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ÉTICA E CIDADANIA: CAMINHOS DA FILOSOFIA (elementos para o ensino de filosofia) Sílvio Gallo (coord.) Ilustração: Alexandre J. de Moraes Assumpção >> http://www.papirus.com.br/ http://www.papirus.com.br/ SUMÁRIO Apresentação para quem ensina filosofia: ENSINAR A FILOSOFAR Apresentação para quem estuda filosofia: A JUVENTUDE E A FILOSOFIA unidade 1 A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO unidade 2 POLÍTICA E CIDADANIA unidade 3 IDEOLOGIA unidade 4 ALIENAÇÃO: (DES)HUMANIZAÇÃO DO HOMEM NO TRABALHO unidade 5 ÉTICA E CIVILIZAÇÃO unidade 6 O CORPO unidade 7 SEXUALIDADE: O NOME DA COISA unidade 8 A LIBERDADE unidade 9 ESTÉTICA: ARTE E VIDA COTIDIANA unidade 10 ESTÉTICA DE SI unidade 11 ÉTICA E CIDADANIA NA SOCIEDADE TECNOLÓGICA SOBRE OS AUTORES OUTROS LIVROS DOS AUTORES REDES SOCIAIS CRÉDITOS Apresentação para quem ensina filosofia: ENSINAR A FILOSOFAR Depois de duas décadas, este livro continua sua trajetória de ser um instrumento de trabalho para o ensino de filosofia. Laureado pela Câmara Brasileira do Livro com o prêmio Jabuti de 1998 na categoria “Didático de Ensino Fundamental e Médio”, define bem sua vocação: ser didático. Ele nasceu no início de 1995 no Grupo de Estudos sobre Ensino de Filosofia (Gesef), que estava vinculado ao departamento e ao curso de Filosofia da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Foi gestado nos encontros de professores de filosofia promovidos, inicialmente, pelos alunos do curso de Filosofia em prática de estágio supervisionado. Depois se ampliou com o engajamento na luta pelo retorno do ensino de filosofia como disciplina curricular. A fim de pensar a situação do ensino de filosofia nas escolas públicas e privadas, o Gesef foi um lugar de cultivo de estratégias para uma ação efetiva entre ensino, pesquisa e extensão, com o objetivo de criar um instrumento inicial para transmitir a filosofia por meio de recursos datados. Cabe ao professor e a seus alunos atualizarem os recursos e levarem adiante a paixão pela filosofia. Reinventado o livro com os temas propostos, novos caminhos são possíveis para articular a reflexão ética no exercício da cidadania. Qual a realidade do ensino de filosofia na sua escola? É somente no espaço e no tempo circunscrito que este livro pode cumprir sua aposta inicial: um instrumento para criar e instaurar o ensino de filosofia. Aqui, o leitor encontrará uma resposta/proposta à situação do ensino de filosofia na década de 1990, que adquire sua “maioridade” nesta 20ª edição. Ao que tudo indica, continua contribuindo com a tarefa de exercitar o pensamento livre e autônomo, não tutelado por nenhum fundamentalismo. Diante do diagnóstico da situação histórica do ensino de filosofia, decidimos delinear novos traços, colocar mais cores, alterar o quadro. Na época, avaliamos que faltava um toque da paleta de Vincent van Gogh. Desse modo, assumimos a proposta de pensar a filosofia como arte do cuidado de si, uma ética fundada na estética e na política. Pensamos o filósofo como um artista da palavra, um criador de conceitos. Nossa premissa: a filosofia é a arte do conceito. Ensinar filosofia como arte requer um trabalho inventivo cotidiano. Identificamo-nos com a definição de arte esboçada por Van Gogh que, em junho de 1879, escreveu a seu irmão Théo: “A arte é o homem acrescentado à natureza, à realidade, à verdade, mas com um significado, com uma concepção, com um caráter que o artista ressalta e aos quais dá expressão, resgata, distingue, liberta, ilumina.” Cada filósofo, lidando com os problemas de seu tempo, cria um quadro conceitual através do qual olhamos a realidade. A realidade é pintada, construída, fabricada, produzida, forjada. O filósofo é o artista que “registra a passagem do homem no mundo”, no dizer de Merleau-Ponty em seu Elogio à filosofia. Ressaltando o demasiado humano, o filósofo resgata a essência distinguindo-a das aparências. Mantendo-nos ainda na analogia da atividade filosófica com a do pintor, podemos dizer que os conceitos são as cores que o filósofo utiliza para pintar o quadro da realidade. Cada quadro é uma janela através da qual contemplamos o real. Através de que enquadramento poderemos ter acesso ao real? Em qual realidade nos movemos? Sobre qual realidade falamos? Tornou-se lugar comum dizer que a crise ocupa a soberania nos diagnósticos realizados pelas ciências humanas e nos discursos políticos. Tudo está em crise. A crise é apontada como causa de infindáveis problemas identificados e como consequência da própria condição da vida moderna. Jean Baudrillard caracteriza a década de 1980 como a “pós-orgia da modernidade”. A discussão sobre a crise da modernidade está em curso, buscando mapear os conflitos na sociedade atual. Diante deste mundo moderno (ou seria pós-moderno? transmoderno? hipermoderno?), que nos promete as mais fantásticas realizações humanas, vivemos uma sensação de vertigem, de um colapso que ameaça destruir a todos. Convivem a opulência das conquistas tecnológicas com a indigência de milhões. O abismo entre o luxo e a miséria cresce assustadoramente. O conceito de pobreza já não é suficiente para designar o estado de milhões de homens que vivem à margem (excluídos) dessas conquistas da modernidade. Diante desse estado de vertigem, no qual a crise ocupa o lugar soberano, somos instigados a pensar sobre as possibilidades de ensinar a arte filosófica. A questão espinhosa se impõe: É possível ensinar filosofia? A filosofia é uma profissão? Vez ou outra, estamos nos indagando se somos filósofos ou professores de filosofia e constantemente nos questionamos sobre nosso lugar na universidade. A questão da identidade do filósofo ronda nossas conversas e poucas vezes temos a coragem de enfrentar essas indagações sobre nosso trabalho. Em 1975, Giannotti perguntava-se: O que anima o aprendiz do filosofar? “Dentre os mais diversos motivos, é possível apontar um que faz dele desde cedo um filósofo: ambos (professor e aluno) possuem aquele distanciamento do mundo e aquela intimidade que só pode ser obtida pela via da reflexão. Nesse sentido, não se ensina filosofia, mas se alimenta o desabrochar de uma recusa secreta, de uma necessidade de recuo, de encontrar um caminho produtivo para um estranhamento atávico” (Filosofia miúda e demais aventuras. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 13). A máxima kantiana impõe-se como dedução: não é possível ensinar filosofia, só podemos ensinar a filosofar. Mas o ato de filosofar só é possível pela mediação dos clássicos. O professor de filosofia é aquele que estabelece a interlocução entre os clássicos (o saber sistematizado) e a recusa secreta do mundo. Caminhando com o professor entre as veredas históricas da filosofia, o aluno elabora sua trajetória desse estranhamento atávico. O pensamento constitui-se pelo recurso histórico da descendência conceitual. Nesse sentido, a filosofia não tem fronteiras. Pensar as condições atuais de possibilidades existenciais é ampliar as justificativas valorativas de que este mundo no qual estamos inseridos não está coerente com nossos desejos. O filósofo da Basileia fez uma exigência àqueles que desejam se dedicar à filosofia: situar-se acima do bem e do mal. Nietzsche afirmou em Ecce Homo, de 1888: “A filosofia, tal como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária em gelo e altas montanhas – a procura por tudo o que é estrangeiro e problemático na existência, por tudo aquilo que foi exilado pela moral.” Procurando aceitar essa exigência nietzschiana, cremos que a atividade filosófica pode ser pensada numa analogia com a atividade artística, pois talvez assim tenhamos alguns elementos para pensar estratégias de intervenção na realidade educacional pelo ensino da filosofia. Este pequeno livro foi pensado para isso. Tomando a reflexão filosófica como arte, como pensamento voltado para a vida e o cotidiano, queremos intervir na realidade de nossas escolas, o que não é possível com massudos manuais de introdução à filosofia. Nos Encontros de Professores promovidos pela Unimep, uma queixa foiconstante: embora de qualidade inegável, os principais livros didáticos para o ensino de filosofia não têm dado conta das necessidades, principalmente nas escolas públicas. Por dois motivos básicos: o primeiro é o tamanho; embora aleguem que o livro não é pensado para ser trabalhado na íntegra, dada sua extensão, torna-se caro para a imensa maioria dos alunos. O segundo é o nível da linguagem; é sabido que a filosofia é muitas vezes tomada como hermética, um conhecimento ao qual apenas alguns iniciados podem ter acesso. E tal hermetismo é sustentado por uma linguagem que, em vez de aproximar as pessoas, afasta-as. Nem sempre os manuais para ensino da filosofia, por mais que se esforcem, conseguem estabelecer uma comunicação de fato com o público a que se destinam. Defendemos aqui, portanto, uma vulgarização? De forma alguma. Mas esforçamo-nos para traduzir determinados conceitos de forma a possibilitar o acesso do aluno ao conhecimento filosófico. Tentamos buscar uma linguagem que não seja nem aquela que os adolescentes usam em seu cotidiano nem uma outra, inacessível para eles. Acreditamos que conhecer é dominar a linguagem. É necessário um esforço de domínio da língua; entretanto, se o esforço necessário para assimilar um texto for muito grande, é muito provável que ele seja abandonado. Esta obra não pretende ser exaustiva, mas uma singela introdução; se conseguir despertar em nossos alunos uma situação de curiosidade diante de determinados fatos que passam despercebidos em seu cotidiano, terá cumprido sua tarefa. Tampouco pretende ser “a última palavra”: trata-se de um caminho proposto, de um roteiro de viagem. O professor tem a liberdade de alterar a rota e programar a viagem como preferir. De todo modo, o texto foi pensado como um ponto de partida que viabilize um exercício de reflexão com professores e alunos, uma