 
gesto. É puro logos, pura enumeração de diversos conceitos sobre a Verdade, sobre o Isto. Ao 
 31 
dizer "olho da verdade", "inefável mente do nirvana", "mais sutil dos ensinamentos", "aformal 
forma da realidade", Buda não está querendo ratificar o gesto anterior pela afirmação, 
definição, conceituação de seu sentido. Mas pela anulação da validade desses mesmos 
conceitos, todos surgidos anteriormente ao ou com o Budismo, mas todos adjetivos. 
 
De modo bastante distinto, a inserção de elementos adjetivos no texto de Heráclito é para 
ratificar através de cada novo conceito adjetivante, com afirmação de validade desses 
conceitos. Tem-se nesse caminho a logia do logos, impregnando-se cada vez mais de 
linguagem, embrenhando-se cada vez mais em suas trilhas que apenas dificultam o acesso. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 32 
V - O JOGO 
 
Já se chegou a dizer que entre os pressocráticos ainda não haveria conceitos. Eles teriam 
surgido a partir de interpretações posteriores. Mas, na verdade, essa questão dos conceitos 
surge daquela opinião de que haveria uma linguagem concreta, não abstrata, não baseada em 
conceitos. Assim parte-se em busca dos substantivos numa linguagem que sempre é, e só 
pode ser, adjetiva. A linguagem, portanto, é sempre conceitual. Mesmo os gestos do Zen são 
conceitos, tanto que eles se cristalizaram, são utilizados, podemos citá-los. Como citar o 
concreto das coisas? Como retirar da linguagem seu caráter abstrato? 
 
Não podemos, dessa forma, concordar com Hegel sobre a natureza substancial dos 
pensadores originários. O que, dessa forma, teriam originado, se o percurso seguido pelos 
seus sucessores foi o da conceituação? Por termos consciência de que toda linguagem é 
abstrata, admitimos os conceitos pressocráticos. Logos, alethea, panta, não são conceitos? 
Sua investigação não é também sempre conceitual? 
 
Pode-se identificar no Fragmento 50 de Heráclito, um conceito: o Uno. Mais do que isso, o 
uno que brota da aproximação de opostos, e igualmente, da oposição de elementos próximos e 
e da identificação de elementos distantes. Não só há unidade entre Tudo e Um, como há 
unidade na diferença entre o Eu e aquilo que pronuncia – o Logos. Entretanto, diversas foram 
as interpretações sobre o que seria o Logos. A dicotomia estabelecida entre o "não a mim, mas 
ao logos" talvez seja o que há de mais perturbador nos textos de Heráclito. 
 
Ouvindo não a mim, mas ao logos. Tem-se aí também um gesto, uma postura como de 
quem aponta. Entretanto, a simplicidade do gesto não se basta a si mesma. A inserção de 
 33 
outros elementos, a produção de mais discurso, causa tanto aclaramento como 
obscurecimento. É própria aos discursos filosóficos a explanação, o cuidado em deixar claro; 
e, ao mesmo tempo, todo este esforço traduz-se muitas vezes como jogo com as palavras, 
como aproximação de opostos, analogias, comparações, refutações. Afirmar os opostos, pô-
los lado a lado é um exercício recorrente, que, apesar de simples, dá a um texto a aparência de 
coisa hermética, misteriosa, sutil. 
 
No entanto, este fragmento é feito de respostas, tudo é dado, tudo está categoricamente 
estabelecido, mas, apesar disto, não é um discurso que se pode perceber com um sorriso. É 
obscuro, causa discussões, diferentes interpretações. O jogo com as palavras é o causador 
deste efeito. Quando se percebe isso, e se percebe que é apenas uma questão de distinção e 
aproximação de elementos que se querem opostos, percebe-se a chave para compreender este 
tipo de discurso. 
 
Uma negação que leva a uma afirmação: as duas juntas são unidade: tudo é um. Para se 
chegar a esta conclusão deve-se negar a unidade entre o Eu e o Logos, entre o ato de ouvir a 
mim e o de ouvir ao Logos. Mas os dois são um – tudo é um. É uma incoerência de Heráclito? 
 
