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Apostila Correios - 240415 - 141845 (27)

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ÉTICA E CIDADANIA:
CAMINHOS DA FILOSOFIA
(elementos para o ensino de filosofia)
Sílvio Gallo (coord.)
Ilustração: Alexandre J. de Moraes Assumpção
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http://www.papirus.com.br/
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SUMÁRIO
Apresentação para quem ensina filosofia: ENSINAR A
FILOSOFAR
Apresentação para quem estuda filosofia: A JUVENTUDE
E A FILOSOFIA
unidade 1 A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO
unidade 2 POLÍTICA E CIDADANIA
unidade 3 IDEOLOGIA
unidade 4 ALIENAÇÃO: (DES)HUMANIZAÇÃO DO HOMEM NO
TRABALHO
unidade 5 ÉTICA E CIVILIZAÇÃO
unidade 6 O CORPO
unidade 7 SEXUALIDADE: O NOME DA COISA
unidade 8 A LIBERDADE
unidade 9 ESTÉTICA: ARTE E VIDA COTIDIANA
unidade 10 ESTÉTICA DE SI
unidade 11 ÉTICA E CIDADANIA NA SOCIEDADE
TECNOLÓGICA
SOBRE OS AUTORES
OUTROS LIVROS DOS AUTORES
REDES SOCIAIS
CRÉDITOS
Apresentação para quem ensina filosofia:
ENSINAR A FILOSOFAR
Depois de duas décadas, este livro continua sua trajetória de ser um
instrumento de trabalho para o ensino de filosofia. Laureado pela
Câmara Brasileira do Livro com o prêmio Jabuti de 1998 na categoria
“Didático de Ensino Fundamental e Médio”, define bem sua vocação:
ser didático.
Ele nasceu no início de 1995 no Grupo de Estudos sobre Ensino de
Filosofia (Gesef), que estava vinculado ao departamento e ao curso de
Filosofia da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Foi
gestado nos encontros de professores de filosofia promovidos,
inicialmente, pelos alunos do curso de Filosofia em prática de estágio
supervisionado. Depois se ampliou com o engajamento na luta pelo
retorno do ensino de filosofia como disciplina curricular.
A fim de pensar a situação do ensino de filosofia nas escolas
públicas e privadas, o Gesef foi um lugar de cultivo de estratégias para
uma ação efetiva entre ensino, pesquisa e extensão, com o objetivo de
criar um instrumento inicial para transmitir a filosofia por meio de
recursos datados. Cabe ao professor e a seus alunos atualizarem os
recursos e levarem adiante a paixão pela filosofia. Reinventado o livro
com os temas propostos, novos caminhos são possíveis para articular a
reflexão ética no exercício da cidadania.
Qual a realidade do ensino de filosofia na sua escola? É somente no
espaço e no tempo circunscrito que este livro pode cumprir sua aposta
inicial: um instrumento para criar e instaurar o ensino de filosofia. Aqui,
o leitor encontrará uma resposta/proposta à situação do ensino de
filosofia na década de 1990, que adquire sua “maioridade” nesta 20ª
edição. Ao que tudo indica, continua contribuindo com a tarefa de
exercitar o pensamento livre e autônomo, não tutelado por nenhum
fundamentalismo.
Diante do diagnóstico da situação histórica do ensino de filosofia,
decidimos delinear novos traços, colocar mais cores, alterar o quadro.
Na época, avaliamos que faltava um toque da paleta de Vincent van
Gogh. Desse modo, assumimos a proposta de pensar a filosofia como
arte do cuidado de si, uma ética fundada na estética e na política.
Pensamos o filósofo como um artista da palavra, um criador de
conceitos. Nossa premissa: a filosofia é a arte do conceito. Ensinar
filosofia como arte requer um trabalho inventivo cotidiano.
Identificamo-nos com a definição de arte esboçada por Van Gogh
que, em junho de 1879, escreveu a seu irmão Théo: “A arte é o homem
acrescentado à natureza, à realidade, à verdade, mas com um
significado, com uma concepção, com um caráter que o artista ressalta e
aos quais dá expressão, resgata, distingue, liberta, ilumina.” Cada
filósofo, lidando com os problemas de seu tempo, cria um quadro
conceitual através do qual olhamos a realidade. A realidade é pintada,
construída, fabricada, produzida, forjada. O filósofo é o artista que
“registra a passagem do homem no mundo”, no dizer de Merleau-Ponty
em seu Elogio à filosofia. Ressaltando o demasiado humano, o filósofo
resgata a essência distinguindo-a das aparências. Mantendo-nos ainda
na analogia da atividade filosófica com a do pintor, podemos dizer que
os conceitos são as cores que o filósofo utiliza para pintar o quadro da
realidade. Cada quadro é uma janela através da qual contemplamos o
real.
