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saberes.senado.leg.br Racismo Estrutural e Práticas Antirracistas SUMÁRIO MÓDULO I – FUNDAMENTOS PARA ENTENDER O RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL ............................................. 4 Unidade 1 - O Uso do Termo Raça e Racismo ...................................... 7 Unidade 2 - Presença Negra no Brasil: Escravidão, Desigualdade e Preconceito ................................................................... 10 Unidade 3 - Já Podemos Falar em Racismo Estrutural? ........................ 13 Unidade 4 - Um Pilar a Mais: as Ideias de Branqueamento da População Brasileira ...................................................................... 15 MÓDULO II – AÇÕES POLÍTICAS E A RESISTÊNCIA NEGRA ............ 18 Unidade 1 - As Ações de Resistência Negra no Início do Século XIX ....... 22 Unidade 2 - A Resistência Quilombola ................................................ 28 Unidade 3 - As Revoluções Negras na América Latina e os Desdobramentos no Brasil .............................................. 36 Unidade 4 - Os Aspectos Jurídicos e a Luta Negra por Liberdade ........... 39 MÓDULO III – AS DIFERENTES FORMAS DE RACISMO E A LUTA ANTIRRACISTA NO BRASIL ..................................... 43 Unidade 1 - As Diferentes Formas de Racismo na Sociedade Brasileira .. 47 Unidade 2 - Feminização Negra: O Racismo Estrutural Inerente à Mulher Negra Brasileira ............................................................. 52 Unidade 3 - A Uberização do Trabalho ............................................... 61 Unidade 4 - A Construção da Luta Antirracista no Brasil ....................... 67 MÓDULO IV – MECANISMOS E MANIFESTAÇÕES COTIDIANAS ....... 80 Unidade 1 - Microagressões: O que são e como Identificá-las ............... 83 Unidade 2 - Piadas e Preconceito ...................................................... 87 Unidade 3 - Estereótipos Raciais e seus Impactos ............................... 91 Unidade 4 - Efeitos do Racismo na Saúde Física e Mental ..................... 96 Unidade 5 - A Desigualdade Racial sem Acesso a Oportunidades e Recursos: O Racismo Ambiental .................................... 101 REFERÊNCIAS .............................................................................. 104 SENADO FEDERAL INSTITUTO LEGISLATIVO BRASILEIRO UNIVERSIDADE ZUMBI DOS PALMARES CURSO DE FORMAÇÃO RACISMO ESTRUTURAL E PRÁTICAS ANTIRRACISTAS 2023 MÓDULO I – FUNDAMENTOS PARA ENTENDER O RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL OBJETIVOS Ao final do módulo você será capaz de: Contextualizar o racismo do ponto de vista conceitual, histórico, social e político; Identificar o processo histórico escravista brasileiro; Distinguir as noções de raça e racismo. APRESENTAÇÃO Você sabe o que é racismo? Quantas vezes já ouviu falar que uma pessoa foi destratada ou humilhada por conta da cor da pele? Ao iniciar a reflexão sobre este tema é importante olhar o mundo que está à sua volta: sua casa, sua escola, sua universidade, o ambiente de trabalho, a rua, enfim, os espaços em que há relações sociais. Em todos eles o que se vê é diversidade. São homens e mulheres com características sociais e físicas diferentes. O racismo assume alcance grupos sociais das mais diferentes origens. Indígenas, negros, asiáticos, muçulmanos apenas para citar alguns exemplos, são tocados por olhares de desaprovação. Também a sociedade brasileira foi fundada a partir de múltiplos povos. De um lado estavam as tribos indígenas que habitavam o território. Após 1500, houve a chegada dos portugueses e outros europeus que colonizaram o Brasil. Em determinado momento houve também a vinda compulsória dos negros africanos oriundos de tribos e culturas distintas. Já no fechar dos olhos do século XIX uma gama de novos imigrantes europeus aportou no Brasil para ocupar a força braçal da indústria nascente. É dessa junção de culturas e elementos físicos que se formou a sociedade brasileira miscigenada e repleta de distinções. No entanto, o olhar do europeu que conduziu a construção do Brasil sobre a presença negra no desenvolvimento do país inseriu uma marca que deixa registros até os dias atuais. O cidadão negro, mulato, cafuzo, mestiço e tantos outros resultantes do processo miscigenação, foi sendo estigmatizado e rebaixado na estrutura social, econômica e política nacional. Num termo teórico, esta ação se refere ao racismo. E por que falar em racismo estrutural? Essa caracterização só é possível porque falas, hábitos e ações práticas estão impregnadas na vida cotidiana reafirmando o preconceito racial todos os dias. O que é visto como “brincadeira” é, na verdade, a reprodução da estrutura na qual a desigualdade prevalece. Negros e negras são estigmatizados por sua pele, seu cabelo ou sua origem de classe e gênero. O racismo estrutural atinge diretamente esta população que foi por séculos escravizada e sofre até hoje as consequências múltiplas desta construção histórica e social. Neste curso são apresentados elementos que permitirão ampliar a leitura e interpretação sobre o significado do racismo negro no Brasil, bem como a forma que ele assumiu e assume na vida cotidiana. Na medida que as relações de poder foram se constituindo o racismo delegou um lugar para a população negra e mestiça. Não apenas de maneira velada como analisaram alguns pensadores nacionais, mas também explicitamente no olhar, na fala, nas piadas, na não aceitação do negro em espaços variados. INTRODUÇÃO Falar sobre o racismo estrutural requer um olhar de observação e questionamento sobre os acontecimentos cotidianos. Quem diria que em pleno século XXI estaríamos vendo trabalhadores sendo resgatados de situações análogas à escravidão. O que isto significa? É que assim como os negros africanos trazidos para o Brasil durante o período colonial, sofriam castigos, ficavam aprisionados e tinham sua liberdade confiscada. O caso revelado em Bento Gonçalves, conhecida como a capital brasileira do vinho, demonstra que não nos desprendemos completamente da escravidão no Brasil. É com postura crítica e problematizadora sobre o alcance do racismo que podemos ver o enraizamento dele na vida comum das pessoas. Veja a matéria do jornal Extra Classe sobre o caso. Os maus tratos, choques e péssimas condições de higiene e alimentação a que foram submetidos os mais de 200 homens nordestinos, negros e mulatos, revelam a profundidade do racismo estrutural. É ele uma constante nas relações pessoais, na forma como se olha para a mulher negra, no padrão do cabelo liso, dentre tantos outros pontos que podem ser citados. Na sequência, você é nosso convidado para conhecer alguns conceitos e um pouco da história brasileira que caminhou até o momento presente e mantém intenso o debate sobre o racismo, mas sobretudo, a luta de resistência cotidiana. http://www.extraclasse.org.br/justica/2023/02/180-foram-resgatados-de-trabalho-escravo-para-vinicolas-de-bento-goncalves/ Unidade 1 - O Uso do Termo Raça e Racismo Para início das discussões sobre o racismo, o primeiro passo é analisar o termo raça. Isto porque o termo racismo é uma variante daquela palavra para designar um conjunto de ações de subalternidade da população negra e superioridade dos brancos. Mesmo sendo a sociedade brasileira miscigenada e fortemente marcada pela presença africana. De acordo com Kabengele Munanga, a palavra raça vem do italiano razza, derivado do latim arcaico que significa sorte, categoria ou espécie” (2003. p.1). De acordo com ele, o termo tem seus primeiros usos na zoologia e na botânica como conceito classificatório utilizado para animais e vegetais. Ou seja, é uma categoria longe de definir as sociedadespor meio de suas culturas. Esse termo, no entanto, passou a ser utilizado a partir do século XVI, momento da expansão europeia e conquista territorial, para dar maior espaço para os colonizadores e legitimar a dominação sobre as sociedades dominadas (MUNANGA, 2003). Isso porque se classificavam como superiores em relação às raças africanas, asiáticas e de demais povos originários encontrados na América Latina. Mesmo não sendo adequado, o termo raça tornou-se usual e ganhou campo dentro da sociedade que foi se desenvolvendo a partir dos parâmetros definidos pelos cientistas europeus. Foi o caso do alemão Johan Friedrich Blumenbach (1865) que em 1795, que classificou a humanidade em cinco raças: branca, negra, amarela, marrom e vermelha. Felizmente, uma outra gama de antropólogos e demais cientistas refutaram esta construção fantasiosa e reafirmaram que “raças humanas não existem (...) e as categorias 'raciais' humanas não são entidades biológicas, mas construções sociais” (PENA, 2005, p. 1). Logo, essa ação é política e ideologicamente construída para defender a ideia de superioridade de uma parte dos homens, no caso brancos, para com as demais culturas mundiais. https://ea.fflch.usp.br/autor/kabengele-munanga Caracterizar as pessoas por tipo de cabelo ou cor da pele acaba sendo o padrão a partir da sociedade eurocêntrica. Ou seja, o europeu, naturalmente branco se entende diante daquilo que é diferente dele. Figura: Raça Superior? Fonte: Wikipédia Exemplo maior dessa posição política foi a tentativa dos cientistas alemães nazistas em criar a raça alemã superior, nobres. Homens brancos, loiros, com biotipo forte e “perfeitos”. Em nome dessa perfeição, deficientes físicos, negros e judeus foram exterminados aos milhões durante a Segunda Guerra Mundial. A tentativa de perfeição e superioridade tornou a população negra escravizada e seus