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1 Ladislau Dowbor Octavio Ianni Paulo-Edgar A. Resende Hélio Silva (orgs.) DESAFIOS DA COMUNICAÇÃO EDITORA VOZES Petrópolis 2001 21 Os meios de comunicação a serviço do marketing MONIKA DOWBOR1 e HÉLIO SILVA2 A expansão dos meios de comunicação de massa, que permitem um contat o cada vez mais direto e constante com fluxos de informação gerados por várias fontes, em benefício de diversos grupos de interesse, causam uma série de impactos, dos quais a sociedade e a ciência dificilmente dão conta. Esta colocação é especialmente verdadeira no campo de marketing, no que se refere à suas conseqüências sociais e ambientais. Os 435 bilhões de dólares gastos mundialmente em publicidade comercia l por ano, número que atinge um trilhão, quando somadas todas as formas de marketing nos alertam sobre as possíveis conseqüências deste poderoso mecanismo de informação (Human Development Report 1998, 1998:63). A relevância desta discussão se desvenda mais ainda na medida em que nos damos conta da presença dos anúncios publicitários na nossa vida cotidiana. Logo de manhã, quando abrimos as cortinas, junto com os primeiros raios de sol adentram o nosso espaço as fotografias gigantes dos outdoors, oferecendo as mais variadas 1 Socióloga formada pela Universidade de São Paulo. 2 Mestre em Administração de Empresas pela PUC-SP; doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP; professor e coordenador do Curso de Administração de Empresas da UNICAPITAL e consultor de empresas 2 mercadorias; do pesado pacote do jornal diário deslizam suavemente os brilhantes panfletos de supermercados; a televisão, além das inserções publicitárias, chamadas curiosamente de intervalos, que nos atormentam a cada 15 minutos, parece ser um mercado de mil e uma utilidades, no qual é vendido no meio de programas de audiência, tudo e qualquer coisa: de panelas e remédios até música. Enfim, só para termos a idéia em níveis quantitativos: um americano típico assiste em média a 150.000 inserções publicitárias na sua vida (Human Development Report 1998, 1998: 91). Diante deste quadro, é preciso nos interrogar sobre os mecanismos utilizados pelo marketing, sobre as suas ferramentas e sua eficácia e sobre o conteúdo da informação, às vezes incompleto ou deformado, cujo objetivo supremo não é mais somente nos impulsionar a comprar aquilo que interessa às organizações, mas também, como aponta Korten, "criar na mente do público uma cultura política que iguale os interesses das corporações com os interesses humanos" (Korten, 1999:174). Antes de passar para a discussão sobre o discurso do marketing, tal como ele se apresenta nos manuais da administração e nos meios de comunicação, é necessário antes pensar sobre os mecanismos que potencializam de uma maneira extraordinária o alcance da propaganda, a saber, os meios de comunicação de massa. Ao abordar as questões da comunicação de massa é preciso pensá-la enquanto instrumento de articulação da sociedade. Em outras palavras, a comunicação de massa permite à sociedade ver a si própria por vários ângulos; político, econômico ou simbólico, graças à sua extrema capacidade de alcance. Este processo significa também uma contribuição na democratização da informação, dada a divulgação de seus meios: televisão, rádio, jornais e Internet, entre outros. As novas tecnologias já permitem pensar na interatividade dos telespectadores com o meio, transformando-os em produtores da informação. Um exemplo deste processo de mudança são os telecomputadores - aparelhos de conexão a distância ligados a um grande número de pessoas ao mesmo tempo, em tempo real - por meio dos quais, como aponta D. de Kerckhove, as pessoas podem realmente falar umas com as outras, podem entrar na ação. "Tudo que era estúpido na televisão torna-se extremamente inteligente com o telecomputador" (Kerckhove, 1997: 89). Um outro olhar, desta vez partindo-se da recepção da informação pelo público - da sua leitura, ressignificação e reinterpretação -, nos leva a refletir sobre a possibilidade da criação do novo, do alternativo ou daquilo que pode romper com o status quo. Neste sentido, lembremo-nos da rede de