produção coletiva de saber, como é a própria filosofia. Apresentação para quem estuda filosofia: A JUVENTUDE E A FILOSOFIA Você deve estar acostumado a ser visto pelos adultos como um “incômodo”. E isso não deixa de ser verdade. O adolescente passa por uma verdadeira revolução em sua vida, é uma pessoa em movimento, seu corpo se transforma, suas ideias se transformam, seus sentimentos se transformam... Muitos dos que são mais velhos já estão acomodados na vida, e não desejam – na maioria das vezes – mudanças que perturbem sua situação. E é por isso que o jovem incomoda. Ele representa o novo, que traz em si o antigo do mundo “pronto” em que ele nasce lutando contra o velho que já passou por esse processo de ser o novo. O jovem é a força do movimento, reagindo contra toda a acomodação e, portanto, “incomoda” os acomodados – que se esquecem de que já passaram por isso. Mesmo na escola, você deve viver um pouco dessa realidade, sentindo na pele a situação. Mas talvez com a filosofia seja diferente; talvez com ela você se sinta à vontade. É porque a filosofia é uma jovem de quase 2.700 anos de idade. Desde que surgiu na Grécia, no século VII a.C., a filosofia pode ser caracterizada como uma situação de incômodo, de inconformismo. Ela apareceu porque algumas pessoas – os primeiros filósofos – estavam insatisfeitas com as explicações sobre a realidade que existiam na época. Elas se sentiam espantadas diante da complexidade do mundo, e queriam fugir das explicações simplistas que eram dadas. A filosofia surgiu como uma interrogação constante sobre a realidade, e um descontentamento com as respostas oferecidas. Isso fez dela uma eterna revolução, um movimento de construção do saber. Note: a filosofia não é a sabedoria, mas um movimento em sua direção, sempre uma busca. E, como nunca deixou de ser busca, a filosofia não envelheceu: continua hoje tão jovem quanto era em sua remota origem. Se a juventude é vista pelos acomodados como um “incômodo”, o mesmo acontece com a filosofia. No século V a.C., Sócrates, já idoso, foi condenado à morte pelo tribunal popular de Atenas. Diziam que ele não acreditava nos deuses da cidade e corrompia a juventude; mas na verdade ele incomodava demais aqueles que se sentiam confortáveis em sua situação. Ao longo de sua história, a filosofia seguiu sendo esse incômodo, causando desconforto nas pessoas, mas também possibilitando a emergência de novos saberes, de novas perspectivas e possibilidades. Não espere da filosofia, portanto, que resolva sua situação de “incômodo”. O que ela pode fazer é deixar você ainda mais incomodado. Mas o ajudará a perceber que o incômodo não é ruim, ao contrário, é o inconformismo que move o mundo, permite que cada um construa sua vida buscando seus próprios caminhos. A filosofia não tem uma “receita mágica” para resolver os problemas da vida de ninguém, mas pode ser um instrumento interessante para entendermos melhor as situações pelas quais passamos, possibilitando que façamos escolhas mais bem pensadas. Este livro pretende lhe dar a mão e começar a andar com você pelos caminhos da filosofia. Daqui para a frente, você certamente poderá encontrar muitas outras companhias, filosóficas ou não, que o ajudem a ser sempre jovem, incomodando-se com o mundo e consigo mesmo, construindo uma vida criativa e singular. UNIDADE 1 A FILOSOFIA E O CONHECIMENT O Antônio era um cara pensativo. Às vezes, saía com os amigos e, no meio do papo na mesa da lanchonete, começava a pensar em certas coisas e se esquecia do resto. “Puxa, o que é que eu estou fazendo aqui? Qual o sentido disto tudo?” Não que essas questões – e muitas outras – tirassem o seu sono (era um cara “desencanado”), mas ele se divertia pensando nelas, pois nunca conseguia chegar a uma conclusão. Pensar nelas era para ele uma diversão, como conversar com os amigos, ou como para alguns é divertido jogar paciência ou montar quebra-cabeças. Os amigos às vezes até se incomodavam um pouco com isso, mas curtiam demais o Antônio para implicar com ele. Ficava tudo na brincadeira. Um dia, quando estava lá, pensativo e distraído, Carlos lhe disse: “Pô, cara! Fica aí no mundo da lua, até parece que está filosofando!” E ele pensou: “Mas será que isso que eu faço, de ficar assim pensando com calma nas coisas, é que é filosofia?” A primeira ideia que nos vem à cabeça quando tentamos definir a filosofia é a de buscar uma razão histórica para sua existência. E como não temos a intenção de defini-la e nem de localizar precisamente a sua origem, preferimos admitir a filosofia como “ato de filosofar” e, com base nisso, compreender o homem como um ser situado numa época que se sente perplexo com a realidade vivida e começa a se interrogar sobre tal realidade, buscando uma razão fundamental para tudo o que existe. O melhor meio de se aproximar da filosofia é fazer perguntas. Só que não são perguntas/questões. São perguntas/problemas. São perguntas de caráter reflexivo, ou seja, o pensamento dentro de uma ação humana que permite uma tomada de atitude dos homens diante dos acontecimentos da vida. Reflexão vem da expressão latina reflectere, que significa “voltar atrás”. Ou seja, um repensar detidamente, prestar atenção, analisar com cuidado e interrogar-se sempre sobre as opiniões, as impressões, os conhecimentos técnico-científicos e o próprio sentido da filosofia. É difícil precisar o instante exato em que se inicia a atividade filosófica na história, ou quando as perguntas/problemas começam a ser feitas pelas pessoas em suas épocas. Para isso, precisaríamos saber em que momento o homem começou a questionar-se sobre si mesmo, sobre os outros homens, sobre o mundo em que vive. Em suma, teríamos de determinar quando e por que o homem começou a pensar mais seriamente, mais profundamente sobre determinados fenômenos que perturbavam sua existência. É claro que muitas explicações foram criadas para os fenômenos naturais que incomodavam os seres humanos; mas, em certo momento, alguns começam a duvidar dessas explicações. A partir da dúvida, o ato de filosofar ganha proporções importantes, pois, percebendo as contradições existentes nas diversas explicaçõesdos acontecimentos do mundo, o homem passou a questioná-las, a pô- las em xeque, e a buscar respostas mais coerentes, mais concretas para suas interrogações. A primeira experiência com o “ato de filosofar” de que temos conhecimento deu-se na Grécia Antiga. Com o nascimento da pólis, as cidades-Estado gregas passam a expandir poder político, econômico e cultural para outras civilizações, o que permitiu o desenvolvimento de aspectos importantes da cultura, das formas de governo, da participação popular, influenciando o desenvolvimento intelectual e permitindo que surgissem os problemas reais sobre a existência do cosmo (os gregos chamavam o mundo de cosmos, que significa ordem, beleza, harmonia em oposição ao caos, a desordem de quando ainda não havia sido criado o mundo). É aí que aparece a figura do filósofo, ou seja, um “amante da sabedoria”, alguém cujo objetivo é chegar à sabedoria. É por isso que o pesquisador Jean-Pierre Vernant afirmou que “a filosofia é filha da cidade”. Dizem que a palavra filósofo foi inventada por Pitágoras no século V a.C. Ele era reverenciado como um sábio (sofos, em grego), mas, como era um tanto modesto, dizia-se quando muito um amigo do saber (de filos, que significa amigo, amante – vem de filia, amizade – e sofia, sabedoria, saber), cunhando a palavra filósofo. Só mais tarde surgiu a palavra filosofia, para designar a atividade daqueles que se caracterizavam como filósofos. O filósofo procura desvendar o saber. Não um saber pronto e acabado, mas um saber que experiencia o não saber, que faz o movimento da ignorância ao saber. Aquele que busca conhecer alguma coisa, que está sempre à procura de respostas e da constante superação dessas respostas, pois, sempre que chegamos a uma resposta, ela nos desperta para inúmeras outras perguntas. Por isso, definimos anteriormente a pergunta filosófica como uma pergunta/problema. O ato de filosofar começou a surtir efeito naquelas comunidades primitivas que frequentemente recorriam a mitos para explicar os fenômenos não compreendidos. O mito, em geral, era – e é até hoje – uma explicação que utiliza elementos simbólicos e sobrenaturais para entender o mundo e dar sentido à vida humana, respondendo satisfatoriamente à curiosidade das pessoas. Muitos acreditavam e acreditam em certas explicações mitológicas sem fundamentação lógica de um saber racional e sem colocar em dúvida aspectos dessa crença. O mito não coloca em dúvida suas explicações: são verdades absolutas a serem cegamente seguidas; já a filosofia caracteriza-se por sempre buscar algo mais, por não se contentar com a primeira explicação disponível. A filosofia nasceu e nasce da aspiração de estar em toda parte e em qualquer circunstância. É como o ar que respiramos e que nos coloca diante de questões que exigem “atitudes” para tomar certas decisões que preencham nossas aspirações. É por isso que a filosofia ainda não teve fim, e provavelmente jamais terá, embora, em muitos momentos da história, filósofos tenham tido a pretensão de ter alcançado a sabedoria, isto é, o fim da própria atividade filosófica. Mas suas ideias foram logo questionadas, e sua pretensão ruiu, seguindo a filosofia seu caminho de busca de um saber cada vez mais aprimorado. Você está percebendo que a filosofia é uma atividade em constante transformação: depende da cenografia de cada época e dos atores que sobem ao palco – os filósofos que tentam compreender essa cena que vivem. Desse modo, é muito difícil definir o que seja filosofia, pois ela assume diferentes feições. Para facilitar sua compreensão, falaremos um pouco de três grandes figuras do período clássico grego, que viveram entre os séculos V e III a.C. e de como viveram a atividade filosófica. Sócrates A figura de maior destaque da filosofia grega clássica foi Sócrates. Ele