Através de que enquadramento poderemos ter acesso ao real? Em
qual realidade nos movemos? Sobre qual realidade falamos?
Tornou-se lugar comum dizer que a crise ocupa a soberania nos
diagnósticos realizados pelas ciências humanas e nos discursos
políticos. Tudo está em crise. A crise é apontada como causa de
infindáveis problemas identificados e como consequência da própria
condição da vida moderna.
Jean Baudrillard caracteriza a década de 1980 como a “pós-orgia da
modernidade”. A discussão sobre a crise da modernidade está em curso,
buscando mapear os conflitos na sociedade atual. Diante deste mundo
moderno (ou seria pós-moderno? transmoderno? hipermoderno?), que
nos promete as mais fantásticas realizações humanas, vivemos uma
sensação de vertigem, de um colapso que ameaça destruir a todos.
Convivem a opulência das conquistas tecnológicas com a indigência de
milhões. O abismo entre o luxo e a miséria cresce assustadoramente. O
conceito de pobreza já não é suficiente para designar o estado de
milhões de homens que vivem à margem (excluídos) dessas conquistas
da modernidade.
Diante desse estado de vertigem, no qual a crise ocupa o lugar
soberano, somos instigados a pensar sobre as possibilidades de ensinar a
arte filosófica.
A questão espinhosa se impõe: É possível ensinar filosofia? A
filosofia é uma profissão? Vez ou outra, estamos nos indagando se
somos filósofos ou professores de filosofia e constantemente nos
questionamos sobre nosso lugar na universidade. A questão da
identidade do filósofo ronda nossas conversas e poucas vezes temos a
coragem de enfrentar essas indagações sobre nosso trabalho.
Em 1975, Giannotti perguntava-se: O que anima o aprendiz do
filosofar? “Dentre os mais diversos motivos, é possível apontar um que
faz dele desde cedo um filósofo: ambos (professor e aluno) possuem
aquele distanciamento do mundo e aquela intimidade que só pode ser
obtida pela via da reflexão. Nesse sentido, não se ensina filosofia, mas
se alimenta o desabrochar de uma recusa secreta, de uma necessidade de
recuo, de encontrar um caminho produtivo para um estranhamento
atávico” (Filosofia miúda e demais aventuras. São Paulo: Brasiliense,
1985, p. 13). A máxima kantiana impõe-se como dedução: não é
possível ensinar filosofia, só podemos ensinar a filosofar. Mas o ato de
filosofar só é possível pela mediação dos clássicos. O professor de
filosofia é aquele que estabelece a interlocução entre os clássicos (o
saber sistematizado) e a recusa secreta do mundo. Caminhando com o
professor entre as veredas históricas da filosofia, o aluno elabora sua
trajetória desse estranhamento atávico. O pensamento constitui-se pelo
recurso histórico da descendência conceitual. Nesse sentido, a filosofia
não tem fronteiras. Pensar as condições atuais de possibilidades
existenciais é ampliar as justificativas valorativas de que este mundo no
qual estamos inseridos não está coerente com nossos desejos.
O filósofo da Basileia fez uma exigência àqueles que desejam se
dedicar à filosofia: situar-se acima do bem e do mal. Nietzsche afirmou
em Ecce Homo, de 1888: “A filosofia, tal como até agora a entendi e
vivi, é a vida voluntária em gelo e altas montanhas – a procura por tudo
o que é estrangeiro e problemático na existência, por tudo aquilo que foi
exilado pela moral.” Procurando aceitar essa exigência nietzschiana,
cremos que a atividade filosófica pode ser pensada numa analogia com
a atividade artística, pois talvez assim tenhamos alguns elementos para
pensar estratégias de intervenção na realidade educacional pelo ensino
da filosofia.