Não. É um jogo. 
 
Num jogo de xadrez as peças brancas e pretas também vivem essa tensão dilatada entre 
aproximação/anulação X distanciamento/ afirmação. Estaticamente, o jogo é só um tabuleiro 
com peças brancas e pretas que ocupam limites demarcados. Esteticamente, essas peças 
articulam-se. Ora joga-se de um lado, ora de outro do tabuleiro; ora com peças brancas, ora 
 34 
com pretas. Tanto faz, basta virar o tabuleiro. Qual o sentido de se diferenciar peças brancas 
de pretas? Qual o sentido em aproximá-las? 
 
O discurso oriental, após examinar peça a peça, e cuidar a respeito de cada categoria do 
jogo, assim como fez e vem Fazendo o discurso do pensamento ocidental, cansou-se do jogo; 
o discurso da flor assinala para o movimento de guardar as peças, juntas, no mesmo lugar, no 
lugar de sempre. Restou a percepção de que o jogo existe e de que o jogamos exaustivamente. 
O fato de analisarmos meticulosamente suas peças desvia a nossa atenção para o fato de que 
estamos apenas jogando, sendo dominados por um jogo em que não estamos de modo algum 
vencendo. 
 
Inúmeros são os fragmentos de Heráclito que se constroem a partir de aparentes oposições. 
A aproximação de contrários forma o paradoxo. Mas o paradoxo é apenas aparente, uma mera 
questão de ausência de determinantes ou de referentes que, se recuperados, poderiam tornar as 
mesmas sentenças, antes obscuras, em inconsistentes do ponto de vista filosófico. Sobre isso, 
aponta-nos Barnes (1982, 74) um fragmento que dá testemunho da construção de seus 
paradoxos: 
Fragmento 61 
A água do mar é a mais pura e a mais impura das águas. Peixes podem 
bebê-la, é saudável para eles; para os homens ela é insalubre e destrutiva. 
(Grifo nosso) 
 
Se dele houvesse restado apenas: "a água é purae impura, saudável e insalubre" estaríamos 
diante de mais um paradoxo. Mas será que paradoxo é simplesmente esse arranjo totalmente 
lógico de opostos? A doxa realmente não compreende tal aproximação? Isso realmente habita 
fora da doxa? A noção de contrariedade não é por si só um conceito dos mais abstratos? 
 
 35 
O paradoxo do pensamento originário grego é baseado numa lógica bastante precisa. Seu 
sentido paira sempre sobre termos adjetivos, na maioria das vezes sem referentes. A 
obscuridade reside em não se saber sobre o que realmente se fala. Daí todo aquele esforço 
filológico que não vê outra saída senão tentar recuperar a substância contida em termos 
adjetivos. 
 
A linguagem, como já dissemos, é sempre adjetiva. Não é de adjetivo e substantivo como 
classes gramaticais que se está falando. As categorias gramaticais de substantivo e adjetivo 
são altamente arbitrárias. Não é por aparentemente não permitir pares de oposição que o 
substantivo guarda em si uma concretude que o adjetivo não possui; não é por aparentemente 
permitir pares de oposição que o adjetivo carece de concretude. A própria noção de oposição 
e aproximação é em si uma noção arbitrária. E, no entanto, ambas as arbitrariedades 
obedecem a uma lógica. É tão lógico aproximar Tudo de Um, quanto afastar Eu (a mim) de 
Logos. Pensamos que é tão lógico opor adjetivos quanto seria ilógico opor substantivos. 
Jamais abandonamos a lógica de nossas categorias arbitrárias. 
 
Ao contrário, "não há solução lógica às palavras paradoxais e ações estranhas que se 
introduziram na escola Zen do sul da China." (DUMOULIN: 1969, 99), não é uma mera 
questão de aproximação ou afastamento de adjetivos vazios de referentes. Não se trata mais 
de obedecer às categorias gramaticais de substantivo e adjetivo. Trata-se agora de revelar a 
inconsistência da linguagem como um todo, a ausência de lógica. Nesta desconstrução, é a 
própria linguagem, sempre adjetiva, que serve ao jogo de oposição e aproximação, é através 
dos discursos, com os discursos e pelos discursos que o processo se dá. 
 
