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A Ciência do Comum

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CDD-302.2
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Sodré, Muniz
A ciência do comum : notas para o método
comunicacional / Muniz Sodré. – Petrópolis, RJ : Vozes,
2014.
Bibliogra�a
ISBN 978-85-326-4952-2 – Edição digital
1. Comunicação  2. Comunicação – Aspectos sociais  3.
Sociedade da informação  4. Tecnologia  I. Título.
14-07445
Índices para catálogo sistemático:
1. Comunicação : Ciências sociais          302.2
Há quem diga que ainda não se começou a estudar realmente a
comunicação. É uma a�rmação enfática quanto à di�culdade de constituição
do campo cientí�co desse setor do conhecimento, que tem a ver com a
ambiguidade institucional de suas condições de possibilidade. Referimo-nos
a condições capazes de serem satisfeitas no interior de eixos característicos
da pesquisa cientí�ca, a saber, ontologia/epistemologia (primeiro,
determinação daquilo que existe e que será observado; segundo, a natureza
do conhecimento implicado), metodologia (o procedimento formal) e
axiologia (valores e �nalidades do conhecimento), que correspondem
respectivamente a questões do tipo “o que o pesquisador diz estar fazendo
em termos acadêmicos”, “como está procedendo” e “por que faz isso?”
Pode ser esclarecedora uma comparação com o que acontece ao campo
da economia, principalmente se examinada à luz de alguns aspectos da crise
que se abateu sobre o sistema �nanceiro norte-americano no �nal da
primeira década deste século, resultando numa freada na economia global.
Como se tornou amplamente conhecido, os maiores bancos de
investimentos e corretoras desse país tornaram-se insolventes, em virtude de
fraudes e operações de risco, lançando na extrema pobreza milhões de
pequenos investidores.
Uma grande parcela dos consultores �nanceiros dessas organizações,
mas também dos organismos federais encarregados da regulação do
mercado, eram economistas e professores nas mais conceituadas
universidades americanas. Todos eles, que antes con�avam no
autoequilíbrio do mercado (a utopia economicista do “mercado perfeito”) e
advogavam a desregulamentação estatal, saíram ainda mais ricos da quebra
do sistema privado, �nalmente resgatado pelo Tesouro Federal, ou seja, por
dinheiro público. E vários deles atuavam como dirigentes ou conselheiros do
Poder Executivo quando este decidiu desembolsar centenas de bilhões de
dólares para salvar o sistema �nanceiro. Ficou evidente que aquilo que
responde pelo equilíbrio do mercado não é a aplicação da “ciência
econômica”, mas o poder efetivo da coalizão política dominante.
Na realidade, o mainstream da Teoria Acadêmica da Economia – que
costuma resultar em prêmios Nobel para inovadores do setor – não difere
basicamente do que se pratica no mercado, ou seja, apoia-se em
formalizações matemáticas que pouco têm a ver com o “mundo da vida”[31],
isto é, com a vida humana associada ao que desde Adam Smith (1766) se
entendia como “ciência” da aquisição de riquezas para o indivíduo ou para a
nação, portanto, um tipo de pensamento centrado no bem-estar coletivo. É
verdade que a perspectiva teórica de Smith (assim como a de Ricardo)
atribui autonomia ao ciclo econômico, mas sem o absolutismo de que se
investiria muito mais tarde a econometria burguesa. A isso se contrapõe o
que seria depois designada como “economia humana”, uma economia
histórica, social, política e ecológica, mais atenta à questão da desigualdade
dos modos de vida.
O fato é que, nas grandes business schools de hoje, não se ensina ou se
pesquisa de fato uma “ciência” econômica, no sentido lato desta expressão,
que implica uma elaboração teórica capaz de conduzir a uma totalidade de
determinações e de relações diversas. Se tomarmos como medida teórica o
método marxiano de reprodução do “real” e do “concreto”, diremos que o
ensino do mainstream acadêmico contempla conceitos relativos a
determinações práticas, mas di�cilmente às “determinações abstratas que
conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento”. Em outras
palavras, no método marxiano, economia não é a ciência das relações
técnicas de produção, nem das escolhas individuais sob a égide de um
mercado, e sim do modo pelo qual os agentes produzem e reproduzem tanto
esses objetos quanto as próprias relações no interior de classes sociais. Em
termos mais diretos: não há economia como uma relação autônoma entre
objetos (a troca de uma mercadoria por outra), mas como uma relação entre
sujeitos vivos e concretos, suscetível de levar à compreensão de outras
relações sociais.
Essa ciência não é incompatível com a matemática, que pode assegurar
em muitos aspectos o rigor da argumentação. Mas também existe o abuso da
formalização matemática, que dá aparências de cienti�cidade à
argumentação tecnicista da economia. Por exemplo, ao se estudar as
expectativas dos agentes econômicos frente aos valores futuros das variáveis,
os modelos matemáticos comparecem como indispensáveis. Mas aí vale
recordar Foucault quando diz que “o recurso às matemáticas, sob uma forma
ou outra, foi sempre a maneira mais simples de emprestar ao saber positivo
um estilo, uma forma, uma justi�cação cientí�ca”[32].
De fato, no “mundo da vida” humano, onde as expectativas dos agentes
alteram-se por mudanças conjunturais na política econômica, as
formalizações não são realmente constitutivas do saber econômico por
recalcarem a reprodução da complexidade do concreto, que é a totalidade
das relações de produção. O único concreto visado é a realidade parcelar do
mercado, donde a produção de métodos econométricos, portanto, modelos
de ciência matemática, aplicáveis à administração do �uxo de capitais, aos
negócios e à incerteza do mercado, dedutíveis de um modelo
macroeconômico padronizado, conhecido em inglês como DSGE (em
português: Equilíbrio Dinâmico Geral Estocástico). Tendo como pano de
fundo o fetiche matemático, pode-se assim resumir essa teoria: os mercados
estão sempre certos. Este é o solo moral da “nova economia”, onde não há
propriamente saber cientí�co, e sim uma combinação prática de tecnologias
da informação com modelos matemáticos criados para aprimorar o
funcionamento dos mercados �nanceiros.
Essas fórmulas internacionalizam-se em termos acadêmicos e
institucionais. Por exemplo, o modelo estatístico usado pelo Banco Central
do Brasil com o objetivo de avaliar as consequências de um choque externo
para o ritmo de crescimento da economia nacional é uma adaptação de
outros utilizados pelo Banco Central Europeu e pelo Federal Reserve dos
Estados Unidos[33]. Trata-se de uma modelagem estatística, um mero recurso
empírico, que funciona na prática sem quaisquer necessidades de
legitimação cientí�ca[34]. Apesar de sua eventual complexidade de cálculo,
um construto dessa natureza não con�gura uma teoria, e sim uma
ferramenta para a execução precisa de um negócio. A palavra “teoria” pode
aí comparecer – p. ex., a Teoria das Metas de In�ação, da qual um governo
calcula a taxa de juros – não ligada à determinação categorial de um campo
de saber (p. ex., na física, uma invariância como a atração gravitacional
presente na relação entre uma estrela e seu planeta), nem como uma
formulação paradigmática a respeito da realidade que a ciência observa, mas
como a resultante abstrata de uma formulação política.
Se recorrermos aos eixos de pesquisa mais acima arrolados, poderemos
dizer que a metodologia prevalece sobre os outros e que, a uma eventual
pergunta de cunho axiológico (portanto, sobre valores), revela-se atual
como resposta a conhecida frase do presidente norte-americano Calvin
Coolidge (1872-1933): “O negócio da América são os negócios”, embora isto
se re�ra ao capitalismo produtivista e não ao que ocorre com a
�nanceirização atual. O que se busca frisar aqui é que, de um modo geral, a
promiscuidade entre o mercado e o poder de Estado prescinde de qualquer
princípio epistemológico ou axiológico para o campo da economia, logo, de
qualquer fundamentação teórica.