Internet que, criada pelo Pentágono como um sistema de controle da comunicação, foi apropriada pela sociedade, de maneira a facilitar o fluxo de informações talvez mais democrático que tenha existido. Entretanto, a discussão sobre os meios de comunicação de massa precisa, imprescindivelmente, ser submetida a uma análise crítica. E pertinente perguntar, por exemplo, até que ponto criou-se acesso a esses meios, para uma ampla parcela da sociedade. No Brasil, a rede da Internet proporciona teoricamente a recepção e produção de informações a todos; porém, apenas aproximadamente oito milhões de pessoas têm acesso a este instrumento. E é preciso questionar ainda a respeito de como e onde são criadas as mensagens das informações, isto é, se a informação vem de fontes pluralistas ou se é gerada por grupos de interesses que a monopolizam. A monopolização da informação alcançada por meio da tecnologia da comunicação de massas constitui um exemplo prenhe de desastrosas conseqüências. Na Alemanha nazista, o seu uso monopolizado auxiliou a ascensão e um 3 extremo poder de Hitler, envolvendo e comprometendo milhares de pessoas com uma "obra" da destruição do outro, por meio das atrocidades jamais conhecidas pela humanidade. O mais temeroso é que, após 50 anos observamos a potencialização da exploração dos meios de comunicação neste sentido. Uma análise do contexto das guerras na ex-Iugoslávia não poderá ignorar, por um lado, o papel das mídias locais na disseminação de nacionalismos e, por conseguinte, dos antagonismos entre os povos dessa região 3 e, por outro a criação de uma visão .simplista, pela mídia estrangeira, que transformou os Bálcãs numa região bárbara, longínqua situada nos confins a Europa - e permeada pelos "ódios ancestrais". Um outro exemplo da reconstrução parcial e dirigida dos fatos é comentado por N. Chomsky. Este autor relata da seguinte forma as notícias do episódio da invasão do sul do Líbano por Israel, em 1982: "E interessante notar como aquele período foi reconstruído pelo jornalismo norte- americano. Tudo o que resta são histórias sobre o bombardeio da OLP a acampamentos israelenses, apenas parte da verdadeira história" (Chomsky, 1997: 69). Os meios de comunicação de massa, tal como se configuram hoje, estão intimamente ligados ao contexto socioeconômico da atualidade. A fase em que se encontra o capitalismo transforma o indivíduo, cidadão, homem, 3 Para ilustrar como os políticos e as suas mídias subalternas obrigavam os habitantes das repúblicas da ex-Iugoslávia a se identificarem etnicamente, Jan Pitklo - um jornalista polonês com vasta experiência e vivência na região em questão - cita, entre outros, o depoimento de uma jornalista croata: "Estou pronta para mentir em favor dos Croatas" (Pieklo & Wilkanowicz, 1999: 170). mulher e criança, em suma, todos, em consumidores4 , privilegiando a cultura do dinheiro, do consumo desenfreado, de uma identidade homogeneizada e globalizada, em detrimento de valores que visam uma maior justiça social. E pertinente se perguntar sobre os mecanismos que potencializam esta ação humana, a ponto de fazerem dela elemento constituidor da cidadania em alguns países, tal como o Brasil, por exemplo, em detrimento de outras atividades. O modelo neoliberal contemplado pela maioria dos países capitalistas deixa ao mercado o controle dos capitais. As instituições governamentais transferem quase que na totalidade, as responsabilidades do crescimento econômico e do desenvolvimento social à iniciativa privada, o que equivale dizer, ao mercado. As organizações privadasjustificam os cortes dos benefícios sociais, tendo como pano de fundo a desculpa da competitividade. Alguns dados podem demonstra o desencontro dos interesses: 4 Milton Santos aponta este processo no caso brasileiro: "Em nenhum outro país foram assim contemporâneo e concomitantes processos como a desruralização, as migrações brutais desenraizadoras, a urbanização galopante e concentradora, a expansão do consumo de massa, o crescimento econômico delirante, a concentração da mídia escrita, falada e televisionada, a degradação das escolas, a instalação de um regime repressivo com a supressão dos direitos e lementares dos indivíduos, a substituição rápida e brutal, o triunfo ainda que superficial, de uma filosofia de vida que privilegia os meios materiais e se despreocupa com os aspectos finalistas da existência e entroniza o egoísmo como lei superior, porque é o instrumento de busca da ascensão social. Em lugar do cidadão , formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário (Santos, 1987:12). 