 36 
Exemplos de como a desconstrução do raciocínio lógico se dá no discurso Zen são as 
respostas dadas pelo mestre Chao-chou a discípulos que lhe vinham com questionamentos 
metafísicos: 
 
Quando o corpo se decompõe por inteiro, resta aí uma coisa, a alma 
eterna. O que então acontece com ela? 
O vento está soprando novamente esta manhã. (In: IDEM: Ibdem, 100) 
 
 
O paradoxo Zen é proposto pela própria natureza paradoxal de todo e qualquer discurso. 
Ou: 
 
Uma grande zombaria de todas as regras da lógica. Geralmente, o 
discípulo Zen primeiro procura resolver o problema intelectualmente. Mas 
isso se prova impossível. (...) tal assalto contra os muros da razão humana 
inevitavelmente dá surgimento à desconfiança em qualquer percepção 
racional. (In:IDEM: Ibdem, 130) 
 
 
O discurso proferido pelas escolas do Budismo Zen quer descortinar sua própria 
incongruência, revelar sua fragilidade. Mas é muito difícil perceber isto. Não é com um 
niilismo instantâneo que se pode disciplinar a linguagem, desmascará-la. É preciso muita 
linguagem para fazê-la aparecer. É preciso muita linguagem para fazê-la desaparecer. Um 
lendário episódio que revela o surgimento da cisão dentro do Budismo Zen na China, 
inaugurando duas escolas – a do norte e a do sul – nos mostra como o trabalho com a 
linguagem, mesmo quando se quer evitá-la, é árduo, e, por menos que se diga, extrapola-se o 
seu uso: 
Hung-jên ordenou todos os discípulos a compor um gatha (estrofe ou 
verso) com a finalidade de revelar ao mestre seu grau de iluminação. Desta 
forma, ele planejava descobrir um sucessor a quem passar a insígnia 
patriarcal. 
Destaque entre os discípulos naquele tempo era Shên-hsiu (606-706), 
que, em vista de seus companheiros, merecia a sucessão. Shên-hsiu, 
 37 
entretanto, apesar de bem versado nos sutras, estava ainda longe da 
iluminação. A demanda de seu mestre tomou-o de uma aura de profunda 
apreensão. Mas, finalmente, ele produziu um gatha, e à noite escreveu-o na 
parede do salão do monastério: 
 
O corpo é a árvore Bodhi (iluminação), 
A mente é como um límpido espelho suspenso. 
Cuide em poli-lo todo o tempo, 
Não permita nenhum grão de poeira assentar. 
 
Na manhã seguinte, os outros discípulos leram as linhas com admiração e 
secretamente pensaram que a sucessão estivesse definida. Na presença de 
todos, Hung-jên elogiou a composição, mas, privadamente, disse a Shên-hsiu 
que o poema não mostrava nenhum sinal de iluminação e sugeriu que 
escrevesse outro. Estas linhas estavam destituídas de contradição lógica e 
poderiam ser prontamente interpretadas resolvendo-se as duas alegorias; elas 
não eram, portanto, aceitáveis como uma expressão de verdadeira 
iluminação. 
Neste momento, um jovem de pouca ou nenhuma educação chamado 
Hui-nêng (638-713) estava vivendo no monastério. Ele viera do sul da China 
oito meses antes e pedira ao mestre admissão no círculo de discípulos, mas 
tinha ficado encarregado, em vez disso, de cortar madeira e pilar arroz, 
apesar de o mestre ter imediatamente reconhecido sua extraordinária 
capacidade intuitiva e intelectual. Este rapaz ouviu sobre o gatha, e, como 
não soubesse ler ou escrever, ele pediu para que o lessem a ele duas vezes. A 
partir daí formulou uma segunda estrofe e pediu que esta também fosse 
escrita na parede. Estas foram as linhas: 
 
 
Bodhi não é como uma árvore, 
O límpido espelho não está suspenso em parte alguma. 
Fundamentalmente nada existe; 
Onde então um grão de poeira se assenta? 
 