nada escreveu, mas andava pelas ruas de Atenas conversando com as pessoas. Gostava de interrogá-las sobre suas crenças, levando-as a perceber o quão transitórias elas eram. Buscava um conhecimento mais elaborado, mas, quanto mais conhecia, mais tinha consciência de que sabia muito pouco. Por assumir humildemente uma posição de ignorância, foi declarado pelo Oráculo de Delfos como o homem mais sábio do mundo. Vivenciando as experiências do dia a dia e tentando questionar sempre os acontecimentos da cidade e as relações entre as pessoas, Sócrates, atento ao caminho da perfeição, inquietava os cidadãos atenienses com a magia da arte do diálogo. Ele nos ensinou que a atividade de filosofar não se distingue do próprio ato de viver, que o ato de filosofar consiste em conscientizar-nos de que nada sabemos. Nas suas conversas na praça do mercado de Atenas, ele não queria ensinar, mas aprender com as pessoas. Nesse diálogo, ambos aprendiam. Sócrates conversava com as pessoas e frequentemente fazia perguntas. Levava seus interlocutores a ver os pontos fracos de suas próprias reflexões. Com base nisso, permitia que a outra pessoa chegasse a suas próprias conclusões. Na verdade, Sócrates dialogava com as pessoas, forçando-as a usar a razão. Ele mergulhou no saber. Procurou compreender os conflitos da cidade, das gerações, dos costumes e, a partir daí, mergulhou num constante exercício de vida, no confronto diário com as contradições do saber. Sócrates sabia muito bem que nada sabia sobre a vida e o mundo. E que isso era um ponto de partida para chegar à verdade. Ele próprio dizia que a única coisa que sabia era que não sabia nada. “Eu só sei que nada sei” era seu conhecido lema. Platão Essa posição o confrontava com os sofistas, que geralmente se satisfaziam com respostas prontas e acabadas. Para Sócrates os questionamentos são mais importantes e perigosos. Uma única pergunta pode ser mais importante do que várias respostas. Responder não é perigoso. Ele acreditava que o conhecimento do que é certo leva ao agir correto. Por isso é tão importante ampliar nossos conhecimentos. E ele estava preocupado em encontrar definições claras e válidas para o que é certo e o que é errado, afirmando que essa capacidade de distinguir o certo e o errado estava na razão. Só assim, agindo de acordo com a razão, pensava ele, as pessoas poderiam ser de fato felizes: não uma felicidade baseada nas aparências, mas uma felicidade real, daquele que também busca fazer os outros felizes. Mas os questionamentos de Sócrates despertaram o ódio de muitos atenienses, perturbados em suas “certezas” e vendo ruir seu mundinho bem construído. Com mais de 70 anos de idade, ele foi preso, julgado e condenado à morte, acusado de não acreditar nos deuses da cidade e de corromper os jovens. Os atenienses quiseram dar uma lição à filosofia, tentando fugir do incômodo causado por ela. Platão foi discípulo de Sócrates e também cidadão ateniense. Era uma pessoa de família rica, culta, inteligente e produziu discursos e várias obras filosóficas. Destacou-se após a publicação do discurso em defesa de Sócrates, que havia bebido o cálice de cicuta, a pena de morte vigente em Atenas. À escola que fundou em Atenas, ele deu o nome de Academia. Nessa escola ensinava-se filosofia, matemática e ginástica. E também utilizava-se o método dialógico criado por Sócrates, pois Platão o considerava seguro e importante para o desenvolvimento da filosofia. A preocupação central de Platão consistia em perceber a relação entre aquilo que, de um lado, é eterno e imutável, e aquilo que, de outro, flui, ou seja, movimenta-se. Concluiu que aquilo que é eterno e imutável está no plano ideal, racional, espiritual. Está naquilo que ele chamou de mundo das ideias. Já aquilo que flui pertence ao mundo dos sentidos, dos acontecimentos, e é feito de um material sujeito à corrosão do tempo. De fato, essa preocupação de Platão aparece porque ele estava querendo provar a existência do conhecimento verdadeiro. Partiu da constatação de que tudo aquilo que sabemos, temos acesso ou pelos sentidos (visão, audição, tato, paladar, olfato) ou pelo pensamento, pela razão. Qual dos dois seria o mais confiável? O conhecimento sensívelera o do mundo dos sentidos, que flui e se transforma; portanto, é um conhecimento transitório. Já as ideias só podem ser conhecidas pelo pensamento; nós não conseguimos ter uma percepção sensível de uma ideia (vê-la, cheirá-la etc.), mas o mundo das ideias é o mundo da perfeição, aquele que é eterno. Então, ele chegou à conclusão de que o verdadeiro conhecimento é o das ideias, e não o dos sentidos, que são apenas aparências. Mas o verdadeiro conhecimento não pode desprezar o mundo dos sentidos; só com base nele é que podemos chegar nas ideias. Portanto, era preciso partir do mundo dos sentidos, compreender como ele se manifesta na realidade e formular uma ideia sólida para chegar a um conhecimento que não nos traga dúvidas, do qual possamos estar seguros. A razão é eterna e imutável, pois emite juízos daquilo que só se manifesta sobre dados que são eternos e universais, levando-nos a ideias verdadeiras, ao passo que as opiniões e os sentidos podem nos dar ideias falsas sobre o que sentimos e percebemos, pois estão baseados na transitoriedade. Essa divisão entre dois mundos é a marca da filosofia de Platão, aparecendo também em sua visão do homem, separando o corpo da alma. Para ele, o espírito ou a alma é intelectiva (racional) e superior. O corpo é irracional (sensível) e inferior. O corpo, com suas inclinações e paixões, contamina a pureza da alma racional, impedindo-a de contemplar as ideias perfeitas e eternas. Como nossos sentidos estão ligados ao corpo, não são totalmente confiáveis. Confiável é a alma imortal, onde existe a morada da razão. E porque a alma não é material, ela pode ter acesso ao mundo das ideias. Mas Platão dava um papel importante aos exercícios físicos, atribuindo a eles a qualidade de vivificar a alma e permitir a sua concentração na contemplação das ideias. Ele mesmo era um atleta (seu verdadeiro nome era Arístocles, mas recebeu o apelido Platão que, em grego, significa “ombros largos”) e acreditava que a ginástica e a música permitem a superioridade do espírito sobre o corpo. Assim, a alma só pode desenvolver-se com um corpo forte e saudável; ao contrário, a fraqueza física torna-se um empecilho à vida superior do espírito. Platão defendia a existência de um mundo ideal, perfeito e imutável. No nosso mundo sensível, tudo deveria buscar o modelo dessa perfeição. E para isso, era preciso encontrar, também para a sociedade, um modelo que privilegiasse esse raciocínio. Baseando-se nisso, ele imaginou um Estado constituído como o corpo humano. Segundo ele, o corpo humano consistia em três partes: cabeça, peito e baixo-ventre. A razão pertence à cabeça, a vontade ao peito e o desejo ao baixo-ventre. A razão deve inspirar sabedoria, a vontade deve mostrar coragem e os desejos devem ser controlados. Para existir uma perfeição social, a organização da sociedade deve ser de acordo com a classificação do corpo humano: governantes (cabeça), soldados (peito) e trabalhadores em geral (baixo-ventre). Só podem governar a sociedade aqueles que têm a possibilidade do pleno uso da razão, pois só eles podem compreender a ideia de Justiça e dirigir os demais segundo ela. E nesse caso, quem tem o pleno exercício Aristóteles da razão, segundo Platão, é o filósofo. É por isso que, para ele, ou os filósofos tornavam-se reis, ou os reis deveriam tornar-se filósofos. Platão inventou uma forma de fazer filosofia: pegou emprestado de Sócrates o método da conversa, do diálogo para expressar suas ideias. Mas, diferente do seu mestre, não ficava pelas ruas conversando com as pessoas; pensava e tentava chegar a ideias cada vez mais perfeitas. Para comunicar aos outros essas ideias, escrevia na forma de diálogos, com vários personagens conversando entre si e defendendo ideias diferentes. Na imensa maioria de suas obras, Sócrates era a personagem principal, na boca da qual Platão colocava as ideias que pretendia demonstrar. Aristóteles pertenceu à Academia de Platão. Não era ateniense, mas da cidade de Estagira, e filho de um médico/cientista. Sua formação e seu interesse pela natureza fizeram com que divergisse do mestre Platão (que não se preocupou muito com o mundo dos sentidos), procurando ser também um estudioso da natureza viva e de seus processos de mudanças e evolução. Aristóteles é considerado como aquele que, na cultura grega, organizou, sistematizou e ordenou as várias ciências. Ele dizia que as ideias não nascem conosco, elas se formam em nós com base nas experiências que temos na vida. Por exemplo: para Platão, existe primeiro a ideia de cavalo (razão) da qual cada cavalo que vemos é uma cópia. Para Aristóteles, existia a forma do cavalo, derivada daquilo que chamamos de espécie, classificação que fazemos pelos sentidos. Para ele, a realidade está em percebermos ou sentirmos tudo o que está a nossa frente e, com base nisso, elaborarmos nossa visão de mundo. Pensava ele que todas as nossas ideias e todos os nossos pensamentos tinham entrado em nossa consciência através do que víamos e ouvíamos. Mas acreditava que temos uma razão inata – temos a capacidade de ordenar em diferentes grupos e classes todas as nossas impressões sensoriais. Somos capazes de criar conceitos e classificá-los, por exemplo, em animal, vegetal ou mineral. Aristóteles era um homem meticuloso e queria encontrar ou explicar racionalmente os acontecimentos dos fenômenos da natureza. Para ele, era importante ficar claro como nossos sentidos captam as formas das coisas. Tomando o exemplo de uma árvore, ele dizia que existe a forma da árvore, captada pelos nossos sentidos. Mas existe também uma substância, que é aquilo que faz com que a árvore seja árvore. Na semente, a substância da árvore já está presente, mas que ela deve atualizar aquilo que ainda é uma