Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
MECANISMOS DE DEFESA AULA 6 Profª Juliana Santos 2 CONVERSA INICIAL Antes de entrarmos propriamente no tópico desta etapa, destacamos alguns pontos do mecanismo de defesa que vai ser importante para a nossa compreensão sobre o tema de hoje: trata-se da angústia. Freud trabalhou com o tema da angústia em diversos textos e Lacan, seguindo os passos do seu mestre, reafirma que a angústia é o afeto que não engana. A angústia foi evidenciada na teoria freudiana levando-se em conta o desemparo, em função do qual Freud descreve que o bebê humano é lançado ao mundo mais inacabado que qualquer outro animal. Essa situação de excitação exterior, ao qual o neonatal está totalmente desprovido de elaboração psíquica, faz com que um estrutura primitiva do eu se constitua como um órgão de percepção. Émile Jalley (2009, p. 261), citando Freud, sublinha que o recém-nascido é incapaz de dominar por si próprio o afluxo das excitações externas e tensões internas: “o pequeno ser da primeiríssima infância, escreve Freud, não está efetivamente equipado para dominar psiquicamente as grandes quantidades de excitação que lhe chegam do exterior ou interior”. Assim, a situação de desamparo desemboca numa sensação de perigo, cuja reação é a angústia. Nesse sentido, Jalley (2009) declara que a imaturidade do eu, origem do desamparo psíquico, convoca a intervenção de um terceiro, ou, pelas palavras de Freud (1926), “uma ajuda alheia” que possa lhe proteger contra as formas externas e internas de perigo e que, por conta disso, esse outro será tomado como objeto de amor. (Jalley, 2009, p. 262) Portanto, é por meio da intervenção de um terceiro que essa situação de desamparo psíquico e medo pode ser ultrapassada, contudo Freud (1926), no texto Inibição, sintoma e angústia, ao retomar essa questão, aponta para o surgimento de uma nova situação de desamparo: trata-se da “dependência infantil”, que recobre os primeiros anos da infância, momento em que podemos situar o período pré-edipiano, em que entra em cena o perigo da perda do objeto de amor. Seguindo então os pensamentos freudianos, Jalley (2009) distingue a dependência infantil,como um desamparo diante dos pais: Tínhamos razão para temê-los, sobretudo nosso pai, mesmo que ao mesmo tempo estivéssemos certo da sua proteção contra o perigo [...] A relação com o 3 pai é afetada por uma ambivalência especial. O próprio pai constituía um perigo, talvez em virtude da relação primitiva com a mãe. Dessa maneira, ele inspira tanto temor quanto nostalgia e admiração. (Freud, citado por Jalley, 2009, p. 263) Freud (1926) aponta ainda para outras duas formas de angústia que seguem o processo do desenvolvimento infantil. Na fase fálica, o perigo da castração e na fase de latência a angústia frente ao supereu. Contudo, destaca que essas manifestações podem surgir de maneira sincrônica: Todas essas situações de perigo, escreve Freud, e todas essas condições que determinam a angustia podem persistir lado a lado e incitar o eu a reagir pela angustia até em períodos posteriores às épocas adequadas, em que várias delas podem entrar em ação simultaneamente. (Jalley, 2009, p. 24) É nesse sentido que o supereu encontra motivos para se constituir como uma instância específica da estrutura subjetiva do sujeito, dada as sucessivas vivências de angústia frente ao perigo. Portanto, para esta etapa, iremos apresentar a formação do supereu como essa categoria que surge em função da experiência do desamparo humano e da vivência edipiana, de forma a moldar a personalidade do sujeito ou, dito pelas palavras de Freud (1923, p. 61), o supereu é “o memorial da fraqueza e da dependência antiga do eu”. Buscaremos ainda evidenciar a questão da adolescência, uma das fases da vida de maior desamparo, visto que toda a questão sobre o seu ser é recolocada e o sujeito tem que se confrontar com a falta do significante no