Curiosamente, quando a fundamentação dá algum sinal de existência,
sua origemé europeia. Um bom exemplo se encontra no liberalismo
econômico após a crise de 1970, que teve como apóstolos dois detentores do
Prêmio Nobel de Economia: Friedrich Hayek, oriundo da escola austríaca de
economia, e o norte-americano Milton Friedman, um dos principais nomes
da escola monetarista. Famoso por sua in�uência na recuperação de
economias estagnadas, a exemplo da Inglaterra na era Margaret atcher,
Friedman foi importante colaborador de governos republicanos nos Estados
Unidos (Nixon e Reagan), além de conselheiro do ditador chileno Augusto
Pinochet desde 1975. Apesar de ser historicamente citado como um dos
maiores economistas do século passado, ele é tido como inferior a Hayek no
que se refere à fundamentação teórica do neoliberalismo.
De fato, deve-se a Hayek a maior parte das proposições – acolhidas por
diferentes governos na década de 1980 – no sentido do encolhimento do
Estado no campo das políticas públicas para o bem-estar social (concepção
do “Estado Mínimo” ou “Estado Guardião”), da neutralidade do Estado em
face da desigualdade social, do �m dos subsídios destinados a atenuar as
taxas de desemprego, da desregulamentação dos mercados e, de um modo
geral, da condução de todas as atividades econômicas pela dita “mão
invisível” do mercado. Os argumentos político-econômicos de Friedman
encontram quase sempre um respaldo moral no discurso teórico de Hayek.
O que tem isso a ver com a comunicação?
Para começar, capitalismo �nanceiro e comunicação constituem hoje, no
mundo globalizado, um par indissolúvel. O capitalismo contemporâneo é ao
mesmo tempo �nanceiro e midiático: �nanceirização e mídia são as duas
faces de uma moeda chamada sociedade avançada, essa mesma a que se vem
apondo o pre�xo “pós” (pós-industrialismo, pós-modernidade etc.).
Há quem pre�ra contornar as expressões “�nanceirização” e “capitalismo
�nanceiro”, indicando a categoria de capital �ctício (trabalhada por Marx no
terceiro volume de O capital) como chave para a compreensão correta do
fenômeno. A título de clari�cação, vale lembrar que o capital comporta
frações distintas, que oscilam em termos de correlação de forças. Capital
produtivo, por exemplo, é aquela fração que gera riquezas palpáveis ou
tangíveis, movimentando a cadeia da produção e, assim, o Produto Interno
Bruto (PIB) nacional. Outra é a do capital �nanceiro, que consiste na troca
(não produtiva) à base de títulos de crédito (fenômeno conhecido como
“securitização”). Este capital de empréstimo, que se amplia com uma parte
do lucro obtido pela fração produtiva, foi chamado por Marx de “�ctício”,
porque é de fato uma �cção, a imagem de um capital não efetivamente
realizado.
Com uma argumentação estritamente econômica, Carcanholo explica
que a mais-valia extraída da força de trabalho pelo capital produtivo decorre
de um valor real (produzido por um capital de fato existente), ao passo que,
invertendo-se a lógica produção-valor e pondo-se um rendimento periódico
qualquer (títulos de crédito, ações etc.) como gerador de massa monetária,
abre-se espaço para um tipo de capital que não entra no processo produtivo
e é incapaz, por si mesmo, de produzir mais-valia: o capital �ctício[35].
Assim, atendo-se a Marx, mantém-se exclusivamente neste âmbito
terminológico.
Não há dúvida de que, numa modelagem lógico-econômica, essa
argumentação é procedente porque revela o que pode ser conotado como
“disfuncionalidade” do sistema capitalista. Mas o aprofundamento do
fenômeno – o seu maior grau de abstração em face do produtivismo clássico
– inclui dimensões não estritamente econômicas (portanto, algo além do
mero “�ctício” no capital) que concorrem para a de�nição de um novo
modo de existência humana, correspondente a um novo modo de ser da
riqueza.
É isso o que pode ser chamado de “�nanceirização” e o que requer o
concurso historicamente inédito da comunicação e da informação. Se estas
antes, sob a égide da sociedade produtivista, podiam ser analisadas como
“despesa extra” do capital, hoje elas têm lugar de destaque no processo de
unidade do conjunto, ao mesmo tempo como base material (a tecnologia
eletrônica das telecomunicações e da mídia, que contribui para a aceleração
do tempo de rotação do capital) e como biombo ideológico da
�nanceirização, isto é, de um novo modo de ser da riqueza.
Ficcionalizando ou virtualizando o real em função da atualidade
histórica do capital, o par comunicação/informação contribui, portanto,
para “naturalizar” o mercado �nanceiro como base da aceleração do
desenvolvimento econômico e como fonte da ideologia capitalista do bem-
estar humano na atual etapa da penetração da lei estrutural do valor (o
capital) em todos os espaços existenciais dos indivíduos. E assim representa
um aspecto da luta de classes em que a modernização neoliberal acarreta o
desmantelamento do Estado de bem-estar social e da tradicional
organização das forças produtivas em favor da precarização do trabalho,
com vistas ao aumento de rendimentos do capital �ctício.
Evidentemente, não se está falando da teoria do dinheiro ou das
operações �nanceiras como algo de novo na lógica do capital. Elas existem
desde sempre para garantir a emissão, a coleta, a circulação e as trocas dos
diferentes meios de pagamento e de �nanciamento. Com efeito, os agentes
econômicos não podem prescindir de meios de pagamento e�cazes (a
moeda) para o incremento das trocas, nem da busca de uma utilização
rentável da poupança, nem do atendimento às exigências de �nanciamento.
O que se está realmente falando aqui diz respeito ao deslocamento, pelas
economias nucleares do capitalismo, do peso hegemônico do setor
industrial para o das chamadas “altas �nanças”, o que implica um novo
regime de acumulação caracterizado pela �exibilidade, que se estende da
esfera da produção até os mercados de trabalho e de consumo. Incrementa-
se a valorização do capital pela �exibilidade, portanto, pela velocidade
circulatória dos processos em todas as instâncias do socius, agora imerso em
�uxos, conexões e redes.
Na realidade, Marx já faz, na segunda metade do século XIX e bem antes
de O capital, uma clara distinção entre as formas de presença do dinheiro no
capital: “O dinheiro como capital é diferente do dinheiro como dinheiro. A
determinação nova tem de ser desenvolvida. Por outro lado, o capital
enquanto dinheiro parece a regressão do capital a uma forma inferior. Mas é
somente o seu pôr em uma particularidade que já existia antes dele como
não capital e constitui um de seus pressupostos. O dinheiro reaparece
novamente em todas as relações posteriores; mas aí já não funciona mais
como simples dinheiro [...]. Trata-se aqui da determinação universal do
capital”[36].
Isso já existia como tendência desde �ns do século XIX ou, pelo menos,
como uma contraparte oferecida pelo capital �nanceiro aos grandes
conglomerados industriais. Ainda na primeira década do século XX, Georg
Simmel assinalava em estudo famoso (A �loso�a do dinheiro) a centralidade
exercida pelo dinheiro na vida social moderna, com consequências inclusive
sobre a aceleração do tempo, o que viria evidenciar-se no caso da
conjugação contemporânea das �nanças com a comunicação eletrônica.
Aliás, em seu também famoso e posterior estudo sobre a formação da
economia capitalista de mercado, Polanyi chama a atenção para a
inexistência de qualquer pesquisa mais ampla sobre o que chama de
“instituição misteriosa”, isto é, o sistema bancário no século XIX,
ressalvando a sua importância: “A haute �nance, uma instituição sui generis,
peculiar ao último terço do século XIX e ao primeiro terço do século XX,
funcionou nesse período como o elo principal entre a organização política e
a econômica do mundo. Ela forneceu os instrumentos para um sistema
internacional de paz, que foi elaborado com a ajuda das potências, mas que
essas mesmas potências não poderiam ter estabelecido ou mantido”[37].
