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atrás de empréstimos, de demoras, trocando as palavras e desatando de súbito a esbracejar com gritos e soluços. Deparo às vezes na rua com estes velhos falando só, encostados às paredes, com o casaco no fio. São os velhos pobres, os velhos que chegam ao fim da vida, com olhos de pasmo, sem terem compreendido a vida e habituados à desgraça. E comparo-os com os velhos ricos que passam por mim nos seus carros de guerra, imponentes e duros, como quem avança sentado sobre os depósitos à ordem no banco. A vida acabou de esculpir estas figuras no ponto em que vão morrer. Só mais alguns golpes de escopro, duas ou três marteladas de cinzel e a obra está concluída... Nuns o olhar é directo, os outros mal se atrevem a fitar-nos: têm medo. Aquela boca é imperiosa e habituada a mandar; estes nem sabem falar senão quando estão sozinhos, em monólogos pueris que só acabam no túmulo, em monólogos infindáveis de dor, de isolamento, de desgraça. Até pelas mãos se distinguem – pelas mãos fortes e grossas – pelas mãos magras e exangues. Há pobres duma decência que faz frio, de pessoas que querem manter certa aparência, e têm fome aos setenta anos, há-os infantis, há-os que se põem a olhar para a gente com a boca a tremer, como se pedissem desculpa do seu sonho e da sua humildade. Os ricos ocupam um lugar definitivo e inabalável na existência; os pobres fazem-se mais pequenos para não ocuparem lugar. É o momento da vida em que já não se espera e está tudo julgado, tanto para os que passam nos autos, reluzentes como ídolos, como para os que se escoam pelas paredes com um embrulho debaixo do braço. Todos caminham para a morte, altivos e quase desumanos diante da eternidade, ou resignados gemendo baixinho, como quem cumpriu a vida e aceita a dor. Heis-de tê-lo encontrado, esse velho de cabelos brancos estacados, aos empurrões na vida e com um ar de aflição que faz riso e piedade. – Ó Gebo! – Anh? – Conta! E ele logo, em palavras rotas, precipitadas, bebendo as lágrimas: – O Senhor!... Tanto tenho andado e tanto tenho sofrido! Quanto mais faço, pior, inda é pior... E já não posso mais... Acabou-se! Só Deus sabe pelo que tenho passado, as desgraças que tenho rapado e as aflições, para arranjar ao menos o triste pedaço de pão para a boca... O pior é delas. O meu coração estala, tanto tenho sofrido. Trago a noite cá dentro. Que se lhe há-de fazer? Curtir a desgraça. Anh? Tenho pena de ter sido honrado... E fica com a boca aberta, de cabelos brancos estacados. (BRANDÃO, Raul. "O Gebo". In: ______. Os Pobres. Lisboa: Projecto Vercial, 2001.) LEITURA COMPLEMENTAR 27
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