Outro. Veremos que em Freud a questão da adolescência é trabalhada nos termos da puberdade no artigo Três ensaios sobre a sexualidade (1905), onde o autor descreve como sendo o momento da “organização sexual definitiva”. Alberti (2009, p. 26) descreve essa fase como um quadro evolução que “prepara o sujeito e o organismo para o ato sexual, que comporta a ereção do membro masculino nos rapazes e a umidificação da vagina nas moças”. Assim, pelo viés da clínica psicanalítica, buscaremos elucidar o desamparo infantil, o qual o homem se sentirá fadado a carregar para sempre. TEMA 1 – CONSTITUIÇÃO DO SUPEREGO O supereu é um conceito criado por Freud resultado de uma longa elaboração teórica que se inicia desde Introdução ao narcisismo (1914) até a 4 sua concepção no texto O eu e o Isso (1923), e até o final da obra freudiana o conceito de supereu seguiu tendo desdobramentos. Em Introdução ao narcisismo (1914), o supereu está alinhado à ideia de um ideal de eu que emerge substituindo o narcisismo infantil. Trata-se de um instrumento de medida utilizado pelo eu para observar a si mesmo, declaram Roudinesco e Plon (1998). No texto O eu e o isso (1923), o conceito do supereu é apresentado de forma mais consistente, assumindo seu estreito vínculo com o isso, isto é, seu lado pulsional, cuja matriz se constitui como herdeiro do complexo de Édipo, pois, segundo Freud, quando a criança supera a vivência edípica, ele encontra a solução para a sua angústia por meio da internalização dos seus pais, ou seja, a criança se identifica com eles e internaliza as interdições impostas pelos pais. Mas, como explica Zimerman (1999), essa identificação não é completa, de modo que a criança pode identificar-se com certos aspectos dos pais e não com outros. Assim, as exigências internas distinguem-se em: “deves ser assim...(como teu pai)”, como também impõe a proibição “não deves ser assim... (como o teu pai; não podes fazer tudo o que ele faz; muitas coisas são prerrogativas exclusivas dele; ai de ti se o desobedeceres...” (Zimerman, 1999, p. 134). Contudo, o supereu situado como herdeiro do complexo Édipo forma um aparente paradoxo, pois ele contribui para a dissolução deste, visto que é pela via das interdições e ameaças que o sujeito sai do complexo de Édipo. Zimerman (1999) ainda demarca dois fatores na obra freudiana, a respeito da formação do supereu: 1. A severidade do supereu, também provinda da própria hostilidade da criança voltada contra si mesma (e, por isso, obriga o psiquismo a se proteger com uma instância fiscalizadora); 2. As posteriores influências e exigências sociais, morais, educacionais e culturais. Contudo, Freud postula que “o supereu não é simplesmente um resíduo das primitivas escolhas objetais do isso; ele também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas” (Freud, 1923, p. 47) Em Inibição, sintoma e angústia (1926), a tirania do supereu é sublinhada por Freud sob um aspecto sádico contra o eu, que promove um sentimento de culpa e resistência a análise. Nesse sentido, Rudge (2006, p. 4) em seu artigo declara: 5 Estamos agora no seio de uma construção metapsicológica bem mais complexa, liberta do apoio na biologia, e de acordo com o postulado psicanalítico fundamental de que, graças ao desamparo do infante, o psiquismo humano está na estrita dependência do que é construído a partir do campo social. Assim, verificamos que o estado de desamparo confronta um eu fraco, que, por outro lado, faz tecer sob as rédeas do perigo das excitações externas e internas um supereu cruel em virtudes da face do isso. Desse modo, o eu imaturo é assediado, declara Jalley (2009), pelas tendências edipianas, e só por meio de um “poderoso recalque”, o eu poderá se defender da violência pulsional e ameaças do supereu. 