Já, então, as altas �nanças exibiam a sua independência em face de
governos particulares e, mesmo não sendo paci�stas, foram capazes de
evitar a guerra generalizadaentre as grandes potências quando isso
prejudicaria os seus negócios. Mas só depois dos anos 60 do século passado,
em meio à crise das velhas bases liberais da hegemonia norte-americana, é
que começaram a ruir os sistemas de regulação nacional dos capitais e a
emergir os sistemas cambiais �exíveis responsáveis pela globalização
�nanceira, o novo modo de ser da riqueza. O que se tem chamado de
globalização nada tem a ver com diversidade humana, e sim com a
reorganização capitalista do mundo em função dos interesses �nanceiros.
Globalização e �nanças são a mesma coisa.
No âmbito geral do neoliberalismo econômico (teorizado por Hayek),
esse modo de ser é moldado por uma ideologia privatista,
desregulamentadora frente ao Estado. Pouco importa que o espírito da
desregulamentação tenha sofrido um forte abalo desde o �m da primeira
década deste milênio em consequência da grande crise �nanceira e dos
percalços atravessados pelo centro capitalista mundial. A ideologia mantém-
se �rme, sempre elegendo como maiores valores sociais a e�cácia produtiva
e o sucesso pessoal, já característicos da moralidade do capital produtivista,
mas hoje intensi�cados pelas formas socionarcisistas de produção das
subjetividades. Essa nova forma econômica opõe o regime de acumulação
�exível (que incrementa, pela velocidade dos processos de circulação das
mercadorias e das �nanças, a valorização do capital tanto na esfera da
produção quanto do consumo) às formas centralizadas, responsáveis pela
sobreacumulação capitalista que levou à crise dos anos de 1970.
No plano da consciência individual, é também uma ideologia de
�exibilização, de abolição de qualquer suposta “rigidez” psíquica, logo, não é
uma ideologia simplesmente “conservadora” (hoje, é lugar comum pensar
assim de economistas da linhagem neoliberal, como Hayek ou Friedman),
uma vez que há nela fortes elementos modernizadores. Essa ideologia é
posta em primeiro plano no imaginário tecnológico e público da riqueza
social, ao lado de sua realidade como mudança de natureza do sistema
monetário-�nanceiro e modus operandi da corporação industrial. Conforme
já indicamos, não é tão nova como se pode pensar, pois desde �ns do século
XIX acompanha a passagem da imagem capitalista de riqueza como posse
de terras e de equipamentos à simbolização da moeda �duciária e dos ativos
�nanceiros.
Mas são grandes as diferenças entre agora e o passado, como assinala
Braga: “Embora os fenômenos em curso assemelhem-se às expansões
�nanceiras que já ocorreram na história do capitalismo, apegar-se à
abordagem de que se trata de uma mera repetição do ‘velho’ capital
�nanceiro é algo teoricamente incorreto, já que o passado não determina em
termos absolutos nem o presente, nem o futuro”[38]. Esta advertência chama a
atenção para o fato de que, embora a lógica �nanceira (do capital bancário
às operações de gastos públicos) tenha sido sempre intrínseca à
con�guração do sistema capitalista, há diferenças marcantes na forma como
se apresenta contemporaneamente o capital �nanceiro.
Essa nova realidade é detectada inclusive fora dos muros acadêmicos, no
âmbito da própria mídia contemporânea. Um arguto cronista do cotidiano
é, assim, capaz de concluir que “a narrativa acabou, a riqueza se acumula
entre poucos e bene�cia ainda menos, e o dinheiro, desobrigado de fazer
sentido e de seguir qualquer espécie de roteiro, só produz monstros [...]. A
grande narrativa do capitalismo foi excitante enquanto durou. Revolucionou
a vida humana e, junto com suas barbaridades, fez coisas admiráveis [...].
Mas nem Marx previu que seu �m seria este: no meio de um mundo em
decomposição, o dinheiro falando sozinho”[39].
De fato, antes da década de 70 do século passado, não havia o que hoje se
chama de �nanceirização, nem crise �nanceira, que decorre da hipertro�a
do poder dos bancos sobre a vida social. Nessa nova realidade, a riqueza
acumulada assume a forma exclusiva de dinheiro, perdendo de vista a
produção e a expansão do corpo social, embora seja possível vislumbrar
posicionamentos ideológicos diferentes entre americanos/ingleses
(plenamente �nancistas) e alemães/chineses (mais industrialistas, apesar da
dependência �nanceira dos Estados Unidos para com a China). De um
modo geral, porém, a narrativa prometeica do capitalismo (expressa na
épica dos tycoons ou construtores de impérios industriais) abandona a
mitologia do ilimitado progresso universal – na verdade, o progresso
de�nido em termos quantitativos, que fetichiza o crescimento do Produto
Interno Bruto – e transforma-se no monólogo da circulação monetária
secundado pela informação. Diferentemente do produtivismo clássico, a
�nanceirização, em sua enorme abstração diante da realidade sócio-
histórica, não tem compromissos com o Estado-nação nem com a
concretude do mundo.
O dinheiro potencializa a abstração nas relações sociais e intersubjetivas
(daí, as metáforas sociológicas da “multidão solitária”, da “máscara do
anonimato”, da “modernidade líquida” ou as �losó�cas do tipo “mundo
transformado em imagens” etc.). É, aliás, a nova forma do dinheiro que se
encontra por trás da conhecida especulação �losó�ca de Deleuze sobre a
“sociedade de controle” como substituta contemporânea da “sociedade de
vigilância”, caracterizada pelo con�namento dos indivíduos em formas
arquitetônicas e largamente analisada por Foucault. Nesta última,
correspondente às formas tradicionais de acumulação do capital, o dinheiro
apresenta-se como realidade física, enquanto na sociedade de controle a sua
realidade é imaterial, é principalmente inscrição numérica em registros
contábeis. Sob a regência das modalizações �nanceiras do dinheiro, os
agentes sociais são mais permeáveis ao domínio das abstratas interpelações
ideológicas da informação.
Hoje, em pleno segundo milênio e em meio à intensi�cação do
capitalismo global, desvela-se plenamente a natureza �nanceira da
informação. De fato, os acordos de interconexão da internet não originam
apenas um trá�co de mensagens, mas principalmente de dinheiro. A internet
é, na verdade, um espaço com duas pistas, uma pública e a outra privada (a
intranet), cujo volume de trá�co, várias vezes superior ao público, é
praticamente desconhecido, exceto por especialistas e economistas.
Não é de se estranhar, portanto, a analogia entre informação
(quantitativo-estatística) e moeda, a exemplo da feita por Wilden: “Fruto da
guerra e da economia da e�ciência, a abordagem métrica da Teoria da
Informação Quantitativo-estatística trata a informação do mesmo modo
como o dinheiro trata hoje os bens. No passado, a mudança das relações
sociais permitiu que determinado bem (p. ex., o ouro) se tornasse o
‘equivalente geral da troca’ – unidade de medida de todos os outros bens. Os
bens tornaram-se mercadorias. Toda a miríade de valores de uso
pluridimensionais e quantitativos de várias entidades e relações pôde,
consequentemente, ser reduzida, como se tornava necessário, a um único
critério unidimensional: o valor de troca econômico (ou monetário). A
Teoria Quantitativa da Informação obedece ao mesmo tipo de regras de
transformação. Embora, por vezes, ela seja erradamente considerada como
parte de uma linguagem, a informação da Teoria Quantitativa carece da
pluridimensionalidade da linguagem (e de outros sistemas de comunicação).
Mais do que uma linguagem, pode falar-se de um tipo de moeda
corrente”[40].
Só que, ao mesmo tempo, o sistema econômico precisa de especi�cações
concretas para as operações de compra e de venda, o que traz à baila a
temática comunitarista, novo modo de a�rmar não apenas a concretude do
local particular, mas também o questionamento prático da hipermediação,
por parte dos distribuidores, entre produtores e consumidores. O poder dos
circuitos de distribuição tem também as suas origens nos anos de 1970
quando essa hipermediação se impõe por oferecer com maior e�cácia uma
enorme diversidade dos produtos aos consumidores, açambarcando uma
parte importante do valor da produção e estimulando os investimentos
publicitários.