descendentes estigmatizados como inferior. No Brasil, o quadro ficou ainda mais grave em virtude dos mais de trezentos anos de escravidão dos africanos e afrodescendentes (RIBEIRO, 2022). Até aqui, o conceito desenvolvido de raça não se apresenta como racismo. O sufixo “ismo” confere um outro significado à palavra raça. Passa a significar doutrina, sistema, teoria, tendência, ideologia. Mas esses conceitos não surgem do nada. Há um conjunto de fatores que sustentam essa construção. Dentre eles está o processo histórico. https://en.wikipedia.org/wiki/Portal:History_of_science/Picture/7 Para nos guiar, é importante pensar quando é então que raça, um conceito das ciências biológicas, se constituiu como base ideológica para sustentar e orientar as relações sociais por critérios biotípicos, originando as desigualdades entre a sociedade? É o que você vai ver nas páginas a seguir. Unidade 2 - Presença Negra no Brasil: Escravidão, Desigualdade e Preconceito Para este momento do curso o objetivo é que você se questione sobre a seguinte problematização: Como a raça se torna racismo no Brasil? Quais foram os trajetos percorridos para que no Brasil o preconceito racial tenha que ser combatido por meio de legislação e políticas públicas? Afinal, onde o Brasil errou? A resposta é encontrada quando olhamos para o desenvolvimento histórico e social brasileiro. O que se encontra é a fundação da nação alicerçada na exploração de determinados setores, como o indígena que foi aprisionado ou exterminado literalmente em grande parte do território nacional (GOULART, 1975). Soma-se, após 1532, a chegada do negro no Brasil trazido compulsoriamente pelos portugueses. Assim, de acordo com Goulart (1975) a nação brasileira tem seus alicerces num dos mais cruéis regimes de exploração humana, a escravidão de africanos, africanas e seus descendentes. Chegaram gradativamente e estiveram sempre vinculados às atividades econômicas. Entre 1576 e 1600, foram trazidos para o Brasil aproximadamente 40.000 africanos escravizados. Posteriormente, entre 1601 e 1725, esse número foi para cerca de 150.000, sendo que a maior parte foi escravizada para o trabalho em grandes lavouras (SCHWARTZ, 1988). A grande maioria ficou localizada no Nordeste brasileiro e foram responsáveis pela produção e exportação da cana-de-açúcar. Fosse na lavoura ou na casa grande, os escravos eram a mão-de-obra de trabalho exclusiva. Figura: Estrutura do Navio Negreiro Fonte: Behance Você pode ver na imagem como era a estrutura do navio negreiro. O recorte mostra o interior daquele que foi o instrumento fundamental de tráfego legal e ilegal de tribos e famílias inteiras. No final do século XVII e ao longo do século XVIII, houve um acelerado processo importação de escravos fazendo funcionar a todo o vapor o tráfico de escravos (FLORENTINO, 2015). A violência sofrida pelos negros começava já no momento do transporte. Homens, mulheres e crianças eram separados já no embarque. Muitos preferiam se jogar no mar a viver sem liberdade. Outros morriam diante das péssimas condições de higiene, doenças e fome. Muitas famílias permaneceram para sempre separadas mesmo depois de chegarem ao Brasil. Nos navios negreiros eram transportados entre 300 e 500 africanos em amontoados de gente sem alimentação, ar e condições de https://www.behance.net/gallery/82332409/Navio-Negreiro?tracking_source=search_projects%7Cnavio+negreiro higiene (PINSKY, 2010). Isto justifica o termo navios tumbeiros já que a quantidade de perdas de vida era bastante alta no trajeto até o Brasil. Já na segunda metade do século XVII foram trazidos cerca de 360.000 africanos como escravizados. A crescente participação dos negros africanos na economia se ampliou com a descoberta do ouro em Minas Gerais. Assim, um robusto contingente populacional de africanos se formou no Brasil, chegando a ser a maioria da população (PINSKY, 2010). Os dados dão conta de que em torno de sessenta anos um milhão de negros aprisionados foram trazidos para o Brasil. Importante ressaltar que o número é muito maior uma vez que boa parte morria nos porões dos navios negreiros e sob o tráfego ilegal não existia controle algum (MARCÍLIO, 1999). Já no século XIX, com a chegada da família real em 1808 e mais tarde até o ano de 1850, com a abolição definitiva do tráfico transatlântico de escravizados, foram trazidos aproximadamente 1,5 milhão de africanos (PINSKY, 2010). Há historiadores que afirmam que o Brasil foi o país que mais recebeu africanos durante o período de expansão colonial europeia. Unidade 3 - Já Podemos Falar em Racismo Estrutural? O racismo estrutural se construiu a partir dessa fundamentação histórica e das relações culturais, sociais, políticas e econômicas decorrentes desse jogo de forças. Em cada uma dessas fases, a população negra e seus descendentes ficaram sob o domínio do senhor de escravo, eram tratados como objetos e, portanto, sem cobertura jurídica que amparasse as demandas negras pelas violências sofridas em seu cotidiano dentro e fora dos limites da casa grande. Os escravos compunham a riqueza material de cada proprietário português ou inglês. Aqueles que conseguiam alforria tentavam o comércio como mascate ou tornavam-se escravos de ganho nas ruas das cidades (PINSKY, 2010). A desigualdade social e racial era sentida nas ruas, na pele e na jurisdição. As alforrias eram compradas e as leis foram gradativamente libertando os escravos das amarras da escravidão. No entanto, não houve por parte do Estado brasileiro mecanismos de ruptura com essa base que alicerçava o preconceito e o racismo. Não houve na mesma medida a inserção dessa população nas políticas públicas da sociedade em construção, fosse no século XIX ou no desenvolvimento do século XX. São nesses pontos que você vai perceber que a definição de racismo é “uma forma de discriminação que leva em conta a raça como fundamentode práticas que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertenciam” (ALMEIDA, 2017). Os negros, mulatos, pardos, cafuzos, mestiços e todas as outras denominações possíveis, viveram em condições constantes de desvantagens ao longo da história brasileira. No Brasil, segundo Silvio Almeida (2017, s/p), o que temos é “a concepção estrutural do racismo como uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares”. O racismo tornou-se a regra da sociedade e passou a ser naturalizado. A estrutura do Direito e do Estado não apresentava saídas ao racismo estrutural, pelo contrário. A exemplo, quando a Lei Áurea extinguiu definitivamente a escravidão, os negros não foram colocados como trabalhadores para a sociedade capitalista nascente. Pelo contrário, se dirigiram para as áreas periféricas ou para os morros do Rio de Janeiro. Enquanto isso, uma leva de europeus era importada para trabalhar na lavoura e nas indústrias nascentes nas regiões entre São Paulo, Minas Gerais e Paraná. Para esses houve a promessa de terras e salário (FERNANDES, 1978). Assim, a herança de desigualdade institucionalizada tanto quanto a cor da pele passou a ser o elemento de partida para o racismo. Unidade 4 - Um Pilar a Mais: as Ideias de Branqueamento da População Brasileira Você viu até aqui que a questão negra no Brasil foi determinante para a formação da sociedade brasileira nos aspectos sociais, políticos e culturais. Não se pode negar que os diversos momentos em que o país assumiu a dianteira da produção de cana-de-açúcar ou a exportação do ouro, apenas foi possível devido ao extenuante trabalho de negras e negros africanos e afro-brasileiros. A miscigenação já era um fato dado (FERNANDES, 1978). Além disto, o sincretismo religioso demonstrava a inserção cultural criada em âmbito nacional. As designações sociais para os negros encontraram no Brasil escravista terreno fértil para a construção de uma arquitetura social racializada que criou empecilhos ao exercício de uma cidadania plena mesmo enquanto liberto. As categorias sociais para o negro, o pardo e o mulato eram claramente definidas e, como tal, estabeleciam um lugar hierarquizado a cada um deles. Mas a profundidades das estruturas com caráter racista foram se aprofundando cada vez mais. No Brasil do final do século XIX e início do século XX, as interpretações darwinistas tiveram importante alcance entre os cientistas e intérpretes brasileiros. Charles Darwin entendia que as espécies passavam por um processo evolutivo e de aperfeiçoamento. O mesmo padrão foi adotado para as sociedades. Elas caminhariam um processo evolucionista. Homens como Nina Rodrigues e Oliveira Vianna defendiam a ideia de que o branqueamento era a solução para os problemas sociais brasileiros. Figura: “A Redenção de Cam” e o Branqueamento no Brasil Fonte: Wikipédia O quadro “A Redenção de Cam” (1895), do pintor espanhol Modesto Brocos, retrata a sociedade esperada pelos defensores dessa linha de pensamento. Na interpretação desses seguidores deveria ser incentivada a miscigenação entre negros e brancos para que a população fosse gradativamente se tornando mais branca do que mestiça e negra. A cena apresentada registra justamente esta “evolução”. A avó negra, a mãe parda, que tem um filho de homem branco, e seu descendente segue o fenótipo do pai, sendo também branco. Esse, por sua vez, na leitura dos defensores da branquitude, daria sequência a essa linhagem garantindo a mudança necessária para uma sociedade de melhor qualidade (MATTOS, 2009). Essa interpretação tinha em si um posicionamento preconceituoso que acentuava o racismo no Brasil. Tal interpretação foi felizmente contraposta por outros estudiosos e pensadores, que