1.1 Da proibição ao imperativo do gozo Lacan, ao fazer a leitura dos textos freudianos, faz com que osupereu alcance uma nova dimensão, pois, para além das exigências de renúncia pulsional que caracterizou o supereu em Freud, ele passa a assumir um imperativo de gozo, cuja demanda ao eu é: goze! Se tomarmos o texto o Mal-estar da civilização (1927), verificamos que Freud declara que a civilização se funda não pela necessidade de regular as pulsões sexuais, mas sim pela necessidade de estabelecer uma proteção contra a agressividade do próximo e contra a agressividade do sujeito a si mesmo. Nesse sentido, Lacan, no Seminário 7, a ética da psicanálise (1959/60), declara que o gozo é incompatível com a moral. Diz assim: E o que me é mais próximo do que esse âmago em mim mesmo que é o de meu gozo, do que não me ouso aproximar? Pois assim que me aproximo - é esse o sentido do Mal-estar na Civilização - surge essa insondável agressividade diante da qual eu recuo, que retorno contra mim, e que vem, no lugar mesmo da Lei esvanecida, dar seu peso ao que me impele de transpor uma certa fronteira no limite da Coisa (Lacan, 1959-1960/1988, p. 228). Fruto da pulsão de morte, o supereu é impelido mais pela agressividade do que propriamente pela lei. Assim, nos ensinos de Lacan, a lei perde seu estatuto proibitivo e regulador e passa a se articular com a lei do gozo. Trata-se da lei insensata do supereu. Cordeiro e Bastos (2011), em seu artigo, comentam: O supereu é uma instância distinta da lei reguladora; porém veicula uma lei insana, que não oferece uma medida a esse mesmo gozo. Desta forma, torna-se imprescindível definir como o supereu inclui tanto a voz que proíbe, a voz da lei, como a voz 6 do gozo. Enquanto instância repressora, há presença da lei, referência ao registro simbólico: o supereu se colocaria como um limite ao gozo. Ao pensá-lo como imperativo de gozo, não há mais o lado superegoico proibidor; trata-se do registro real, de uma lei louca, que incita ao gozo. Lacan, no seminário 1, “Os escritos técnicos de Freud” (1953), declara que as exigências do supereu efetuam uma cisão simbólica e essa cisão ocorre na relação do sujeito com a lei, diferenciando, assim, o que é da ordem do eu, registro Imaginário, do campo do supereu, contudo o supereu estende-se para além do simbólico, pois inclui o real, de modo que não se trata apenas de uma lei reguladora, mas uma lei que repete, insiste e se articula com a pulsão de morte. Um enunciado discordante, ignorado na lei, um enunciado promovido ao primeiro plano por um evento traumático, que reduz a lei a uma ponta cujo caráter é inadmissível, inintegrável – eis o que é essa instância cega, repetitiva, que definimos habitualmente pelo termo supereu. (Lacan, 1953, p. 229) TEMA 2 – ADOLESCÊNCIA Para avançarmos em nossos estudos a respeito do mecanismo de defesa, quero levá-los agora a pensar sobre uma das fases mais conflituosas de nossas vidas, a adolescência. Em nossa sociedade, a concepção da adolescência equivale a uma passagem para a vida adulta, e a própria lei surge para impor esse limite, pois, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o sujeito adolescente é aquele entre 12 e 18 anos de idade – Art. 2º, Livro 1- Parte Geral, Título1- Das Disposições Preliminares, art. 2º (Brasil, 1990). Pela medicina a adolescência é marcada pelas mudanças corporais e fisiológicas. Na psicanálise, Freud abordou a adolescência sob a condição da puberdade em seus vieses estruturais no tradicional artigo Os três ensaios sobre a sexualidade (1905). Assim, com a chegada da puberdade, declara Freud, introduzem-se as mudanças que levam à vida sexual infantil a sua configuração normal definitiva (Freud, 1905, p. 196). Portanto, o sujeito adolescente se vê convocado por todas as mudanças corporais, crescimento na altura, peso e desenvolvimento de todas as características sexuais (maturação dos genitais e órgãos de reprodução), a responder por todas as suas escolhas que, de forma primitiva, foi levado a admitir. 