possibilidade, germinando, crescendo e transformando-se em árvore. O movimento que ocorre na natureza, segundo ele, é uma transformação nas formas que, pela atualização da substância, faz com que uma possibilidade se torne realidade. Se percebemos as formas pelos sentidos, a substância só pode ser encontrada pela razão. Percebemos que, no pensamento de Aristóteles, existe um esforço de ordenação. Ele estabeleceu uma certa ordem lógica na classificação do mundo da natureza e afirmou que, para chegar a certas conclusões sobre ela, era preciso estabelecer certos princípios. Por exemplo: todas as criaturas vivas são mortais. O homem é um ser vivo. Portanto, todo homem é mortal. Essa é a forma do que ele chamou de silogismo, e a lógica formal sistematizada por Aristóteles é a que rege nosso pensamento até hoje. No pensamento de Aristóteles, encontramos também uma preocupação com a organização da sociedade (política) e também com a forma que cada indivíduo dá para sua própria vida particular. Talvez ele tenha sido o primeiro filósofo da Antiguidade a falar em ética com uma preocupação central em relação à vida humana. A vida humana se diferencia da dos animais porque se manifesta com intencionalidade, vontade e desejo de ser feliz. Aristóteles acreditava em três formas de felicidade: a primeira é uma vida de A filosofia e os demais conhecimentos prazeres e satisfações; a segunda é uma vida de cidadão livre e responsável; e a terceira é viver como pesquisador e filósofo. E essas três formas só se sustentam se realmente forem integradas entre si. Ou seja, é preciso buscar um equilíbrio corporal, espiritual e social para que a vida humana se realize como expressão da felicidade. Dentro dessa preocupação com a vida e suas buscas de realização, Aristóteles procurou expressar uma visão de sociedade que permitisse o convívio harmônico dos seres humanos. Como não podemos viver somente segundo nossas intenções, é preciso organizar a sociedade de forma que ela nos auxilie a viver melhor. E a forma mais elevada do convívio humano, segundo Aristóteles, só pode ser o Estado. Para Aristóteles, existem três formas puras de governar o Estado: a monarquia (ou governo de um só), a aristocracia (ou governo dos melhores) e a democracia (ou governo realizado porum grande número de cidadãos). Segundo ele, essas três formas só são válidas e justas se encontrarem um verdadeiro sentido de organização dos cidadãos, em que necessidades básicas como comida, trabalho, educação e família sejam colocadas no plano de convívio humano e de satisfação das nossas necessidades vitais de existência, visando a promoção do bem de todos. Diferente de Platão, Aristóteles escrevia na forma dissertativa, procurando argumentar segundo as leis da lógica, inaugurando a forma pela qual a escrita filosófica seria conhecida ao longo dos séculos. Tentamos aqui caracterizar a atividade filosófica por meio de uma rápida visão desses três filósofos clássicos, que viveram numa época muito próxima da origem dessa forma de saber. Fica evidente que suas contribuições ao mundo do conhecimento enriquecem nossas pesquisas e nos dão oportunidade para compreender melhor como o pensamento filosófico evoluiu. Percebemos também que, embora tenham vivido próximos entre si – Platão foi aluno de Sócrates e Aristóteles, aluno de Platão –, suas ideias diferenciam-se bastante. Ao longo do desenvolvimento da história, poderemos ver o aparecimento das mais diferentes posturas e ideias filosóficas. Outra coisa que esperamos que tenha ficado clara para você é que a filosofia é uma forma de conhecimento. Ela surgiu em oposição a uma outra forma de conhecimento, o mito. Se o mito caracteriza-se por buscar explicações sobrenaturais e definitivas sobre os fatos do cotidiano, a filosofia constitui-se numa constante interrogação, busca explicações racionais, baseadas na própria natureza, para dar significado ao mundo e a nossas vidas. Essas duas formas de conhecimento coexistem até hoje, junto com outras. Na busca de explicações racionais, a filosofia não ficou sozinha. Na verdade, ela se desenvolveu tanto que, num determinado momento, já não era possível que uma única pessoa pudesse se dedicar a pesquisar sobre muitas coisas. Como já vimos, Aristóteles estudava lógica, matemática, física, biologia, política, ética... Hoje, se alguém se dedica a estudar matemática, é provável que passe toda a sua vida pesquisando, e não conheça mais do que algumas partes específicas dessa área do conhecimento. Com o crescente desenvolvimento dos conhecimentos e o consequente acúmulo de informações, além da busca constante de uma forma (método) de produzir conhecimentos verdadeiros, surgiu na Idade Moderna uma nova forma de conhecimento: a ciência. Podemos afirmar que todas as ciências que conhecemos hoje são filhas da filosofia, pois todas elas foram, num primeiro momento, uma área da interrogação filosófica. Aos poucos, cada uma delas foi se isolando, constituindo uma área própria de pesquisa e de saber. Após séculos de esforços e discussões acumuladas de inúmeros filósofos, apareceu no século XVII o método científico que conhecemos hoje, baseado na experiência. A aplicação desse método a cada objeto de curiosidade constituiu uma ciência diferente: primeiro a física, depois a química, um pouco mais tarde a biologia e, mais recentemente – apenas no século XIX –, as chamadas ciências humanas e sociais: psicologia, história, sociologia... A característica básica da ciência, portanto, é ter um único método aplicado a vários objetos; muda o objeto, muda a ciência. Já a filosofia, como vimos, pode ser construída de várias maneiras (não tem um método único) e possui vários objetos de estudo (de fato, qualquer coisa pode ser objeto de estudo filosófico). Fica claro, então, que, embora as ciências tenham surgido da filosofia, hoje elas constituem formas de conhecimento diferentes. Mas tanto a filosofia como as ciências caracterizam-se por buscar um conhecimento verdadeiro, fundamentado racionalmente e que não se contente com explicações imediatas e definitivas. De outro lado, teríamos o mito e a religião como outras formas de conhecimento, baseadas numa busca de explicações definitivas e inquestionáveis sobre os acontecimentos de nosso dia a dia. Texto complementar “DEFINIÇÕES DE FILOSOFIA” Você percebeu que nesta unidade não tentamos em momento algum “definir” o que seja filosofia, pois não há um consenso em torno disso, isto é, ainda não foi criada uma definição que satisfaça a todos os filósofos. Citaremos aqui a tentativa que alguns grandes filósofos fizeram de definir sua atividade. “A admiração sempre foi, antes como agora, a causa pela qual os homens começaram a filosofar: a princípio, surpreendiam-se com as dificuldades mais comuns; depois, avançando passo a passo, tentavam explicar fenômenos maiores, como, por exemplo, as fases da lua, o curso do sol e dos astros e, finalmente, a formação do universo. Procurar uma explicação e admirar-se é reconhecer-se ignorante.” Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) “Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem o canse fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz.” Epicuro (341 a.C. - 270 a.C.) “... filosofia, tal como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária no gelo e nos cumes – a busca de tudo o que é estranho e questionável no existir, de tudo o que a moral até agora baniu.” Friedrich Nietzsche (1844-1900) “O que pretendo sob o título de filosofia, como fim e campo de minhas elaborações, sei- o, naturalmente. E contudo não o sei... Qual o pensador para quem, na sua vida de filósofo, a filosofia deixou de ser um enigma?” Edmund Husserl (1859-1938) “Qual o seu objetivo em filosofia? – Mostrar à mosca a saída do vidro.” Ludwig Wittgenstein (1889-1951) “A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo.” Maurice Merleau-Ponty (1908- 1961) “A filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos... O filósofo é o amigo do conceito, ele é conceito em potência... Criar conceitos sempre novos é o objeto da filosofia.” Gilles Deleuze (1925-1996) e Félix Guattari (1930-1993) Proposta de atividades 1. Organizar com a classe, na forma de um teatro, um debate sobre um tema polêmico da atualidade (de preferência escolhido de uma pesquisa em jornais) que reproduza a estrutura de um diálogo de Platão, aplicando o método socrático de investigação. 2. Fazer uma pesquisa nos livros de História Antiga sobre a Grécia no período de surgimento da filosofia (século VII a.C.) e dos filósofos estudados nesta unidade. Procure perceber as suas características sociais, políticas e culturais. 3. Entrevistar professores de outras disciplinas, das várias áreas, perguntando como eles veem a relação de sua ciência com a filosofia. 