entendiam que a característica maior da população brasileira era a troca cultural entre os três pilares da formação social e cultural: os indígenas, os negros e o português. O necessário não era tornar https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Reden%C3%A7%C3%A3o_de_Cam%23/media/Ficheiro:Reden%C3%A7%C3%A3o.jpg a sociedade branca, mas sim, inserir os negros e descendentes nas políticas públicas nacionais (MATTOS, 2009). Outros pensadores também contribuíram para que a ideia de branqueamento fosse amplificada na sociedade brasileira entre o final do século XIX e início do século XX. É caso de Silvio Romero que defendia a ideia de que a mestiçagem brasileira era a solução regeneradora e não degenerativa como defendia seus pares europeus. Mas essa mestiçagem caminharia para “o tipo branco irá tomando a preponderância até mostrar-se puro e belo como no velho mundo” (ROMERO apud SKIDMORE, 1976, p. 53). Dessa forma, o Brasil do fim do século XIX era um país imerso em suas contradições, com o fim da mão de obra escravizada e uma tão grande desigualdade social e econômica e ainda em busca de não somente pensar, mas forjar uma identidade nacional que legitimasse a república nascente. Infelizmente o olhar dado à população negra não apontava para a afirmação de sua cultura e a construção da identidade. Tal ação visava assegurar que a desigualdade causada pelos mais de trezentos anos de escravidão pudesse começar a ser enfrentada. A questão racial era essencial e delimitava as fronteiras da cidadania e poder, já que esta camada da população ficava à margem do desenvolvimento social e político. MÓDULO II – AÇÕES POLÍTICAS E A RESISTÊNCIA NEGRA OBJETIVOS Ao final do módulo você será capaz de: Apresentar as formas de resistência do negro durante a escravidão; Contrapor a ideia de inferioridade histórica e política do negro demonstrando a luta de resistência dos escravizados nos movimentos sociais e políticos, em especial no século XIX; Demonstrar os movimentos sociais do século XIX a partir do olhar da negritude. APRESENTAÇÃO Você viu até aqui que o desenvolvimento histórico e social do Brasil, contou com a presença negra em momentos decisivos e colocou o país entre os principais exportadores de monocultura entre os séculos XVII e XIX. Foi a mão de obra dos trabalhadores e trabalhadoras africanos e descendentes que ergueram a sociedade brasileira. Já sabe também que sofreram horrendo castigos, prisões, mortes. A desigualdade social sempre existiu, já que a elite branca, açucareira, cafeeira ou exportadora de ouro nunca propôs uma outra organização social e jurídica que não fosse a escravidão entre o período colonial e o império. A dependência da força de trabalho do negro foi peça chave para o enriquecimento de uma parcela privilegiada da população. Agora, como sequência, você verá que, mesmo diante da tentativa de calar a voz do escravizado, a resistência pela vida, cultura e identidade sempre existiu. Essa defesa foi acompanhada de exemplos de outras nações negras que realizaram seus processos de independência e serviram de inspiração para diversos movimentos de luta. As ações a seguir servem para demonstrar que o movimento negro esteve sempre antenado com às demandas de defesa e luta, mesmo em meio às perseguições e castigos em que viviam. INTRODUÇÃO O Brasil foi o país que mais recebeu contingente populacional africano de escravizados. De acordo com Luiz Felipe de Alencastro (2000) quase cinco milhões de africanos chegaram ao Brasil nos trezentos anos de escravidão. Esse número confere um papel especial ao território. Foi aqui que os negros tiveram que reconstruir seus laços culturais e, mesmo, sua identidade. Ao mesmo tempo que estava à frente da vida econômica, sendo responsáveis por todas as forças de trabalho que produziram a riqueza nacional, os negros estavam também decididos a organizar suas lutas de resistência.O tratamento conferido à população negra saltava aos olhos uma vez que eram usurpados enquanto serem humanos. Teoricamente o branco colonizador, latifundiário e proprietário de escravos consideravam os africanos como objetos. Por tal diretriz era simplesmente substituível. As tentativas de contenção das reivindicações e críticas das extenuantes jornadas de trabalho sempre foram uma preocupação por parte da classe dominante. Por parte da multidão de escravos, a coisificação do escravo foi constantemente posta à prova uma vez que, como resposta aos castigos e maus tratos, muitos fugiam e se estabeleciam longe de seus antigos donos. Quilombos foram formados em todos os cantos do país e recebiam constantemente negros fugidos. Mas estas e outras formas de resistência não foram devidamente registradas e trabalhadas como pontos constitutivos da história brasileira. No decorrer do desenvolvimento histórico, por exemplo, essas lutas foram nada ou quase nada abordadas nos livros didáticos (MAIA, 2012). Em grande medida, as abordagens nos livros didáticos conferem às reivindicações do negro na história como rebeldia ou ações isoladas que se contrapunham ao poder legal. A ótica usualmente construída é a eurocêntrica que coloca a sua visão de mundo correta. E nela a ordenação das coisas se dão a partir do desejo e da realização da classe economicamente dominante. O Brasil é um país que sistematicamente busca negar a história e memória da escravidão. Não somente porque é incômoda, mas admiti-la é reconhecer que a sociedade tal como está, com sua elite política e econômica branca, é herdeira das riquezas e privilégios criados pela escravidão. Nessa interpretação, outro debate necessário se vincularia a ele, a reparação história (MUNANGA, 2003). Esta nova ordem das coisas pode se configurar como um momento de conceder o lugar necessário para todos os conjuntos de forças sociais e políticas que realmente sustentaram o desenvolvimento do Estado brasileiro. Por muito tempo, a partir da ideologia de uma democracia racial brasileira das décadas de 1930 e 1940, abordou-se a escravidão como se tivesse sido branda, leve e paternalista. A idealização da democracia racial, defendida por Gilberto Freyre, autor do livro Casa-Grande & Senzala publicado em 1933, fez esconder a verdadeira essência da formação nacional brasileira, que é preconceituosa e racista. O livro Casa-Grande & Senzala compõe a obra de Gilberto Freyre que em muito contribuiu para entender o Brasil a partir da ordem paternalista. No livro são abordadas as características culturais e sociais da relação entre a casa grande, lugar de pertencimento do branco e em que o negro assume diferentes relações sociais. Por outro lado, está a senzala, reservada aos negros onde os hábitos culinários, os cantos, a vida pessoal, o descanso e a violência estavam postos. O livro é um clássico e como tal merece ser lido para melhor conhecer o pensamento social brasileiro. Ainda que tenha feito uma importante contribuição, não só Gilberto Freyre, mas também outros pensadores, negaram que a ação histórica e social contra os negros foi violenta e cruel. A formulação de um pensamento social brasileiro assentado na convivência pacífica, é desmentida pelos documentos históricos e pela prática cotidiana para com a população negra e seus descendentes. Exemplo desta vida nada pacífica foram as respostas aos castigos sofridos por parte dos senhorios com fuga, formação de quilombos e as insurreições (PINSKY, 2010). Muitas delas não estão nos livros didáticos. Outras são descritas com ênfase ao papel da repressão legal. Somente um aprofundamento na investigação sobre o Brasil é que vai apresentar a verdadeira raiz da resistência negra. Unidade 1 - As Ações de Resistência Negra no Início do Século XIX Findado o século XVIII o auge da extração do ouro e a chegada da família real no início do século XIX foram momentos decisivos para que uma estrutura interna nacional fosse gradativamente construída. Isto se revela diante das diferentes forças sociais e políticas em constante movimento pensando e agindo de acordo com seus interesses. A história do Brasil no século XIX, em especial, se edificou em sustentada com debate político acerca da melhor condução para a ordem nacional. Este ponto deve ser entendido como atenção aos interesses das classes dominantes. O plural é usado por não haver um único poder dominante. As características locais do país definiram também as forças políticas e as demandas de cada uma delas (CARVALHO, 2015). O recorte histórico aqui delimitado é justificado por ser neste século o momento em que um conjunto de ações locais foram sendo desenvolvidas em cada uma das áreas do território nacional. No Nordeste, no Norte e na região Centro-sul, movimentos importantes foram iniciados concedendo maior espaço para as demandas locais. O que há de comum, em todas estas frentes é que a defesa dos interesses se organizou, principalmente, pelas armas e pela repressão aos movimentos de contestação que fossem contra a manutenção da Coroa, da Regência ou do Império. Soma-se a este aspecto, a subjugação das classes populares, em especial da população negra. A realidade da maioria1 dos trabalhadores escravizados era o trabalho extenuante por horas a fio, sem alimentação e sujeitos a castigos. A 1 Alguns escravos que conseguiam atividades como negros de ganho, ou seja, vendiam quitutes nas ruas ou mesmo aqueles que trabalhavam na casa grande, conseguiam ter uma vida com menor volume de castigos e ter contato com outras pessoas. Isto em grande medida permitia uma inserção social nas coisas do dia-a- dia. Já os negros escravos da senzala estavam diretamente vinculados aos