7 Sabe-se que somente com a puberdade se estabelece a separação nítida entre os caracteres masculino e feminino, num contraste que tem, a partir daí, uma influência mais decisiva do que qualquer outro sobre a configuração humana. É certo que já na infância se reconhecem bem as disposições masculinas e femininas. (Freud 1905, p. 207) Então, diante de todas essas exigências, o que ocorre na subjetividade do sujeito adolescente? O que são os impulsos de rebeldia e violência que acabam caracterizando essa fase da vida? 2.1 Sujeito adolescente A fase de latência que representa a calmaria do corpo é interrompida com a chegada da puberdade quando a excitação sexual ressurge com força total reivindicando as resoluções edipianas e uma mudança de posição, pois os pais, que até então estavam no centro de sua relação e eram fontes de saber, perdem o lugar de vez. A causa dessa perda de lugar pode ser explicada pela maturação psíquica do sujeito, que passa a comparar os signos familiares com outros signos familiares, além da própria rivalidade sexual, que emerge como resquício da passagem edipiana. O adolescente se afasta dos seus pais e passa a desejar sair de casa como resposta a uma fantasia de não pertencer àquela família. Essa dramatização não é sem sofrimento psíquico, pois se, por um lado, o adolescente se mostra pronto para a descoberta de um novo mundo, por outro lado, há um luto pela perda de prestígio dos seus pais. Freud (1905) enfatiza que o esforço psíquico empreendido pelo adolescente tem por finalidade desvencilhá- lo do enredo familiar e promover condições de se envolver fisicamente e emocionalmente com outro. Contemporaneamente à subjugação ao repúdio dessas fantasias claramente incestuosas consuma-se uma das realizações mais significativas, porém mais dolorosas, do período da puberdade: o desligamento da autoridade dos pais, unicamente através do qual se cria a oposição, tão importante para o progresso da cultura, entre a nova e a velha geração”. (Freud, 1905, p. 127) Contudo, esse encontro com o outro não escapa de um encontro traumático, pois, mesmo que o encontro com a sexualidade seja singular a cada sujeito, a sexualidade é por princípio traumática. Assim, o sujeito adolescente tem que lidar com o seu desejo que lhe gera angústia frente à sexualidade. A solução buscada por cada sujeito adolescente 8 é vista no seu agir, pois a linguagem, aqui, não é suficiente, de modo que as palavras produzem mais mal-entendido do que comunicação. Assim, pela concepção lacaniana, a puberdade é um reencontro com a falta, pois, nesse momento da vida, a construção fantasmática construída frente ao desejo do Outro falha. Zanotti (2006) detalha esse acontecimento: A puberdade é um desses momentos em que aparece nitidamente o que Lacan diz em “A terceira” (1975) “a angústia é justamente algo que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzirmos ao nosso próprio corpo”. Frente a isso a resposta do sujeito é o agir, para efetuar uma transferência da angústia (Lacan, 1962-1963). “Talvez seja da angústia que a ação retira sua certeza” [...]. Agir é arrancar da angústia a própria certeza. Agir é efetuar uma transferência de angústia” (Zanotti, 2006, p. 113) É na passagem ao ato que vemos, portanto, o adolescente agir na tentativa de aplacar a sua angústia, mesmo sendo um ato falho ele é um ato que inaugura um atravessamento. TEMA 3 – AGRESSIVIDADE Em nossa sociedade atual, podemos verificar que o senso de coletividade se encontra totalmente empobrecido, contribuindo para o enfraquecimento dos ritos de passagem para adolescência, pois, se no passado os jovens estavam submetidos às leis e aos ritos do grupo social, na contemporaneidade eles se deparam com a perda de referências de significantes. Levisky (1998, p. 24) demarca essa perda de referência na própria historicidade da sociedade: Nopassado o jovem estava submetido às leis impostas e aceitas pelo grupo social. As rebeldias eram vividas nas frentes de batalha, na infantaria vivida por jovens destemidos, imberbes muitas vezes, sacrificados pelos adultos e que com orgulho morriam em nome da pátria amada. Hoje se matam no asfalto e se enebriam no perfume da droga que corre pelas suas veias. (Levisky, 1998, p. 24) Assim, pelo entendimento desse autor, os adolescentes dos dias de hoje vivem sua rebeldia como membro atuante e transformador da sociedade, porém altamente sugestionável, tendo como maior representante a mídia que, para atingir seus interesses, oferta engodos de estados de plenitudes e independência. 