Este pequeno livro foi pensado para isso. Tomando a reflexão
filosófica como arte, como pensamento voltado para a vida e o
cotidiano, queremos intervir na realidade de nossas escolas, o que não é
possível com massudos manuais de introdução à filosofia. Nos
Encontros de Professores promovidos pela Unimep, uma queixa foiconstante: embora de qualidade inegável, os principais livros didáticos
para o ensino de filosofia não têm dado conta das necessidades,
principalmente nas escolas públicas. Por dois motivos básicos: o
primeiro é o tamanho; embora aleguem que o livro não é pensado para
ser trabalhado na íntegra, dada sua extensão, torna-se caro para a
imensa maioria dos alunos. O segundo é o nível da linguagem; é sabido
que a filosofia é muitas vezes tomada como hermética, um
conhecimento ao qual apenas alguns iniciados podem ter acesso. E tal
hermetismo é sustentado por uma linguagem que, em vez de aproximar
as pessoas, afasta-as. Nem sempre os manuais para ensino da filosofia,
por mais que se esforcem, conseguem estabelecer uma comunicação de
fato com o público a que se destinam.
Defendemos aqui, portanto, uma vulgarização? De forma alguma.
Mas esforçamo-nos para traduzir determinados conceitos de forma a
possibilitar o acesso do aluno ao conhecimento filosófico. Tentamos
buscar uma linguagem que não seja nem aquela que os adolescentes
usam em seu cotidiano nem uma outra, inacessível para eles.
Acreditamos que conhecer é dominar a linguagem. É necessário um
esforço de domínio da língua; entretanto, se o esforço necessário para
assimilar um texto for muito grande, é muito provável que ele seja
abandonado.
Esta obra não pretende ser exaustiva, mas uma singela introdução;
se conseguir despertar em nossos alunos uma situação de curiosidade
diante de determinados fatos que passam despercebidos em seu
cotidiano, terá cumprido sua tarefa. Tampouco pretende ser “a última
palavra”: trata-se de um caminho proposto, de um roteiro de viagem. O
professor tem a liberdade de alterar a rota e programar a viagem como
preferir. De todo modo, o texto foi pensado como um ponto de partida
que viabilize um exercício de reflexão com professores e alunos, uma
produção coletiva de saber, como é a própria filosofia.
Apresentação para quem estuda filosofia:
A JUVENTUDE E A FILOSOFIA
Você deve estar acostumado a ser visto pelos adultos como um
“incômodo”. E isso não deixa de ser verdade. O adolescente passa por
uma verdadeira revolução em sua vida, é uma pessoa em movimento,
seu corpo se transforma, suas ideias se transformam, seus sentimentos
se transformam... Muitos dos que são mais velhos já estão acomodados
na vida, e não desejam – na maioria das vezes – mudanças que
perturbem sua situação. E é por isso que o jovem incomoda. Ele
representa o novo, que traz em si o antigo do mundo “pronto” em que
ele nasce lutando contra o velho que já passou por esse processo de ser
o novo. O jovem é a força do movimento, reagindo contra toda a
acomodação e, portanto, “incomoda” os acomodados – que se esquecem
de que já passaram por isso.
Mesmo na escola, você deve viver um pouco dessa realidade,
sentindo na pele a situação. Mas talvez com a filosofia seja diferente;
talvez com ela você se sinta à vontade. É porque a filosofia é uma
jovem de quase 2.700 anos de idade. Desde que surgiu na Grécia, no
século VII a.C., a filosofia pode ser caracterizada como uma situação de
incômodo, de inconformismo. Ela apareceu porque algumas pessoas –
os primeiros filósofos – estavam insatisfeitas com as explicações sobre
a realidade que existiam na época.
Elas se sentiam espantadas diante da complexidade do mundo, e
queriam fugir das explicações simplistas que eram dadas. A filosofia
surgiu como uma interrogação constante sobre a realidade, e um
descontentamento com as respostas oferecidas. Isso fez dela uma eterna
revolução, um movimento de construção do saber. Note: a filosofia não
é a sabedoria, mas um movimento em sua direção, sempre uma busca.
E, como nunca deixou de ser busca, a filosofia não envelheceu:
continua hoje tão jovem quanto era em sua remota origem.