4 Cerca de 500 a 600 empresas, que controlam um quarto da produção mundial, dominam as áreas tecnologicamente dinâmicas. Enquanto 800 milhões de habitantes dos países ricos ostentam uma renda per capita de mais de vinte mil dólares, 3,2 bilhões de habitantes do mundo subdesenvolvido vivem com uma média de 350 dólares, menos de 30 dólares por mês. Cerca de 150 milhões de crianças hoje passam fome no mundo, cifra projetada para 180 no ano 2000, enquanto cerca de 12 milhões simplesmente morrem antes dos cinco anos O analfabetismo atinge mais de 800 milhões de pessoas, e aumenta cerca de 10 milhões a cada ano que passa. O planeta ganha anualmente cerca de 90 milhões de novos habitantes, sendo que cerca de 60 milhões já nascem nas áreas mais miseráveis, condenados no seu primeiro dia de vida. Não se conseguem os cinco centavos de dólar por criança, que custa o iodo que impedirá o bócio, ou os dez centavos para a vitamina A, que impedirá a cegueira. Cerca de um milhão de crianças ficam assim mutiladas para a vida inteira, por ano. Meio milhão de mães morrem anualmente de parto, por não ter acesso a serviços e informação médica elementar: no conjunto dos países desenvolvidos são apenas 5 mil. Uma África devastada chora as suas últimas árvores, e vê os seus solos desprotegidos carregados pelos ventos e pelas chuvas torrenciais, enquanto o Ocidente que a devastou lhe recomenda cuidados ambientais. Mas temos cada dia melhores computadores, videocassetes e discos (Dowbor, L, 1999. Internet: http://www.ppbr:com/ld/). A comunicação, indubitavelmente, exerce um papel fundamental na reprodução deste processo por meio dos mass media agravando mais ainda o desencontro entre o mundo econômico e social, e por isso torna-se imprescindível pensar em agentes capazes de reverter esta'situação, ampliando formas mais justas da convivência social. A respeito desta desestruturação social, Dowbor afirma: “O ser humano não poderá mais sobreviver sem formas mais avançadas de organização social, capazes de ultrapassar este caos articulado de interesses corporativos que nos acostumamos a chamar de neoliberalismo e que manejam técnicas de impactos universal e irreversível" (Dowbor, 1999. Internet: http://www.ppbr.com/ld/). Estas formas mais avançadas de organização social podem ser construídas com ação voluntária dos cidadãos, enraizada no lugar de sua vivência, e não controlada unicamente por instituições centralizadas ou corporações (Korten, 1999). É evidente, portanto, que não se trata aqui de propor o controle ou algum tipo de censura impostos de cima para baixo aos mass media no que se refere à identificação do que é bom ou ruim para a sociedade. O que se coloca em questão são as possibilidades e necessidades de formas de intervenção nos meios de comunicação debatidas. por todos os setores da sociedade – iniciativa privada, poder público e sociedade civil Um bom exemplo disso é a Suécia, onde é proibida a veiculação de propagandas para crianças, partindo-se de pressuposto, obtido a partir de pesquisa científica, de que é somente em torno de doze anos que a maioria das crianças desenvolve um entendimento mais abrangente da propaganda, o que se constitui num pré-requisito para criação da atitude crítica (Human Development Report 1998, 1998:65). A experiência sueca, cuja difusão para toda a Comunidade Européia já está em debate, é, no entanto, uma das poucas exceções da articulação dos interesses privados com os da sociedade. O que nós assistimos diariamente é o uso desenfreado e perverso do marketing, no único objetivo de servir à lógica do mercado. Por isso, a analise do mecanismo que gerencia esse processo de consumo, ao qual damos aqui o nome de marketing, torna-se necessário. O conceito de marketing em geral é visto de uma forma fragmentada, ou seja, o seu