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Coordenadoras Elaine Adelina Pagani Rosângela Maria Herzer dos Santos Fernanda Osório Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas – Volume VI Porto Alegre, 2021 Copyright © 2021 by Ordem dos Advogados do Brasil Todos os direitos reservados Coordenadoras Elaine Adelina Pagani Rosângela Maria Herzer dos Santos Fernanda Osório A revisão de Língua Portuguesa e a digitação, bem como os conceitos emitidos em trabalhos assinados, são de responsabilidade dos seus autores. Ordem dos Advogados do Brasil Seccional do Rio Grande do Sul Rua Washington Luiz, 1110 –Centro Histórico CEP 90010-460 - Porto Alegre/RS D635 Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas. / Elaine Adelina Pagani, Rosângela Maria Herzer dos Santos, Fernanda Osório. (Coordenadoras). Porto Alegre: OABRS. 2021. p. 187. V.6. ISBN: 978-65-88371-16-9 1. Direito Urbano. 2. Planejamento Urbano. I Título CDU: 34:711 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - CONSELHO FEDERAL DIRETORIA/GESTÃO 2019/2021 Presidente: Felipe Santa Cruz Vice-Presidente: Luiz Viana Queiroz Secretário-Geral: José Alberto Simonetti Secretário-Geral Adjunto: Ary Raghiant Neto Diretor Tesoureiro: José Augusto Araújo de Noronha ESCOLA NACIONAL DE ADVOCACIA – ENA Diretor-Geral: Ronnie Preuss Duarte ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SECÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL Presidente: Ricardo Ferreira Breier Vice-Presidente: Jorge Luiz Dias Fara Secretária-Geral: Regina Adylles Endler Guimarães Secretária-Geral Adjunta: Fabiana Azevedo da Cunha Barth Tesoureiro: André Luis Sonntag ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA Diretora-Geral: Rosângela Maria Herzer dos Santos Vice-Diretor: Darci Guimarães Ribeiro Diretora Administrativa-Financeira: Graziela Cardoso Vanin Diretora de Cursos Permanentes: Fernanda Corrêa Osório, Maria Cláudia Felten Diretor de Cursos Especiais: Ricardo Hermany Diretor de Cursos Não Presenciais: Eduardo Lemos Barbosa Diretora de Atividades Culturais: Cristiane da Costa Nery Diretor da Revista Eletrônica da ESA: Alexandre Torres Petry CONSELHO PEDAGÓGICO Alexandre Lima Wunderlich Paulo Antonio Caliendo Velloso da Silveira Jaqueline Mielke Silva Vera Maria Jacob de Fradera CAIXA DE ASSISTÊNCIA DOS ADVOGADOS Presidente: Pedro Zanette Alfonsin Vice-Presidente: Mariana Melara Reis Secretária-Geral: Neusa Maria Rolim Bastos Secretária-Geral Adjunta: Claridê Chitolina Taffarel Tesoureiro: Gustavo Juchem TRIBUNAL DE ÉTICA E DISCIPLINA Presidente: Cesar Souza Vice-Presidente: Gabriel Lopes Moreira CORREGEDORIA Corregedora: Maria Helena Camargo Dornelles Corregedores Adjuntos Maria Ercília Hostyn Gralha, Josana Rosolen Rivoli, Regina Pereira Soares OABPrev Presidente: Jorge Luiz Dias Fara Diretora Administrativa: Claudia Regina de Souza Bueno Diretor Financeiro: Ricardo Ehrensperger Ramos Diretor de Benefícios: Luiz Augusto Gonçalves de Gonçalves COOABCred-RS Presidente: Jorge Fernando Estevão Maciel Vice-Presidente: Márcia Isabel Heinen SUMÁRIO PALAVRA DO PRESIDENTE – Ricardo Breier ............................................................ 8 PALAVRA DA DIRETORA – Rosângela Maria Herzer dos Santos ............................. 9 PREFÁCIO - Daniela Campos Libório .......................................................................... 10 APRESENTAÇÃO - Elaine Adelina Pagani .................................................................. 11 PLANOS DIRETORES E CIDADES: UMA ABORDAGEM SOB A PERSPECTIVA DA CIDADE COMO UM SISTEMA COMPLEXO E AUTO-ORGANIZADO - Alessandro Geremia .......................................................................................................... 12 A PAISAGEM CULTURAL: UMA REFLEXÃO PÓS-PANDEMIA A PARTIR DO ESTUDO DE CASO DE CIDREIRA/RS - Andréa Marta Vasconcellos Ritter .......... 25 CAMPOS DE ATUAÇÃO PARA A ADVOCACIA URBANÍSTICA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES - Andrea Teichmann Vizzoto, Elaine Adelina Pagani, Fábio Scopel Vanin e João Telmo de Oliveira Filho ............................................................................. 41 OS INSTRUMENTOS DO ESTATUTO DA CIDADE E AS POSSIBILIDADES DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO - Carla Portal Vasconcellos, Milena Albrecht Silveira, Miléia Alves e Thaís Maria Rossetto ................................................ 53 ESTATUTO DA CIDADE, VAZIOS URBANOS E ÁREAS OCUPADAS - Carla Portal Vasconcellos, Bruna Galvan, Juliane Avila Marques, Kauize de Moura Valandro, Lucas Fernando Zuffo Ferreira Borges, Luiz Eduardo Lupatini e Rafaela Zauza .................................................................................................................................. 74 IMPACTOS CAUSADOS PELO LANÇAMENTO DE RESÍDUOS URBANOS NO OCEANO: ALTERNATIVAS DE PREVENÇÃO - Cristina Dal Sasso ...................... 92 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO FUNDAMENTAL A PROPRIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS FRENTE À LIMITAÇÃO DE SUA FUNÇÃO SOCIAL - Diogeano Marcelo de Lima e Rafaela Patricia Inocencio da Silva ........................................................................................................................................... 109 O ESTATUTO DA CIDADE E OS INSTRUMENTOS DE PRESERVAÇÃO PATRIMONIAL: O CASO DO ENGENHO BENINCÁ EM PASSO FUNDO – RS- João Telmo de Oliveira Filho e Greice Barrufaldi Rampanelli .............................. 126 UTOPIAS, INSTRUMENTOS E TERRITÓRIO NO DIREITO URBANO — 20 ANOS DE ESTATUTO DA CIDADE - Jorge Guilherme Francisconi ...................... 143 ESTATUTO DA CIDADE 20 ANOS DEPOIS: ENTRE AVANÇOS E DESENCANTOS - Marcelo Leão .................................................................................. 169 Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 8 PALAVRA DO PRESIDENTE Ao receber o convite para contribuir com o prefácio desta obra, um dos detalhes que prontamente me chamou a atenção foi a publicação do sexto volume envolvendo a temática do Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Pela intensidade com a qual está temática vem sendo debatida e gerando artigos fica demonstrada a relevância desta pauta para a sociedade brasileira. O rápido desenvolvimento tecnológico e seus impactos no modo de viver das pessoas, a necessidade de achar o equilíbrio entre desenvolvimento X sustentabilidade, e a busca por alternativas que preservem o individual e valorizem o coletivo são fontes de intensos questionamentos. É preciso estabelecer parâmetros e segurança jurídica para que as pessoas tenham as condições de viver e conviver dentro de regras transparentes e com aplicação a médio e longo prazo. Ao mesmo tempo, é necessário fazer com que haja uma aproximação de realidades tão distintas dentro de uma mesma localidade. Quem planeja corretamente tem grandes chances de obter um resultado positivo. E isso vale para nossas cidades. O protagonismo de advogados e advogadas em demandas do Direito Urbanístico e Planejamento Urbano é de extrema relevância. Com o olhar especializado e conhecedor do universo das leis, a contribuição da advocacia permite que tenhamos a construção de soluções e a resolução de impasses diante de cenários complexos e desafiados. Nos seis anos em que atuei como presidente da OAB/RS, fomentamos o espírito de participação em trabalhos conduzidos pela Escola Superior da Advocacia. Temos recebido significativas e emblemáticas manifestações do alcance e da relevância de artigos produzidos em diferentesobras publicadas nos últimos anos. Desta forma, é com grande satisfação que vejo a materialização do e-book digital “Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas – Volume VI”. Em nome da presidente da ESA/RS, Rosângela Herzer dos Santos, e da presidente da Comissão Especial de Direito Urbanístico e Planejamento Urbano da OAB/RS, Elaine Adelina Pagani, parabenizo todos os colegas que contribuíram com seus conhecimentos para esta obra. Desejo a todos uma boa leitura! Ricardo Breier Presidente da OAB/RS Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 9 PALAVRA DA DIRETORA Mais uma vez, a Escola Superior de Advocacia da OAB/RS (ESA/RS), juntamente com a Comissão Especial de Direito Urbanístico e Planejamento Urbano (CEDUPU) da OAB/RS, cumprem com sua missão de abrir espaço e fomentar a difusão de conhecimento atualizado e contextualizado com a realidade. Deixo registrado minha satisfação em perceber que este assunto segue gerando pesquisas e análises aprofundadas, e enriquecedora produção de conteúdo de relevante interesse social. O lançamento do livro, no formato e-book, “Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas – Volume VI” é mais uma ferramenta que se soma no processo permanente de debates e caminhos na busca de soluções mais ajustadas para a área de estudo do Direito Urbanístico. Boa leitura! Rosângela Maria Herzer dos Santos Diretora-geral da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 10 PREFÁCIO Uma lei não é apenas uma lei. Seu universo está além de suas letras, de sua leitura ou compreensão imediata. Pode romper barreiras na realidade dos fatos, na relação das pessoas e do Estado com os cidadãos. Pode inovar verdadeiramente e buscar equilíbrio na sociedade. É disso que se trata quando o objeto de estudo é a lei federal nº 10.257/01, chamada de Estatuto da Cidade. Uma jovem de 20 anos, com vigor e expectativas de ainda muito vivenciar. Se por um lado há essa norma jurídica tão significativa, classificada como norma geral em direito urbanístico, prevista nos artigos 24, I e 182 da Constituição Federal, por outro há um modo de viver, urbano e contemporâneo, em uma sociedade consumista e capitalista que trata o acesso à terra como uma mercadoria como qualquer outra. Nesse sentido, há uma tensão permanente entre a aplicação das diretrizes e dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade e a realidade posta nas cidades brasileiras. O desequilíbrio é evidente. Mais que isso, é cruel, desigual e tem se agravado em uma constância proporcional à força advinda pelo interesse financeiro ao solo urbano. Um dos grandes valores do Estatuto da Cidade é justamente trazer luz ao debate sobre o planejamento urbano e a implementação de instrumentos específicos para lidar com a realidade da ocupação seja no aspecto construtivo seja quanto à importância da participação popular como elemento indissociável da efetivação dos planos urbanísticos elaborados. Diante da falta de cultura planificadora e diante do crescimento desordenado e espontâneo das áreas urbanas, a implementação do Estatuto da Cidade é um desafio posto. Nisso está a importância dessa obra produzida pela Comissão de Direito Urbanístico e Planejamento Urbano da OAB-RS, com suporte da ESA, que, ao homenagear os 20 anos da lei, provoca uma reflexão necessária à sua continuidade e aperfeiçoamento. Muito há o que avançar e o Estatuto da Cidade é o marco referencial para balizar o caminho para a construção de cidades mais justas, sustentáveis e inclusivas. Daniela Campos Libório Presidente da Comissão Especial de Direito Urbanístico do CFOAB Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 11 APRESENTAÇÃO É com imensa satisfação que a Comissão Especial de Direito Urbanístico e Planejamento Urbano da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Rio Grande do Sul lança o sexto volume do periódico anual “Direito Urbanístico e Planejamento Urbano”. Fruto do dedicado e comprometido trabalho em equipe dos membros da Comissão, o conteúdo deste volume vem ao encontro do papel assumindo pela Ordem junto à cidadania, visando provocar a reflexão e o debate sobre o desenvolvimento urbano sustentável, inclusivo e a efetividade da aplicação dos instrumentos de regularização fundiária do Estatuto da Cidade. Cada um dos volumes anteriores teve por objetivo focar temas importantes, polêmicos e emergentes para as questões urbanas e gestão das cidades. E neste ano, o foco do livro é o Estatuto da Cidade, pois comemora-se vinte anos da sua promulgação. Importante ressaltar que, não obstante os entraves administrativos, judiciais e políticos encontrados para a implantação e implementação das normas do Estatuto da Cidade, muitos municípios brasileiros lograram êxito na condução de importantes avanços na direção da construção coletiva de cidades democráticas, justas, sustentáveis e inclusivas. Entretanto um longo caminho ainda deve ser trilhado. Com efeito, o volume seis traz para o debate as várias reflexões sobre a efetividade na aplicação do Estatuto da Cidade. Cabe também atentar para o artigo escrito em colaboração pelos membros da CEDUPU sobre os campos de atuação para a advocacia urbanística. Este livro foi elaborado com o apoio da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS para servir como referencial teórico-prático para pesquisas acadêmicas. Por fim, um especial agradecimento a todas as pessoas que protagonizam as transformações sociais nas cidades com o intuito de torná-las lugares melhores de se viver e conviver. Elaine Adelina Pagani Presidente de Comissão Especial de Direito Urbanístico e Planejamento Urbano da OAB/RS Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 12 PLANOS DIRETORES E CIDADES: UMA ABORDAGEM SOB A PERSPECTIVA DA CIDADE COMO UM SISTEMA COMPLEXO E AUTO-ORGANIZADO Alessandro Geremia1 Resumo: O presente estudo pretende refletir sobre a pertinência do modelo de planejamento urbano centrado na figura do plano diretor - como preconizado pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade -, na busca de cidades com uma melhor qualidade e bem-estar para a totalidade de seus habitantes. Entende-se que as normas jurídico-urbanísticas brasileiras possuem valências que deveriam refletir na evolução qualitativa da situação de nossas cidades. Entretanto, verifica-se uma baixa efetividade dos instrumentos e mecanismos previstos no Estatuto da Cidade. Parte-se da premissa que a cidade é um sistema complexo e auto-organizado e, a partir disso, conjectura-se que, dentre outros fatores, a baixa efetividade da normativa urbanística se dá em função de que cidades e planos diretores possuem princípios distintos. Apresenta-se, ainda, algumas propostas que buscam alternativas para superar o problema supracitado. Palavras chaves: planos diretores – Estatuto da Cidade – cidades - sistemas complexos. INTRODUÇÃO Em 2009 a ONU anuncia formalmente que, pela primeira vez na história, a população urbana havia superado o número da população rural. No Brasil o fenômeno da urbanização se consolida a partir da segunda metade do século XX, fruto de um processo intenso de migração do campo para as cidades. Em 2010 o IBGE estimava que 84% da população brasileira vivia nas cidades. Esse processo de urbanização se deu de forma desequilibrada, não sendo acompanhado do incrementoapropriado de infraestrutura e de um controle sobre o uso e ocupação do solo de forma adequada. Esse fato gera uma série de problemas que ainda são verificados nas cidades brasileiras, tais como: crescimento urbano desordenado e incompatível com a infraestrutura local, dispersão urbana, alta taxa de ocupação do solo em áreas precárias, debilidade na mobilidade urbana e déficit habitacional. Nesse cenário, a urbanização tem um papel importante nos processos de esgotamento e fragmentação de 1 Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela UFRGS e em Direito pela UFRGS. Especialização em Direito do Estado pela UFRGS e Especialização em Regulação de Serviços de Transporte Terrestre pela UFRJ. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR/UFRGS. Doutorando em Planejamento Urbano e Regional – PROPUR/UFRGS. Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 13 ecossistemas, criando ambientes vulneráveis, reforçando dinâmicas de segregação social, desigualdade e dependência do automóvel2. Nesse contexto a Constituição Federal de 1988 dedicou um capítulo exclusivo, mesmo que singelo, para a política urbana, sendo a primeira vez na história brasileira que a questão urbana adquire status constitucional.3 O artigo 182 da nossa Lei Maior assim dispõe: “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.” Prosseguindo, o parágrafo primeiro do artigo citado determina que o plano diretor “é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Cabe chamar a atenção para dois pontos da redação constitucional: necessidade da promulgação de uma lei que venha regulamentar o disposto no seu texto e o papel central do plano diretor na política urbana. O diploma legal que regulamentou os arts. 182 e 183 da Constituição Federal foi a Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada de Estatuto da Cidade e que só foi publicada depois de transcorridos 13 anos da promulgação do texto constitucional e foi fruto de intensos debates. O Estatuto da Cidade foi recebido como um sopro de esperança para superar ou, pelo menos, mitigar problemas históricos das nossas cidades. Nesse sentido, Nelson Saule Júnior (2001)4 reconhece o caráter inovador da lei, inferindo que as disposições contidas no diploma possibilitariam o desenvolvimento de uma política urbana que contemplasse os princípios de reforma urbana e serviriam para efetivar a transformação das cidades brasileiras em cidades mais justas, humanas e democráticas. Entretanto, alguns autores5 advertiram que não convinha superestimar as repercussões imediatas da lei pois ainda careciam de regulamentação posterior,6 embora reconhecessem a aplicabilidade direta de algumas de suas 2 ROMICE, Ombretta; PORTA, Sergio; FELICIOTTI, Alessandra. Masterplanning for Change: Designing the Resilient City. Routledge, 2020. 