castigos do senhor ou dos seus capatazes. expectativa de vida de um homem negro por volta de 1870 era de 20 anos (RIBEI RO, 2014). Ainda assim, em meio a um contexto de violência, esta população conseguiu encontrar meios de resistência, sendo os quilombos espalhados por toda parte do Brasil exemplos disso. A independência do Brasil em relação a Portugal em 1822 incentivou ainda mais os movimentos locais a olhar para suas localidades. De acordo com José Murilo de Carvalho, os portugueses “deixaram uma população analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um Estado absolutista” (CARVALHO, 2015). Por ser uma fase de transição para a formação do Estado Nacional, não houve, nos anos iniciais preocupação com a questão escrava. Este debate foi iniciado apenas na segunda metade do século liderado pelos abolicionistas. Até então a manutenção da escravidão foi o pilar de manutenção da ordem. Dessa forma uma série de movimentos políticos são deflagrados e revelam personagens importantes para história nacional. Muitos destes acontecimentos estão retratados nos livros de história e receberam o olhar histórico da classe dominante. Por consequência receberam uma leitura a partir deste lugar de dominação. Como forma de exemplificar um pouco da dinâmica deste período brasileiro, será apresentado na sequência alguns dos movimentos mais emblemáticos deste período. A intenção é que você consiga ter uma visão das reivindicações, dos personagens e de como deixaram suas marcas locais e nacionais. Mas principalmente evidenciar o papel do negro nestes fatos que ajudaram na formação do Estado brasileiro. Alguns desses movimentos foram compilados no livro Rebeliões da Senzala escrito por Clóvis Moura em 1952. O autor apresenta a luta do movimento negro espalhada pelo território, indo de norte a sul. Usavam diferentes tipos de estratégias de força frente o poder dominante. Revolução dos Alfaiates ou Revolução Baiana Iniciamos este percurso ainda com um pé no século XVIII. Isto porque não se pode deixar de falarsobre o importante movimento construído por negros escravos, libertos, trabalhadores de baixa renda e mulatos na província da Bahia em 1798. A capitania da Bahia era a maior cidade brasileira no século XVIII. A população girava em torno de 60 mil pessoas. Deste total, 48% era composta por negros escravos africanos e seus descendentes (SCHNEERBERGER, 2010). As condições básicas para a vida eram inexistentes. Ser branco ou negro era condição determinante para acesso a melhores condições de vida. Aos negros, mulatos e mestiços as condições eram ainda mais acentuadas uma vez que o trabalho pesado e a vida nas senzalas agravavam ainda mais a condição de pobreza e violência. Entre eles reinava a miséria, a fome e más condições de vida. Entre a população livre as altas cobranças de impostos eram pontos centrais no debate cotidiano. Todos estes pontos levaram à organização da Revolta2 dos Alfaiates. Interpretada por muitos historiadores como uma ação radical, defendiam a abolição da escravatura, o fim do preconceito, melhoria salarial entre outros pontos. A soma de tais conjuntos de fatores levou a uma organização que se iniciou em 1798 e marca a participação das camadas pobres dentro das lutas sociais brasileiras. Clóvis Moura afirma que a participação do negro neste momento histórico “tinha um grau de coerência que advinha da coincidência de interesses das camadas artesãs que o estruturavam e a classe escrava.” (MOURA, 2020, p. 67). A reação ao movimento foi bastante enérgica. Havia o medo de ocorrer aqui um movimento semelhante ao haitiano em que a abolição foi conquistada com violência e derrocada das classes dominantes. Foram reprimidos pelo exército legal, sendo as lideranças negras e mulatas mortas em praça pública. (PIMENTA, 2022). Já os brancos participantes do foram poupados e sofreram punições leves. A Cabanagem no Pará A Cabanagem, foi um movimento político e social que aconteceu entre 1835 e 1840, teve como protagonistas os cabanos. Estes eram formados pelas classes pobres, mestiças, negras, mulatas e libertas que diante das péssimas condições de vida expressaram suas insatisfações com um movimento organizado em torno de ideias progressistas (SANTOS, 2004). Iniciada com a participação de setores de classe média e proprietária a Cabanagem inovou dentre os demais movimentos daquele período histórico por ter entre seus membros decisórios a população pobre. Foi ela 2 É importante considerar que as ações de resistência fossem por parte dos negros ou pelos indígenas escravizados foram traduzidas por longo período histórico como rebeldes, descontentes, revoltosos. Tais adjetivos marcaram a interpretação na História conferindo a eles um lugar de desordem frente à construção nacional. responsável pela tomada do poder na província em uma fase em que as condições políticas e objetivas lhes eram favoráveis. Como objetivos tinham a liberdade nos mais diferentes sentidos: econômica, social e jurídica. Defendiam ainda a luta pela distribuição de terras como caminho para o fim da desigualdade social (SANTOS, 2004). A luta cabana significou a possibilidade de liberdade em diversos sentidos: jurídica, saindo da condição de escravos, liberdade econômica podendo ter a perspectiva de produzir mesmo que em pequena escala, liberdade cultural. A marca dos cabanos ficou viva entre a população local. Seja na população interiorana ou urbana a presença dos cabanos é relembrada por meio de poemas, monumentos e mesmo na educação. Neste último, durante meados da década de 1990, foi organizada a Escola Cabana, movimento pedagógico que colocava como principal pilar o aluno enquanto sujeito histórico. Da mesma forma, a formação continuada e um currículo renovado eram pilares deste projeto educacional. Figura: Memorial da Cabanagem, Oscar Niemeyer, 1985. A Revolução Farroupilha no Sul do País De acordo com Clóvis Moura (2020) os estados do Sul do país receberam um grande contingente de negros africanos apesar destes não representarem a maioria da população como em outras regiões. Ainda assim, foram a não de obra preferida para a lida com a pecuária e as demais atividades locais. O principal acontecimento político ocorrido na região foi a Revolução Farroupilha. Os líderes deste movimento eram saídos de classes abastadas que se contrapunham aos aumentos de taxas sobre seus produtos, principalmente o charque. Em razão disso organizaram investidas contra as forças legais a fim de pedir a baixa dos impostos e a liberdade de comercializar com os países fronteiriços. Na região, mais do que em qualquer outra, segundo Moura (2020), a os escravos recebiam alforria para compor as frentes de combate ao lado das lideranças brancas como Bento Gonçalves e Garibaldi. Além disto, a abolição dos escravos foi um ponto central durante a existência do movimento. Mesmo após a rendição forçada pelas tropas legais, os farrapos defendiam a abolição dos escravos. É sabido que a ocorrência de diferentes movimentos com a participação negra existiu em todas as fases do desenvolvimento de nossa história. No entanto, estas listadas anteriormente, dentre tantas outras, foram atos concretos da participação negra na contestação da escravização e das péssimas condições de vida em que viviam (MOURA, 2020). Mas se situam dentro de iniciativas de lideranças brancas. Na sequência são apresentados movimentos que são de organização exclusivas dos negros escravizados refletindo a luta cotidiana e a reivindicação por melhores condições de vida. Unidade 2 - A Resistência Quilombola Ao falarmos de ações políticas e de resistência, o principal ponto a ser evidenciado quando falamos na presença negra é a organização dos quilombos. De acordo com Clóvis Moura (2021), importante historiador da presença negra no Brasil, os primeiros registros de quilombos datam de 1559. Estas localidades eram caracterizadas por serem refúgios para os negros e negras que escapavam dos maus tratos de seus senhores. Como demonstrado no anúncio de jornal a seguir, a fuga era muito comum entre a população negra escravizada. Uma vez longe da casa-grande se agrupavam em espaços isolados e lá se reorganizavam social e politicamente, imprimindo um novo significado para sua existência. Nestes locais, de preferência ocultos e de difícil acesso, os escravos fugidos realizavam o sonho de viverem livres e independentes. Para além disso, era o espaço de rever pessoas e resgatar os laços ancestrais trazidos pela diáspora africana. Desta maneira, o quilombo se tornou um lugar efervescente e rico culturalmente. No Brasil os quilombos se espalharam rapidamente pelos quatro cantos do território, uma vez que a escravidão do negro africano foi a tônica do desenvolvimento econômico local, inserindo o país dentro do mercado internacional fosse do extrativismo mineral ou vegetal. Foi uma constante de resistência e organização sociocultural. Quilombo dos Palmares Como apontado anteriormente, uma das principais formas de resistência foi a formação de quilombos. Espalhado em todo o território nacional foram lugares de reprodução de cultura, de produtividade econômica e principalmente de garantia de liberdade. O principal deles foi o Quilombo dos Palmares localizado na Serra da Barriga, na região Nordeste, como apresentado na Figura. Figura: O Quilombo dos Palmares Fonte: Go Brazil Localizado entre o que hoje é o território de Alagoas e Pernambuco, reunia uma multiplicidade étnica. De acordo com Clóvis Moura (2020), os quilombos criavam sua seus próprios valores e hierarquia sem se prender ao modelo