Mas independentementedessas datas, a característica intrínseca do
sistema �nanceiro dá margem às interpretações sobre a presença do capital
em forma de dinheiro nos primórdios do capitalismo, do qual se deduz a
presença primitiva de uma ideologia (desenvolvida posteriormente) de
valorização da circulação da riqueza mobiliária. É certo que o padrão
sistêmico da �nanceirização recrudesce na segunda metade do século XX
(depois dos anos de 1960, quando se torna muito claro que o principal
“negócio” dos Estados Unidos são as �nanças), mas as suas origens são
ideologicamente visíveis em �ns do século XIX, vinculadas às abordagens
sociológicas sobre as transformações comunitárias e as novas composições
dos públicos urbanos.
Daí decorrem as incipientes preocupações práticas e teóricas com a
questão comunicacional, uma vez que a circulação de informações é
imprescindível no espaço urbano regido por mercado e por democracia
representativa. Noutro contexto, mais recente, em que a dimensão
informativa assume o sentido de avanço tecnológico, registram-se
argumentos tendentes a explicar a profunda crise �nanceira sistêmica do
centro capitalista como “crise de informação”, isto é, decréscimo de
produtividade por estagnação em tecnologia e inovação.
Nos Estados Unidos, a instituição acadêmica mais signi�cativa da
atmosfera intelectual de cuidado com comunicação/informação é
certamente a Escola Sociológica de Chicago, caudatária do pragmatismo de
�lósofos americanos como William James, John Dewey, George H. Mead e
Charles Sanders Peirce, mas também de sociólogos europeus como Gabriel
Tarde e Georg Simmel, que propunham abordagens do social distintas das
perspectivas durkheimiana, weberianas e marxianas. A partir de 1910 (data
da tradução de Simmel para o inglês por Robert Park, mas também da
criação do Curso de Jornalismo em Columbia), a Escola de Chicago torna-
se um destacado centro de estudos empíricos e microssociológicos (análises
de situações particulares ou locais) sobre os fenômenos da comunicação,
privilegiando os temas da “comunidade humana”, da cidade como
“laboratório social” e abrindo-se metodologicamente para a pluralidade
disciplinar no campo das ciências sociais.
Mas essa mesma atmosfera existia, em datas coincidentes, na Europa,
onde um sociólogo da magnitude de Max Weber faz do jornalismo – no
Primeiro Congresso da Associação Alemã de Sociologia, em 1910 – “o
primeiro tema adequado para um estudo genuinamente cientí�co”, uma vez
que entendia os jornais como algo mais do que “simplesmente empresas
capitalistas com a ânsia do lucro, mas também organizações políticas que
funcionam como clubes políticos”[41].
Pesquisadores americanos como o sociólogo Charles Cooley, o �lósofo e
pedagogo John Dewey e o jornalista-sociólogo Robert Park (este último
bastante in�uenciado pelos europeus Gabriel Tarde e Georg Simmel),
preocuparam-se inicialmente com o quadro social da transmissão
intersubjetiva de sentido e depois passaram a atribuir importância
acadêmica à mídia emergente. Décadas depois, William omas e Florian
Zananiecki tentaram num trabalho pioneiro (e Polish Peasant, 1927) usar
a experiência subjetiva do público (por meio de análises de cartas a jornais,
autobiogra�as etc.) para explicar processos sociais. Um pouco mais tarde,
Herbert Blumer, nome de destaque nessa escola, procurou mostrar como o
sentido de práticas sociais emergia da comunicação interpessoal.
A comunicação seria em princípio uma experiência antropológica
fundamental (já que não há vida social sem comunicação), em seguida um
saber sobre essa experiência e, �nalmente, uma realidade industrial já
concretizada por um formidável aparato tecnológico sustentado pelo
mercado. Nos Estados Unidos, desde a época posterior à Segunda Guerra
Mundial, esse aparato é descrito como “comunicações de massa” que,
provavelmente devido às in�uências tanto da propaganda nazista quanto da
propaganda de mobilização norte-americana durante o con�ito, faziam crer
que as “massas” seriam conduzidas pela retórica competente dos emissores.
Assim, da força de espelhamento da realidade tecnocultural norte-
americana sobre o saber acadêmico da comunicação, decorre o duradouro
paradigma dos efeitos.
O que no fundo se deseja mesmo conhecer é a extensão do poder
discursivo da mídia sobre as populações. Na verdade, isso preexistia à
Segunda Guerra, embora em escala reduzida: desde a primeira década do
século XX, as questões a que buscava responder o estudioso dos fenômenos
comunicacionais, originavam-se primordialmente em empresas de mídia –
organizações privadas, portanto –, tais como jornais, agências de
publicidade, estrategistas de necessidades e institutos de pesquisa em
consumo.
Em outras palavras, enquanto as demandas de conhecimento
sociológico, antropológico e psicológico provinham originariamente de
organismos ligados direta ou indiretamente ao Estado (órgãos de
planejamento, de administração de territórios, de controle de
comportamentos e atitudes etc.), ou então do próprio campo acadêmico, o
saber comunicacional sempre foi priorizado pelo mercado. Registram-se
exceções, naturalmente, a exemplo dos estudos e avaliações da propaganda
estrangeira no território norte-americano durante a Segunda Grande
Guerra, porém, de um modo geral, é o mercado que preside às demandas de
conhecimento prático.
No interior da mass communication research, esse conhecimento, tanto
empírico-funcionalista quanto às vezes empírico-crítico (ou seja, no evento
da crítica, fundamentado em pesquisas e análises concretas, mas com um
fundo de descon�ança cultural para com os meios de comunicação),
provém de pesquisadores e pensadores sociais europeus (Paul Lazarsfeld,
Bernard Berelson e outros) que emigraram para os Estados Unidos na
primeira metade do século passado.
Centrando o foco em Lazarsfeld no aspecto da empiria, Paiva põe em
destaque o primeiro trabalho realizado na Europa sobre as condições sociais
e psíquicas do desemprego, uma pesquisa empírica conduzida por três
pesquisadores austríacos (Marie Jahoda, Paul Lazarsfeld e Hans Zeisel) que,
durante quatro meses desenvolveram uma observação participante na
pequena cidade de Marienthal, próxima a Viena. Aí tem origem o
livro/relatório Os desempregados de Marienthal (1933)[42], que assinala a
transferência no mesmo ano de Paul Lazarsfeld (físico de formação e
socialista, casado com Jahoda e �nalmente um dos fundadores da escola da
communication research), para os Estados Unidos, graças a uma bolsa de
estudos da Fundação Rockefeller.
A boa receptividade dessa pesquisa empírica nos Estados Unidos marca
os novos rumos de Lazarsfeld como pesquisador vinculado principalmente
às pesquisas de governo e de empresas. Ele passa a dirigir o Escritório de
Pesquisas Radiofônicas de Princeton. Neste cargo, interage intensamente com
diversos membros do Instituto de Pesquisas Sociais (Escola de Frankfurt),
que migram da Europa para os Estados Unidos, fugindo do nazismo. Como
Paiva assinala, são célebres as discussões sobre método entre Lazarsfeld e
seu subordinado, eodor Adorno, que terminaram em con�ito. O caráter
con�itivo da relação pode ser exempli�cado pela passagem de uma das
muitas correspondências em que Lazarsfeld critica duramente “as técnicas
de veri�cação” de Adorno: “Seu texto permite suspeitar que você nem
sequer saiba como se deve fazer a veri�cação empírica de uma hipótese”[43].