3 Para um histórico do processo de inclusão do Capítulo da Política Urbana na Constituição Federal ver VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento no Brasil. In DEÁK, C.; SCHIFFER, S.R. O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. 4 SAULE JUNIOR, Nelson. Estatuto da Cidade: instrumento de reforma urbana. SAULE JÚNIOR, Nelson. ROLNIK, Raquel. Estatuto da Cidade: novos horizontes para a reforma urbana. (Cadernos Pólis, 4). São Paulo: Pólis. P. 10-36, 2001. 5 Por todos, SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais. In Dallari, Adilson Abreu e Ferraz, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade - Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo, SBDP/Malheiros, 2002. 6 Sobre o assunto, escreve Bonizzato: “Portanto, as barreiras a serem transpostas para a consecução de muitos objetivos insculpidos em documentos legais infraconstitucionais desprovidos de aplicabilidade plena e imediata são firmes e robustas, portando-se grande desânimo aos ramos sociais interessados na Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 14 normas, como nos casos dos capítulos referentes ao usucapião especial de imóveis urbanos e ao direito de superfície (SUNDFELD, 2002). Edésio Fernandes (2021)7 ao analisar o itinerário histórico percorrido pelo Estatuto da Cidade aponta a existência de três fases distintas. Um primeiro momento, na sua aprovação, gerou um sentimento de otimismo em torno da lei. Depois de transcorridos alguns anos, passa-se para um segundo momento em que o otimismo cede lugar a uma certa desconfiança decorrente das críticas crescentes dos movimentos sociais urbanos. Após 10 anos, segue-se a um momento de descrédito em função de diversas avaliações negativas dos novos planos diretores e de uma visão generalizada de inefetividade dos instrumentos previstos no diploma legal. Por fim, o autor sugere a possibilidade de estarmos presenciando um novo momento na percepção do Estatuto da Cidade dando-se um certo abandono da lei, em consequência de resistências municipais crescentes à atualização dos planos diretores e pela criação de leis e de outras figuras regulatórias que propõe “[...]as bases de outra cultura jurídico-político-urbanística que não aquela do Estatuto da Cidade”. Não obstante, transcorridos 20 anos da aprovação do Estatuto e já chegando a segunda geração de planos diretores elaborados sob as suas diretrizes, vislumbra-se que os problemas que deram origem aos dispositivos sobre política urbana da Constituição Federal continuam existindo. As mazelas citadas anteriormente (crescimento urbano desordenado, dispersão urbana, alta taxa de ocupação do solo em áreas precárias, precariedade na mobilidade urbana, déficit habitacional etc.) permanecem afligindo as cidades brasileiras. 1. PROBLEMÁTICA Diante de todo o exposto até aqui, é forçoso concluir que o Brasil possui normas urbanísticas cujos atributos deveriam refletir numa evolução da situação de nossas cidades. Mesmo considerando, de certo modo, o período relativamente curto de sua vigência, o retrato de nossas cidades não condiz com o arcabouço legal vigente. Assim, a ideia deste estudo concretização ampla de direitos e garantias legalmente previstos. Se, por um lado, prevê-se uma série de direitos, representativos de avanços sociais e democráticos, por outro lado, impõem-se, paralelamente, obstáculos à sua materialização”. (BONIZZATO, Luigi. Função ambiental da cidade, Plano Diretor e validade das normas urbanísticas. Revista de Direito da Cidade, v. 5, n. 1, p. 86-116, 2013.) 7 FERNANDES, Edésio. Estatuto da Cidade, 20 anos, foi da euforia ao abandono, diz especialista. [Entrevista concedida a] Talden Farias e Arícia Fernandes Correia. Revista Consultor Jurídico, 7 de agosto de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-07/entrevista-edesio-fernandes-professor-urbanista. Acesso em: 13 de outubro de 2021. Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 15 surge a partir da seguinte indagação: qual o motivo da baixa efetividade8 das normas urbanísticas no contexto brasileiro, observada no fosso existente entre a idealização normativa e a realidade das nossas cidades? Nesse ponto, faz-se necessária trazer à baila a lição de Fernandes (2013, p.233),9 para quem “[...]’boas leis’ por si sós não mudam as realidades urbanas e sociais, por mais que expressem princípios de inclusão socioespacial e justiça socioambiental [...]”, tal observação é válidatambém para o Estatuto da Cidade, cujas disposições previram uma série de mecanismos e instrumentos para a materialização dos princípios inscritos na lei. Assim, se associando a visão do autor, faz-se a ressalva que não se desconhece que a lei – como norma de caráter geral e abstrata - não possui a faculdade de alterar a realidade urbana e social das cidades brasileiras. 2. O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO BÁSICO DE POLÍTICA URBANA Preliminarmente, cabe uma advertência: não se ignora o fato de que para a efetiva implementação de mudanças estruturais nas nossas cidades, mostra-se imprescindível o comprometimento dos diversos atores políticos das nossas cidades, sobretudo por parte daqueles que detém o poder decisório. Esse enfoque já foi abordado e muito bem demonstrado em diversas ocasiões. Nesse sentido, para exemplificar, Maricato (2001, p.42)10 esclarece que “[...] entre a lei e sua aplicação existe um abismo que é mediado pelas relações de poder na sociedade”. Deste modo, propõe-se uma reflexão sobre a baixa efetividade das normas urbanísticas por um outro ângulo, qual seja: a incompatibilidade entre o instituto do plano diretor em função de possuírem lógicas distintas. Observa-se que o Estatuto da Cidade põe em relevância o plano diretor como instrumento básico para orientar a política de desenvolvimento e de ordenamento da expansão urbana. Por disposição legal, o plano diretor é instituído por lei municipal, sendo obrigatório para as cidades que se enquadram em alguns requisitos11. Além disso, integra o 8 Para fins deste estudo, entende-se por efetividade, a conformidade da situação de fato à situação jurídica outorgada ou imposta ao sujeito para o cumprimento ou para a aplicação da norma. (JEAMMAUD, Antoine. En torno al problema de la efectividad del derecho. Crítica Jurídica no. 1, p. 12.) 9 FERNANDES, Edésio. Estatuto da Cidade, mais de 10 anos depois: razão de descrença, ou razão de otimismo? Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 20, n. 1, p. 212-233, 2013. 10 MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, pg. 42. 11 Lei nº 10.257/2001 – Estatuto da Cidade: Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 16 processo de planejamento municipal devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual municipal incorporar as diretrizes e prioridades nele contidas. Dito isso, vislumbra-se que os planos diretores são o mais importante instrumento de efetivação das políticas urbanas previstas no ordenamento jurídico. Vale dizer que os planos são os instrumentos que traduzem as diretrizes gerais e abstratas previstas em leis para a realidade cotidiana das cidades brasileiras. Dessa forma a elaboração de um plano diretor não deveria visar apenas o atendimento a uma determinação legal, mas, sobretudo, buscar melhorias das condições da cidade e dos seus habitantes. Verifica-se que o percentual de municípios brasileiros que possuem planos diretores aprovados avançou de 15% em 1999 para 51,5% em 201812. Apesar de sua importância, não se pode confundir o plano diretor com todo o processo de planejamento urbano. Conforme ensina Villaça (1999, p.187),13 “o planejamento urbano seria um processo çontínuo do qual o plano diretor constituiria um momento”. Dessa forma, ao assumir que o plano diretor faz parte de um processo mais abrangente, não sendo um fim em si, limita-se seu papel e demarca uma vinculação nítida com a gestão urbana. Os planos urbanísticos, juntamente com outros instrumentos de política urbana, como os projetos urbanos e a regulação carecem de estar harmônicos com a gestão da cidade, não devendo estar descolados “[...] da capacidade de organização e possibilidades reais de implementação e controle dessa política.” (ROLNICK, 2003, p.17)14 Cumpre anotar que não se desconhece que os impactos dos planos urbanísticos não se dão de forma repentina, por vezes o período de tempo de maturação do planejamento e a implementação de suas medidas é longo. Além disso, o plano diretor não é uma panaceia para todas as questões urbanas, mas considerando que os planos têm papel de destaque e Art. 41. O plano diretor é obrigatório para cidades: I – com mais de vinte mil habitantes; II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; III – onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4o do art. 182 da Constituição Federal; IV – integrantes de áreas de especial interesse turístico; V – inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional. VI - incluídas no cadastro nacional de Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos. 12 IBGE. Perfil dos municípios brasileiros: 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2019. 