https://go-brazil.org/2014/11/20/black-awareness-day-in-alagoas/quilombo-dos-palmares-map/ estabelecido na vida anterior presos aos senhores de escravos. Pela figura, é possívelver que a estrutura era composta por vários outros quilombos de dimensões menores que se agrupava sobre a proteção coletiva. O autor afirma que cerca de 6 mil pessoas viviam na localidade. Mas outros historiadores chegam a falar de uma população entre 25 e 35 mil pessoas. A produção agrícola diversa assegurava a subsistência. Com o passar dos anos a necessidade de uma organização política surgiu já que a amplitude da força quilombola ia crescendo. Foi nele que o principal expoente da luta negra foi constituído. Zumbi dos Palmares foi um guerreiro escolhido entre seus pares e reconhecido pela sua liderança e méritos. O Quilombo se constituiu como uma república e, ao lado do líder máximo, estava um Conselho deliberativo que assessorava as decisões políticas (MOURA, 2020). Ao lado de Zumbi estava sua companheira Dandara, importante liderança representativa das mulheres palmarinas e que esteve ao lado de Zumbi mesmo nos momentos de luta armada para o enfrentamento das forças militares. Era ativa na vida social e política e se posicionava claramente diante dos demais líderes. Mesmo importante para o movimento negro a representatividade de Dandara foi sendo apagada diante da visão de mundo patriarcal. Seu principal líder foi Zumbi dos Palmares, homem escolhido entre seus pares devido os méritos por ser um forte guerreiro. Zumbi tinha ao seu lado um conselho de líderes que representavam os demais mocambos da área. Juntamente com Dandara, esteve à frente da organização social e política do Quilombo de Palmares. Ambos, defenderam a sociedade negra criada pelos escravos e lideraram homens e mulheres na resistência contra a violência branca (RIBEIRO, 2014). O Quilombo dos Palmares teve a maior extensão territorial e durabilidade. Assim também foi o enfrentamento diante as forças legalistas. Várias foram as investidas sem sucesso para a destruição daquele que entraria para a história brasileira como o principal exemplo de organização social e política dos negros dentro do modelo colonizador escravista. Palmares resistiu por 100 anos. Sua derrocada veio somente após lutas intensas e traições. Zumbi morreu em novembro de 1695 depois de permanecer escondido resistindo por cerca de um ano e meio aos ataques colonizadores. Deixou um importante legado para a história afrodescendente. Hoje, o dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, se fundamenta na luta do quilombo e em todos os demais momentos de resistência ao longo da existência negra. A Presença Viva dos Quilombos na Sociedade Atual Ainda hoje há comunidades que são originárias a partir dos quilombos. Tanto que no último censo do IBGE de 2022 publicado recentemente, mais de um milhão de pessoas se autodeclararam quilombolas, ou seja, remanescentes de quilombos e que vivem em áreas históricas onde a marca da sua cultura é a ancestralidade. O Censo 2022 revelou que os estados da Bahia e Maranhão, concentram 50% da população quilombola. Além disso, 30% das cidades brasileiras foram identificadas como tendo moradores que se caracterizam como quilombolas. O Vale do Ribeira na região sul do estado de São Paulo é um bom exemplo desta distribuição populacional. Na localidade vivem espalhados em várias cidades e asseguram a defesa da terra, do cultivo agroecológico e da cultura de seus antepassados. Para melhor organização social e principalmente econômica, os quilombolas se organizaram em torno de uma cooperativa agrícola, a Cooperquivale. A cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale) nasceu em 2012 a partir da demanda das comunidades Quilombolas de se organizarem para comercializar seus produtos agrícolas, florestais e turísticos. Foi fundada depois de um extenso processo de discussão entre as lideranças comunitárias e os parceiros regionais sobre o melhor formato, princípios e objetivos que norteariam a instituição. Composta por, aproximadamente, 256 cooperados exclusivamente quilombolas que residem nos munícipios de Eldorado/SP, Iporanga/SP, Itaóca/SP e Jacupiranga/SP. Contempla agricultores 16 comunidades Quilombolas e na sua composição possui 60% de mulheres agricultoras quilombolas. O cultivo de banana prata e nanica e de palmito pupunha, por exemplo, tem certa expressividade da participação dos homens. No entanto, os demais alimentos englobam maior diversidade tem o manejo preponderantemente das mulheres. A cooperativa trabalha principalmente com produtos oriundos da agricultura tradicional quilombola, que é da composição do uso da coivara ou roça de toco adaptada a região do Vale do Ribeira por mais de 300 anos de ocupação, gerando uma diversidade de itens alimentares que servem tanto para segurança alimentar quanto para geração de renda dos cooperados. Alguns dos produtos produzidos são: arroz, feijão, banana (nanica, ouro, zinca, prata, maça, vinagre, terra), palmito, batata doce, mandioca, cará, inhame, limão, laranja, abacate, abóbora, berinjela, chuchu, maná, verduras em geral e também produtos processados como banana chips, rapadura, taiada, mel e farinha. Para exemplificar a produção de cada área, o quilombo Poça apresenta menor diversidade de alimentos com foco em banana prata e banana nanica. Já os quilombos Nhunguara, Pilões, Galvão e São Pedro apresentam maior multiplicidade de alimentos para comercialização. Por meio da tabela a seguir é possível encontrar toda a listagem de produtos que compõem o Sistema Agrícola Tradicional Quilombola. O objetivo da cooperativa é promover a produção quilombola e sua comercialização nos mercados comuns e institucionais, contribuindo para geração de trabalho e renda nas comunidades e região. Possibilitar que a sociedade acesse alimentos de qualidade e saudáveis e valorize o Sistema Agrícola Tradicional Quilombola, com sua cultura e modos de vida. Os remanescentes de quilombos que ali estão são resultado da introdução do negro escravizado pelos bandeirantes que estavam à procura de minérios na atual região sul do estado de São Paulo. A Cooperquivale cumpre um importante papel de valorização da ancestralidade africana, no cultivo sustentável e na defesa da diversidade étnico-racial. Usam técnicas agrícolas que remontam a mais de trezentos anos de tradição. Usam o sistema de coivara que consiste em usar uma parte da terra por um ou dois anos e deixar que este espaço se recupere naturalmente. A continuidade da plantação é feita em outros lugares para que o próprio ecossistema nativo se desenvolva novamente. Durante a pandemia da Covid-19 os cooperados distribuíram mais de 220 toneladas de alimentos para favelas e moradores carentes de diversos municípios paulistas. Já no início alcançaram cerca de 35 mil pessoas com seus produtos agroecológicos e ancestrais. Isto foi possível porque cultivam uma variada gama de produtos. Tais aspectos fazem da Cooperquivale também um importante articulador do turismo histórico no estado de São Paulo e da promoção da cultura afro- brasileira. Soma-se a estes pontos a necessidade corrente de valorização da alimentação saudável que vai além do orgânica e tem origem na produção ancestral. A partir de 1988, a Constituição Federal definiu que o Estado deveria conceder o título definitivo da posse da terra a estas comunidades. No entanto, de lá para cá, foram poucos os quilombos reconhecidos e que hoje possuem esta garantia. Tal foi sua importância que os remanescentes de quilombos estão vivos defendendo a memória dos seus ancestrais. Atualmente, o país se encontra com um quadro crescente de terras quilombolas titulados e outras em processo de regulamentação. A imagem a seguir apresenta esse cenário que expressa o quanto os remanescentes de quilombos conseguiram se organizar, resistir e encontrar os canais de articulação para que o poder público assegurasse a existência do território e da memória dosancestrais africanos e demais descendentes. A regulamentação fundiária dessas comunidades é, portanto, uma vitória que pode ser inserida dentro do campo de políticas de reparação e ações afirmativas. Mesmo que o processo seja lento, é um ganho ter 179 terras tituladas e aproximadamente 1700 no trâmite para o reconhecimento de área remanescente de quilombo. Figura: Terras Quilombolas no Brasil (2019) Fonte: Portal Humanista https://www.ufrgs.br/humanista/2019/01/17/quilombo-lemos-resistencia-e-marca-na-luta-pela-preservacao-da-cultura-negra/ Para o momento atual, o que o levantamento do IBGE demonstra é que as políticas públicas para a população quilombola se revelam necessárias para assegurar a posse de seus territórios bem como o desenvolvimento de infraestrutura básica necessária nestas áreas. Guerra de Guerrilhas Além da fuga para os quilombos, os negros, durante o período de dominação, realizaram ações de combate contra as forças legais. Entra em questão as guerrilhas. É o caso do movimento que ocorreu em Belém do Pará, durante a Cabanagem, quando os negros que participaram do movimento de contestação à dominação portuguesa se refugiaram ao longo dos rios. No interior, juntamente com os indígenas, estabeleceram a guerra de guerrilha e resistiram às investidas das tropas legais por longo período (SANTOS, 2017). Unidade 3 - As Revoluções Negras na América Latina e os Desdobramentos no Brasil Os estudos sobre as lutas de resistência negra no território brasileiro não são completos se olhadas apenas dentro do país. Isso se justifica porque os movimentos externos na América Latina, colonizada por europeus, foram