A admiração de todos os discípulos pelos versos do camponês iletrado foi 
sem limites. E, mesmo assim, o mestre foi reservado em seus elogios. Ele 
apagou as linhas, Dizendo que Hui-nêng também ainda não havia alcançado 
a iluminação. Mas, secretamente, convocou-o em seus aposentos à noite e 
conferiu a ele a insígnia patriarcal. Depois ordenou que fugisse para o sul, 
pois temia a inveja de Shên-hsiu e dos outros discípulos. (In: IDEM: Ibdem, 
81-82) 
 
 
Desta anedota percebe-se o cuidado com a contradição lógica. Mas não apenas uma 
contradição lógica baseada numa lógica a priori ou, pior ainda, no senso comum. Ela não 
pode ser passível de ser recuperada. Porque não há lógica a priori; todo discurso é carente de 
lógica; lógica também é uma abstração, uma arbitrariedade, isto é, mais um nome, mais uma 
categoria da linguagem. 
 
 38 
É isto que se quer fazer aparecer, e não, com um aparente paradoxo, firmar conceitos 
apoiados numa lógica, ou firmar a própria validade desses conceitos pela desconstrução de 
sua lógica (que sempre se assume como existente). A lógica no discurso pressocrático não 
está em jogo. A linguagem é sempre lógica, por isso, pode criar jogos que a escamoteiem. A 
linguagem é sempre ilógica, por isso, o Budismo Zen a quer revelar, fazendo-a aparecer. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 39 
VI - O GESTO 
 
O Discurso da Flor integra o conjunto dos chamados Koans, da escola do Budismo Zen. 
"Koans", cujo significado estrito é "causas públicas", "causas a serem julgadas", são histórias, 
exemplos, diálogos, questões, postulados, da tradição Zen. São grande parte da obra filosófica 
desta escola, que surge na China com a aproximação do Budismo chegado da Índia com 
sistemas autóctones como o Taoísmo. Na China há uma máxima que diz "A sabedoria de um 
pensador se mede pela sua capacidade de dar um exemplo" (Cit. in: PINTO, Gustavo. 
"Prefácio". In: I Ching: 2003, xiv). Os exemplos são a base do pensamento de diversas 
escolas orientais. 
 
História exemplar, paradigma, fábula. Nenhum destes gêneros de narrar manteve-se com 
prestígio no ocidente. Nem como literatura, menos ainda como filosofia. Sua característica 
fundamental é o didatismo e o didatismo vigora como gesto de apontar um caminho. 
Sobretudo, apontando, mostrar que é caminho, com obstáculos. Sobre o gesto deapontar disse 
um mestre Zen que: "O dedo serve para apontar a lua; o sábio olha para a lua, o ignorante, 
para o dedo". 
 
Em se tratando de filosofias orientais, não devemos nos ater ao dedo que aponta. Espantar-
se com o risível, o prosaico ou a crueldade desses textos é assumir a postura do néscio. Os 
néscios riem das situações cômicas das fábulas, divertem-se com a fala dos animais, ou dos 
rios e das plantas, e não percebem que ali, por trás da árvore, no fundo do rio, jaz o discurso. 
Um discurso tão elaborado quanto perigoso, pois, na medida em que ele ilustra a armadilha da 
linguagem, ele pode conscientemente atrair para essa arapuca. Cabe assim, a quem se depara 
com este tipo de discurso, puxar a corda e ficar preso, ou não a puxar e escapar. 
 40 
Ao lermos os koans, encontramo-nos diante de armadilhas. Seus textos, todos desta 
natureza, são um exercício de linguagem. Uma prática de disciplina da linguagem. Em todas 
elas perpassa a noção de que se devem evitar os discursos, de que se deve buscar a sua 
cessação. Ora, como uma escola filosófica pode seguir esta via? 
 