Especi�camente sobre a pesquisa empírica e a Escola de Frankfurt, há
uma passagem em que Jay esclarece detidamente a questão, lembrando que
o instituto, antes de migrar da Alemanha para os Estados Unidos, sempre
lançou mão da pesquisa empírica, muito mais com objetivos de enriquecer,
modi�car e respaldar suas hipóteses especulativas do que com propósitos de
veri�cação. Os membros admitiam trabalhar com técnicas primitivas, mas já
reconheciam a necessidade de aprimoramento do método[44]. O expoente
desse grupo é Adorno, conhecido pela aversão à pesquisa empírica, por
considerar que esta reduz o objeto às suas técnicas. Em contrapartida,
Lazarsfeld se alinhajunto aos vários defensores das técnicas estatísticas
norte-americanas, elegendo a análise empírica dos fatos como o fórum
último das investigações.
Ainda que o empenho da Escola de Frankfurt fosse o de demonstrar que
ambos os tipos de pesquisas (especulativas e empíricas) poderiam ser
executados concomitantemente, predominou a tradição empírica embutida
no pragmatismo norte-americano, por sua maior adequação gerencial às
pesquisas das agências de publicidade, das corporações de mídia e das
agências governamentais, militares na maioria. Os conceitos da mass
communication research procedem de estudos empíricos, tanto sociológicos
como psicológicos, realizados por pioneiros de renome como Harold
Lasswell (que inaugura essa linha de estudos com o livro Propaganda
Techniques in the World War), Bernard Berelson, Robert K. Merton, Wilbur
Schramm, J. Klapper, M. Janowitz, C.I. Hovland, Charles Osgood, Elihu
Katz e, claro, Lazarsfeld. Como diz Wolton, “alguns de vocação industrial,
outros acadêmicos, forneceram, entre 1950 e 1965, quadros analíticos
teóricos ainda hoje bastante valiosos sobre os efeitos positivos e negativos
das mídias, a construção da imagem, as teorias da recepção, do two step
�ow, do gatekeeper, da “atenção seletiva”, da “teoria de usos e grati�cações”,
da “espiral do silêncio”[45].
Tais conceitos passam ao largo da questão epistemológica da
comunicação, mas também do tom �losó�co da crítica cultural,
característico da Escola de Frankfurt. Em termos esquemáticos, a
preferência americana não é Adorno, mas Lazarsfeld. A tônica recai sobre os
achados empíricos, que partem de um viés acadêmico (sociológico ou
psicológico, basicamente) já socialmente legitimado sobre o processo
comunicativo visado. Esse processo se apoia no patamar informacional, um
modelo interativo em que dois polos (emissor e receptor) trocam mensagens
com um pano de fundo necessário, o canal ou medium. O modelo auferia
prestígio acadêmico do conceito de cálculo informacional apresentado no
�nal dos anos de 1940 pelos matemáticos Claude Shannon e Warren Weaver.
Esse modelo linear, típico do positivismo-funcionalista, foi incorporado
pelos pesquisadores. Nele, o sujeito da cognição parte de uma constante, que
é o mundo externo e natural, ou seja, um objeto a ser conhecido e
controlado por pesquisas de opinião, panels, surveys, análises de conteúdo e
avaliação de efeitos. Provêm da sociologia, portanto, os conceitos de base
dos estudos de mídia nos Estados Unidos.
De fato, toda disciplina intelectual se apoia numa base conceitual relativa
a um domínio objetivo, sobre o qual incidem as metodologias de pesquisa e
os experimentos. A esses conceitos de base, Nisbet chama de “ideias
elementares”, que obedeceriam pelo menos a quatro critérios de seleção:
primeiramente, devem ser ideias gerais (�gurar nas obras de um número
considerável de grandes pensadores); depois, serem duráveis (aplicáveis
tanto ao passado quanto ao presente); em seguida, características
(diferenciadoras da disciplina) e, �nalmente, ideias no sentido pleno do
termo, isto é, um quadro analítico mais estável do que meras “in�uências” e
mais amplo do que ferramentas metodológicas, por mais formalizadas
(matematicamente) que estas possam ser.
Para Nisbet, são cinco as ideias elementares da sociologia: comunidade,
autoridade, status, sagrado e alienação. Cada uma delas opõe-se a um
conceito antitético (comunidade-sociedade, status-classe, autoridade-poder,
sagrado-secular, alienação-progresso), que cienti�camente permite a
formulação de hipóteses validáveis ou não e politicamente resume o con�ito
entre tradição e Modernidade, constituindo a série teórica da disciplina
sociológica.
A sociologia surge, assim, de um momento re�exivo importante – o
contexto ideológico do liberalismo (autonomia do indivíduo e a�rmação de
seus direitos), radicalismo (redenção das massas pelo poder político) e
conservadorismo (defesa dos valores tradicionais e oposição aos iluministas)
– que marca a reorientação do pensamento social. Em resumo, trata-se de
um pano de fundo em que se inscrevem os problemas sociais advindos da
Revolução Francesa. Mais especi�camente, trata-se da passagem do
racionalismo individualista dos séculos XVII e XVIII (com predomínio da
imobilidade metafísica da razão no sujeito da consciência) à visão de mundo
sociopsicológica, em que ganhava primeiro plano o contexto social, do qual
decorrem os conceitos de classe social, parentesco, comunidade etc.[46]
A tônica comunicacional
Pode-se a�rmar de um modo muito geral que a tônica dos estudos de
mídia norte-americanos é o conceito antitético comunidade-sociedade.
Desde a Escola de Chicago até a corrente da mass communication research,
as preocupações teóricas sempre enfatizaram as transformações da religião,
do trabalho, da família e da cultura – instâncias em que predominam as
relações primárias, cara a cara – por efeito de uma urbanização societária
avassaladora, em que desempenhavam um papel cada vez maior as
tecnologias da informação e da comunicação emergentes. A perspectiva dos
efeitos é, em termos esquemáticos, a busca de instrumentos de avaliação das
mudanças operadas pela mídia sobre os laços de coesão tradicionais.
Em toda a sua evolução ao longo do século passado, essa perspectiva
sempre buscou a identi�cação das condições estruturais e dos mecanismos
cognitivos capazes de explicar as circunstâncias em que as mensagens
midiáticas podem afetar as opiniões e as crenças do público amplo, difuso e
heterogêneo. As posições acadêmicas oscilam entre a suposição de efeitos
fortes e a de efeitos fracos ou mínimos, ambas embasadas em teorias que
apelam para metáforas como recursos cognitivos[47].
Ao primeiro caso (1930-1950), geralmente atribuído a Lasswell,
correspondem as teorias da “bala mágica” e da “agulha hipodérmica” (duas
diferentes metáforas, mas com o mesmo sentido), segundo as quais seriam
imediatos os efeitos persuasivos de uma mensagem que, à maneira de uma
bala ou de uma agulha, atinge o seu “alvo”, isto é, a massa entendida como
um aglomerado heterogêneo de indivíduos anônimos e desenraizados de
seus contextos culturais. Na verdade, Lasswell aproveita da prática
jornalística, a fórmula (retórica) de elaboração do lead da notícia (quem, o
que, como, quando, onde e porque) para de�nir o ato de comunicação por
uma fórmula behaviorista (Quem? Diz o quê? Em que canal? A quem? Com
que efeito?) e transformá-la em método de pesquisa.
O segundo caso (1950, 1960) tem como responsáveis Lazarsfeld e seu
grupo de pesquisadores da Universidade de Columbia, que rejeitavam a
hipótese de um grande poder dos meios de comunicação sobre o público[48].
Para contestar o conceito de massa, que lastreava a perspectiva dos efeitos
fortes, Lazarsfeld e seu aluno Katz, inspiraram-se tanto nos trabalhos de
Kurt Lewin (que estudava as reações individuais às mensagens no interior de
grupos primários) quanto nas ideias do sociólogo Edward Shils, in�uente
intelectual da Universidade de Chicago. Com trânsito em várias áreas do
saber, Shils tinha o reconhecimento de Talcott Parsons, o mais conhecido
sociólogo norte-americano de todos os tempos, discípulo de Max Weber e
seu introdutor na paisagem acadêmica norte-americana. Shils assinou com
Parsons uma “Teoria da Ação Social” no começo da década de 1950.