discurso se mantém desvinculado dos impactos econômicos, sociais, ambientais 5 e culturais por ele acarretados. Os livros de marketing, vendidos em livrarias de aeroportos, apresentam-se como manuais de auto-ajuda que oferecem meras ferramentas de competitividade às organizações, como que ignorando os seus desdobramentos dentro do sistema. E esta idéia falsificadora do marketing está presente nos teóricos da administração. Assim, segundo Kotler, o marketing abrange tanto a identificação das necessidades e desejos do “... consumidor quanto o posterior desenvolvimento do produto ou do serviço do seu desejo” (Kotler, 1996: 25). O levantamento das necessidades e desejos dos indivíduos parece transcorrer de forma livre e espontânea, respeitando-se a sua produção: por exemplo, uma determinada organização produz carros para atender a necessidade do indivíduo em se deslocar ou o seu desejo de fazer uma viagem com sua família pelo sul do país. Outros autores, tais como Stone e Nooclcock, definem o papel do marketing como criador da demanda para a comercialização de um determinado produto ou serviço (Stone & Nooclcock, 1998: 48). O que parece ser uma definição neutra - "criar demanda" - talvez seja o que reflita mais de perto a estruturação perversa do sistema de consumo do mercado. Lembremos, a propósito, as empresas que montam seus planos de crescimento para os próximos anos com um foco único no aumento de seus lucros, desenvolvendo, em seguida, o processo de criar a demanda para atender o target da empresa. O resultado deste mecanismo' traduz-se no plano individual, na perplexidade diante de um produto adquirido sem se saber muito por que e no desencanto de perceber que a promessa de satisfazer um valor comunicado pelos mass media não se realizou. Entre as formas do marketing, a publicidade e propaganda ressaltam-se enquanto uma fonte poderosa da informação sobre os produtos. O Relatório sobre o Desenvolvimento Humano de 1998 aponta para o fato de que os gastos em publicidade cresceram 30% mais rápido do que a economia mundial desde 1950, crescimento que não se restringiu somente aos países desenvolvidos, mas também se expandiu para as regiões da Ásia e América Latina (durante os últimos 10 anos alguns países apresentaram um vertiginoso aumento dos gastos nesta área: China: mais de 1000%; Indonésia: 600%; Malásia e Tailândia: 300%; e Índia e Filipinas: 200%). Para se ter uma idéia da importância do montante, o relatório supramencionado compara a porcentagem do PIB, em termos de gast o com publicidade, com os efetuados na área de educação. Assim, por exemplo, no caso de China, temos 1.4 contra 2.8 respectivamente, na Colômbia 2.6 contra 3.4, ou os EUA, 1.3 contra 5.4 (1998: 64). Além da discussão sobre o capital investido nas propagandas, coloca-se inevitavelmente a questão sobre o tipo da informação fornecida pela publicidade. Não raramente, as campanhas publicitárias apresentam qualidades de produtos sem nenhuma base científica, fornecendo informações incompletas,não advertindo sobre os riscos envolvidos no consumo de uma dada mercadoria. Do outro lado, observamos o jogo de apropriação de símbolos pelas mercadorias: quando uma organização promove a venda de um carro Mercedez-Benz (carro de luxo), ela enfatiza os atributos sociais desta mercadoria, ou seja, uma ascensão de status social neste caso; na compra de um batom adquire-se uma esperança de um amor; na compra de um tênis Nike, compra-se uma idéia de vencedor e de fama 5 . 5 O exemplo da Nike ilustra bem as distorções do marketing. Korten demonstra que o custo de produção de um par de Nikes vendido nos EUA ou na Europa por 73 a 135 dólares é de 5,60, manufaturado por jovens da Indonésia que recebem apenas 15 centavos por hora. Toda 6 A propaganda de cigarro é neste contexto, como diria Lévi- Strauss, "boa para pensar" 6 . Constitui um caso-limite, vistos os aspectos claramente nocivos do tabagismo, desta apropriação pelos interesses econômicos específicos dos símbolos culturais inteligíveis para a população com o intuito de criar a vontade e necessidade de consumo de uma mercadoria que, entre outros, mata. Estamos diante de um paradoxo: como propagar algo que ao ser inalado nos põe em risco de adoecermos de câncer de pulmão: 90% de chance de ter um enfisema pulmonar: 80% bronquite crônica e derrame cerebral: 40%, entre outros ou, visto de uma outra maneira, que nos coloca entre 3 milhões de pessoas que o tabaco mata a cada ano (serão 10 milhões de pessoas nos próximos 30 a 40 anos). 