Não seria mais fácil, mais coerente, nem mesmo se fundar como filosofia, abandonar este 
ofício? 
Não. 
Não seria mais fácil, mais coerente, isolar-se numa alta montanha ou numa profunda e 
escura caverna? 
Não. 
Assim não se evitariam, de modo mais radical, todos os discursos? 
Não. 
 
Somos linguagem e a linguagem é sempre discurso. Todos os nossos atos, até mesmo o 
menor dos gestos nascem com ela. O gesto de apontar ou de se mostrar uma flor, por mais 
concreto que pareça, é discurso. Com ele há o que ele mesmo enuncia, e tudo aquilo que já foi 
enunciado, tudo aquilo que ele, como inaugurador, rejeita, quer abandonar, quer apontar. 
Mostrando-se a flor, mostra-se tudo o que não é flor e nisto mora muito mais discurso do que 
se pode perceber à primeira vista. 
 
É uma escolha, uma via, um caminho. Kashyapa, que é o segundo da linha patriarcal da 
escola Zen, consegue perceber, não a flor, mas todo o caminho seguido para mostrá-la, ele é o 
único que consegue perceber o discurso, por isso, a ele se confia, já é confiado desde então, 
todos os ensinamentos. 
 41 
Não há hermetismo aqui, não há um exercício virtuoso da linguagem. O gesto de mostrar e 
o silêncio que o complementa são o que há de mais simples, de mais acessível. Entretanto, 
apenas um discípulo compreendeu. E, novamente, o mestre Zen nos diz: "o sábio olha para a 
lua, o ignorante para o dedo". Contemplar a flor é olhar para o dedo que aponta. 
 
Quase sempre que um pensador ocidental volta-se para o estudo de sistemas filosóficos de 
outras tradições é para a flor que está olhando, e assim classifica-a de "bela", "ingênua", 
"simples", "pura", "concreta", "impossível". Pega a flor e a analisa à luz de seu próprio 
percurso, de suas doutrinas. Mas, antes que ele o faça: é a flor que o permite. Mesmo a mais 
concreta manifestação permite o uso, a aplicação e adequação. 
 
Ao contrário, a experiência, que concentra a harmonia do gesto e do silêncio, só ocorre aí 
neste koan, é um princípio do Zen, não pode se dar em nenhum outro contexto. É fácil tomar 
uma flor nas mãos, retirá-la de seu lugar original e usá-la como ornamento, depô-la em um 
vaso ou pisar sobre ela. Com o discurso da flor isso não é possível. Os que tentam fazer isso 
recaem em erro. E este parágrafo talvez seja um erro. Não sorrir simplesmente já é errar, 
como sorrir. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 42 
VII – O EQUÍVOCO 
 
Se, mesmo quase puro de linguagem, o discurso ocasiona mal entendidos, incompreensões, 
equívocos, o que não ocasiona uma filosofia que tem somente na linguagem e no trabalho 
com ela, todo o seu fundamento e superficialidade? 
 
Até certo ponto, o verdadeiro pensamento filosófico tem que ser de difícil 
compreensão quando se considera a totalidade de seu alcance e de suas 
implicações. Ainda que enunciado com absoluta claridade e a mais precisa 
coerência lógica, permanece fugidio. (ZIMMER: 2005, 30) 
 
(...) A Antigüidade possuía todo o texto de Heráclito – não apenas os 
poucos e incompletos fragmentos e referências ocasionais que chegaram até 
nós – e já então ele era conhecido como "o obscuro"; entretanto, na literatura 
ocidental, Heráclito é o primeiro mestre das frases incisivas e dos aforismos 
claros e sucintos. (ZIMMER: 2005, 30-31) 
 
 
Esta incompreensão, que se enraíza na linguagem, nasce, porém, de um contexto bem mais 
específico: na linguagem escrita. A inevitável fixação de toda tradição filosófica cria a 
impressão de que ela é como a flor, que pode ser arrancada de seu lugar e transportada. 
Quando, na verdade, nem mesmo a flor poderia ser retirada, se pensarmos radicalmente. A 
filosofia escrita leva à incompreensão de que não é experiência de discurso, exercício 
dinâmico do discurso, mas postulados estáticos, válidos eternamente, pois são a verdade 
afirmada pelo documento. 
 