Em Shils, o conceito parsoniano de “subsistemas de ação social”
converte-se no conceito de “pequenos grupos sociais”, próximo aos “grupos
primários” de Lewin, o que permite o deslocamento da ideia europeia e
elitista de massa (originada no pensamento de Ortega y Gasset) para o de
grupos diferenciados. Daí parte o modelo conhecido como two steps �ow of
communication, de Lazarsfeld e Katz. Contornando a linearidade da relação
entre mídia e público, eles adotam a perspectiva de dois processos distintos
de comunicação (midiática e interpessoal) e introduzem o conceito de
“líderes de opinião”, que é uma consequência lógica do peso maior atribuído
pelo modelo à in�uência dos pequenos grupos sobre os indivíduos. ePeople’s Choice, famoso estudo sobre a campanha presidencial norte-
americana de 1940, é o estudo seminal dessa linha analítica[49]. A propósito
da decisão individual de escolha no processo eleitoral, chega-se aí à
conclusão de que uma parcela reduzida de indivíduos, os líderes de opinião,
teria mais in�uência sobre os votantes do que os meios de comunicação.
Essa virada conceitual enseja técnicas de pesquisa que se revelam
importantes para as grandes empresas de mídia, não apenas por motivos
ideológicos (elas permitiam afastar a suspeita política de manipulação das
massas pela mídia), mas também pelo viés sociométrico de mensuração das
escolhas individuais. Reitera-se aqui o paralelo que �zemos entre a empiria
econômica e a comunicacional, acentuando a prevalência da metodologia
sobre quaisquer outros momentos da pesquisa cientí�ca, tornando a ciência
mais administrativa do que crítica. Econometria e sociometria são
instrumentos de redução da complexidade histórica das relações sociais a
números, que evacuam o fenômeno político e abrem caminho para a
administração da sociedade pelo mercado.
Nesse quadro institucional se apoia a versão hegemônica da história da
pesquisa em comunicação em sentido estrito, vista pelo pesquisador James
Carey como uma tentativa de “focar, justi�car e legitimar uma invenção do
século XX, a mídia de massa, e para fornecer status intelectual e direção ao
ensino pro�ssional e à pesquisa relacionados a essa mesma instituição. Mas
não é uma história inocente, porque foi inventada com um propósito
político: a intenção de obter lealdades, resolver disputas, guiar políticas
públicas, confundir a oposição e legitimar instituições; resumindo, a história
que surgiu é um episódio menor das batalhas sociais, políticas e ideológicas
do século XX”[50].
Foi assim que, apesar das muitas críticas (generalização excessiva dos
resultados, supressão deliberada de dados etc.), mas muito provavelmente
em virtude da a�nidade estrutural com o espírito do mercado, o modelo de
Lazarsfeld impôs-se como hegemônico no campo acadêmico tanto norte-
americano quanto europeu. Não é nem de leve contrariado pelo conceito de
gatekeeper (porteiro), introduzido por David Manning White em 1950, que
entendia a seleção de notícias como um processo pessoal por parte do
jornalista, de�nido como esse “porteiro” do �uxo informacional.
Noutro contexto, o conceito de mediação – de origem hegeliana,
introduzido nas análises culturalistas da mídia por críticos ingleses como
Raymond Williams e difundido na América do Sul por Jesus-Martin
Barbero com a perspectiva teórica de uma recepção ativa por parte de
grupos diferenciados – dá margem a expectativas quanto a um bom uso
social da mídia (o uso praxiológico, em que a mídia se tornaria instrumento
do poder popular). Sociologicamente, é tributário da modelagem norte-
americana, pois funde o conceito parsoniano de subsistemas de ação social
com o de pequenos grupos sociais (Shils) num patamar interpretativo
análogo ao dos “líderes de opinião”, de Lazarsfeld e Katz. Numa outra
direção teórica, o socio�lósofo Jürgen Habermas põe o conceito de
mediação a serviço da utopia de um uso racionalista e democrático da ação
comunicativa fora do controle capitalista da esfera pública.
No limite, essas concepções (com exceção de Habermas) permanecem
no interior do enquadramento teórico atinente à escola sociológica norte-
americana. No tocante a Lazarsfeld, não se trata, entretanto, de um modelo
homogêneo, já que ao longo dos tempos tem comportado uma tipologia
diferenciada de abordagens e temas. Algo diferenciado aparece, por
exemplo, em 1955 com a “Teoria Organizacional”, de Warren Breed, para
quem o produto jornalístico resulta das injunções ou pressões exercidas pela
corporação midiática sobre os jornalistas.
Atualmente, Neuman e Guggenheim, pesquisadores da Universidade de
Michigan, criticam a polaridade entre efeitos mínimos e fortes como um
empecilho à teorização, como um desconhecimento de aspectos importantes
do último meio século de pesquisas e como uma simpli�cação do
conhecimento do processo comunicacional. Eles propõem, em
consequência, um modelo em seis estágios de grupos de pesquisa
cumulativa, baseado na extensa literatura sobre o campo[51].
No primeiro estágio se alinha o grupo das teorias da persuasão (1944-
1963), caracterizadas pela hipótese de efeitos diretos e imediatos e geradoras
de estudos sobre os efeitos de campanhas políticas, campanhas publicitárias,
comportamentos e atitudes do público na esfera dos meios de comunicação.
No segundo está o grupo intitulado teorias da audiência ativa (1944-1986)
que, de modo semelhante às teorias da persuasão, formula hipóteses básicas
sobre a transmissão de mensagens para indivíduos atomizados, mas levando
em consideração as orientações psicológicas do público, o que justi�caria o
adjetivo “ativo”. O terceiro, teorias do contexto social (1955-1983), preocupa-
se com o modo como os indivíduos se apoiam em relações interpessoais
para interpretar as mensagens comunicacionais. O quarto, teorias societárias
e midiáticas, centra-se na análise da hegemonia societária e nos efeitos
individuais acumulativos ao longo do tempo. O quinto, teorias de efeitos
interpretativos, desloca-se da pura e simples perspectiva dos efeitos na
direção de como a mídia processa as suas mensagens e inclui hipóteses hoje
prestigiosas como agenda-setting, enquadramento (framing) etc., segundo as
quais a mídia não apenas diz ao público o que pensar, mas também como
pensar. O sexto é o grupo das novas teorias midiáticas, que focaliza as novas
tecnologias e as suas propriedades interativas, dando ênfase especial à
internet[52].
Mesmo com “teorias” ou ângulos diversi�cados, os estudos de mídia
caminham sobre os trilhos da mass communication research, que é um
capítulo da sociologia, portanto, apenas uma região de um sistema
interpretativo, baseado na velha lógica predicativa (aristotélica), que atribui
sujeitos-atores a fatos-objetos. O primeiro problema é que, na
heterogeneização contemporânea da sociedade, não apenas devido a razões
tecnológicas, mas principalmente industriais, as classes analisadas por Marx,
assim como as regras sociais destacadas por Durkheim, não mais funcionam
como referentes ou suportes descritivos dos agentes sociais. Aparece no
horizonte crítico a ideia de um “vazio” social, que
Baudrillard assimila à noção de massa: “É nesse sentido que a massa é
característica de nossa Modernidade, a título de fenômeno altamente
implosivo, irredutível a qualquer prática e teoria tradicional, talvez a
qualquer prática e a qualquer teoria sem mais nem menos”[53]. Daí,
Zylberberg levanta a hipótese de que “todos os sistemas atuais funcionam
com essa entidade nebulosa, essa substância �utuante, cuja existência não é
mais social, e sim estatística e cujo único modo de abordagem é o da
pesquisa de público. Uma simulação no horizonte da qual já desapareceu o
social”[54].