9 Sob a ótica de Lacan (1938), a desestabilização da imagem do corpo que foi garantida pelo olhar da mãe e o confronto com o Outro sexo forma um impasse para o sujeito adolescente, pois segundo o autor, ao se apropriar de um corpo simbólico, parte de um gozo vivenciado inicialmente na relação mãe-bebê se perde, contudo o sujeito se aliena a essa unidade corporal para constituir seu eu antes mesmo de produzir uma identidade. Lacan (1938, p. 49) declara assim: “a unidade que ela introduz nas tendências irá contribuir, portanto, para a formação do eu. Mas, antes que se possa afirmar sua identidade, o sujeito se confundirá com essa imagem que o forma, mas que também o aliena primordialmente”. Nesse sentido, Catroli e Rosa (2013) explicam assim: É, então, essa conta do gozo perdido e prometido que vem o adolescente cobrar. Mas qual será sua surpresa? A de que não há, no campo do Outro, esse significante que dê provas de sua verdade enquanto sujeito, e que esse Outro não detém a chave para o seu encontro singular com o sexual. Nas palavras de Poli (2005), não haveria um significante pleno que garanta a significação do sujeito, ele falta também ao campo do Outro. Segundo a autora, o sujeito se desloca, na adolescência, de uma promessa de gozo fálico (masculino) para cair no impossível da satisfação sexual do Outro sexo, representado como falta, como feminino. A falta de um significante que o represente é reivindicada sem sucesso, o excesso de estímulos e a falta de representantes internos e externos levam, então, o adolescente a uma perda de controle da realidade e uma busca de adrenalina para conter sua angústia. Levisky (1998, p. 30) conclui assim: Quando a violência é banalizada ou não é identificada como sintoma da patologia social, corre-se o risco de transformá-la num valor cultural que pode ser assimilada pela criança e pelo jovem como forma de ser, um modo de auto-afirmação. Durante as transformações da adolescência os jovens buscam novos modelos para a sua formação de sua identidade adulta; período altamente vulnerável e suscetível às influências ambientais construtivas e destrutivas. A agressividade que gera violência na adolescência tem, por fim, um grito de socorro, um apelo à lei, um pedido de ajuda frente ao seu desamparo. TEMA 4 – COMENTÁRIOS SOBRE O TEXTO A NEGATIVA No texto A Negativa (1926), Freud articula a questão da negação (Verneinung), como sendo uma operação em uma frase para se negar alguma coisa e, assim, ser aceito na consciência. Trata-se, portanto, de uma defesa, em que o sujeito se protege contra o seu desejo recalcado. No texto, Freud (1925, p. 142) nos apresenta um relato de um paciente, que 10 para admitir algo, ele o nega, pois só assim o conteúdo pode ser aceito: Agora você pergunta, quem pode ser essa pessoa do sonho. A mãe não é. Nós retificamos: “então é a mãe”. Ao interpretar, tomamos a liberdade de deixar de lado a negação e escolher o conteúdo puro da ideia. É como se o paciente tivesse dito: “Certo, me ocorreu que essa pessoa é a mãe, mas não me apraz admitir essa ideia”. Nesse apontamento, Freud nos chama a atenção para o equívoco do pensar neurótico, que o captura e o aliena em seu pensamento que atua como uma defesa contra a sua ação e o encontro faltoso com o Outro. Contudo, o sentido exato deve ser apreendido pelo psicanalista: é a mãe! Nesse sentido, a negação coloca em