O filósofo vive iludido com a sua linguagem, acreditando nela como verdadeira, como 
genus da verdade8. E, quando ele, ou outros, escrevem esta verdade, passam a viver iludidas 
 
8 A afirmativa, que aponta de modo tão genérico, não pretende ser a enunciação de um preconceito, nem 
pretende, muito menos, dar conta de toda a filosofia de todos os filósofos. Nem é preciso. Não é preciso que se 
acumule um vasto conhecimento da obra de todos os filósofos – além de desnecessário, impossível. É preciso 
que o filósofo, e, não só ele, que todos os homens, andem iludidos com a linguagem: só assim a enunciam, só 
 43 
as gerações futuras. E, quanto mais distante da enunciação da verdade, mais difícil parece o 
texto filosófico, quanto mais longe da escrita do texto filosófico, mais cristalizada torna-se a 
sua linguagem, o que, consequentemente, cria a ideia de dificuldade, hermetismo. 
 
Não acontece isso a todos os fragmentos heraclíticos? Já há muito não foram arrancados de 
seu lugar de origem para ilustrarem obras que lidam com questões completamente diversas 
religiosa e filosoficamente? E, mesmo os que tentam "salvar" o discurso pressocrático, que 
tentam replantá-lo, num movimento ecológico de reflorestar a Grécia, não o fazem também 
segundo suas especulações sempre arbitrárias acerca da religião, dos mitos e do pensamento 
grego? Por isso, com humor evidencia Barnes (1982, 57): "A verdade é que Heráclito atrai 
exegetas como um pote vazio de geleia atrai abelhas; e cada abelha discerne traços do seu 
sabor favorito". 
 
Afirmações como estas são fruto dessa espécie de maldição que se atrela aos textos 
escritos. Eles viram objeto de uso, e os objetos ficam obsoletos, empoeirados, obscuros, rotos 
ou mesmo vazios. A filosofia que se escreve é como o cadáver que monta o dorso do rei e o 
obriga a ir por um caminho que não quer, que o desagrada, decifrando seus enigmas. Este 
exemplo é o tema de uma obra da literatura indiana, Vetalapancavimsatika ("Vinte e cinco 
[histórias] do vetala") que se encontra no Kathasaritsagara ("Oceano dos Rios de História"). 
 
"Vampiro" é a tradução de mais fácil entendimento para o termo do sânscrito vetala. De 
fato, vetala é uma raça de demônios, que nesta história se apodera do cadáver de um 
enforcado e o anima, de modo que deve ser conduzido nas costas do rei, de um extremo ao 
outro do cemitério, enquanto lhe vai contando uma história, sempre exemplar, que provocará 
 
assim a correspondem, só assim a fazem aparecer, só assim pretendem fazê-la desaparecer, ou pensá-la, ou 
escamoteá-la, ou purificá-la, ou concretizá-la, ou consertá-la, ou concertá-la, ou... 
 44 
uma questão a ser respondida corretamente pelo rei. O rei a responde adequadamente e o 
cadáver desaparece de seus ombros para voltar à árvore de ondependia anteriormente. E, 
assim, novamente o rei deve voltar para transportá-lo até a outra ponta do campo de 
cremação. 
 
Somos muitas vezes os que procuram responder de maneira adequada a questões impostas 
por uma filosofia morta. Se correspondemos, ela nos atira de volta ao ponto de partida para 
que sempre a sustenhamos nas costas por mais um tempo. Se não respondemos 
adequadamente, corremos o risco de ter a cabeça explodida – pois é com isso que o vampiro 
ameaça o rei. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 45 
VIII - O GESTO IMPOSSÍVEL 
 
Heráclito foi o primeiro pensador do ocidente a se deparar com a mutação. A notar que as 
coisas estão em constante fluxo, constante mudança, mas todas são o mesmo: Tudo é um. 
 