Se a juventude é vista pelos acomodados como um “incômodo”, o
mesmo acontece com a filosofia. No século V a.C., Sócrates, já idoso,
foi condenado à morte pelo tribunal popular de Atenas. Diziam que ele
não acreditava nos deuses da cidade e corrompia a juventude; mas na
verdade ele incomodava demais aqueles que se sentiam confortáveis em
sua situação. Ao longo de sua história, a filosofia seguiu sendo esse
incômodo, causando desconforto nas pessoas, mas também
possibilitando a emergência de novos saberes, de novas perspectivas e
possibilidades.
Não espere da filosofia, portanto, que resolva sua situação de
“incômodo”. O que ela pode fazer é deixar você ainda mais
incomodado. Mas o ajudará a perceber que o incômodo não é ruim, ao
contrário, é o inconformismo que move o mundo, permite que cada um
construa sua vida buscando seus próprios caminhos.
A filosofia não tem uma “receita mágica” para resolver os
problemas da vida de ninguém, mas pode ser um instrumento
interessante para entendermos melhor as situações pelas quais
passamos, possibilitando que façamos escolhas mais bem pensadas.
Este livro pretende lhe dar a mão e começar a andar com você pelos
caminhos da filosofia. Daqui para a frente, você certamente poderá
encontrar muitas outras companhias, filosóficas ou não, que o ajudem a
ser sempre jovem, incomodando-se com o mundo e consigo mesmo,
construindo uma vida criativa e singular.
UNIDADE 1
A FILOSOFIA E
O
CONHECIMENT
O
Antônio era um cara pensativo. Às vezes,
saía com os amigos e, no meio do papo na
mesa da lanchonete, começava a pensar em
certas coisas e se esquecia do resto. “Puxa, o
que é que eu estou fazendo aqui? Qual o
sentido disto tudo?” Não que essas questões
– e muitas outras – tirassem o seu sono (era
um cara “desencanado”), mas ele se divertia
pensando nelas, pois nunca conseguia chegar
a uma conclusão. Pensar nelas era para ele
uma diversão, como conversar com os
amigos, ou como para alguns é divertido
jogar paciência ou montar quebra-cabeças.
Os amigos às vezes até se incomodavam um
pouco com isso, mas curtiam demais o
Antônio para implicar com ele. Ficava tudo
na brincadeira. Um dia, quando estava lá,
pensativo e distraído, Carlos lhe disse: “Pô,
cara! Fica aí no mundo da lua, até parece
que está filosofando!” E ele pensou: “Mas
será que isso que eu faço, de ficar assim
pensando com calma nas coisas, é que é
filosofia?”
A primeira ideia que nos vem à cabeça quando tentamos definir a
filosofia é a de buscar uma razão histórica para sua existência. E como
não temos a intenção de defini-la e nem de localizar precisamente a sua
origem, preferimos admitir a filosofia como “ato de filosofar” e, com
base nisso, compreender o homem como um ser situado numa época
que se sente perplexo com a realidade vivida e começa a se interrogar
sobre tal realidade, buscando uma razão fundamental para tudo o que
existe.
O melhor meio de se aproximar da filosofia é fazer perguntas. Só
que não são perguntas/questões. São perguntas/problemas. São
perguntas de caráter reflexivo, ou seja, o pensamento dentro de uma
ação humana que permite uma tomada de atitude dos homens diante dos
acontecimentos da vida.
Reflexão vem da expressão latina reflectere, que significa “voltar
atrás”. Ou seja, um repensar detidamente, prestar atenção, analisar com
cuidado e interrogar-se sempre sobre as opiniões, as impressões, os
conhecimentos técnico-científicos e o próprio sentido da filosofia.
É difícil precisar o instante exato em que se inicia a atividade
filosófica na história, ou quando as perguntas/problemas começam a ser
feitas pelas pessoas em suas épocas. Para isso, precisaríamos saber em
que momento o homem começou a questionar-se sobre si mesmo, sobre
os outros homens, sobre o mundo em que vive. Em suma, teríamos de
determinar quando e por que o homem começou a pensar mais
seriamente, mais profundamente sobre determinados fenômenos que
perturbavam sua existência. É claro que muitas explicações foram
criadas para os fenômenos naturais que incomodavam os seres
humanos; mas, em certo momento, alguns começam a duvidar dessas
explicações.