suspenso a operação do recalque, haja vista que o não afasta o sujeito do seu desejo. Mas vale lembrar que se trata apenas de uma suspensão e não uma eliminação do recalque. Pimenta Filho (2010), sobre essa suspensão do recalque, faz o seguinte esclarecimento: O termo aqui utilizado é o de uma Aufhebung do recalque, como sendo a suspensão temporária do recalque. O que ocorre, por exemplo, com o chiste – quando há uma flexibilização, uma suspensão ou franqueamento da censura. Esse franqueamento opera possibilitando que o recalcado penetre na consciência sem afetar o trabalho do recalque. Permanece, portanto, a divisão subjetiva – o $ –, com a separação entre pensamento e afeto; este, um resíduo ou descarga inassimilável, que redundará na conversão histérica ou nas intermináveis dúvidas e ruminações obsessivas. Portanto, pela operação da negativa, usando as palavras de Freud (1926, p. 142): “o conteúdo recalcado de uma ideia ou pensamento pode penetrar na consciência, sob a condição de que se deixe negar. Isso porque a negativa é um modo de tomar conhecimento do recalcado em um plano apenas intelectual”.Para Freud, o que entra em jogo por meio da negação é a “suspensão do recalque”, não naturalmente pela a sua aceitação, mas, com isso, o conteúdo recalcado pode chegar à consciência, sem com isso alterar o recalcado. Em seguida, Freud traz um importante apontamento a respeito do juízo, questão que foi recolocada por Lacan (1956) para se localizar o mecanismo da psicose, mas não entraremos nesse mérito nesse momento, pois o que queremos destacar para agora é uma função de atribuição de juízo que caracteriza o sujeito do inconsciente, pois ela está conjugada às pulsões originais: A função de juízo tem que tomar duas decisões: deve atribuir ou negar uma qualidade a uma coisa e deve conceder ou impugnar a existência de uma representação da realidade. A qualidade sobre a qual deve decidir-se poderia ser originalmente boa ou má, proveitosa ou nociva. Expresso na linguagem das mais antigas moções pulsionais orais: (Eu) quero comer isto ou quero cuspi-lo, e numa mais ampla transferência: (Eu) quero introduzir isto em mim e quero expulsar isto de mim. Assim: 11 Isso deve estar em mim ou fora de mim. O eu-prazer originário quer introjetar-se todo o bom, lançar fora de si todo o mau. O mau, o estranho ao eu, o que se encontra fora, lhe é em princípio idêntico. (Freud, 1926, p. 142). Portanto, nesse sentido de juízo que caracteriza o discurso, afirmar ou negar algo vai compor a primeira manifestação pulsional que vai determinar a estrutura subjetiva do sujeito, isto é, ele afirma (Behajung), ou ele nega, não no sentido da Verneinung, de negar o que ele afirmou inicialmente, mas no sentido da Verwerfung, uma negação que é anterior à afirmação. Portanto, vemos que a negação é uma proteção que se ascende de forma bem arcaica no psiquismo. TEMA 5 – DEFESAS EM UM FINAL DE ANÁLISE Para concluir o nosso breve percurso neste estudo, trago a questão da defesa no final de uma análise. Freud, no texto Análise terminável e interminável (1937), questiona-se sobre o que poderia ser considerado um final de análise. Verificamos que, inicialmente, para Freud, o final de uma análise é caracterizado na transformação do conteúdo inconsciente para consciência, numa integração das pulsões ao eu, que levará o paciente a uma suspensão dos sintomas e ao fim da transferência. Nesse sentido, Freud aponta para uma nova posição do sujeito, em que acredita que o próprio paciente passará a ter um reconhecimento de si, evitado novos sofrimentos psíquicos. Contudo, questiona a ambição terapêutica preventiva de modo que, “se um conflito pulsional não está presentemente ativo, se não está manifestando-se, não podemos influenciá-lo, mesmo pela análise”(Freud, 1937, p. 247) Seguindo a sequência do seus pensamentos, Freud (1937) sublinha que, na segunda tópica, foi possível tomar conhecimento de que a