fundamentais para que os processos de contestação se ampliassem a partir do final do século XVIII. É o caso da Revolução do Haiti desencadeada a partir de 1790 e que teve alcance além de suas fronteiras. Naquele pequeno país, escravos conseguiram que o colonizador francês lhes concedesse a alforria (SANTOS, 2017). A libertação ocorreu em meio a uma guerra declarada, primeiramente com a Inglaterra e posteriormente com a própria força francesa. Liderados por Toussaint de Louverture (1743-1803) e Jean-Jacques Dessalines (1759-1806) os negros haitianos inauguraram um momento único no continente e na história da escravidão negra latino-americana. Ambos deixaram suas marcas e impediram a recolonização do país. Mas o principal feito foi a proclamação da independência colocando fim ao período de dominação francesa em 1804 (SANTOS, 2017). Saiba Mais: O vídeo a seguir apresenta informações sobre esse importante movimento negro que marcou a história do desenvolvimento dos negros revolucionários na América Latina. Para que você perceba a importância da Revolução Haitiana, os ecos do movimento chegaram ao Brasil e contribuíram para que negros escravizados, libertos e indígenas se apropriassem do precedente dos ex-colonizados franceses. As elites ficaram alertas para a possibilidade de levantes negros e de camadas populares. Além disto, após a chegada ao poder das camadas revolucionárias, Santos (2017) aponta que a economia local decresceu, causando um empobrecimento da elite branca e da população recém-liberta. Tal fato serviu de parâmetro para os demais países que agiam com intensa repressão diante de revoltas escravas ou populares. Influenciados pelos acontecimentos externos e diante de um aumento expressivo de africanos escravizados, as insurgências estouraram em todas as regiões do país. Para além do discurso oriundo da ideologia da democracia racial, os escravizados se insurgiram de várias formas possíveis contra o regime de escravidão. Houve diversas e ainda incontáveis insurreições e revoltas de escravizados por todo território brasileiro. A seguir são apresentadas algumas delas: https://www.youtube.com/embed/XQXnixDXvjQ?feature=oembed 1832 - Insurreição em Campinas. Na ocasião, negros de 15 engenhos arquitetaram um plano para sufocar os brancos e conseguirem sua liberdade. Entre as lideranças estavam o liberto João Barbeiro e Diego Rebolo (PIROLA, 2011). 1835 - Quilombo de Catucá ou Malunguinho em Recife/PE. Liderados pelo líder conhecido por Malunguinho viviam nas matas. De acordo com o historiador Marcus Carvalho (1996), a região já era um local conhecido para onde escravizados fugiam quando conseguiam escapar dos navios negreiros que atracavam em Recife. A posição estratégica, próxima a estradas importantes, favoreceu a resistência e interferência na política local, desestabilizando a repressão e facilitando a fuga de escravizados. 1835 - Revolta dos Malês em Salvador/BA. Na noite de 24 para 25 de janeiro de 1835, os líderes negros conduziram os escravizados da religião muçulmana, em número aproximado de 600 homens, contra as forças legais (REIS, 2003). Seu objetivo era a liberdade jurídica e religiosa. 1838 - Insurreição de Manoel Congo em Vassouras/Paty do Alferes no Rio de Janeiro. Nesse movimento, cerca de 80 escravizados fugiram nas terras do Capitão-mor Manuel Francisco Xavier. Assim como os demais acontecimentos, os participantes foram capturados, torturados e mortos. 1842 - Revolta do Negro Cosme no Maranhão. É considerada a maior insurreição de escravizados e negros da história do Brasil Imperial e ficou conhecida como Balaiada. Contou com cerca de três mil homens que se juntaram a Cosme Bento das Chagas, conhecido como “Negro Cosme”, na luta por liberdade, direitos dos campesinos e vaqueiros pobres. Essas poucas movimentações são apenas alguns olhares sobre a potencialidade de crítica e organização política da negritude escravizada e liberta no Brasil escravista. O século XIX ainda permitiu que outros tantos lugares tivessem sido alcançados pelos feitos daqueles que diariamente lutavam por liberdade e direitos. Unidade 4 - Os Aspectos Jurídicos e a Luta Negra por Liberdade É sabido que o Direito brasileiro fosse no período colonial ou durante o império que o negro compunha os bens dos senhores brancos, fazendo parte da lista de propriedades que estes possuíam. Assim, os negros escravizados foram tratados como objetos vivendo boa parte da sua existência durante a escravidão. A Constituição de 1824 apresentou alguns contornos, ainda tímidos, em relação aos direitos para os negros. A carta abordava limites para dados pelos senhores aos seus escravos. Como exemplo estava a questão dos castigos (RIBEIRO, 1999). A partir daquela data, ficava proibido o uso de açoites, marcar a pele com ferro quente, a tortura ou qualquer outro meio cruel de violência contra o escravo. A mesma Constituição de 1824 limitava a participação de negros na vida econômica, social e política, fossem eles escravizados e libertos. Isto porque no artigo 94 estava expressamente escrito ou ainda pela necessidade de uma renda mínima. Por exemplo, para candidatar-se a deputado a renda mínima necessária era quatrocentos mil réis líquidos (RIBEIRO, 1999). A urbanidade era também medida a partir da divisão social do trabalho. Enquanto os embates políticos aconteciam, a massa de trabalhadores escravos ou assalariados transitava em maior volume pelas cidades. A questão social no segundo império foi, portanto, caracterizada pela continuidade da presença negra escravizada. Estas “mulheres e escravos estavam sob a jurisdição privada dos senhores, não tinham acesso à justiça para se defenderem” (CARVALHO, 2015, p. 22). Já a Consolidação das Leis Civis, de 1858, não incluiu a questão negra em nenhum espaço do texto. Somente na revisão feia em 1875, após a Lei do Ventre Livre, de 1871, é que alguns aspectos foram sendo abordados (GOMES, 2006). De acordo com Gomes “parece que a elite da época, embora pretendesse parecer progressista, não queria expor a sua face verdadeira, mascarando-a, no caso do direito,por meio da ignorância à escravidão negra” (2006, p. 38). O caminhar para o final do século XIX, as alterações possíveis demandavam atenção e interesse do poder público para assegurar que a legislação proporcionasse garantias mínimas para a população negra, escravizada ou liberta. No entanto, o que foi sendo feito foram alterações lentas sem mudanças profundas no enfrentamento da inserção dessa população nas políticas públicas daquele momento. A legislação do império foi sendo pressionada pelos movimentos internos e externos a encontrar soluções para a escravidão. Os ingleses, principalmente, cobravam o cumprimento dos acordos para o fim do tráfego negreiro, que ocorria de forma clandestina, e que a alforria fosse feita. O interesse em obter mercado de consumo para seus produtos requeria maior número de homens livres que pudessem adquirir novos bens. No âmbito interno, a pressão ocorria por parte dos abolicionistas e republicanos que estavam desenhando a entrada da nação no século XX e requeriam novos campos de organização social e política para o Brasil capitalista nascente. A escravidão não mais atendia aos interesses das classes economicamente dominantes e, portanto, acabaram ficando de fora do processo de transformação social. Em termos legais a escravidão contou com as seguintes leis sobre o tema: 1850 - Lei Eusébio de Queirós: extinguia o tráfego de escravos. 1871 – Lei do Ventre Livre: por meio dela ficava decretado que todos os filhos de escravos, nascidos a partir daquele ano, estariam livres. 1885 – Lei do Sexagenário: os escravos acima de 60 anos estariam livres, desde que cumprissem um período de trabalho para seu senhor, a título de indenização. 1888 – Lei Áurea: fim definitivo da escravidão e liberdade imediata a todos os escravos. Entre esse espaço de tempo transcorrido, a pressão do movimento abolicionista e da própria organização dos negros escravizados e libertos pressionavam o sistema para que medidas fossem tomadas. No campo cível, as ações mais comuns eram as ações de liberdade. Essas ações, uma vez iniciadas na esfera jurídica, eram capazes de, ainda que não fossem atendidas, desafiar os poderes senhoriais e ser um campo para a luta por melhores condições de trabalho e vida (MATTOS, 2009). Com uma logística de resistência, driblavam os caminhos minados de processos judiciais, questionando os descaminhos para que, por fim, pudessem conseguir a tão sonhada liberdade. A aproximação com os abolicionistas e o papel de lideranças negras, como o caso de Luiz Gama, foram fundamentais neste período histórico. Saiba Mais: Luiz Gama foi um homem negro, advogado, filho de quituteira que lutou pela abolição da escravatura. Conheça um pouco mais sobre a vida desse herói brasileiro: Percebe-se que houve tempo para pensar em políticas públicas que antedessem a esses homens e mulheres que foram aos poucos saindo das amarras dos seus donos. Ao mesmo tempo, se dirigiram para as áreas https://www.youtube.com/embed/oWMIsr2Tckk?feature=oembed periféricas das cidades e foram substituídos por trabalhadores imigrantes europeus (CARVALHO, 2015). Por sua vez, os negros e negras, com uma logística de resistência, driblavam os caminhos minados de processos judiciais, questionando os descaminhos para que por fim pudessem conseguir a tão sonhada liberdade. É com esse espírito que a chegada do século XX abre um conjunto de desafios para a população liberta da escravidão, mas aprisionada pelo preconceito e o racismo. MÓDULO III – AS DIFERENTES FORMAS