A partir da dúvida, o ato de filosofar ganha proporções importantes,
pois, percebendo as contradições existentes nas diversas explicaçõesdos acontecimentos do mundo, o homem passou a questioná-las, a pô-
las em xeque, e a buscar respostas mais coerentes, mais concretas para
suas interrogações.
A primeira experiência com o “ato de filosofar” de que temos
conhecimento deu-se na Grécia Antiga. Com o nascimento da pólis, as
cidades-Estado gregas passam a expandir poder político, econômico e
cultural para outras civilizações, o que permitiu o desenvolvimento de
aspectos importantes da cultura, das formas de governo, da participação
popular, influenciando o desenvolvimento intelectual e permitindo que
surgissem os problemas reais sobre a existência do cosmo (os gregos
chamavam o mundo de cosmos, que significa ordem, beleza, harmonia
em oposição ao caos, a desordem de quando ainda não havia sido criado
o mundo). É aí que aparece a figura do filósofo, ou seja, um “amante da
sabedoria”, alguém cujo objetivo é chegar à sabedoria. É por isso que o
pesquisador Jean-Pierre Vernant afirmou que “a filosofia é filha da
cidade”.
Dizem que a palavra filósofo foi inventada por
Pitágoras no século V a.C. Ele era reverenciado
como um sábio (sofos, em grego), mas, como era um
tanto modesto, dizia-se quando muito um amigo do
saber (de filos, que significa amigo, amante – vem
de filia, amizade – e sofia, sabedoria, saber),
cunhando a palavra filósofo. Só mais tarde surgiu a
palavra filosofia, para designar a atividade
daqueles que se caracterizavam como filósofos.
O filósofo procura desvendar o saber. Não um saber pronto e
acabado, mas um saber que experiencia o não saber, que faz o
movimento da ignorância ao saber. Aquele que busca conhecer alguma
coisa, que está sempre à procura de respostas e da constante superação
dessas respostas, pois, sempre que chegamos a uma resposta, ela nos
desperta para inúmeras outras perguntas. Por isso, definimos
anteriormente a pergunta filosófica como uma pergunta/problema.
O ato de filosofar começou a surtir efeito naquelas comunidades
primitivas que frequentemente recorriam a mitos para explicar os
fenômenos não compreendidos. O mito, em geral, era – e é até hoje –
uma explicação que utiliza elementos simbólicos e sobrenaturais para
entender o mundo e dar sentido à vida humana, respondendo
satisfatoriamente à curiosidade das pessoas. Muitos acreditavam e
acreditam em certas explicações mitológicas sem fundamentação lógica
de um saber racional e sem colocar em dúvida aspectos dessa crença. O
mito não coloca em dúvida suas explicações: são verdades absolutas a
serem cegamente seguidas; já a filosofia caracteriza-se por sempre
buscar algo mais, por não se contentar com a primeira explicação
disponível.
A filosofia nasceu e nasce da aspiração de estar em toda parte e em
qualquer circunstância. É como o ar que respiramos e que nos coloca
diante de questões que exigem “atitudes” para tomar certas decisões que
preencham nossas aspirações. É por isso que a filosofia ainda não teve
fim, e provavelmente jamais terá, embora, em muitos momentos da
história, filósofos tenham tido a pretensão de ter alcançado a sabedoria,
isto é, o fim da própria atividade filosófica. Mas suas ideias foram logo
questionadas, e sua pretensão ruiu, seguindo a filosofia seu caminho de
busca de um saber cada vez mais aprimorado.
Você está percebendo que a filosofia é uma atividade em constante
transformação: depende da cenografia de cada época e dos atores que
sobem ao palco – os filósofos que tentam compreender essa cena que
vivem. Desse modo, é muito difícil definir o que seja filosofia, pois ela
assume diferentes feições. Para facilitar sua compreensão, falaremos um
pouco de três grandes figuras do período clássico grego, que viveram
entre os séculos V e III a.C. e de como viveram a atividade filosófica.
Sócrates
A figura de maior destaque da filosofia grega clássica
foi Sócrates. Ele nada escreveu, mas andava pelas ruas
de Atenas conversando com as pessoas. Gostava de
interrogá-las sobre suas crenças, levando-as a
perceber o quão transitórias elas eram. Buscava um conhecimento mais
elaborado, mas, quanto mais conhecia, mais tinha consciência de que
sabia muito pouco. Por assumir humildemente uma posição de
ignorância, foi declarado pelo Oráculo de Delfos como o homem mais
sábio do mundo.