13 VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento no Brasil. In DEÁK, C.; SCHIFFER, S.R. O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. 14 ROLNIK, Raquel. Política Urbana no Brasil: esperança em meio ao caos? Revista dos Transportes Públicos - ANTP, v. 25, 2003, p.17. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 17 prevalência nos diplomas legais citados, especula-se que a abordagem, a metodologia utilizada na elaboração de tais planos, bem como a forma e seu conteúdo não se mostram, de maneira geral, adequados para reverberar os ideais preconizados nas leis urbanísticas. As críticas aos planos diretores se avolumam e revelam problemas de diversas naturezas. Villaça (1999, p.190) por exemplo, cita a inconsequência e inutilidade da maioria dos planos desenvolvidos ao longo dos anos. Outro ponto que chama atenção negativamente é a estandardização, verificada quando os planos são meras cópias de modelos que não possuem aderência à realidade municipal (FERNANDES, 2013)15. No mesmo sentido crítico, Santos Junior e Montandon (2011, p.31) apontam que “Muitos planos apenas transcreveram os trechos do Estatuto, outros incorporaram os instrumentos sem avaliar sua pertinência em relação ao território e à capacidade de gestão do município, outros, ainda, incorporaram alguns fragmentos de conceitos e ideias do Estatuto de modo desarticulado com o próprio plano urbanístico”16. O forte apelo principiológico e a falta de regras e mecanismos que designem ações concretas de aplicabilidade imediata também são verificados na maioria dos planos, resultando em formosos discursos sem, entretanto, disponibilizar meios para a concretude da política urbana. Usualmente os planos diretores tradicionais são estabelecidos dentro de um princípio top-down17 e regula o desenvolvimento da cidade utilizando-se de mapas em duas dimensões e documentos de texto (PISSOURIS, 2014)18. Esses planos regulam o espaço urbano, tornando-se rígidos, predeterminados e não compatíveis com a incerteza e a dinâmica que altera a feição das cidades19. Alfasi (2018)20 ensina que desde 1900, e particularmente a partir de 1950, o planejamento urbano tem sido conduzido no modelo top-down, centrado no zoneamento e planos estatutários de uso do solo, utilizados principalmente para definir um quadro visionário do futuro das cidades. Entretanto, como advertem Alfasi e Portugali 15 FERNANDES, Edésio. Estatuto da Cidade, mais de 10 anos depois:razão de descrença, ou razão de otimismo? Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 20, n. 1, p. 212-233, 2013. 16 SANTOS JUNIOR, O. A.; MONTANDON, D. T. "Síntese, desafios e recomendações". In: SANTOS JUNIOR, O. A.; MONTANDON, D. T (orgs.) Os planos diretores municipais pós Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011. 17 PISSOURIOS, Ioannis et al. Top-down and bottom-up urban and regional planning: Towards a framework for the use of planning standards. European Spatial Research and Policy, v. 21, n. 1, p. 83-99, 2014. 18 VIDMAR, Jernej; KOŽELJ, Janez. Adaptive urbanism: a parametric maps approach. Theory and Practice of Spatial Planning, v. 3, p. 44-52, 2015. 19 Ibidem. 20 ALFASI, Nurit. The coding turn in urban planning: Could it remedy the essential drawbacks of planning?. Planning Theory, v. 17, n. 3, p. 375-395, 2018. Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 18 (2007, p. 167)21, “[...] nenhum plano é capaz de controlar totalmente uma cidade, incluindo aqueles criados por órgãos de planejamento estaduais e municipais e aqueles elaborados por grandes empresas e organizações. Portanto, os modelos atuais de planejamento não podem regular totalmente a forma urbana”. No mesmo sentido, Verebes (2013)22 reconhece a dificuldade, ou até mesmo a impossibilidade de uma previsão totalmente precisa. 3. AS CIDADES COMO SISTEMAS COMPLEXOS As cidades, por sua vez, sob viés modernista, cujo auge ocorreu em meados do século passado, era entendida como uma máquina composta por partes separadas por função. Com acerto, Verebes (2013)23 leciona: “Este paradigma de cidade como uma máquina está cada vez mais sendo rejeitado em favor de analogias biodinâmicas”, prossegue o professor americano afirmando que a cidade não pode mais ser concebido como um ideal construído e que deve ser entendida como um sistema complexo, dinâmico e, inerentemente, difícil de gerenciar e controlar. Na mesma senda, Batty (2012)24 afirma que as cidades são mais bem compreendidas como organismos do que como máquinas. Assim, vale-se da conceituação de Batty e Torrens (2001)25 para quem um sistema complexo é uma entidade, coerente e de alguma forma reconhecível, cujos elementos, interações e dinâmica geram estruturas e admitem novidades que não podem ser definidas a priori. Para Portugali (2006)26 sistemas complexos são compostos por inúmeras partes relacionadas, que possuem a faculdade de constituir novas valências do desempenho do todo de acordo com a sua auto-organização. Além disso, anota-se que numa perspectiva sistêmica, quantitativamente, o todo é maior do que a soma de suas partes, ou seja, em um sistema complexo, as propriedades agregadas não se resumem a somas das propriedades dos elementos individuais. Em suma, conforme expõe Hillier (2012, p. 43)27, “[...] as cidades 21 ALFASI, Nurit; PORTUGALI, Juval. Planning rules for a self-planned city. Planning theory, v. 6, n. 2, p. 164-182, 2007. (tradução livre do autor) 22 VEREBES, Tom (Ed.). Masterplanning the adaptive city: Computational urbanism in the twenty-first century. Routledge, 2013 23 Ibidem. 24 BATTY, M. Building a science of cities. Cities, 29(6), S9–S16. 2012. 25 BATTY, M.; TORRENS, P. M. Modeling complexity: the limits to prediction. Cybergeo: European Journal of Geography, 2001. 26 PORTUGALI, J. Complexity theory as a link between space and place. In: Environment and Planning A 38(4), London: Pion. pp 647-64. 2006. 27 HILLIER, J. Baroque complexity. In: DE ROO, G, HILLIER, J; e VAN WEZEMAEL, J. (eds) Complexity and Planning: Systems. Farnham: Ashgate, 37–73. 2012.; Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 19 são sistemas complexos e não lineares de redes cujo comportamento futuro é essencialmente imprevisível”. Reconhecer a cidade como um sistema complexo, auto-organizado e adaptativo, implica em aceitar que as cidades evoluem principalmente de baixo para cima (bottom-up), como produtos das interações e decisões de milhões de indivíduos e com apenas ocasionais ações centralizadas de cima para baixo (top-down) (BATTY, 2012).28 Assim, a ciência da complexidade oferece uma nova lente para a compreensão das questões e dinâmicas urbanas. Observa-se que a noção de cidade está evoluindo e criando novos paradigmas. Na obra seminal “The New Science of Cities”, Batty (2013)29 defende uma maneira para estudar as cidades cuja ideia central aduz que são as relações entre lugares e espaços - e não os seus atributos intrínsecos 30– que definem o correto entendimento do lugar. Em outras palavras: para entender um lugar, deve-se entender os fluxos (pessoas, bens e informação) que passam por ele. Para entender os fluxos é necessário ter o conhecimento das redes, que, por sua vez, sugerem relações entre as pessoas e os lugares. 4. A RELAÇÃO ENTRE PLANOS DIRETORES E CIDADES Diante de todo o exposto, resta claro que a natureza estática e visionária do plano diretor tradicional mostra-se incompatível com a complexidade e dinâmica da cidade de hoje. Nesse sentido, Krafta (2016)31 aduz que: Planos e cidades caminham em direções e sentidos distintos, por causa de seguirem princípios opostos: enquanto cidades são formadas e transformadas a partir de ações locais e decentralizadas, resultando em macroestados emergentes, planos usualmente são pensados a partir de estados finais desejados, demandando processos consistentemente coordenados para obtê-los. Entre as tensões verificadas entre os planos e as cidades, Krafta (2016)32 leciona que enquanto os planos veem o futuro como algo previsível e determinado (fechado), com foco no controle do resultado das atividades de planejamento e o desenvolvimento urbano sendo objeto de um processo decisório excludente; as ciências da cidade sugerem um futuro 28 BATTY, M. Building a science of cities. Cities, 29(6), S9–S16. 