O segundo problema é que, na ótica tradicional, os fatos estão inscritos
numa temporalidade “espessa” ou “adiada” (expressão de Paul Virilio para
designar o tempo estendido). Ora, a informação eletrônica tende hoje a ser
pontuada por sua própria operacionalidade técnica (a velocidade de
transmissão) e pelas características de imediatismo, espaço ilimitado e baixo
custo da rede cibernética. Aí se “desrealiza” o tempo, na medida em que a
produção ilimitada de acontecimentos dá lugar a um imediatismo que,
impossibilitando a consciência de representar os fenômenos dentro de uma
duração (portanto, dentro da espessura temporal), abole efetivamente o
tempo e, com ele, a ontologia clássica dos fatos sociais.
Com a tecnologia eletrônica, tem-se outra experiência espaçotemporal: o
tempo se encurta, e o espaço se encolhe. Na mídia eletrônica, os
acontecimentos estão sempre à frente da possibilidade de que sejam
interpretados pelos indivíduos, assim como o derrame social das tecnologias
da comunicação está à frente da sua interpretação pelas formas individuais e
coletivas de consciência.O futuro recai tecnologicamente sobre o presente, e
este, por meio do tratamento digital das imagens, parece equivaler ao
passado. Não há tempo de recuo, nenhuma “espessura” para re�etir ou
especular. Esta é a realidade com que tem de lidar a comunicação
tecnológica enquanto às clássicas ciências sociais se reserva um estatuto
temporal, o qual é possível para a consciência interpretar e saber. Por isso,
parece lógico fazer uma sociologia ou antropologia da comunicação, já que,
só assim, pelos modos de inteligibilidade correntes, se consegue garantir
algum rendimento “disciplinar”.
A “temporalidade do vivido cotidiano, que inclui as retroprojeções no
passado e as projeções no futuro, as formas movediças da memória e da
antecipação imaginária”[55], é, portanto, a mesma com que trabalham as
ciências sociais forjadas no século XIX. A diferença entre as duas formações
temporais tem consequências epistemológicas. Com efeito, quando alguém
se dispõe a fazer sociologia da (ou na) comunicação, senão antropologia,
psicologia, economia e estudos culturais permanece no interior de uma
perspectiva funcionalista, que faz do estudo da comunicação algo parasitário
de uma disciplina clássica do pensamento social, portanto um saber
reducionista e avesso ao pluralismo interpretativo. A comunicação é aí
puramente “funcional”, isto é, concebida como aplicação de um instrumento
(rádio, jornal, revista, televisão, internet e outros) a ser analisado, ou então
como mero pretexto para a resolução de um problema da disciplina em
questão, tal como o de suprir uma carência analítica frente à multiplicação
dos dispositivos informacionais na cultura contemporânea.
Foi esse mesmo funcionalismo técnico o responsável pelo sucesso do
fenômeno da comunicação e pelas prospectivas mirí�cas, entre os anos de
1960 e 1980 no mundo ocidental, segundo as quais a in�nita liberdade de
expressão poria �m aos discursos de dominação e a sociedade se tornaria
educacional por inteiro. Por um lado, os novos meios técnicos aceleravam a
sensação de modernidade existencial, liberando o indivíduo de suas
restrições temporais e espaciais: os efeitos de simultaneidade,
instantaneidade e globalidade podem ser descritos como demiúrgicos. Por
outro, do telefone ao rádio, da televisão à informática, a tecnologia da
comunicação sempre foi percebida tanto por parte da esfera pública quanto
da esfera acadêmica como uma aproximação ao ideal de comunhão da
diversidade étnica e cultural do planeta, segundo se inferia do marketing
acadêmico de Marshall McLuhan ao redor da ideia de “aldeia global”. Esta se
dinamiza eletronicamente: a internet, alardeada como “estádio supremo” do
desenvolvimento dessas técnicas, viria oferecer a interatividade como uma
resposta técnica ao problema da dominação simbólica (o monopólio da fala)
da mídia sobre as audiências.
Mas toda a potência de pensamento prometida pela esfera da
comunicação naquele período esvaziou-se de algum modo desde a última
década do século passado. A crítica da Escola de Frankfurt à comunicação
funcional, por ver na ascensão das indústrias culturais e dos monopólios da
comunicação uma ameaça de inautenticidade – rei�cação da produção
simbólica e supressão da capacidade crítica individual –, perdeu força
acadêmica. O mesmo aconteceu com a linguística que, desde �ns da década
de 60 do século passado, capitaneava na Europa o sonho acadêmico de uma
ciência geral do homem comparável com uma ciência da natureza.
Foi nesse período de apogeu que a Teoria da Comunicação parecia
identi�car-se totalmente com a semiologia (semiótica é uma designação
norte-americana), contida na sugestão de uma Teoria Geral dos Signos pelo
linguista Ferdinand de Saussure, por ele designada propriamente como uma
“séméiologie”. Já em 1957, Roland Barthes propunha-se em suas Mitologias a
estabelecer as bases teóricas da semiologia, aplicando as suas análises aos
produtos da indústria cultural, tratados como mitos e ritos comunicacionais.
Ideias desta ordem repercutiam fortemente no Centre d’Études des
Communications de Masse (Cecmas), fundado em 1960 pelo sociólogo
Georges Friedmann e animado por críticos e pesquisadores como Roland
Barthes, Edgar Morin, Julia Kristreva, A.J. Greimas, Christian Metz, Eliseo
Verón e outros.
Nessa linha, desde o �nal dos anos de 1960, Jean Baudrillard foi um
autor modelar, procurando reinventar a semiologia de Saussure
(especialmente em O sistema dos objetos e Crítica da economia política do
signo) como uma operação de transversalidade para disciplinas bastante
ativas naquela época, a exemplo da linguística, da antropologia estrutural,
da psicanálise e da análise marxista dos processos produtivos. Ao mesmo
tempo, na Itália, semiólogos como Umberto Eco, Paolo Fabbri e outros
ponti�cavam nesse campo. Partindo de franceses, italianos ou europeus de
um modo geral, a adesão à semiologia tem como base o pressuposto de que
um sistema de comunicação é sempre análogo à linguagem humana.
Por que toda essa movimentação teórica em torno da semiologia
acontece na Europa e não nos Estados Unidos que, entretanto, abrigava no
âmbito da �loso�a pragmatista uma fecunda tradição de estudos similares,
metodologicamente lastreados pela semiotics oitocentista de Charles Sanders
Peirce? Não faltará quem objete a esta indagação, citando scholars mais
recentes como omas Sebeok e outros, mas os estudos dessa corrente não
apenas se afastavam do campo da mídia como também não tiveram o
empuxo criativo dos ensaios franceses e italianos.
Uma resposta de natureza epistemológica deve ser mesmo buscada no
interior do círculo �losó�co francês, mais precisamente na reação oferecida
pelo método estruturalista à fenomenologia, que foi dominante até o
começo dos anos de 1960. Esta explicação está bem-esquematizada por
Descombes: “Vamos supor que nós consideremos os fenômenos linguísticos
como fenômenos de comunicação, e as línguas ditas ‘naturais’ como códigos
utilizados pelos homens para transmitir mensagens: nós obtemos o
estruturalismo semiológico. Se, dando mais um passo, nós assimilamos toda
a vida social a um processo de troca de sinais, encontramos a antropologia
estrutural tal como a de�ne Lévi-Strauss, isto é, a redução da antropologia à
semiologia”. E, de maneira mais geral, a tese estruturalista cabe por inteiro
na célebre fórmula de Jacques Lacan: “O inconsciente é estruturado como
uma linguagem”[56].
Uma revisão histórica do campo comunicacional não pode realmente
passar por cima da a�nidade entre a Teoria da Comunicação e o método
estruturalista, que foi forte desde meados dos anos 60 do século passado,
mas cujas origens podem ser pesquisadas na anterior metodologia
“estrutural” dos linguistas Ferdinand de Saussure e Roman Jakobson.