DE RACISMO E A LUTA ANTIRRACISTA NO BRASIL OBJETIVOS Ao final do módulo você será capaz de: Apresentar a organização da comunidade negra ao longo do século XX; Discutir as principais formas pelas quais o racismo estrutural está presente na vida de homens e mulheres; Introduzir elementos para pensar os espaços de defesa política e cultural da população negra a partir do século XX. APRESENTAÇÃO O presente módulo se destina a apresentar como a questão racial se constituiu ao longo do século XX e como o século XXI trouxe importantes possibilidades de ações afirmativas. Trata-se de um momento em que as bases do racismo estrutural se firmaram a partir da construção de um paradigma da branquitude. Ainda assim, este percurso histórico demonstrou a capacidade de organização do movimento negro em diferentes frentes, mas especialmente no campo cultural e no aspecto político. Diferentes espaços foram ocupados pela população negra como é o caso do Teatro Experimental do Negro ou o Movimento Negro Unificado. No campo político a processo de Assembleia Nacional Constituinte abriu espaço para que as demandas do povo preto estivessem em discussão: acesso à saúde, educação, habitação inseridos na Constituição Federal de forma a assegurar a garantia de direitos para negros e negras, ainda que numa sociedade marcadamente racista. Complementa este módulo a discussão de questões do presente. Primeiramente abordando o papel da mulher negra na sociedade atual. Suas conquistas e dificuldades demonstram o longo caminho a ser seguido, mas já há resultados positivos, principalmente no campo da educação tanto básica como educação superior. Um ponto relevante que marca a sociedade atual são as diferentes maneiras de organização de precarização do trabalho que envolve a população negra. Esteja presente nos bicos, entre os vendedores e vendedoras ambulantes ou o que ocorre hoje, na uberização do trabalho. A partir destes pontos iniciais busca-se discutir como o racismo estrutural está presente nas nossas relações cotidianas. INTRODUÇÃO O Brasil tornou-se uma República Federativa há 132 anos, deixando grande sequelas sociais para a população pobre e, principalmente, para os descendentes do processo de escravização, segundo a socióloga Ângela Alonso. Em seu livro Flores, votos e balas, a autora afirma que a monarquia brasileira deixou o seguinte tripé: uma participação política extremamente restrita, o escravismo como desigualdade social e o catolicismo como o defensor das hierarquias sociais. O moderno passou a servir ao arcaico. Isso porque, segundo Clóvis Moura, o Brasil entrou na modernidade sem haver mudança. Caminhou do processo de transição do escravismo para uma sociedade que entraria para uma economia industrializada. Se antes era apenas uma economia agrária (cafeeira) o século XX o inseriu no processo embrionário de industrialização brasileira. O novo país sem a escravização deixou uma lacuna social imensa para população negra. Entre vários aspectos podemos detalhar os seguintes episódios: O Brasil teve uma população que não foi incluída, que foi esquecida como cidadã. A condição de pobreza não é uma escolha, é uma condição dada para essa população que não teve, por parte do Estado, nenhuma política de inclusão desde o fim da escravidão. A sociedade brasileira entendia que a pobreza era um fato dado à essa população, desconsiderando o grande período de escravização, sem a implantação de mecanismos de inclusão. A pobreza ficou enraizada de forma naturalizada no inconsciente coletivo, da mesma forma que a escravidão foi naturalizada na história do Brasil, tirando a condição de humanidade da população pobre e negra brasileira. Essa questão estava tão internalizada no pensamento brasileiro que a pobreza era destinada a uma classe que estava fadada a tal situação. A pobreza não tinha uma intervenção do poder público ou do Estado. As obrigações com a pobreza ficavam ao cunho de grupos privados e religiosos, de forma clientelista, que mediavam o atendimento à população vulnerável e pobre. A pobreza era entendida e apresentada como uma fatalidade e era gerenciada pela igreja e pelos “homens bons” ou “damas de caridade”. Esse conceito assistencialistae voluntarista se manteve até meados do século XVIII e aos poucos foi sendo substituído pelo que alguns especialistas nomearam de assistência disciplinada: as ações continuavam filantrópicas e a cargo de particulares e religiosos, como instituições filantrópicas. A sociedade em que se vive hoje é pautada pela Constituição Federal de 1988 denominada “constituição cidadã”. Essa adjetivação foi atribuída justamente porque nela está constando elementos importantes para a dignidade da pessoa humana. O Artigo 5º da Constituição assegura que: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. (CF/1988) Com base nessa ideia, sustentada pela lei máxima do país, foram assegurados direitos a todos aqueles que compõem a sociedade brasileira. Cor, classe social e religião, entre outros pontos, foram colocados a todos em pé de igualdade. Assim, brancos, indígenas e negros e toda a população mestiça tinha garantias constitucionais para proferir sua fé, não ser discriminado por sua cor, religião ou classe social. No entanto, para chegar a esse ponto crucial para o ordenamento social, cultural e jurídico foi percorrido um longo caminho de preconceitos e lutas antirracistas. Nas páginas a seguir serão apresentados alguns recortes e pontos que permitem entender esta trajetória de construção do racismo estrutural no país, mas também de luta e de defesa da identidade africana e afro-brasileira. Unidade 1 - As Diferentes Formas de Racismo na Sociedade Brasileira A Imigração Após o fim da escravidão a presença negra na sociedade brasileira ainda era uma coisa indesejada por aqueles que estavam conduzindo as mudanças sociais e políticas no país. A vinda dos imigrantes europeus, apresentada na unidade anterior, ocupou os melhores espaços no processo produtivo, bem como na organização das cidades. A discriminação foi sustentada em grande parte pela legislação. É ela, portanto, um dos pontos que corroboram a perspectiva do racismo estrutural presente na vida nacional. As regras de imigração foram abordadas no Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890 que alterava o Código Penal de 1890. Ao tratar da introdução de imigrantes, o Decreto revela o racismo que foi institucionalizado pelo Estado após 1888: Art. 1º E' inteiramente livre a entrada, nos portos da Republica, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos á acção criminal do seu paiz, exceptuados os indigenas da Ásia, ou da Africa que sómente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admittidos de accordo com as condições que forem então estipuladas. (...) Art. 3º A polícia dos portos da Republica impedirá o desembarque de taes individuos, bem como dos mendigos e indigentes. Numa leitura comparativa, a legislação que instituía a entrada o imigrante no Brasil diferia da abordagem para as populações imigrantes de outras áreas do mundo, a exemplo do que é citado no trecho acima. Aqueles que chegavam da África ou da Ásia apenas poderiam ser recebidos se houvesse a anuência do congresso nacional. Figura: Programa de Residência Artística – Rostos Invisíveis da Imigração no Brasil Fonte: Museu da Imigração/SP Depois de séculos de entrada de negros escravizados por meio de navios negreiros, a partir da república, os negros que desejassem a entrada ficavam impedidos ou passariam por um conjunto de ações burocratizadas. A imigração invisível era um fato sem acolhimento do poder público. Felizmente, após a Constituição de 1988, a questão da imigração ganhou outros contornos. Como visto no Artigo 5º da Constituição Federal, os estrangeiros que viverem no país têm assegurado direitos, assim como os brasileiros. Soma- se a este ponto a elaboração do Estatuto do Estrangeiro de 1980 pela Lei 6.815/80. Após várias discussões e, como meio de garantia de direitos universais, em 2017 foi promulgada a Lei nº 13.445. Graça a ela, diversas discriminações, que marcaram o processo migratório na história brasileira, puderam ser corrigidas. A Criminalização das Religiões Afro-Brasileiras A entrada da população africana ao território brasileiro, trouxe não só a mão-de-obra necessária para o desenvolvimento econômico da colônia portuguesa, mas, também, um conjunto de elementos culturais, religiosos e sociais que compuseram a formação histórica brasileira. A partir da República, consagrou-se a liberdade ao culto no âmbito formal da Constituição de 1891. Contudo, as práticas religiosas de africanos e descendentes, que já eram criminalizadas e reprimidas, por meio de Códigos de Posturas locais, permaneceram discriminadas e perseguidas antes da promulgação do Código Penal de 1890. Os ideólogos do início do século XX, como Nina Rodrigues e outros, consideravam o africano como Inferior, menos evoluído que o pensamento branco cristão capaz de abstrair e crer em um sistema monoteísta, por exemplo. O sistema religioso africano é caracterizado como fetichista e politeísta, possuidor de inúmeras variantes. (CARNEIRO, 2019, online) De acordo com o autor, as religiões africanas, mesmo sendo estudadas pela academia no início do século XX e posteriormente, ficaram sempre à margem da sociedade e estigmatizada. A leitura ideológica construída foi a de que os cultos africanos se ligavam ao demônio, ao curandeirismo ou charlatanismo. Essa construção responde ao anseio da subalternidade a ser imposta para os negros. O sincretismo religioso foi uma alternativa para