7 Uma primeira análise das propagandas brasileiras de cigarro da década dos anos 90 chama atenção para um progressivo desaparecimento do cigarro e do ato de fumar propriamente dito. Isto é especialmente visível quando comparamos as propagandas dos anos 90 com as de 80. Enquanto o culpado (cada vez mais socialmente banido por meio de campanhas antitabagistas) se retira de cena, ressurgem com toda a força as imagens de uma vida feliz, de acordo a folha de pagamento anual destes trabalhadores é menor do que os 20 milhões recebidos pelo astro de basquete, Michael Jordan, em 1992 (Korten, 1996: 133). 6 A pesquisa sobre as propagandas de cigarro no Brasil foi realizada como trabalho final da matéria de N. Sevcenko: "A história contemporânea II", em 1998 junto com Marcelo Daher, a quem agradecemos a disponibilização dos dados. 7 Ao lado dos aspectos prejudiciais à saúde, é preciso lembrar que o cigarro, junto com aspirina e açúcar, é um dos estimulantes difundidos na modernidade para auxiliar a atenção redobrada que exige a aceleração da vida. com o gosto e estilo de vida que cada um idealiza para si, e que se tornará realidade se fumarmos um dado cigarro. Ao exibir as cenas de gente feliz, saudável e bonita, que não conhece limites, que é capaz de tomar deliberadamente as decisões porque se trata de "mera questão de bom-senso", que se deleita com um raro prazer, a propaganda do cigarro introduz a sua própria contradição. O limite - a morte - se vislumbra muito mais para um fumante; o vício não permite deliberar sobre o bem e o mal das nossas ações; o raro prazer se traduz, na realidade, em um ou dois maços de cigarros que nos acompanham por dia. Assim, de acordo com o público definido pelo preço, cada marca de cigarro explora nas suas propagandas um conjunto diferenciado de referenciais simbólicos. Os "jovens" de meia idade desbravam a natureza inóspita por meio da mais alta tecnologia de esportes radicais nas propagandas de HolIywood, passando a idéia de que não existem limites para quem fuma esta marca. "No limits", diz o slogan. Os jovens artistas, "moçada" bonita, intelectualizada e cibernética, apesar de estilos alternativos de vida e da incontestável individualidade de cada um - "cada um na sua" - buscam os valores mais arraigados na sociedade: amor, paixão, amizade, liberdade. E tudo isso pode, à nossa surpresa, ser alcançado por meio de algo que têm em comum - o cigarro Free. O "raro prazer" que o Carlton dá ao seu fumante desdobra-se numa vida igualmente rara - ventos levantam finas cortinas de uma solitária casa na praia, águas cristalinas escorregam pelo belo corpo feminino que não tem pressa, espaços desertos em tonalidades esbranquiçadas oferecem a quem fuma esta marca, uma possibilidade de reflexão, individualidade e meditação. O Brasil se abre e brilha com todas as cores de sua gente e suas paisagens numa ininterrupta festa nas propagandas de Derby. Existem diferenças - há carioca, gaúcho, baiano ... E impossível se conhecer nesta terra tão 7 vasta ... Mas felizmente é possível reinstaurar a fraternidade e companheirismo por meio de um valor em comum que conquistou o Brasil - o cigarro Derby 8 . Como aponta esta pequena descrição, o marketing, aproveitando os recursos cada vez mais sofisticados oferecidos pela revolução em tecnologia e telecomunicações, apropria-se arbitrariamente de um conjunto de símbolos de uma dada comunidade, ligando-os de uma maneira artificial e falsa às suas mercadorias. Ao fazê-lo, desenvolve formas de comunicação que induzem à ilusão da realização destes valores. A respeito deste "desengate" dos significantes e dos significados, fala-nos Henri Lefebvre: "Já mencionamos a existência de um extraordinário fenômeno no qual nós (cada um de nós) estamos mergulhados. Ocorre uma libertação de enormes massas de significantes mal ligados a seus significados ou separados