4. Analise e discuta a letra de música a seguir, estabelecendo suas relações com o estudado nesta unidade. TEMPO (Arnaldo Antunes e Paulo Miklos) será que a cabeça tem o mesmo tempo que a mão? o tempo do pensamento, o tempo da ação será que o teto tem o mesmo tempo que o chão? o tempo de decompo tempo de decomposição será que o filho tem o mesmo tempo que o pai? o tempo do nascimento, crescimento, envelhecimento um momento como matar o tempo? (Do CD Ninguém, 1995) Indicações de leitura Se você quiser conhecer um pouco da história da filosofia desde o seu surgimento na Grécia até os dias de hoje, uma boa pedida é o livro de Jostein Gaarder, O mundo de Sofia, publicado no Brasil pela Editora Companhia das Letras e que já vendeu milhões de exemplares em todo o mundo. Na forma de uma história policial, o autor conta a história de Sofia, que está para completar 15 anos, e da misteriosa Hilde. Tudo recheado pelas ideias dos principais filósofos de todos os tempos, descritas com muita precisão e simplicidade. Sobre Platão, há o livro de Jorge Cláudio Ribeiro: Platão – Ousar a utopia, da coleção Prazer em Conhecer, paradidáticos de filosofia publicados pela Editora FTD; sobre Aristóteles, duas possibilidades interessantes: Aristóteles – O equilíbrio do ser, de Otaviano José Pereira, publicado na mesma coleção do anterior, e Aristóteles– A plenitude como horizonte do ser, de Maria do Carmo Bettencourt de Faria, este da Editora Moderna, Coleção Logos, outra dedicada a publicar paradidáticos sobre importantes filósofos. No livro sobre Platão, você encontrará o texto da “alegoria da caverna”, trecho de um dos principais diálogos de Platão (A república), em que ele explica como vê o filósofo e a filosofia. O autor faz uma análise muito interessante do texto, além de apresentar algumas “versões atualizadas” da história. Sugestões de trabalho complementar MÚSICAS: • Roda viva, de Chico Buarque • Pensamento, do Cidade Negra • Como uma onda, de Lulu Santos • Maluco beleza, de Raul Seixas • O que swingnifica isso?, de Arnaldo Antunes (no CD O silêncio) FILMES: • O nome da rosa. Adaptação do célebre romance de Umberto Eco, que retrata uma biblioteca medieval e a relação com o conhecimento naquele período. Um bom exemplo do exercício da lógica na investigação de assassinatos. • Giordano Bruno. A vida e as ideias desse monge renascentista, cientista e filósofo, e o trabalho da Inquisição, que acaba por condená-lo à fogueira. • Matrix, 13º andar e Vanilla sky. Cada um deles apresenta, à sua maneira, um interessante questionamento sobre o que é, de fato, a realidade. No caso de Matrix, temos ainda uma visão atual da “Alegoria da caverna”, de Platão, além da possibilidade de discussão da filosofia de Descartes, Hegel ou Marx, por exemplo. UNIDADE 2 POLÍTICA E CIDADANIA Maurício está vendo o final do Jornal Nacional com Sandra, sua namorada. Não foram para a escola hoje, e esperam para ver o último capítulo da novela das oito, que há muito tempo não começa nem às oito nem às oito e meia. Às 20h30min, o jornal termina e eles ficam felizes, pois isso é difícil de acontecer. – Oba, já vai começar a novela! Mas a decepção é imediata; a TV anuncia: “Interrompemos nossa programação para transmitir o horário eleitoral gratuito, conforme determinação do Ministério da Justiça. Voltamos a seguir com a programação normal.” –Ah, não! Teremos que aguentar aqueles chatos de novo! Maurício e Sandra desligam-se da TV enquanto namoram no sofá, mas, de vez em quando, ainda veem na tela aquelas mesmas caras de sempre, que certamente estarão fazendo, de novo, as mesmas promessas. Desligam a TV e voltam ao namoro. Novela mesmo, só mais tarde. Participação: Palavra de ordem Volta e meia, a sociedade chama seus membros para participar. Participar de uma missa, de um torneio esportivo, de uma campanha de aquisição de agasalhos etc. Participação, essa é a palavra de ordem. Porém, será que já paramos para pensar nessa tal participação? Interessante reparar, antes de mais nada, que o ato de participar nunca é feito sozinho; não é um ato isolado de alguém que não tem companhia, mas algo que fazemos com os outros. O solidário, que está sempre disposto a participar, porta-se desta maneira: está em comunhão; vive ansioso pelo encontro; faz questão de trocar as suas experiências de vida com os outros. Sabe muito bem que viver é acima de tudo con-viver. O solidário é o companheiro; você já pensou sobre o significado dessa palavra? Ela vem do latim, cum- panere, e significa algo mais ou menos como “aqueles que comem juntos o pão da vida”. Logo, o companheiro, o solidário, é aquele que divide sua vida com os outros, aquele para quem a vida não é apenas uma coexistência com os outros, mas uma verdadeira convivência, um viver com os outros. Mas há outros que são diferentes: um indivíduo que está sempre em seu canto, não compartilha seus desejos, suas emoções, seus pensamentos, enfim, sua vida com os outros. Pode-se dizer que tal indivíduo é um marginalizado, não por que foi discriminado, mas porque ele mesmo se isolou dos outros. Essa vivência à margem tem como resultado a consideração de que o ser humano pode e, às vezes, até deve se isolar dos demais. Mas como podemos fugir do encontro se, queiramos ou não, estamos sempre partilhando uns com os outros? O poeta inglês John Donne começou um poema com o verso: “Homem algum é uma ilha.” Somos seres sociais, “animais políticos” como já definiu Aristóteles há 2.500 anos atrás, o que nos leva a necessariamente tomar parte de grupos humanos, a viver nossa vida As relações humanas e o poder junto a muitas outras pessoas iguais a nós. É por isso que, por mais que queiramos escapar, fugir para uma ilha deserta, a sociedade está sempre atrás de nós. Até podemos nos isolar por alguns instantes, mas, ao irmos para a escola, para o trabalho, para o clube, para a igreja ou para qualquer outro lugar, estaremos encontrando pessoas, estaremos participando de grupos sociais. O ato de participar é uma condição humana da qual não podemos escapar. Quem pensa que escapa, está iludindo a si mesmo. Convivendo com outros homens, os conflitos de vontades e interesses são sempre inevitáveis. No momento do impasse, que é uma luta entre diferentes desejos, um indivíduo quer impor ao outro a sua vontade. Normalmente quem vence esse conflito é aquele mais bem aparelhado: dependendo da circunstância, pode ser o mais forte, o mais inteligente, o mais jovem, o mais bonito... A capacidade de transformar as vontades dos outros na sua vontade é aquilo que chamamos de poder. Numa primeira aproximação, o poder seria a capacidade de realizar qualquer ato ou ação; um aspecto importante é que ele pressupõe até mesmo a oposição, constituindo, então, a capacidade de superar essa oposição pela força, impondo-se a ela. De modo geral, o poder seria a potência para realizar determinado desejo ou vontade. O jogo de poder apresenta-se, assim, como um jogo de vontades, no qual a vontade de um – o mais forte, por alguma razão – acaba se impondo sobre a vontade de outro ou outros. A noção de poder implica também a capacidade de ter suas ordens obedecidas. Aquele que é investido de poder – um indivíduo ou uma instituição – tem a chance e os instrumentos para potencializar suas vontades, transformando-as em atos. Não podemos, entretanto, julgar que a ação do poderoso dá-se unicamente no sentido de subjugar e neutralizar a(s) vontade(s) alheia(s). Embora em casos bastante específicos a ação hegemônica do poder só seja possível por meio da neutralização das demais vontades – é o caso do totalitarismo –, de modo geral, o poder age pelo convencimento e pela manipulação das vontades alheias. Assim, em vez de agir pela neutralização das vontades, o poder age muito mais por meio de sua transformação; tomar o conjunto das vontades diferentes e torná-las uma, a vontade do poderoso, com a qual os demais devem concordar. Nessa visão clássica do poder, ele é compreendido como uma coisa que se concentra em determinados espaços de um grupo social: o lugar do poder é o Palácio do Governo, é a Câmara dos Deputados, ou mesmo o próprio corpo do rei, que a todos governa. Se apenas um tem o poder, todos os outros indivíduos não têm poder algum: é uma sociedade servil. Mas de onde viria o poder desse indivíduo? Por que todos o obedecem? Um filósofo do século XVI chamado Etienne de la Boétie, num pequeno livro, o Discurso da servidão voluntária, forneceu a pista para entender a charada: quando um indivíduo manda, seu poder vem não dele mesmo, mas dos outros que se submetem. De sua perspectiva, o que sustenta o tirano não é a sua própria autoridade, mas a entrega dos súditos, isto é, a dominação só é possível com o concurso direto dos próprios dominados. Segundo ele, em torno do tirano constrói-se uma rede de interesses. O tirano tem 6 assessores diretos, cada um deles tem mais 60 empregados e assim por diante, de modo que toda a sociedade acaba envolvida nessa rede de interesses. Desse modo, o que garante o poder do tirano é uma rede de micropoderes e interesses que se constrói a sua volta, o que, ao invés de enfraquecer esse poder central pela diluição, fortalece-o, sendo seu próprio sustentáculo e sua própria garantia. A política Mas, se os indivíduos se recusarem a servir, acaba o poder do tirano. Portanto, a sociedade servil dependedo consentimento dos indivíduos; se eles resolverem não mais obedecer a um rei e solucionar seus próprios problemas políticos, eles podem construir novas formas de relação social. Ao decidir fazer algo, o ser humano deve levar em conta seus interesses. O interesse é o objetivo que a decisão poderá alcançar. Por exemplo: quando alguém decide estudar, acredita que, com um nível mais alto de conhecimento, poderá conseguir uma ascensão, seja profissional, social ou interior. Esse mesmo alguém prefere o estudo ao analfabetismo. Estão implicados nesta ação o interesse em ascender e a decisão de se alfabetizar. Em filosofia, isso é o que chamamos de valor. Todo ato humano está fundamentado em determinados valores, em determinados interesses; para dizer de outra maneira, sempre que fazemos alguma coisa, temos em mente algum objetivo a ser alcançado com aquela ação. Até aqui, a discussão se fez em um nível particular. A discussão sobre a orientação das ações humanas em caráter particular é chamada de ética; é ela quem pode nos ensinar a bem conduzir nossas vidas. Mas, quando alguém procura conduzir a um público maior seu interesse e sua decisão, a fim de que esse público se engaje, ele está exercendo aquilo que denominamos de política. Se a ética é a reflexão sobre a fundamentação dos atos humanos em sua particularidade – isto é, no que diz respeito à vida privada de cada indivíduo –, a política é a reflexão sobre os atos humanos que se cometem em sociedade, na vida pública. O engajamento do público se dará pelos interesses que estiverem em jogo. Portanto, política é a tomada de decisões que visem objetivar interesses que irão refletir na coletividade. Deve ficar claro para você que ética e política devem sempre andar juntas, pois, se vivemos em A democracia sociedade, é muito difícil