Vivenciando as experiências do dia a dia e tentando questionar
sempre os acontecimentos da cidade e as relações entre as pessoas,
Sócrates, atento ao caminho da perfeição, inquietava os cidadãos
atenienses com a magia da arte do diálogo. Ele nos ensinou que a
atividade de filosofar não se distingue do próprio ato de viver, que o ato
de filosofar consiste em conscientizar-nos de que nada sabemos. Nas
suas conversas na praça do mercado de Atenas, ele não queria ensinar,
mas aprender com as pessoas. Nesse diálogo, ambos aprendiam.
Sócrates conversava com as pessoas e frequentemente fazia
perguntas. Levava seus interlocutores a ver os pontos fracos de suas
próprias reflexões. Com base nisso, permitia que a outra pessoa
chegasse a suas próprias conclusões. Na verdade, Sócrates dialogava
com as pessoas, forçando-as a usar a razão.
Ele mergulhou no saber. Procurou compreender os conflitos da
cidade, das gerações, dos costumes e, a partir daí, mergulhou num
constante exercício de vida, no confronto diário com as contradições do
saber.
Sócrates sabia muito bem que nada sabia sobre a vida e o mundo. E
que isso era um ponto de partida para chegar à verdade. Ele próprio
dizia que a única coisa que sabia era que não sabia nada. “Eu só sei que
nada sei” era seu conhecido lema.
Platão
Essa posição o confrontava com os sofistas, que geralmente se
satisfaziam com respostas prontas e acabadas. Para Sócrates os
questionamentos são mais importantes e perigosos. Uma única pergunta
pode ser mais importante do que várias respostas. Responder não é
perigoso.
Ele acreditava que o conhecimento do que é certo leva ao agir
correto. Por isso é tão importante ampliar nossos conhecimentos. E ele
estava preocupado em encontrar definições claras e válidas para o que é
certo e o que é errado, afirmando que essa capacidade de distinguir o
certo e o errado estava na razão. Só assim, agindo de acordo com a
razão, pensava ele, as pessoas poderiam ser de fato felizes: não uma
felicidade baseada nas aparências, mas uma felicidade real, daquele que
também busca fazer os outros felizes.
Mas os questionamentos de Sócrates despertaram o ódio de muitos
atenienses, perturbados em suas “certezas” e vendo ruir seu mundinho
bem construído. Com mais de 70 anos de idade, ele foi preso, julgado e
condenado à morte, acusado de não acreditar nos deuses da cidade e de
corromper os jovens. Os atenienses quiseram dar uma lição à filosofia,
tentando fugir do incômodo causado por ela.
Platão foi discípulo de Sócrates e também cidadão
ateniense. Era uma pessoa de família rica, culta,
inteligente e produziu discursos e várias obras
filosóficas. Destacou-se após a publicação do discurso
em defesa de Sócrates, que havia bebido o cálice de cicuta, a pena de
morte vigente em Atenas.
À escola que fundou em Atenas, ele deu o nome de Academia.
Nessa escola ensinava-se filosofia, matemática e ginástica. E também
utilizava-se o método dialógico criado por Sócrates, pois Platão o
considerava seguro e importante para o desenvolvimento da filosofia.
A preocupação central de Platão consistia em perceber a relação
entre aquilo que, de um lado, é eterno e imutável, e aquilo que, de outro,
flui, ou seja, movimenta-se. Concluiu que aquilo que é eterno e
imutável está no plano ideal, racional, espiritual. Está naquilo que ele
chamou de mundo das ideias. Já aquilo que flui pertence ao mundo dos
sentidos, dos acontecimentos, e é feito de um material sujeito à corrosão
do tempo.
De fato, essa preocupação de Platão aparece porque ele estava
querendo provar a existência do conhecimento verdadeiro. Partiu da
constatação de que tudo aquilo que sabemos, temos acesso ou pelos
sentidos (visão, audição, tato, paladar, olfato) ou pelo pensamento, pela
razão. Qual dos dois seria o mais confiável? O conhecimento sensívelera o do mundo dos sentidos, que flui e se transforma; portanto, é um
conhecimento transitório. Já as ideias só podem ser conhecidas pelo
pensamento; nós não conseguimos ter uma percepção sensível de uma
ideia (vê-la, cheirá-la etc.), mas o mundo das ideias é o mundo da
perfeição, aquele que é eterno. Então, ele chegou à conclusão de que o
verdadeiro conhecimento é o das ideias, e não o dos sentidos, que são
apenas aparências.