2012. (tradução livre do autor) 29 BATTY, M. The new science of cities. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press. 2013. 30 Contrapondo-se, por exemplo, com a ideia de Patrick Geddes, para quem a cidade era simplesmente “um lugar no espaço.” 31 KRAFTA, Rômulo. Cidades Versus Planos Diretores. In: PANIZZI, Wrana (Org.) Outra Vez Porto Alegre: a cidade e seu planejamento. Porto Alegre: CirKula, 2016. 32 Ibidem. Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 20 indeterminado (aberto), com foco no controle dos processos das atividades e utilizando um processo decisório includente. Nas palavras de Verebes (2013)33, o excesso de confiança em planos inflexíveis que idealizam o futuro ignora a complexidade do mundo moderno e as contingências que moldam esse futuro, e acabam por incorporar a dinâmica do passado, as contingências do presente e previsões do futuro. 5. ALGUMAS INICIATIVAS Para tentar contornar essa disfunção, algumas iniciativas e proposições vem sendo discutidas, a partir de uma nova lente de investigação e análise. Um diferencial nos dias atuais são as possibilidades de acesso a informações que até pouco tempo não tínhamos a disponibilidade. Técnicas geoespaciais e mapas de alta qualidade, análise de big data, dados espaciais gerados pelo próprio usuário, lançam luz sobre a problemática e abrem infinitas possiblidades para o planejamento e gestão urbana. Conforme explica Boeing (2019)34, muito dos antigos desafios de coleta, armazenamento e compartilhamento de dados espaciais evoluíram para processos comuns e plataformas padronizadas. Esse acesso facilitado a informações permite a utilização de métodos e técnicas de planejamento que incorporamcom mais facilidade e rapidez eventuais mudanças no espaço e no tempo. Vidmar & Kozelj (2015)35 e Schumacher (2013)36, por exemplo, sugerem a adoção dos chamados mapas paramétricos, que regulam interativamente a forma de desenvolvimento urbano. Ademais, este último autor propõe uma espécie de plano diretor sem um estado final, as particularidades das circunstâncias futuras permaneceriam imprevisíveis. Vislumbra-se algumas propostas de mudança de paradigma, com a substituição das ferramentas e abordagens tradicionais (plano diretor), por uma abordagem baseada em códigos (form-based codes) com foco na tipologia das edificações e as suas relações com o 33 VEREBES, Tom (Ed.). Masterplanning the adaptive city: Computational urbanism in the twenty-first century. Routledge, 2013. 34 BOEING, Geoff. Spatial information and the legibility of urban form: Big data in urban morphology. International Journal of Information Management, 2019. 35 VIDMAR, Jernej; KOŽELJ, Janez. Adaptive urbanism: a parametric maps approach. Theory and Practice of Spatial Planning, v. 3, p. 44-52, 2015. 36 SCHUMACHER, P. Free Market Urbanism – Urbanism beyond Planning. In: VEREBES, T. (Ed.), Masterplanning the Adaptive City – Computational Urbanism in the Twenty-First Century. New York, ZDA: Routledge. 2013. Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 21 espaço público37. A utilização de códigos abstratos como meio de regulação em substituição dos planos diretores e planos de uso do solo também foram considerados por Alfasi e Portugali (2007)38. Assim, esse código urbano ou código espacial poderia direcionar as ações dos vários atores engajados no planejamento e a orientação desse modelo seria para a análise das relações entres os elementos do ambiente construído. Verebes (2013)39 propõe a substituição do modelo que trata a cidade em apenas duas dimensões, para um modelo baseado em quatro dimensões com a incorporação da variável ‘tempo’ no planejamento. Moroni et al (2020)40 lembra que a estrutura urbana complexa e auto-coordenada não é anárquica, e requer certos tipos de regras, às quais ele denomina de “regras de estrutura” (em contraposição às “regras de padronização”) que fornecem uma estrutura geral para o desenvolvimento urbano, incorporando formas não planejadas e espontâneas e caracterizam- se por serem simples, relacionais e negativas. A utilização de regras de estrutura de forma mais simplificada também foi proposta por Chen (2015)41, no âmbito das cidades chinesas. Frew et al (2016)42 e Pelorosso (2020)43 propõe um planejamento urbano baseado em desempenho, que se utilizaria de indicadores e padrões de desempenho e permitiria um planejamento mais flexível dentro dos limites de impacto predefinidos no sistema urbano. Observa-se que todas as iniciativas apresentadas visam – pelo menos no discurso – aumentar o potencial da cidade para se adaptar às mudanças contínuas que acabam por delimitar a sua forma. Por fim, constata-se que no contexto brasileiro, e sob o enfoque que identifica a cidade como um sistema complexo e auto-organizado, existe uma série de desafios a serem superados para possibilitar o desenvolvimento de um modelo adaptativo de planejamento e 37 Ver TALEN, Emily. Form-based codes vs. conventional zoning. In: Companion to urban design. Routledge, 2011. p. 542-552 e CARMONA, Matthew; MARSHALL, Stephen; STEVENS, Quentin. Design codes: their use and potential. Progress in Planning, v. 65, n. 4, p. 209-289, 2006. 38 ALFASI, Nurit; PORTUGALI, Juval. Planning rules for a self-planned city. Planning theory, v. 6, n. 2, p. 164-182, 2007 39 VEREBES, Tom (Ed.). Masterplanning the adaptive city: Computational urbanism in the twenty-first century. Routledge, 2013. 40 MORONI, Stefano; RAUWS, Ward; COZZOLINO, Stefano. Forms of self-organization: Urban complexity and planning implications. Environment and Planning B: Urban Analytics and City Science, v. 47, n. 2, p. 220-234, 2020. 41 CHEN, Yi. SPR as solution of action plan in China's master plan innovation. Habitat International, v. 50, p. 300-309, 2015. 42 FREW, Travis; BAKER, Douglas; DONEHUE, Paul. Performance based planning in Queensland: A case of unintended plan-making outcomes. Land Use Policy, v. 50, p. 239-251, 2016. 43 PELOROSSO, Raffaele. Modeling and urban planning: A systematic review of performance-based approaches. Sustainable cities and society, v. 52, p. 101867, 2020. Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 22 gestão urbana que propicie condições para a auto-organização da cidade a partir da interação entre seus agentes e, tendo por propósito, conferir efetividade às disposições contidas nas normas jurídico-urbanísticas brasileiras. CONCLUSÕES Diante de todo o exposto, resta claro que temos uma legislação urbanística que quando analisada de forma isolada, mostra-se com valências que deveriam refletir em cidades com uma melhor qualidade e bem-estar para a totalidade de seus habitantes. Tanto a Constituição Federal como o Estatuto da Cidade estabeleceram que o plano diretor fosse o cerne do processo de planejamento urbano. As cidades, por seu turno, constituem-se como sistemas complexos, caracterizadas por uma inerente imprevisibilidade, o que resulta, pelo menos aparentemente, em lógica distinta dos planos diretores cuja racionalidade indica a possibilidade de prever as condições futuras das cidades, bem como de manejar os processos formativos da cidade de forma coordenada. Diante desse dilema, vem sendo desenvolvidos estudos que propõem alternativas para a compatibilização entre a dinâmica própria das cidades e os instrumentos urbanísticos que devem regê-la. Temos um longo caminho a percorrer, ao mesmo tempo que as cidades possuem problemas prementes e urgentes que influenciam diretamente no bem-estar de seus habitantes. Certo é que ainda estamos tateando em um campo com poucas certezas e muitas dúvidas, buscando alternativas que possam redundar em modelos adaptativos de planejamento urbano que disponham de instrumentos de suporte à gestão urbana ancorados na perspectiva sistêmica das cidades. 