distinguir se determinadas ações que fazemos terão consequências apenas privadas ou se estenderão para outras pessoas, na esfera pública. Apenas um exemplo: se alguém decide estudar para conseguir certa ascensão social, isso não diz respeito apenas a essa pessoa; para a coletividade, faz muita diferença tomar parte dela um indivíduo analfabeto ou um indivíduo bem formado. No momento em que se fala sobre política, logo vem à mente o governo. Faz-se a relação de que fazer política é governar. Se pensarmos assim, apenas poucas pessoas “fazem política”. Mas será que, de fato, a política é apenas exercida na esfera do governo? Também se fala muito que vivemos sob a forma de governo chamada democracia. Abrimos um jornal ou uma revista e lá está essa palavra estampada. Na televisão e no rádio também se diz muito sobre ela. Mas que coisa é essa? O que é a democracia? Você já pensou a respeito? Vamos recuar um pouco no tempo e dar uma olhada na pólis grega, que foi a primeira experiência histórica de democracia. Os gregos, que no início eram tribos de pastores nômades, aos poucos foram se fixando em determinadas regiões, quando começaram a dominar as técnicas da agricultura e da pecuária. Como os demais povos antigos, começaram a constituir as cidades que, na sua língua, chamaram de pólis. Mas as cidades antigas eram um tanto quanto diferentes das nossas, pois eram unidades políticas autônomas. O que significa isso? Ora, a cidade na qual você mora não tem autonomia política; ela pode criar algumas leis, mas está submetida a uma série de leis estaduais, sendo que os Estados brasileiros, por sua vez, estão submetidos a leis federais. Nos dias de hoje, os países são as unidades políticas autônomas. No tempo dos gregos antigos, era como se cada cidade fosse um verdadeiro país, pois ela criava suas próprias leis. Por exemplo: uma lei válida em Atenas poderia não existir em Esparta ou em Delfos. A convivência entre os indivíduos, o envolvimento com os negócios relativos à administração da cidade, da pólis é o que eles chamavam de política. Muitas formas os gregos criaram para administrar a cidade, dependendo de como as pessoas se envolviam com essas atividades. Quando apenas uma governava, chamavam de monarquia; quando era um grupo maior de pessoas que se envolvia com a administração, chamavam de aristocracia. Num certo período da história de Atenas, uma das principais cidades gregas, por volta do ano 500 a.C., um legislador chamado Clístenes resolveu fazer uma reforma radical, fazendo com que todos os cidadãos se envolvessem com as atividades de administração da cidade. Clístenes fez uma arrojada divisão do território de Atenas, sendo que a cada unidade regional básica ele chamou de demos. Dos 30 demos que compunham a cidade eram sorteados os indivíduos que participariam dos diversos conselhos administrativos, encarregados da criação das leis e de sua execução. A aprovação das leis era feita pela Assembleia, que se reunia uma vez por mês e da qual poderiam participar todos os cidadãos. O nome democracia significa, portanto, governo dos demos, e não exatamente governo do povo como normalmente se diz. Se as decisões eram tomadas nas Assembleias, os homens precisavam exercer seu poder de persuasão nos debates realizados em praças públicas. O resultado desses debates eram decisões que refletiam na vida de todos os habitantes da pólis. Para fazer valer seus interesses, um indivíduo precisava dominar com perfeição as artes da retórica e da oratória, para convencer os demais a votar naquilo que ele defendia. Nesse momento, quando os homens tentavam convencer uns aos outros sobre determinadas coisas, estavam em pé de igualdade. A igualdade que todos tinham de falar para a pólis na Assembleia. Entretanto, um último detalhe histórico é necessário: nesse período, a cidade de Atenas contava com uma população de aproximadamente 400 mil pessoas. Mas nem todas eram cidadãs: os 200 mil escravos não eram considerados nem como gente; os 100 mil estrangeiros e mais as 60 mil mulheres e crianças não tinham direitos políticos. Eram cidadãos apenas 40 mil indivíduos livres do sexo masculino. E eram esses 10% da população que participavam da administração da cidade. Na Idade Moderna, quando as revoluções burguesas colocam fim ao regime feudal da Idade Média, a democracia volta à cena: é esse regime que será implantado como o melhor meio de governar, em oposição à monarquia que havia predominado até então. Mas agora já não existem escravos e a unidade política passou a ser o país (temos o Estado-nação e não mais a cidade-Estado), o que permite que mesmo as pessoas nascidas em outras cidades tenham direitos políticos. Como garantir então a participação de todos? A noção moderna de democracia como acesso de todos os indivíduos à administração da sociedade passa pela questão da representatividade. Clístenes criou em Atenas uma democracia direta ou participativa (todos os cidadãos participavam diretamente da administração), ao passo que a modernidade colocou a ideia de uma democracia representativa, isto é, um sistema no qual os indivíduos elegem uma certa quantidade de pessoas que vão representar seus interesses nos assuntos de administração da sociedade. A ideia é a seguinte: a ação democrática consiste em todos tomarem parte do processo decisório sobre aquilo que terá consequência na vida de toda a coletividade. Quem pode dizer o que é bom para todos? Aquele mesmo que irá provar – o próprio ser humano. Se não de forma direta, pelo menos por meio de seus representantes, desde que ele se mantenha ativo e vigilante, acompanhando o trabalho daqueles que elegeu. Mas a democracia representativa, se supostamente garante o acesso de todos aos mecanismos do poder, também possibilita o fenômeno da marginalização. A marginalização política Vamos nos reportar novamente ao isolamento. Os marginalizados políticos se retiram do processo decisório e se afastam dos demais. Abdicam do direito de falar sobre assuntos de interesse coletivo. É a instituição do silêncio político. Eles o fazem porque acreditam que assim poderão resolver melhor seus problemas particulares. Na época das eleições, desligam a TV na hora do horário eleitoral gratuito, ou a deixamligada sem prestar atenção ao que os sujeitos dizem. No dia de votar, cumprem com seu dever votando em qualquer um, pois tanto faz: “São todos iguais, mesmo.” Temos o abandono das questões públicas e a excessiva preocupação com as questões particulares. Cria-se um amontoado de indivíduos que buscam tão-somente voltar seus olhos para si mesmos. Nesse amontoado, ninguém se propõe a falar. O único conselho dado é não aconselhar. Esses indivíduos não se preocupam em votar em alguém que possa representar seus interesses e suas necessidades no governo. E parecem não perceber que, queiram ou não, vivem em meio a outros indivíduos, o que significa que sua vida depende dos outros e que aquilo que ele fizer também influenciará nas vidas alheias. O que significa isso? Relembrando que viver é acima de tudo con- viver, a esfera pública sempre vai existir. Se sempre existirá, alguém estará se ocupando dela. Quanto menos as pessoas participarem da política mais os interesses daqueles que se ocuparam da esfera pública irão prevalecer. As decisões a serem tomadas serão baseadas nesses interesses particulares, e não visando aos interesses coletivos. O silencioso político, queira ou não, perceba isso ou não, assume o que foi decidido pelos outros, sem nem mesmo colocar a público seu interesse. Portanto, assume a obediência e abdica da autodireção. Herda o status de governado e não o de governante. Quem prioriza em demasia suas questões particulares, priva-se da autodeterminação. A ação cidadã Mas as engrenagens da máquina de governo democrática não param de funcionar apenas porque algumas pessoas – mesmo que sejam milhares ou milhões – não dão atenção a elas. Elas continuam a fabricar as leis e os mecanismos sociais por meio daqueles, mesmo que sejam poucos, que estão participando. Mas é claro que estará funcionando segundo as ideias e os interesses dos que participam e não daqueles que se omitem. A democracia representativa permite ao indivíduo se esconder atrás de si mesmo e não participar, porque assim ele se exime da responsabilidade pelas questões políticas. É mais fácil afirmar que a questão da inflação é um problema do governo, que são os “políticos” que precisam resolvê-la. Mas esses indivíduos se esquecem de que a inflação tem consequências sérias na sua vida particular, e que ele jamais poderá dar conta delas sozinho. As questões públicas são responsabilidade de todos nós e, mesmo que alguns indivíduos tenham sido eleitos para cuidar delas, não basta que eles ajam, é necessário que cada um de nós, como membro dessa sociedade, faça a sua parte – por menor que seja. Ao trazer à tona o fato da marginalização política, podemos perceber que ela se volta contra o próprio ser humano. Quando os indivíduos se recusam a participar das decisões sociais, estão se recusando a decidir sobre suas próprias vidas. Estão aceitando que os problemas que dizem respeito a suas vidas sejam pensados e resolvidos por outras pessoas. Estamos, então, cara a cara com uma sociedade servil. Atestado o problema, é imperativo que se encontre a solução. Essa solução é a participação dos cidadãos nas questões públicas. Entenda-se aqui cidadão como uma categoria de mobilização e não de localização. Para os gregos antigos, o político era aquele que participava dos negócios da pólis. Quando a cultura grega foi assumida e difundida pelos romanos, que falavam latim, a pólis virou a cive em sua língua. É da palavra latina cive que se origina a palavra cidade, no português, e é também dela que vem a palavra cidadão. Portanto, cidadania é sinônimo de política no sentido grego, assim como cidadão e político são a mesma coisa. O cidadão não espera que o outro lhe dê as condições necessárias para participar, pois