Mas, numa prática que se estabeleceu como marca de nossa cultura, estas constatações, já 
desde Heráclito, são vistas sempre de fora, objetivamente, como se parando o movimento da 
terra, dos seus elementos, do fluxo. A busca do Isto na filosofia ocidental dá-se sempre para 
fora, como objeto de análise. O filósofo pensa que pode se retirar por uns momentos da roda 
do mundo para pensar seus elementos e fenômenos, mas não pode. Primeiro, porque eles 
estão em eterna mudança, e, como tais, são tão fugazes quanto eternos. Fugazes, escapam-nos 
à percepção; eternos, transcendem-na. Segundo, porque somos tão eternos e fugazes quanto 
aquilo que pensamos reconhecer como eternos e fugazes. 
 
Nesse sentido, lá atrás na história do pensamento grego, já houve um pensador que 
questionou Heráclito, proferindo um tipo de discurso tão mais próximo do pensamento 
oriental quanto distante de nós. Cratylus pensou a impossibilidade da linguagem, dizendo que 
sobre qualquer coisa nada se deveria dizer, apenas mover o dedo. E reprovou Heráclito por ter 
dito que não se pode pisar o mesmo rio duas vezes pela própria impossibilidade de pisá-lo 
mesmo por uma única vez. 
 
Se atentarmos ao gesto inicial do Fragmento 50, veremos que ele aponta para algo que está 
muito próximo – há o eu que aponta o logos. Mas desse apontar não surge uma proximidade 
como a do dedo que, apontando a lua, coisa longínqua, parece tocá-la ou cobri-la em todas as 
suas dimensões. Dando a impressão de que ela pode se reduzir à dimensão de uma polegada. 
 46 
Apontando o que está extremamente próximo, Heráclito o distancia a uma distância lunar. 
O eu e aquilo que eu profiro – o logos – não dizem o mesmo. Essa é uma questão que atenta 
para a própria impossibilidade de se apontar para as coisas. É dela que vai surgir a constatação 
de que nada é transitório nem permanente, porque não se pode apontar para nada. Tudo está 
muito próximo do dedo que aponta, ou extremamente distante. E a tudo o dedo reduz às suas 
próprias dimensões. 
 
Reduzir às suas próprias dimensões é o caminho inevitável de quem olha para algo. Um 
ponto aponta sempre um ponto numa reta. Uma reta aponta sempre uma reta num polígono. 
Estamos limitados pelas dimensões que constituem nossa natureza física e pelo caminho 
traçado por nosso pensamento. É impossível apontar para qualquer coisa: corremos o risco de 
apartá-las demais de nossa proximidade (num empenho altamente artificial, próprio da 
ciência) ou de reduzi-las ao nosso esparso entendimento, que nesse âmbito possui as 
dimensões de um dedo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 47 
SEGUNDA PARTE 
 
I: TAT TVAM ASI: O ISTO QUE SE APONTA NO HINDUÍSMO VÉDICO 
 
i) O antigo caminho, extremamente estreito e extenso, e a estreita esfera do 
conhecimento 
 
Neste capítulo buscaremos o Isto que brota no Hinduísmo védico, mais precisamente 
nas Upanishads, que, a partir de seu aparecimento, passaram a constituir propriamente o saber 
hindu. De fato, elas dividem com o seu surgimento a religião hindu. Assim, chama-se 
"Brahmanismo" a religião própria dos Vedas, e "Hinduísmo", propriamente dito, a religião 
desenvolvida a partir dos textos upanishádicos: 
 
Apesar de os hindus considerarem toda a literatura védica como 
fundamento de sua tradição, na prática, os Brahmanas e Aranyakas, e, até 
mesmo, a maioria dos hinos do Samhita, são agora do domínio de 
especialistas. Mas as Upanishads ainda são amadas, estudadas e tratadas 
como guias para a vida pelos hindus até hoje, talvez mais do que qualquer 
texto exceto o Bhagavadgita. (ROEBUCK: 2003, xix) 
 
 
O que vem a ser este saber introduzido pelas primeiras Upanishads no contexto do 
Hinduísmo védico dos primeiros hinos aos deuses? E, principalmente, qual a pertinência para 
o nosso estudo do Isto o conhecimento de alguns extratos das principais Upanishads? 
 