que a expressão religiosa pudesse existir. Os orixás e deuses negros eram representados nos santos católicos. As igrejas dos homens pretos, foram antes de tudo lugar de resistência frente às várias tentativas de calar as religiões de matriz africana (PRANDI, 2005). A perseguição às práticas relacionadas à tradição religiosa de matrizes africanas ocorreu de diversas formas e foram fundamentadas na higienização, na ciência médica (combate às doenças mentais), no combate ao charlatanismo, entre outras. Com o Código Penal de 1940, houve a descriminalização de algumas figuras delituosas como o espiritismo e a capoeira, mantendo os crimes de charlatanismo (artigo 283) e curandeirismo (artigo 284). É importante compreender que a mudança na codificação penal não alterou por si só a cultura jurídica, o que pode ser verificado na continuidade da perseguição às religiões no decorrer no século XX, incluindo ações estatais por via de polícia. Ademais, nos anos recentes houve ataques continuados a candomblés e terreiros. Líderes religiosos de outras denominações muitas vezes estimulam e alimentam o ódio religioso. As agressões físicas e simbólicas demonstram que as ações pedagógicas são cada vez mais necessárias para fazer valer os artigos da Constituição Federal de 1988 e assegurar o direito ao livre culto religioso a qualquer orientação religiosa. A Violência Cultural A amplitude da perseguição aos negros, além dos aspectos religiosos e de imigração alcançaram também as manifestações culturais. É o caso da perseguição imposta desde sempre contra a capoeira, mas que foi institucionalizado pelo Código Penal de 1890: Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes. Paragrapho unico. E' considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro. (BRASIL, 1890) O simples fato decircularem livremente pelo espaço urbano fazia com que fossem vistos como vadios e perigosos. Da mesma forma o rap e o hip-hop, expressões contemporâneas da cultura negra, também foram alvos do preconceito enraizado na sociedade brasileira como, por exemplo, os Racionais MC’s. Unidade 2 - Feminização Negra: O Racismo Estrutural Inerente à Mulher Negra Brasileira Dentre as diversas heranças deixadas pela presença da escravidão no Brasil propomos alguns questionamentos: Como podemos esquecer de uma grande parte da população que não estava incluída no mercado de trabalho formal, principalmente a negra? Para respondermos a esse questionamento, iremos considerar que o sociólogo e professor Pedro Demo (1988) afirma: A exclusão mais comprometedora não é aquela ligada ao acesso precário a bens materiais, mas aquela incrustada na repressão do sujeito, tendo como resultado mais deletério a subalternidade. O nível mais profundo de pobreza política é, assim, a condição de ignorância: o pobre sequer consegue saber e é coibido de saber que é pobre. Por conta disso, atribui sua pobreza a fatores externos, eventuais ou fortuitos, sem perceber que pobreza é processo histórico produzido, mantido e cultivado […]. É nesse cenário que buscamos pensar como a presença da mulher negra foi inserida neste contexto social e econômico brasileiro? É necessário considerar que na mudança do processo escravocrata para o início da industrialização brasileira, as mulheres negras entraram no mercado de trabalho como empregadas domésticas. Passaram a prestar seus serviços de cozinheira, lavadeira, babá, dentre outras atividades braçais. Tais funções acabaram sendo os únicos, ou quase únicos, meios de apoio (subtenência) e sobrevivência para manter as suas famílias. Isso porque, a transição para a industrialização deixou milhares de negros desempregados depois do dia 14 de maio de 1888 – pós-abolição. O Brasil deixou e deixa marcas geracionais de desequilíbrio social e econômico que afetam diretamente a vida dessas mulheres negras. Essas desigualdades voltadas para o mercado de trabalho estão interligadas diretamente à estratificação social, à questão racial e de gênero. No entanto, para uma melhor compreensão da ideia citada acima, é necessário entender os termos matrizes de opressões e intencionalidade. São vários os fatos históricos no Brasil que condicionaram a opressão das mulheres negras. Dentre eles, o principal foi o processo escravocrata, que construiu uma submissão ideológica e a negação de suas subjetividades. Dessa forma, cristalizou-se um local social para a mulher negra, a invisibilidade. Tomamos o conceito de opressão a partir de Patrícia Hill Collinns (2022), socióloga, professora e pesquisadora da Universidade de Maryland nos Estados Unidos, que apresenta teorias contemporâneas do feminismo negro. Segundo Collins (2022), há estruturas que se interligam. A opressão se sustenta em estruturas raciais, ou seja, na diferença entre brancos e negros, na desigualdade de gênero e na diferença de classe entre ricos e pobres. Tais distinções, segundo a autora, não são somatórias de processos de poder distintos. São sim a combinação e a articulação que resultam na definição de um lugar determinado, bem como de uma trajetória específica para as mulheres negras. Portanto, não há uma série de opressões, mas um sistema opressor unificado que sobrecai na mulher negra. Somando-se a essa interpretação, Kimberle Crenshaw (2002) assegura que essas opressões determinam um lugar social e econômico para mulher a negra. Olhando para o Brasil, pensar o racismo estrutural inerente à mulher negra suscita olhar ao processo histórico, mais especificamente ao escravismo, que deixou um espólio que tem um reflexo incrustado na sociedade até os dias atuais. Dessa forma, os conceitos anteriormente apresentados possibilitam compreender as especificidades do contexto em que a mulher vive. Para entender como esses atributos inerentes ao cotidiano das mulheres negras refletem o racismo estrutural, apontaremos alguns dados estatísticos levantados pelo IBGE. a) Desigualdade de Renda Olhar para a sociedade brasileira é encontrar uma série de elementos que transparecem a desigualdade interna nas camadas populares. Se a segmentação é feita pelo gênero e pela cor ou “raça”, isso fica ainda mais evidenciado. Veja os dados a seguir relacionados ao salário mínimo e o alcance entre homens e mulheres: Figura: Rendimento que Mulheres Negras, Homens Negros e Mulheres Brancas Recebem em Relação ao Rendimento do Homem Branco Fonte: Poder 360 (IBGE, 2021) Com tais números, percebe-se que a diferença salarial entre brancos e negros é gritante. As mulheres brancas recebem quase que o dobro do que é pago para as mulheres negras. O salário das mulheres negras é 57% menos do que os homens brancos. Outros dados do IBGE revelam que quanto mais alto é o cargo dentro das empresas, menor é o número de negras nestas vagas. Figura: Mulheres Pretas em Cargos Gerenciais Nas posições gerenciais, por exemplo, o rendimento de mulheres negras fica quase na metade se comparado ao de homens brancos. Vale ressaltar que a mulher concentra não só o trabalho corporativo, mas também o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos. As múltiplas tarefas sobrecarregam seu dia a dia, levando-as a assumir diferentes responsabilidades sem o merecido reconhecimento. Esse é um ponto dentro de um conjunto de possibilidades no olhar para a mulher. b) Educação É dentro da sala de aula que a formação intelectual e a visão de mundo se amplificam. Infelizmente, a ligação das mulheres negras com a educação no Brasil está longe de ser a ideal. Ainda assim, houve um crescimento do número de mulheres pretas tanto na educação básica quanto no ensino superior, como pode ser verificado no quadro a seguir: Figura: Conclusão do Ensino Médio por Gênero e Raça Fonte: PNAD Contínua, IBGE, 2018 Observa-se que a taxa de mulheres pretas ou pardas concluintes do ensino médio possui um percentual distinto em relação aos homens e mulheres brancas. Os 67,6% de mulheres que finalizaram o estudo nessa fase da educação é maior que os homens negros. Entretanto, se comparado ao total de mulheres brancas que terminam os estudos no ensino médio, há um registro da marca histórica do atraso deixado para a população negra, a desigualdade. Ainda de acordo com o IBGE, o atraso escolar é também um ponto relevante. Adolescentes com idade entre 15 e 17anos apresentam atraso escolar de 30,7% entre pretas ou pardas e de 19,9% entre as mulheres brancas (IBGE, 2017). Estes dados estão interligados com a colocação da mulher no mercado de trabalho. Aquelas com melhor qualificação ocupam cargos mais proeminentes e possuem renda mais elevada. Figura: Ingresso de Mulheres Negras no Ensino Superior Importante salientar que as políticas públicas de letramento racial e a efetivação de políticas públicas de inclusão incentivaram a auto declaração de negros e pardos elevando os índices de identificação deste percentual nos espaços públicos. O gráfico acima demonstra bem esse novo momento para as mulheres pretas ocupando os espaços públicos. Houve um grande crescimento da curva saltando de 274 mil mulheres negras para em torno de 621 mil mulheres nas universidades públicas entre 2014 e 2020. Tais números são bastante expressivos por representar o quanto o resultado de políticas afirmativas pode transformar as oportunidades para negros e negras. De acordo com publicação do Geledés, Neste contexto está o avanço na escolarização das meninas e mulheres negras. Mesmo enfrentando uma série de adversidades desde a educação básica, mulheres negras acessaram as universidades e aparecem prioritariamente nos cursos que envolvem o cuidado
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