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Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 25 A PAISAGEM CULTURAL: UMA REFLEXÃO PÓS-PANDEMIA A PARTIR DO ESTUDO DE CASO DE CIDREIRA/RS Andréa Marta Vasconcellos Ritter1 Resumo: As paisagens fazem parte do cotidiano das cidades e presentes nas relações sociais, ambientais, culturais, tradições, expressões, crenças, imaginativo popular e por isso, especial, se constituindo em patrimônio cultural. A cidade de Cidreira, Estado do Rio Grande do Sul, é litorânea, com atributos paisagísticos singulares, diversos que se destacam pelas belezas naturais, estéticas, culturais, em harmonia com o urbano. O Estatuto das Cidades e outros dispositivos legais visam à tutela difusa, a proteção, preservação, a manutenção da paisagem, enquanto bem jurídico. Este artigo aborda a Paisagem Cultural, como instrumento de preservação do Patrimônio Cultural e também, a necessidade pós-pandemia de revalorização do direito à paisagem cultural material e imaterial, o objetivo é que o Estudo de Caso contribua para a formação de uma política paisagística (re) valorizada e um verdadeiro Plano Diretor capaz de medir valores subjetivos como cultura, afetos, tradições, crenças, expressões, preservando porções singulares do território, onde a interação entre a cultura e o ambiente natural confere à paisagem uma identidade específica. A pesquisa é documental, de campo e de caráter qualitativo e os documentos analisados e citados são o fundamento e o principal eixo. A conclusão é que este momento pós-pandemia exige valorizar a natureza, referendar o direito subjetivo difuso à paisagem, considerar os direitos da comunidade de permanecer nas paisagens e vivenciar sua cultura, em relação harmônica, entre processo social e de natureza, estimulando a dimensão afetiva com o território, tendo como preliminar a dignidade da pessoa humana e a qualidade de vida da população. Palavras-Chave: Paisagem Cultural- Legislação Urbanística- Pós-Pandemia 1. INTRODUÇÃO “Que soem as caracolas e que nossa memória não se perca, como se perderam os nossos sambaquis e os nossos ancestrais” (Lizzi Barbosa) No Brasil desde a década de 30 a paisagem é considerada patrimônio estético, histórico, artístico, cultural, um bem jurídico, sujeito à tutela, preservação e proteção. 1 Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais ( PUC 1987 ) Advogada desde 1987 e sócia de Roque e Vasconcellos Advogados Associados ; Professora Universitária desde 1989; Bacharel em Relações Internacionais ( UNIRITTER 2016 ) , Pós Graduação em Metodologia do Ensino Superior ( UNISINOS 1991), em Direito Público e Privado ( UNIRITTER ) e em Estratégias e Estudos Internacionais ( UFRGS 2018 ) ; Mestre em Direito das Relações Internacionais ( UDE 2016 ) . Membro da Comissão da Mulher Advogada da OAB/RS, Julgadora do Tribunal de Ética e Disciplina da OABRS Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 26 O Estatuto das Cidades, Lei n. 10257/2001 reconhece os entendimentos e atributos sobre a paisagem ser patrimonial e trazer no âmago sua preservação e qualidade de vida. As paisagens singulares são patrimônios culturais, eis que fazem parte do cotidiano e estão presentes nas representações sociais subjetivas como tradição, expressões, afetos, crenças, imaginativo popular, que formam o patrimônio imaterial e neste ponto, está a importância das paisagens culturais e a preservação, revalorização das paisagens naturais e urbanas, pois cabal na construção da identidade cultural do povo do lugar. O Plano Diretor e os demais dispositivos legais trazidos neste artigo objetivam o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, das propriedades, garantindo e assegurando a preservação, proteção dos recursos, tutelado meio ambiente e da paisagem cultural urbana, material e imaterial, tangível e intangível, objetiva e subjetiva, que tem imanência e se confunde com o direito subjetivo difuso das pessoas à paisagem. Cidreira é uma cidade com paisagens e recursos ambientais singulares e se destaca pela beleza do relacionamento entre a comunidade praieira, o meio e a percepção influenciada pelos aspectos da cultura. A paisagem é valorizada no contado direto com a natureza e os valores da cultura praieira que influi na condição da sociedade que habita este sítio localizado no Litoral Norte do Estado do Rio Grande do Sul. O urbano e a “gente da praia” são agasalhados pelo universo que é dividido entre água, areia, campo e o céu, que traz um lindo nascer do sol sobre o mar e o poente acontecendo nas dunas e lagoas internas. No domínio do campo estão às pastagens, os animais e a floresta de preservação que é protegida com muita vida, nestes campos da Fortaleza há criação de ovinos, eqüinos e bovinos, em várias propriedades rurais que mantém a função social da terra. O domínio das águas é dividido entre o mar e as 05 lagoas e é o espaço sagrado dos pássaros, das espécies aquáticas, da vegetação ribeirinha, mas também da Iemanjá e do boto que encanta as moças. Nas areias das Dunas primárias, secundárias e terciárias está contida a grande zona de preservação, área de acúmulo de águas instáveis e também é o habitat do Tuco tuco e do Maestro da Areia, pessoa e cinematografia local. Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 27 Bastante a descrição destes domínios, para se inferir uma cultura, uma visão de mundo, tradições, lugar dos antepassados, lugar de pertencimento onde tudo inicia, o lugar em que essa “gente praieira“ vive e programa o futuro. Há um pertencer recíproco, pois o povo da praia pertence à paisagem e a paisagem lhes pertence e a cidade acolhida pelas paisagens é o lugar de construção de ensinamentos, de valores morais que vão muito além de uma polis e isso tudo forma a paisagem cultural, que é patrimônio imaterial. Os elementos naturais inseridos na malha urbana de Cidreira são marcantes, mas a cidade emerge e há paisagem em tensão e discursos de conflito de representação entre o desenvolvimento, economia, mercado, tecnologia e o uso de revalorização, (re) apropriação, de significados de uma realidade, da imagem dessa realidade e das referências culturais a partir das quais esta imagem se forma. O desafio é desenvolver e implementar políticas de recursos e paisagens protegidas, preservadas, que conciliem os valores culturais herdados, que saibam interpretar o sentido das mudanças e a melhoria das condições de vida das populações vistas como coautora da construção de um território cujo valor identitário, também terá que incluir o presente e projetar o futuro. Neste sentido e privilegiando a dignidade da pessoa humana, a qualidade de vida e o direito subjetivo difuso à paisagem, pois necessário estimular a participação cidadã, considerando a permanência das pessoas na cidade, com atenção para os contextos populares, tradicionais, culturais resistentes à expansão urbana, ao mercado e edificações globalizantes. Considerando o Pós – Pandemia, mister reconhecer os elementos materiais e imateriais, recursos naturais e as práticas sociais, os significados existentes a partir dos modos de criar, fazer, viver, perceber que são dinâmicas e que devem seguir ao longo do tempo e assim (re)significar o Estatuto das Cidades e os demais dispositivos legais sobre o tema. O Estatuto das Cidades apresenta a experiência de Cidreira, no sentido de questionar e implementar os dispositivos garantidos na legislação urbanista e também reabre no pós- pandemia a discussão sobre o meio ambiente, os recursos naturais e a interação pessoa/cultura. Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 28 O Caso de Cidreira reabre a pauta sobre a preocupação constante de proteção sobre a distinta paisagem local que deverá alterar o Plano Diretor de 2012 e considerar a Paisagem Cultural como instrumento de preservação do Patrimônio Cultural, envolvendo a dignidade da pessoa humana, qualidade de vida e o bem- estar da comunidade. 2. PAISAGEM CARTÃO–POSTAL E A INTERAÇÃO COM AS PESSOAS A paisagem passou a existir com o sentido e utilidade pra a realidade dos grupos e o conceito foi entorno da existência humana, como aduz Maximiliano (2004), como no caso da paisagem desértica que fez olhar para as estrelas. Seja natural, estética ou de uso, a paisagem foi entendida através da cultura de cada grupo, tendo Ratzel, em 1880, incluído primordialmente a cultura na paisagem, embora uma concepção limitada ao confundir com os artefatos utilizados pelos homens. Claval (2001) cita Shutter para o qual a marca que os homens impõem a paisagem é a que constitui o objeto de fundo de todas as pesquisas, porém deixava de lado as crenças e as tradições. Já Sauer (1998) aduz que a paisagem natural reflete as formas e objetos da natureza que existe com ou sem a interferência do homem e a paisagem cultural resulta das relações do homem e a natureza. Segue Sauer (1998) que a paisagem cultural é moldada a partir de uma paisagem natural por um grupo cultural e traz a equação, onde se vê que cultura corresponde aos agentes, a área natural ao meio e a paisagem cultural ao resultado. Assim, uma nova cultura pode rejuvenescer a paisagem ou formar nova paisagem. Os estudos de percepção da paisagem, são dispostos por Melo (2001), sendo fundamentos para analisar os valores, os sentimentos, com relação pás paisagens, valendo a percepção do indivíduo e dos grupos sociais, à compreensão do significado que a sociedade atribui ao espaço. A partir dos anos 80, se volta para a paisagem simbólica e nela estão insculpidas a materialidade da cultura e da natureza, também os sentimentos, valores em relação as paisagens se dependentes da cultura. Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 29 Traduz Maximiliano (2004) que a cultura é o elemento que agindo sobre o meio natural, resulta na paisagem cultural e Risso (2008) que a paisagem se constitui a partir das relações entre os seres humanos e a natureza ao longo dos tempos, pois com base na paisagem natural é que a cultura se desenvolve. A paisagem determinada em contrapartida, para Berque (1998), é esse olhar, essa consciência, essa experiência, essa estética, essa moral, essa política. O sujeito observa e no subjetivo estão os sentimentos afetivos, vivenciados, experiências, valores, cultura simbólica, representando a identidade territorial, consoante Risso (2008). Cabe dizer que cada pessoa que olha, sente uma paisagem carrega um significado diferente, um valor diferente, um sentimento de apego ou desapego, uma crença, uma tradição diferente. As paisagens se expressam por causa da capacidade do homem de criar, que resulta em uma valorização ou desvalorização e para Collot (1990), a paisagem se faz sentido, foi repentinamente analisada, vivida e desejada e é o resultado do relacionamento. Os atributos da paisagem como cartão-postal e os arranjos resultantes deste diálogo é que são objetos de preservação e tal ato é objeto de proteção do legado cultural de uma comunidade para as gerações futuras. Importante considerar a dinamicidade da paisagem, a globalização, a massificação, a transformação que está relacionada com o homem e com a natureza e mister disciplinar a produção do espaço urbano através da legislação internacional, nacional e local, que conterão medidas limites ao processo de uso e ocupação do espaço das cidades. Franco (2000) define que a conservação ambientalpode ser entendida como o convívio e harmonia do homem com a natureza, com o mínimo de impacto possível, sem esgotar os recursos naturais, permitindo a vida das gerações futuras e tal entendimento está inserido no conceito de desenvolvimento sustentável. 3. INSTRUMENTOS LEGAIS A paisagem é algo vivo, dinâmico que se modifica no tempo, de acordo com fatores da natureza e da ação das pessoas que se apoiam em um contexto cultural. É construída com Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 30 o acréscimo de novos elementos, modificadores dos existentes e de infinitas manifestações culturais. Toda a paisagem é cultural, é uma realidade visível, visão de conjunto, percepção a partir do espaço existindo, a partir do sujeito que a aprende e cada pessoa vê diferente da outra e com isso (re)significa cotidianamente. A seguir, cabe trazer alguns instrumentos legais que norteiam a matéria e são de grande importância para o trato do tema Paisagem Cultura e Paisagem Cultural. - Carta de Atenas de 1931 – Considerou bem cultural a paisagem, mais seu entorno; - Carta de Veneza de 1964 – Dispõe sobre o conceito de ambiência; - Unesco de 1972 – Convenção relativa ao patrimônio mundial, cultural e natural: categoria cultural e material; - Unesco de 1992 – Paisagem é um bem valorizado inter-relações que ali coexistem; - Convenção Européia da Paisagem de 2000 – Florença – Mudanças naturais e evolução, sem perder o sentido histórico e desenvolvimento sustentável, meios produtivos e recursos naturais sem esgotar; - Decreto Lei n. 25/ 1937 – Designação de valor patrimonial para as paisagens e criação do Livro Tombo, Etnológico, Arquitetônico e Paisagístico; Cabe ressaltar que o Tombamento constituído era pelo valor cênico da paisagem e valoração da relação homem e o meio e assim, tombada não só a cidade, ou paisagem, mas também todo o seu entorno. Na década de 90 e ano 2000, o conceito de paisagem foi incorporado ao IPHAN, dentro de uma visão multidisciplinar da paisagem, elo entre os artefatos, natureza e cultura. - Estatuto das Cidades, Lei 10257 de 2001 – Regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. O Estatuto confere para cada cidadão o direito coletivo e difuso à cidade sustentável. Uma nova leitura do ambiente local, agregando conceitos Dignidade da Pessoa Humana, Qualidade de Vida, Bem-Estar e Bem Comum. Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 31 Democraticamente o instrumento traz a tomada de decisão e dá voz para à sociedade, comunidade e bairros. A aplicação deverá levar em conta o impacto sobre a paisagem de morros, dunas, vales e recursos d’agua. É instrumento de proteção, preservação sobre o patrimônio natural e cultural e a paisagem tem valor ambiental e mantém padrões estéticos inegáveis, interesses difusos com relação á qualidade de vida e bem-estar da população. A paisagem é um direito, necessariamente tutelado juridicamente, direito do morador cidadão, ornamentada plasticamente, agradável e porque não dizer bela (Silva, 2006). - Carta de Bagé de 2007 ou Carta da Paisagem Cultural; - Portaria n. 127/2009, instituiu a proteção patrimonial e gestão territorial: A Chancela da Paisagem Cultural Brasileira, com participação do IPHAN, sociedade civil e esferas governamentais. Neste ponto, importante salientar que a paisagem cultural é instrumento de preservação do patrimônio cultural, eis que há uma nova possibilidade de reconhecimento de bens culturais e a Chancela como Paisagem Cultural Brasileira está voltada para lugares cuja especificidade é o resultado das relações entre grupos sociais e a natureza, possibilitando a preservação de porções singulares do território, onde a interação entre a cultura e o ambiente natural, confere à paisagem uma identidade específica e o instrumento da Chancela valoriza a relação harmônica entre os processos sociais e os processos da natureza, estimulando a dimensão afetiva com o território e a premissa é a qualidade de vida da população. O Selo de legitimidade e reconhecimento atribui valor de patrimônio nacional, a determinada paisagem e estimula manifestações culturais locais, turismo, artes, cultura da terra e outras atividades que preservam valores culturais e o ambiente chancelado. Visível a integração entre o material e o imaterial, cultura e natureza e a Chancela é instrumento de proteção, preservação patrimonial, de caráter agregador da paisagem e caminho mais abrangente para política de desenvolvimento, contudo necessário debater, orientar, intervir, quando há inevitável mudança social, técnica e cultural e a estratégia promove respeito à diversidade da paisagem em conjunto com a dinamicidade social, de mercado, econômica. Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 32 - Decreto n. 3551/2000 – Lugares passaram a integrar o patrimônio imaterial. Tal patrimônio é aquele bem jurídico, transmitido de geração para geração, é construído, recriado, gera sentimento de identidade e continuidade, sendo locais onde se concentram e se produzem as práticas culturais, coletivas, saberes, referidos a grupos, que nestes espaços, efetuam trocas materiais, imateriais e simbólicas. Importante considerar pessoas e seus modos de vida, o lugar e a paisagem são misturados entre o material e o imaterial, sendo que as práticas sociais, dão sentido ao lugar e o lugar é fundador de tais práticas e as relações se dão por meio de identidades, crenças, valores, tradições, sentimentos. Desafio é preservar o lugar e o “Espírito do Lugar “ e neste sentido, o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, trazido pela Declaração de Quebec de 2008. Nór (2013) salienta que o “Espírito do Lugar “incorpora caráter plural e polivalente, diferentes significados e singularidade, possível manifestação simbólica, cultural, histórica, compreendido como a essência dos valores imateriais, revela relações dialógicas entre passado e presente, por meio das permanentes confirmações de caráter vivo e permanente às paisagens. O “espírito do lugar“consiste no conjunto de bens materiais (sítios, paisagens, edificações, objetos) e imateriais (memórias, depoimentos orais, documentos escritos, rituais, festivais, ofícios, técnicas, valores, odores) físicos e espirituais, que dão sentido, valor, emoção e mistério ao lugar, de tal modo que o espírito constrói o lugar e, ao mesmo tempo, o lugar constrói e estrutura o espírito. (ICOMOS. Declaração de Quebec, 2008) - Plano Diretor de Cidreira – Lei n. 1948/2012 – Dispõe sobre o Desenvolvimento Urbano e Ambiental, observando o Estatuto das Cidades, Diretrizes Ambientais, Planos Nacionais e a Função Social da propriedade. Apesar de tal arcabouço legal, as paisagens e o espaço urbano revelam contradições e por toda a parte se vê profundas desigualdades que resultam na exclusão de parte da população aos espaços salubres e dignos da vida humana e tal identificação de exclusões e desigualdades, aumentou muito mais, com a pandemia da COVID-19. Neste contexto, necessário promover o equilíbrio do meio ambiente e a singularidade da paisagem, em especial, a litorânea, em comento, pois a paisagem urbana reflete o resultado do equacionamento possível entre os interesses dos agentes produtores do espaço Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 33 e as restrições ou flexibilizações norteadoras desta produção, cabendo salientar que lamentavelmente, leis restritivas, que promovem proteção e equilíbrio são revogadas e as leis permissivas da degradaçãodificilmente são modificadas. 