essas condições brotam de si mesmo. É a autodeterminação. O cidadão sabe que é preciso buscar; é preciso conquistar. É uma ação que não se acaba. O cidadão é sobretudo o participante. Para ter uma participação política efetiva, os cidadãos devem se organizar para a defesa de interesses comuns, adquirindo vez e voz. Estamos nos referindo à passagem do servilismo para o exercício da autêntica destinação da vida. Pela associação de todos os cidadãos, manter-se-á viva a noção de que o ser humano con-vive e far-se-á a defesa da democracia como a forma de governo que permite essa efetiva participação. E, com ela, os membros da sociedade não esperarão o chamamento, pois estarão participando por livre e espontânea vontade. Texto complementar A COTOVIA E OS SAPOS (adaptação livre de uma fábula chinesa) Era uma vez uma sociedade de sapos que vivia no fundo de um poço escuro e profundo, do qual absolutamente nada se via do mundo exterior. Eram governados por um enorme Sapo-Chefe, um valentão que afirmava, sob pretextos um tanto dúbios, ser dono do poço e de tudo quanto nele saltava ou rastejava. O Sapo-Chefe jamais movia uma palha para se alimentar ou se manter, vivendo do trabalho de diversos sapos trabalhadores com os quais ele compartilhava o poço. Essas pobres criaturas passavam todas as horas de seus dias escuros e muitas de suas noites tenebrosas a se matar na umidade e no lodo para encontrar os vermes e os insetos que engordavam o Sapo-Chefe. De vez em quando, uma cotovia excêntrica voava para dentro do poço (sabe Deus por quê!) e contava para os sapos as maravilhas que vira em suas viagens pelo imenso mundo lá fora. Falava do sol, da lua e das estrelas, das montanhas altaneiras, dos vales férteis e dos vastos mares, e ainda da delícia de explorar o espaço infinito. Sempre que a cotovia chegava de visita, o Sapo-Chefe recomendava aos sapos trabalhadores que escutassem atentamente tudo o que o pássaro tinha para contar. “Ela lhes está falando”, explicava o Sapo-Chefe (que, de qualquer modo, era meio surdo e nunca sabia direito o que a cotovia estava dizendo; achava aquela ave esquisita e inteiramente maluca), “da terra feliz para onde vão todos os sapos bons...” É possível que um dia os sapos trabalhadores se houvessem imbuído daquilo que o Sapo-Chefe lhes dizia. Com o tempo, porém, haviam se tornado céticos em relação aos contos da carochinha e chegado à conclusão de que aquela cotovia tinha um parafuso a menos. Além disso, haviam sido convencidos por alguns sapos livre-pensadores de que aquele pássaro estava sendo usado pelo Sapo-Chefe para consolá-los e distraí-los com histórias das maravilhas que existem no céu para os que morrem. “E isso é mentira!”, coaxavam furiosamente os sapos trabalhadores. Entretanto, havia entre eles um Sapo-Filósofo que formulara uma idéia nova e interessante a respeito da cotovia. “O que a cotovia diz não é exatamente uma mentira”, dizia ele. “Nem é loucura. Na verdade, ao falar dessa maneira esquisita, ela está se referindo ao lugar maravilhoso em que poderíamos transformar esse poço, se quiséssemos. Quando fala do sol e da lua, está se referindo às magníficas formas de iluminação moderna que poderíamos adotar para afugentar as trevas em que vivemos. Quando canta os céus altos, refere-se à saudável ventilação de que devíamos gozar, ao invés dos ares úmidos e fétidos a que nos acostumamos. Quando louva a embriaguez que vive ao lançar-se pelos céus, refere-se à delícia dos sentidos liberados que todos nós conheceríamos se não fôssemos obrigados a desperdiçar nossas vidas nesta labuta opressiva. E o que é mais importante: quando a cotovia enaltece o vôo altivo e livre entre as estrelas, refere-se à liberdade que todos teremos quando nos livrarmos da opressão do Sapo-Chefe. Veem? Não devemos desdenhar do pássaro. Em lugar disso, ele deve ser apreciado e louvado por nos proporcionar uma inspiração que nos livra do desespero.” Graças ao Sapo-Filósofo, os sapos trabalhadores passaram a olhar a cotovia com afeição. Na verdade, quando chegou afinal a revolução (pois as revoluções sempre acabam vindo), os sapos trabalhadores até mesmo pintaram a imagem da cotovia em seus estandartes e marcharam para as barricadas fazendo o máximo que podiam para, com o seu coaxar, imitar-lhe o belo canto. Derrubadoo Sapo-Chefe, o poço escuro e úmido tornou-se magnificamente iluminado e ventilado, transformando-se num lugar muito melhor para viver. Além disso, os sapos experimentaram um novo e gratificante lazer, acompanhado de muitas delícias dos sentidos – justamente como o Sapo-Filósofo havia previsto. Entretanto, a cotovia continuou a visitar o poço, contando histórias do sol, da lua e das estrelas, de montanhas, vales e oceanos, e de esplêndidas aventuras que vivera nos céus. “Quem sabe – conjeturou o Sapo-Filósofo – se afinal de contas esse pássaro não seja mesmo louco? Já não temos necessidade alguma dessas canções enigmáticas. E, seja como for, é muito cansativo ter de escutar fantasias quando já perderam sua relevância social.” Assim, um dia, os sapos conseguiram capturar a cotovia. Depois, empalharam-na e colocaram-na no recém-construído Museu Cívico (entrada gratuita...) em lugar de honra. Proposta de atividades 1. No ambiente político que você vive mais de perto: • Como se dão as decisões políticas em sua escola? São democráticas e participativas ou não? Como você vê isso? • Existe um grêmio em sua escola? Se existe, como ele se organiza? É uma democracia direta ou indireta? • Se não há um grêmio, que tal criar um? Peça ajuda a seus professores. 2. Na sociedade: • Entreviste pessoas que participem de movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos, associações etc., e relacione seus depoimentos com o conceito de participação estudado nesta unidade. • Faça uma pesquisa de campo para saber o que as pessoas pensam sobre a política. Confronte as respostas com o conceito grego de política. 3. Analise e discuta a letra da música Umbigo, de Lenine e Bráulio Tavares, gravada por Lenine no CD Falange canibal, levando em conta as questões do isolamento político apresentadas nessa unidade. Indicações de leitura Na coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense, você encontrará diversos títulos interessantes voltados para algumas temáticas trabalhadas nesta unidade. Indicamos alguns: • O que é poder, de Gérard Lebrun; • O que é política, de Wolfgang Leo Maar; • O que é democracia, de Denis L. Rosenfield; • O que é participação política, de Dalmo de A. Dallari; • Política para meu filho, de Fernando Savater, Editora Martins Fontes. No livro Rousseau: O bom selvagem, de Luiz R.S. Fortes, publicado na coleção Prazer em Conhecer, da Editora FTD, você encontrará um bom estudo sobre o filósofo que mais influenciou o conceito moderno de democracia. Sugestões de trabalho complementar MÚSICAS: • Podres poderes, de Caetano Veloso (álbum Velô) • Estado violência, dos Titãs (álbum Cabeça dinossauro) • Perfeição, do Legião Urbana (álbum O descobrimento do Brasil) • Uns iguais aos outros, dos Titãs (álbum Domingo) • Minha tribo sou eu, de Zeca Baleiro (no CD Pet Shop Mundo Cão) FILMES: • Danton – O processo da revolução. O revolucionário francês e sua ação na Assembléia Legislativa; ótima pedida para ilustrar e debater o conceito moderno de democracia. • O homem que virou suco. A sociedade brasileira e o processo de exclusão são retratados nesse filme. • A língua das mariposas. As relações políticas e sociais na Espanha durante a Guerra Civil vistas por um garoto que começa sua vida na escola, onde encontra um professor anarquista. • O que é isso, companheiro?. Uma visão sobre a militância política no Brasil durante os anos 60, em oposição à ditadura militar. UNIDADE 3 IDEOLOGIA Juliana está indo de ônibus para o shopping. Como sempre, vai observando a paisagem pela janela, perdida em seus pensamentos. De repente, algo chama sua atenção: um outdoornovo e enorme, todo colorido... uma modelo alta, magra, loura, de olhos azuis posa com uma nova calça da grife “X”. Juliana é morena, baixa e até um pouco gordinha, mas fica alucinada com a roupa mostrada no cartaz. Ela precisa comprar uma igual, nem que para isso tenha de fazer um crediário e comprometer seu salário por alguns meses. Já pensou o que suas amigas iriam pensar se a vissem dentro de uma calça como aquela, linda e deslumbrante como a modelo do outdoor? E os garotos, então? Você já parou para prestar um pouco de atenção nas propagandas que bombardeiam nossos olhos e ouvidos a todo momento? Já pensou sobre as mensagens que nos são transmitidas pelos meios de comunicação: TV, rádio, jornais e revistas, outdoors? Fiquemos, por enquanto, com o exemplo das propagandas feitas para a televisão. Independentemente do produto e da marca que divulgam, os comerciais de TV operam por meio da afirmação de certas características desejadas pelas pessoas. Assim, vemos comerciais que procuram ligar a imagem de seu produto à de uma pessoa independente, criativa, livre. É como se você se tornasse tudo aquilo pelo simples fato de consumir aquele produto. Simples assim, sem nenhum esforço maior. O investimento é feito em torno da imagem: o produto cria uma imagem de sucesso, ou de liberdade, ou de independência, ou de juventude, ou de irreverência etc., ou mesmo de tudo isso junto. E a imagem do produto age sobre o consumidor em potencial como uma forma de identificação: você escolhe os produtos que consome de acordo com os valores que eles representam. E talvez o mais interessante seja o poder de autorreferência da propaganda, isto é, a capacidade que ela tem de criticar a si mesma. Apenas um exemplo: você certamente conhece o comercial de uma marca de refrigerante que trabalhou o seguinte slogan: “Imagem não é nada; sede é tudo. Beba...”