resistência é própria da formação do aparelho psíquico. Assim, declara que, “se avançarmos um passo adiante em nossa experiência analítica, nos deparamos com resistências de outro tipo, que não mais podemos localizar e que parecem depender de condições fundamentais do aparelho psíquico” (Freud, 1937, p. 258). Nesse sentido, Freud (1937, p. 255) aponta para um conteúdo inalisável, visto que não há como eliminar por completo as resistências. “Há uma resistência contra a revelação das resistências”. Portanto, diante do núcleo das resistências, a saída do processo analítico caminha para uma construção em análise, um trabalho que caminha na direção de “completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si, ou, mais corretamente, construí-lo” (Freud, 1937, p. 276). Silva e Fontenele 12 (2013), citando Freud, a respeito desse tema, declaram assim: O quadro final freudiano da técnica psicanalítica aponta para a missão analítica de “garantir as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do ego” (Freud, 1937a, p.267), ambição mais modesta se comparada a da primeira tópica. A despeito de haver resistência no eu, é com ele que o analista faz um pacto através do comprometimento em relação à obediência da regra fundamental e, em compensação, o analista busca devolver ao eu do paciente “o domínio sobre regiões perdidas de sua vida mental” (1940, p. 188). (Silva; Fontenele, 2013, p.14) Assim, as defesas que sempre participam das resistências levaram sempre o pai da psicanálise a formular novas formas de manejo no tratamento psicanalítico, que pudesse contornar as resistências, sem com isso combater as defesas, pois elas sempre foram entendidas como parte do funcionamento do psiquismo, mesmo que nunca seja manifestado uma patologia. NA PRÁTICA A título de exemplo, apresento-lhes um breve recorte de um caso clínico de um jovem adolescente, cujo nome, fictício, é João. João chegou à clínica, por intermédio de sua irmã, pois quando ela entrou em contato comigo, disse que ele estava muito depressivo e tinha medo de que ele lhe fizera algum dano, pois estava agressivo com a família. João é um adolescente de 16 anos, com uma história de abandono pelo pai, pois nunca o conheceu. Vive com sua mãe, irmã e cunhado, mas passa boa parte do tempo apenas com a irmã, que cuida da casa e do filho pequeno. Em sua análise, João fala de seus relacionamentos. A cada sessão vive um amor eterno, de uma semana, com uma menina. Desvela-se para o outro de uma forma que logo é deixado, pois não deixa nada para o imaginário do outro a não ser a nudez do real. Fica triste e decepcionado toda vez que é deixado, mas logo empreende uma nova relação e começa tudo de novo… Horas de conversa no WhatsApp, vídeos durante o decorrer do dia, noites mal dormidas pensando no amor da sua vida, até que ela vai embora. Na análise, João fica atento a cada intervenção da analista, parece esperar que daí venha o significante que lhe falta, mas o vazio que lhe é devolvido como interrogação faz João extrair de si um novo dizer sobre seu próprio ser, fazendo com que, diante de sua angústia, se desvele algo que o enlace no seu discurso como sujeito… João fica meses sem aparecer, mas, de tempo em tempo, volta em busca de uma nova elaboração sobre o seu ser que sempre falta a ser. 13 A questão do abandono do pai nunca surgiu em seu discurso e nunca foi associado a nada e talvez nunca apareça, mas algo desse inassimilável está sempre presente nas relações de João e isso sim faz diferença para ele. FINALIZANDO O desamparo infantil é fonte de todos os conflitos psíquicos. Compreender esse fundamento psíquico nos ajuda na compreensão sobre o modo de escolhas subjetivas. Com base no que estudamos nesta etapa, verificamos que: • A constituição do supereu se dá em tempos bem primitivos, pois ele tem sua inscrição numa fase arcaica, quando o bebê vivencia a experiência do desamparo e, no decorrer da maturação