4. O PLANO DIRETOR DE CIDREIRA O Plano Diretor do Município de Cidreira, Lei n. 1948/2012, aprovada pela Câmara dos Vereadores e sancionada, instituindo o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental PDDUA do Município de Cidreira, dispõe sobre o parcelamento do solo e determina outras providências. A implementação deste plano, traz um modelo de gestão urbana e busca garantir o uso social da cidade e da propriedade, tendo o Estatuto das Cidades como instrumento de regulação do uso do solo privado e para cumprir a função, a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis, bem como a proteção, a preservação e a recuperação do meio ambiente e do patrimônio histórico, cultural e paisagístico (art. 6º.2 e art. 4º.4). Dentre as Funções sociais da cidade está o bem-estar dos habitantes, incluindo a proteção, preservação e recuperação dos recursos naturais ou criados (art. 4º, parágrafo único) e importante a gestão democrática urbana, que busca garantir este uso social da cidade e da propriedade, como forma de planejar, produzir, operar e governar as cidades, submetida ao controle social e à participação da sociedade civil. O Plano Diretor do município de Cidreira não traz capítulo ou clara divisão entre a paisagem e os recursos naturais, mas devia também tratar a paisagem urbana com maior propriedade, até porque está inserido em inúmeras páreas naturais e paisagens belíssimas. Deveria o Plano concretizar que o espaço urbano está sobre o suporte natural, que é acrescido pela sociedade que nele vai se reproduzindo. Mas, equaciona ser possível o a relação entre os interesses diversos e o papel da legislação enquanto mediadora destas situações, apontando para o futuro e a promoção humana como o fim de todo o desenvolvimento (art. 28.1 e 2). No entanto, a cidade real, com conflitos, contradições, interesses antagônicos diverge do Plano Diretor e além disso, necessário discutir os limites da legislação, os limites do mercado imobiliário, do desenvolvimento e da tecnologia e considerar que todo o arcabouço citado no capítulo anterior, ainda não é capaz de garantir e aplicar uma perfeita proteção, Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 34 preservação, bem-estar e a dignidade da pessoa humana, com qualidade de vida e incluir a paisagem como direito subjetivo difuso. O Plano Diretor define um modelo espacial de desenvolvimento, a partir do art. 63, sendo elementos estruturadores para a composição do modelo, a definição de perímetro urbano, zoneamento de uso, áreas especiais, malha viária e equipamentos urbanos (art. 65) tendo a cidade sido dividida em duas zonas urbanas: de ocupação intensiva e de ocupação diferenciada e uma zona não urbana (art. 66/68). Esta última é entendida pelas áreas de preservação permanente, as áreas de proteção ambiental e as zonas rurais contidas entre a área urbana e as divisas administrativas com os municípios vizinhos. Importante destacar que a partir do art. 70, o Plano traz um capítulo sobre as áreas especiais, que tem características peculiares e dentre elas estão as Zonas Especiais de Interesse Urbanístico, que inclui Zonas Especiais de Interesse Paisagístico – art. 77 .4 – “ setores urbanos destinados a áreas verdes sem o devido tratamento e em degradação urbana e a Zona Especial de Proteção e Preservação do Ambiente Natural (art. 79). De vital importância para os atributos e qualidade das paisagens as áreas especiais para a proteção ambiental que “valorizam o patrimônio ambiental, promovendo suas potencialidades e garantindo a sua perpetuação e a superação dos conflitos referentes à poluição, e degredação do meio ambiente, saneamento e desperdício energético (art. 79). Neste ponto, não trouxe o Plano o valor cênico dos vários trechos paisagísticos da cidade, como as dunas, inseridas no meio urbano, que é cenário a ser protegido, digno de identidade, valores, crenças etc. Se infere que o Plano traz algumas limitações de gabarito, como a altura das edificações, que deve ser bastante questionada, no caso da orla marítima, volta das lagoas, Parque das Dunas, cabendo dizer que o município de Cidreira ainda não tem “espigões “, prédios de gabarito alto, mas também não tem rede de esgotos, tratamento de lixo ou rede de águas reutilizáveis. Argumentos paisagísticos culturais, de cenário, de qualidade de vida, dificilmente são aceitos pelo mercado imobiliário que se preocupa só com interesses de mercado, econômicos, particulares, mas são paisagens, áreas de preservação, de proteção, algumas elencadas de preservação permanente e mister a participação de diversos segmentos sociais, Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 35 imprensa, publicidade, enfim, debater a legislação urbanística e proteger sobremaneira a paisagem cultural e cartão-postal (art. 127). Mas as áreas localizadas em torno das lagoas e na Orla marítima são as preferenciais e de mais lucro para o setor imobiliário e neste momento de tensão , de tornar público o debate é que vale o caráter inovador e democrático do Plano Diretor, explicitado na lei, mas que de forma dissociada estabeleça a conservação dos recursos naturais e a preservação da paisagem, da paisagem cultural e do patrimônio cultural e após acompanhar a aplicação e as adaptações do Plano , tendo a sociedade entendido seu papel neste processo. Óbvio que a legislação deve ser elaborada de forma democrática, mas não modificada com intransigências e totalitarismo, pois deve honrar a boa política para o desenvolvimento econômico, que contemple a dignidade da pessoa humana, o bem-estar e a qualidade de vida. 5. DIREITO À PAISAGEM E VALOR MAIOR PÓS- PANDEMIA As cidades e as paisagens foram atacadas pela Pandemia mundial da Covid-19 e urgente e necessário resolver, além dos problemas de saúde, os causados pela vulnerabilidade e exclusão, os de alimentação e fome, a qualidade de vida e seguir garantindo os recursos presentes para as gerações futuras. O mundo pós-pandemia requer considerar direitos e saberes, modos de vida e dentre os direitos, (re) valorizar, construir, reafirmar, ratificar o direito subjetivo à paisagem. Vale a lição de Ost (1995) o ambiente é um patrimônio, herança geracional passada, conjunto de recursos das presentes e garantia comum das gerações g=futuras, em relação às quais contraímos uma dívida de transmissão. Então, há o dever de preservação, de reafirmação dos cenários, das paisagens, dos sítios para as gerações futuras e com a pandemia a natureza restituiu vigor, mas também necessita do homem para preservação e a crise revelou que a vida, a saúde, o cuidado, tem relevância e os ambientes, os recursos naturais, as paisagens, não podem ser desmerecidas, destruídas, pelo contrário, o afastamento social revelou o quanto necessitamos do ambiente, das paisagens, da cultura, dos cenários. Uma vida humanamente digna, exige um meio ambiente saudável que garanta o direito á paisagem, no entanto, cabe ao Poder Público e à sociedade dirimir os conflitos, Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas - Volume VI 36 disputas, causadas pela forma que os problemas ambientais afetam os grupos humanos produzindo injustiça social e as paisagens são manipuladas no interesse dos mercados, das grandes construtoras e os seres que fazem parte daquele ecossistema sofrem, são removidos e morrem. A paisagem é degradada, destruída e há perda de sua fruição individual e coletiva, sendo o mercado o responsável pelo desrespeito e morte da paisagem e do direito subjetivo difuso. Nesse sentido, o Mestre Ivan Therra (2021) aduz que “ a paisagem cotidiana de dunas, ventos e lagoas, foi
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