deles (palavras, frases, imagens, signos diversos). Eles flutuam à disposição da publicidade e da propaganda: o sorriso torna-se símbolo da felicidade cotidiana, o do consumidor esclarecido e a idéia de 'pureza' aderem à brancura obtida pelos detergentes" (Lefebvre, 1991: 64). O poder dos símbolos aproveitado pelo consumo não é ocasional ou aleatório. Sem negar o lado pragmático e funcional daquilo que consumimos, é inegável que o consumo é perpassado por uma série de razões simbólicas. Ou seja, o carro, por exemplo, é cômodo e confortável enquanto veículo de locomoção, mas o sonho de ter uma Ferrari transcende a sua funcionalidade e eleva este objeto à categoria de alto status, de potência, virilidade. 8 Vale a pena notar que a marca Derby, cuja propaganda sem dúvida apropriou-se do estilo do mundo de Marlboro, ressignificando-o dentro do contexto brasileiro, teve um vertiginoso crescimento nas vendas, hoje dominando 40% do mercado. Ademais, seja por meio de características da identidade nacional, seja resgatando o estilo da vida urbana ou contato com a natureza, as propagandas de cigarro apostam na predominante e hegemônica lógica da modernidade. Estamos todos condenados a uma eterna felicidade, a um mundo de sucesso no qual não há espaço para o fracasso, angústia, dúvida ou qualquer coisa que possa indicar o desapontamento para com o mundo. Aliás, este contrário está justa e perversamente contido nas monótonas e paradas telas azuis do Ministério da Saúde, que parece desconhecer as possibilidades da tecnologia de comunicação. Concluindo, não nos parece mais possível deixar a discussão sobre o discurso do marketing, apenas ao campo da administração, tanto no que se refere ao consumo de produtos ou serviços quanto no que diz respeito às áreas de prestação de serviços essenciais à sociedade - educação, saúde e comunicação. No primeiro caso, é essencial instaurar um debate crítico para que o consumo não seja mais um único pólo norteador das ações humanas e seja alinhado com as necessidades sociais, ambientais e espirituais dos homens. Este processo nos instiga a repensar os limites da lógica do mercado na apropriação dos símbolos culturais pelas corporações no sentido da criação de uma cultura homogeneizadora do consumo e na utilização da pirotecnia das novas tecnologiasem todos os espaços de convivência. É insuportável e intolerável observar o cidadão caminhando pelas avenidas das cidades como que se tivesse com um controle remoto em mãos num processo de extensão dos videoclipes da televisão, colocando-o numa condição anestesiante e alienadora. No segundo caso, a papel de marketing, pode adquirir aspectos mais nefastos no sentido de promover as necessidades essenciais do cidadão como se fosse um mero produto a 8 mais a ser adquirido. Acomodações dignas em hospitais é uma conquista da modernidade; porém, aqui não está em questão apenas o luxo e o conforto, e sim o atendimento das necessidades para a segurança dos cidadãos. Os exemplos desta perversa lógica são inúmeros. Porém, não se trata apenas de apontá-los, e sim de tentar traçar os caminhos que nos levarão às formas mais justas e sustentáveis da convivência humana. Estes, acreditamos, só podem ser percorridos pela sociedade como um todo, por meio de ações articuladas e promovidas por comunidades, incorporando-se todos os sujeitos. Bibliografia CHOMSKY, N. (1997). A minoria próspera e a multidão inquieta. Brasília, Ed. da Um. de Brasília. DOWBOR, L. Internet: http://www.ppbr.com//d/ Human Development Report 1998 (1998). New York, Oxford University Press. KERCKHOVE, D. (1995). A pele da cultura. Lisboa, Relógio d'Água. KORTEN, C.D. (1996). Quando as corporações regem o mundo. São Paulo, Futura. KOTLER, P. (1996). Administração de marketing: análise, planejamento, implementação e controle . Atlas, São Paulo. LEFEBVRE, H. (1991). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo, Ática. PIEKLO, J. & WILKANOWICZ, S. (1999). Wezel balkanski. Cracóvia, Lux Libri. SANTOS, M. (1987). O espaço do cidadão. São Paulo, Nobel. STONE, M. & NOOCLCOCK, N. (1998). Marketing de relacionamento. São Paulo, Litera Mundi.
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