psíquica, vai se identificar com as proibições morais e civilizatórias da sociedade, sendo sua primeira identificação ao final do complexo de Édipo, cuja lei e interdição dos pais são internalizadas; • A adolescência é, então, esse conflito psíquico, que reivindica do Outro um gozo, do qual ele se dá conta, sem querer saber que é impossível de alcançar pois o outro também falta; • A agressividade surge como um pedido de ajuda e anseio de lei, que barra esse gozo desgovernado, pela falta de referências em nossos tempos; • No texto A negativa, Freud (1925) apreende o não do neurótico, como forma de termos conhecimento do conteúdo recalcado; • Por fim, as defesas no final de análises permanecerão aí, pois é o modo como cada sujeito se constitui, portanto não se trata de eliminar as defesas, mas ultrapassar as resistências que buscam manter as defesas num estado de gozo destrutivo. 14 REFERÊNCIAS ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente. 3. ed. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos; Contracapa, 2009. BRASIL. Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 14 jul. 1990. CATROLI, V. S. C.; ROSA, M. D. O laço social na adolescência: a violência como ficção de uma vida desqualificada. Estilos Clínicos, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 297-317, ago. 2013. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415- 71282013000200006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 jul. 2022. CORDEIRO, N. M. L.; BASTOS, A. O supereu: imperativo de gozo e voz. Tempo Psicanalise, Rio de Janeiro, v. 43, n. 2, p. 439- 457, dez. 2011. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101- 48382011000200011&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 jul. 2022. FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a sexualidade. In: _____. Obras completas Rio de Janeiro – Imago, 1996a. v. 7. _____. (1923). O ego e o Id. In: _____. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996b. v. 19. _____. (1925). A negativa. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996c. v. 19. _____. (1926). Inibição, sintoma e angústia. In: _____. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996d. v. 20. _____. (1927). O mal-estar na civilização. In: _____. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996e. v. 21. _____. (1937). Análise terminável e interminável. In: _____. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996f. v. 23. _____. (1937). Construções em análises. In: _____. Obras completas. Rio de Janeiro – Imago, 1996g. v. 23. JALLEY, E. Freud, Wallon, Lacan: a criança no espelho. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2009. LACAN, J. (1938). Os complexos familiares na formação do indivíduo. In: _____. 15 Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. _____. (1953). Seminário livro 1 – Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. _____. O Seminário: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. Livro 7. LEVISKY, D. L. Adolescência e violência: a psicanálise na prática social. In: _____. Adolescência pelos caminhos da violência. São Paulo. Casa do Psicólogo, 1998. PIMENTA FILHO, J. A. "Negar é no fundo querer recalcar”: notas a partir da leitura do texto Die Verneinung. Revista Estudos Lacanianos, Belo Horizonte , v. 3, n. 4, 2010. ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. RUDGE, A. M. Traumas. São Paulo: Escuta, 2006. (Biblioteca de Psicopatologia Fundamental). SILVA, J. M.; FONTENELE, L. Considerações sobre a trajetória do conceito de defesa em Freud e sua retomada por Lacan. Revista Eletrônica do Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o Moderno e o Contemporâneo,v. VIII, n. 15, nov. 2012-abr. 2013. ZANOTTI, S. V. Os jovens e o agir: resposta ao mal-estar. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. ZIMERMAN, D. E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica. Porto Alegre: Artmed, 1999.
Compartilhar