Sua importância está na linguagem que elas inauguram, pois elas inauguram a própria 
linguagem (Linguagem) na filosofia indiana, quiçá na grega. Elas também – aliás, de modo 
inédito – fazem aquele movimento de abandono do pensamento cosmogônico para pensar 
questões mais próximas do humano, de sua condição – a Linguagem. 
 48 
Alguns, entretanto, consideram esta linguagem ainda bastante aformal, inconsistente, 
revelando uma ausência de reflexão propriamente filosófica. Para eles ainda não poderia ser 
considerada filosofia de filósofos, que ainda seriam, nas palavras de Radhakrishnan e Moore 
(1957, 37), "veículos mais de uma iluminação espiritual do que de uma reflexão sistemática". 
 
Esta, mesmo se referindo especificamente às Upanishads, é aquela mesma visão, que 
insiste em permear os estudos filosóficos, de que as filosofias orientais seriam a-históricas e 
assistemáticas. Estudos filosóficos tornam-se, portanto, estudos culturais, baseados em noções 
de raça, genialidade, "povo eleito". Não se ouve, não se vê, muito menos se chega a perceber 
o sentido próprio desses textos, e o grande motivo é: não se quer ouvir, não se quer ver, nem 
perceber coisa alguma – isto poria em risco o chamado "milagre grego", que, já sabemos, 
advém de outra parte. 
 
A afirmação feita na introdução deste trabalho de que tudo é discurso e de que todo 
discurso trava sempre um combate com outro, do qual muitas vezes não temos referência, 
torna-se ainda mais válida no tocante ao início dos estudos orientais feitos por pensadores 
ocidentais. O “Orientalismo”, inicialmente, apresenta-se, na verdade, como uma grande 
querela entre estudos clássicos e indologia. E o vencedor já nos é bastante conhecido. 
 
Zimmer nos conta que, em seus tempos de estudante de filosofia, falar em filosofia 
indiana era tão absurdo como dizer "madeira de ferro". O único a se aventurar pelos caminhos 
dessa disciplina foi um professor seu que teria sido discípulo de Schopenhauer. Este 
discípulo, no entanto, talvez estivesse apenas influenciado por um eufórico e acalorado 
Orientalismo Romântico, abundante também em visões preconceituosas, e cuja infeliz 
contribuição foi instituir o termo "sabedoria" para se referir ao pensamento oriental. 
 49 
Entretanto, "pode-se referir à sabedoria dos animais, mas não à sua filosofia. Pode-se referir à 
sabedoria da natureza – mas não à sua filosofia. Sabedoria significa algo mais instintivo que 
filosofia, menos rigoroso e sistemático – em suma, menos racional."(McEVILLEY: 2002, 
650) 
 
E esse preconceito funda-se numa cega confiança na escrita. Ora, no mínimo já não 
mereceria atenção a "paradoxal" disciplina (Filosofia Oriental) por legitimar e incentivar a 
desconfiança na escrita. Mas a questão é mais profunda. Por desconfiarem da escrita, os textos 
orientais não confiam a ela todos os seus ensinamentos, ou o fazem de maneira velada na mais 
obscura simplicidade. Isto faz com que imaginemos não haver filosofia, foi isso que levou Al-
Biruni a escrever: 
 
 
Os hindus não possuem homem desta qualidade [referindo-se a Sócrates] 
capaz e pronto para elevar as ciências a uma clássica perfeição. Por isso, 
muitas vezes você percebe que mesmo os chamados teoremas científicos dos 
hindus encontram-se num estado de grande confusão, destituídos de 
qualquer ordenação

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