. Ora, essa propaganda trabalhava com uma crítica da vinculação a uma imagem, colocando que o importante mesmo era a sede. Tentava, com isso, passar uma imagem de irreverência e crítica. Mas, se de fato imagem não é nada, então por que não beber água, e sim o refrigerante x? O que fica bem evidente nos comerciais de TV é o fundamento do mecanismo de qualquer propaganda. Se sua função é vender um determinado produto, é necessário que você se convença da necessidade de consumi-lo. O convencimento do consumidor é a tarefa básica do marketing. Mas esse convencimento, na maioria das vezes, é feito com O conceito de ideologia base em mentiras (talvez fosse menos pesado falar em criação de ilusões): não é verdade que você será mais livre consumindo o produto x, mais arrojado dirigindo o carro de marca y ou mais sofisticado se sua escolha for pela bebida z. Talvez você até se sinta assim uma vez ou outra, mas certamente não será por causa do produto consumido... A essa tentativa de convencer as pessoas por meio de um falseamento da realidade nós chamamos de ideologia. A palavra ideologia foi criada no começo do século XIX para designar uma “teoria geral das ideias”. Foi Karl Marx quem começou a fazer uso político dela quando escreveu um livro junto com Friedrich Engels intitulado A ideologia alemã. Nessa obra, eles mostram como, em toda sociedade dividida em classes, aquela classe que domina as demais faz tudo para não perder essa condição. Uma forma de manter-se no poder é usar a violência contra todos aqueles que forem contrários a ela. Mas a violência pode voltar-se também contra ela: a violência pode gerar a revolta do povo. É, então, muito mais fácil e mais eficiente dominar as pessoas pelo convencimento. É aí que entra a ideologia: ela constituirá um corpo de ideias produzidas pela classe dominante que será disseminado por toda a população, de modo a convencer a todos de que aquela estrutura social é a melhor ou mesmo a única possível. Com o tempo, essas ideias se tornam as ideias de todos; em outras palavras, as ideias da classe dominante tornam-se as ideias dominantes na sociedade. Essa classe que se encontra no poder vai fazer uso de todos os mecanismos possíveis e imagináveis para distribuir suas ideias para todas as pessoas, fazendo com que acreditem apenas nelas. Numa sociedade de dominação, essa é a função dos meios de comunicação, das escolas, das igrejas e das mais diversas instituições sociais. Onde Ideologia: Desejo, vontade, necessidade houver pessoas reunidas, ou mesmosozinhas, haverá uma forma de ideologia em ação. A ideologia passa a dominar todos os nossos atos. Quando nos convencemos da verdade dessas ideias, passamos a agir inconscientemente guiados por elas, ou seja, o corpo de ideias constituído atravessa nosso pensamento sem nos darmos conta e passamos a desejar o que o outro determina: quando compro um sabonete ou um creme dental, estou fazendo uma “escolha” que me foi determinada pela propaganda. Quando voto num candidato a prefeito, estou fazendo também uma “escolha” determinada pela propaganda, pois, na democracia representativa, os discursos são construídos de forma ideológica para convencer o eleitor de que aquele candidato é o melhor. Não foi por acaso que o filósofo Herbert Marcuse afirmou que “na nossa sociedade, os políticos também se vendem, como sabonetes”. Quando uma ideologia funciona de fato, ela se distribui por toda a sociedade, de forma a fazer com que cada indivíduo, em cada ato, reproduza aquelas ideias. O triunfo de uma ideologia acontece quando todo um grupo social está definitivamente convencido de sua verdade. Se todos estão convencidos, ninguém questiona, e a sociedade pode manter-se sempre da mesma maneira. De certo modo, o sucesso da ideologia está relacionado com o processo da alienação, que analisaremos no capítulo seguinte. Mas o que faz com que o poder de convencimento da ideologia seja tão forte? Se ela é constituída por ideias que falseiam a realidade para que na sociedade tudo continue como está, por que as pessoas simplesmente não se revoltam contra ela? É, parece que a coisa não é assim tão simples. Se fosse, não estaríamos imersos em todo esse processo de dominação e submissão das pessoas. Para tentar entender o processo de “funcionamento” da ideologia, voltemos à questão da propaganda. O que leva alguém a consumir um produto que trabalha com a imagem de sucesso? Por que essa pessoa não se dá conta de que seu sucesso não depende dos produtos que ela consome ou deixa de consumir? É claro que todo indivíduo deseja ter sucesso na vida. Mas também é evidente que, numa sociedade de dominação e desigualdades, o sucesso não é possível para todos. Para que alguns possam ser muito bem-sucedidos, é necessário que muitos outros permaneçam na miséria. Se for alardeado pelos meios de comunicação que o sucesso não é possível para todos, certamente teremos uma boa dose de inconformismo social que pode levar até mesmo a violentas revoltas. A ideologia trata então de disseminar a ideia de que vivemos numa sociedade de oportunidades e de que o sucesso é possível, bastando que, para atingi-lo, cada indivíduo se esforce ao máximo. Em contrapartida, vemos milhões de pessoas vivendo na miséria... Às vezes, alguém se esforça ao limite, mas nada de chegar ao sucesso. Ele permanece como um ideal, um sonho quase inatingível, mas do qual não abrimos mão, do qual jamais desistiremos. Quando esse indivíduo vê o belíssimo comercial do produto que estampa a imagem do sucesso, algo desperta, bem lá no íntimo de seu ser. Inconscientemente, ele associa a imagem do produto à imagem do sucesso, e renova suas forças na busca de obtê-lo. Consumir esse produto é ser bem-sucedido, embora, na verdade, ele continue insatisfeito com seu trabalho, com seu salário, com seu casamento... Você já deve ter conseguido perceber o que estamos tentando explicar: a ideologia funciona tão bem porque age atravessando e invadindo o íntimo das pessoas. E embora seja um corpo de ideias, não domina pela ideia, mas pelas necessidades criadas por essas ideias, pelos desejos que elas despertam. O discurso ideológico é aquele que consegue tocar nas vontades e ambições mais íntimas de cada indivíduo, dando-lhe a ilusão de sua realização. Alguns passam a ver seu patrão como um ideal a ser alcançado, como alguém que gostaria de ser, imaginando que ele alcançou o sucesso, tem tudo o que quer e é feliz; alguém tem a vontade de tomar a vitamina Eletrizan para ter mais energia; alguém quase careca usa um xampu que lhe promete uma abundante cabeleira, e assim por diante. Para sermos mais enfáticos, além de lidar com as necessidades e as vontades e de influenciar os desejos das pessoas, a propaganda produz outras necessidades e administra sua satisfação, de modo que cada um tenha uma ilusão de felicidade, uma ilusão de prazer e se acomode à situação vivida de sempre querer mais. O consumismo nada mais é do que a afirmação dessa realidade de realizar os desejos dos outros como se fossem nossos. Por que você sempre precisa usar uma roupa de grife? Ou cortar o cabelo de acordo com a moda? Enquanto você consome, suas vontades vão sendo realizadas, mas, ao mesmo tempo, novas necessidades vão sendo criadas, de forma que é praticamente impossível escapar dessa “roda viva”. Enquanto você consome, não questiona a sociedade na qual vive nem o que o leva a consumir tanto. No âmbito da política, a ideologia aparece da mesma forma. Observe as propagandas em época de eleições. Elas sempre tocam nas necessidades básicas das pessoas. Os candidatos que saem vencedores nas eleições são sempre aqueles que melhor conseguiram tocar nos desejos dos eleitores, que conseguiram produzir neles a ideia de uma satisfação futura. Desse modo, nem sempre votamos nos candidatos que poderiam defender melhor nossos interesses sociais; na maioria das vezes, ao contrário, votamos naqueles que, de algum modo, prometeram uma satisfação para nossos desejos. Texto complementar UM FILHO E UM CACHORRO (Zeca Baleiro) Já tenho um filho e um cachorro Me sinto como num comercial de margarina Sou mais feliz do que os felizes Sob as marquises me protejo do temporal Oh meu amor me espere Que eu volto pro jantar Ainda tenho fome Eu vejo tudo claramente Com os meus óculos de grau Loucura é quase santidade E o bem também pode ser mal Engrosso o coro dos com dentes E me contento em ser banal Loucura é quase santidade E o bem meu bem pode ser mal (CD Pet Shop Mundo Cão) EU, ETIQUETA (Carlos Drummond de Andrade) Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório, um nome... estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nesta vida. Em minha camiseta, a marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produtos que nunca experimentei mas são comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provada por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente, meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidência, costume, hábito, premência, indispensabilidade, e fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada. Estou, estou na moda. É doce estar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade, trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do mercado. Com que inocência demito-me de ser eu que antes era e me sabia tão diverso de outros, tão mim-mesmo, ser pensante, sentinte e solidário com outros seres diversos e conscientes de sua humana, invencível condição. Agora sou anúncio, ora vulgar ora bizarro, em língua nacional ou em qualquer língua (qualquer, principalmente). E nisto me comprazo, tiro glória de minha anulação. Não sou – vê lá – anúncio contratado. Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares festas praias pérgulas piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum a compromete. Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam, e cada gesto, cada olhar, cada vinco da roupa resumia uma estética? Hoje sou costurado, sou tecido, sou gravado de forma universal, saio da estamparia, não de casa, da vitrina me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto que se
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