Diferentemente da fenomenologia, que descreve o fenômeno (a experiência
vivida) em busca de um sentido, o estruturalismo é um método comparativo
que utiliza o conceito matemático de estrutura (um conjunto de relações
puramente formais, de�nidas por algumas propriedades) para mostrar que
um conteúdo qualquer, seja um axioma ou um conteúdo cultural, é um
modelo isomorfo (análogo, parecido) a outros, presentes em conjuntos
diferentes. Aí não se busca o sentido numa representação ou num objeto,
apenas se comparam conjuntos. Feita a comparação, a estrutura se mostra
isomor�camente.
Na análise lévi-straussiana dos mitos, esse método adquire um brilho
estético. Em que ele se entrecruza com a Teoria da Comunicação? Na ideia
de sistema de signos, advinda da linguística saussuriana. Mas em Saussure se
trata mais de uma sugestão a ser desenvolvida do que um conceito pronto e
acabado. Assim, o sistema incorporado pelo campo comunicacional é o
mesmo da Teoria Matemática da Informação, de engenheiros como
Shannon e Weaver, debruçados sobre o problema da boa transmissão de
mensagens, portanto, sobre questões de codi�cação, emissão e recepção. Do
ponto de vista da engenharia das comunicações, o que de fato importa é
determinar a recepção sem ruído dos sinais ou da mensagem, e isso implica
privilegiaro receptor, por ser este o polo de medida da transmissão. Nesse
processo, a codi�cação deve ser independente dos usuários (emissor e
receptor), assim como dos sinais ou das mensagens.
Ora, na conversão (desde a década de 1960) de disciplinas do
pensamento social (Antropologia Lévi-straussiana, Psicanálise Lacaniana)
ao estruturalismo semiológico, não apenas o inconsciente, mas a própria
vida social passaram a ser concebidas como estrutura linguística, e
linguagem se entendia propriamente como código comunicativo.
Colocando-se a codi�cação em primeiro plano – ou seja, ela como superior
à mensagem, ao falante e, no limite, ao próprio sentido –, conforme
mostravam os engenheiros das comunicações, o código assume o estatuto de
lei no campo da comunicação.
São férteis nesse período as consequências dessa dita conversão à
semiologia estrutural da análise antropológica, psicanalítica e
comunicacional. Na antropologia, proclamam-se a “morte do homem” (ou
seja, da explicação pela experiência vivida, como queria a fenomenologia) e
a “vida” das estruturas, que agora tudo explicam. Na psicanálise, mudando-
se a terminologia, o código recebe o nome de signi�cante e este, por sua vez,
precedendo o signi�cado, submete o sujeito. De um modo geral, o sujeito
como suporte dos fenômenos ou dos enunciados cede lugar ao código.
Igualmente na �loso�a, esse tópico repercute nas posições da crítica
radical à temática da autenticidade que, como mostram Boltanski e
Chiapello, “partindo de orientações �losó�cas diferentes, têm em comum a
vontade de pôr �m ao sujeito responsável, para quem a alternativa entre
autenticidade e inautenticidade se apresentaria como uma escolha
existencial, denunciada como pura ilusão ou como expressão do ethos
burguês”[57]. Em J. Derrida, por exemplo, os dois autores localizam um
processo de desconstrução do privilégio outorgado à voz ou à palavra viva
como recurso de autenticidade frente à escrita como artifício contingente
que poria a verdade em perigo. Em G. Deleuze, eles veem o
desenvolvimento de uma crítica da representação que a�rma a
impossibilidade, no mundo dos simulacros (�guras do código), de distinção
entre um original e uma cópia. Embora desconstrução seja um conceito
introduzido por Derrida (como uma releitura da Destruktion
heideggeriana), ele comparece igualmente em Deleuze quando se trata de
apontar para o modo como se constrói o discurso �losó�co.
Também na análise comunicacional, o capitalismo monopolístico se
de�ne mais pelo monopólio do código do que pelo controle dos meios de
produção. A hipótese de uma hipertro�a generalizada da codi�cação
capitalista, acompanhada de uma transformação radical do modo de
signi�car, orienta a maior parte da semiologia comunicacional de
Baudrillard. Pode-se falar de um paradigma do código, radicalmente oposto
ao paradigma dos efeitos trabalhado pela linha da mass communication
research.
Sob o código, o sentido do mundo, o indivíduo e o próprio real se
apresentam em vias de desaparição. “Detrás de cada tela de televisão e de
computador, em cada operação técnica com a qual é diariamente
confrontado, o indivíduo é analisado, função por função, testado,
experimentado, fragmentado, assediado, intimado a responder – sujeito
fractal doravante voltado para a disseminação nas redes, ao preço da
morti�cação do olhar, do corpo, do mundo real”, diz Baudrillard[58]. Trata-se
do que Marshall McLuhan chamava de “teste perpétuo”, exercido sobre os
cidadãos da sociedade de consumo pela mídia, pelas pesquisas e por todos
os protocolos de veri�cação e controle.
McLuhan, aliás, pensava a nova realidade sociotecnológica dentro desse
mesmo paradigma do código, sintetizado em sua famosa formulação: “O
meio é a mensagem”. Em termos mais claros, o medium – ou seja, a
ferramenta tecnológica articulada com o mercado no interior de uma forma
de vida pré-programada pela lei estrutural do valor – é a expressão do
código, que predomina sobre o conteúdo. Depreende-se dessa linha de
análise crítica que a nova sociedade tecnológica ou digitalizada é de fato
uma tecnoestrutura (noção trabalhada pelo economista keynesiano e
pensador liberal John Kenneth Galbraith), atravessada pela fragmentação
dos recortes, pela imaterialidade de um real discursivo e, ao mesmo tempo,
pelo primado dos objetos na sociabilidade.
Como sabemos, desde os anosde 1960 – quando os objetos passam ao
primeiro plano da vida social, como consequência do primado do consumo
sobre a produção – passa-se a problematizar fortemente toda a dimensão
objetual ou técnica da contemporaneidade. O pensamento de Baudrillard é
paradigmático quanto à irredutibilidade do objeto às tradicionais disciplinas
de abordagem da vida social. Nisso está implícita a hipótese do primado do
objeto ou dos fatos sobre a participação observadora de um sujeito teórico e
conceitual, portanto, outro modo de formular a tese da prevalência do
código ou das estruturas sobre a consciência fenomenológica.
Embora atuando quase sempre do ponto de vista da comunicação, a
intervenção re�exiva de Baudrillard – mais antropológico-�losó�ca do que
sociológica – foi bem mais abrangente, ao deixar ver posteriormente que a
inteligibilidade da sociedade contemporânea ultrapassava o domínio da
semiologia stricto sensu.
Mais fenômeno que conceito
De fato, semiótica ou semiologia é na verdade apenas um caminho
metodológico, aplicável tão só a questões a�ns à Teoria da Linguagem. As
iluminações oitocentistas do pragmatista Charles Sanders Peirce, as
brilhantes análises de Barthes, de Baudrillard e todo o instrumental analítico
do discurso por parte de ingleses (estes, desde �ns do século XIX,
praticavam basicamente uma mescla de Teoria Literária com Teoria da
Cultura) e franceses ainda são academicamente sedutores, mas os estudos
semiológicos daí resultantes, com raras exceções, terminaram convertendo-
se num fechado jargão acadêmico sem maiores perspectivas de um saber
compreensivo em termos históricos.
Toda essa movimentação acadêmica não conduziu à constituição de uma
“comunidade argumentativa” – ou uma espécie de “colégio invisível” onde se
discutissem problemas no interior de linhas de pesquisa compartilhadas –
favorável à integração da área comunicacional como campo cientí�co. Sem
integração e re�exão crítica, o brilho teórico pode produzir mais “marcas
secretas de distinção” do que de esclarecimento intelectual, como observa
Calhoun: “Ajudar a integrar suas diferentes partes e linhas de investigação é
um problema enfrentado por quem trabalha com teoria em qualquer
campo. Esta não é só uma questão de assentar as bases ou perseguir sínteses,
é também uma questão de fornecer os termos de referência para o debate
crítico. A falta de integração e de re�exão crítica são problemas tanto para

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