Mas o verdadeiro conhecimento não pode desprezar o mundo dos
sentidos; só com base nele é que podemos chegar nas ideias. Portanto,
era preciso partir do mundo dos sentidos, compreender como ele se
manifesta na realidade e formular uma ideia sólida para chegar a um
conhecimento que não nos traga dúvidas, do qual possamos estar
seguros.
A razão é eterna e imutável, pois emite juízos daquilo que só se
manifesta sobre dados que são eternos e universais, levando-nos a ideias
verdadeiras, ao passo que as opiniões e os sentidos podem nos dar
ideias falsas sobre o que sentimos e percebemos, pois estão baseados na
transitoriedade.
Essa divisão entre dois mundos é a marca da filosofia de Platão,
aparecendo também em sua visão do homem, separando o corpo da
alma. Para ele, o espírito ou a alma é intelectiva (racional) e superior. O
corpo é irracional (sensível) e inferior. O corpo, com suas inclinações e
paixões, contamina a pureza da alma racional, impedindo-a de
contemplar as ideias perfeitas e eternas. Como nossos sentidos estão
ligados ao corpo, não são totalmente confiáveis. Confiável é a alma
imortal, onde existe a morada da razão. E porque a alma não é material,
ela pode ter acesso ao mundo das ideias.
Mas Platão dava um papel importante aos exercícios físicos,
atribuindo a eles a qualidade de vivificar a alma e permitir a sua
concentração na contemplação das ideias. Ele mesmo era um atleta (seu
verdadeiro nome era Arístocles, mas recebeu o apelido Platão que, em
grego, significa “ombros largos”) e acreditava que a ginástica e a
música permitem a superioridade do espírito sobre o corpo. Assim, a
alma só pode desenvolver-se com um corpo forte e saudável; ao
contrário, a fraqueza física torna-se um empecilho à vida superior do
espírito.
Platão defendia a existência de um mundo ideal, perfeito e
imutável. No nosso mundo sensível, tudo deveria buscar o modelo dessa
perfeição. E para isso, era preciso encontrar, também para a sociedade,
um modelo que privilegiasse esse raciocínio. Baseando-se nisso, ele
imaginou um Estado constituído como o corpo humano.
Segundo ele, o corpo humano consistia em três partes: cabeça, peito
e baixo-ventre. A razão pertence à cabeça, a vontade ao peito e o desejo
ao baixo-ventre. A razão deve inspirar sabedoria, a vontade deve
mostrar coragem e os desejos devem ser controlados. Para existir uma
perfeição social, a organização da sociedade deve ser de acordo com a
classificação do corpo humano: governantes (cabeça), soldados (peito) e
trabalhadores em geral (baixo-ventre).
Só podem governar a sociedade aqueles que têm a possibilidade do
pleno uso da razão, pois só eles podem compreender a ideia de Justiça e
dirigir os demais segundo ela. E nesse caso, quem tem o pleno exercício
Aristóteles
da razão, segundo Platão, é o filósofo. É por isso que, para ele, ou os
filósofos tornavam-se reis, ou os reis deveriam tornar-se filósofos.
Platão inventou uma forma de fazer filosofia: pegou emprestado de
Sócrates o método da conversa, do diálogo para expressar suas ideias.
Mas, diferente do seu mestre, não ficava pelas ruas conversando com as
pessoas; pensava e tentava chegar a ideias cada vez mais perfeitas. Para
comunicar aos outros essas ideias, escrevia na forma de diálogos, com
vários personagens conversando entre si e defendendo ideias diferentes.
Na imensa maioria de suas obras, Sócrates era a personagem principal,
na boca da qual Platão colocava as ideias que pretendia demonstrar.
Aristóteles pertenceu à Academia de Platão. Não
era ateniense, mas da cidade de Estagira, e filho de
um médico/cientista. Sua formação e seu interesse
pela natureza fizeram com que divergisse do mestre
Platão (que não se preocupou muito com o mundo dos sentidos),
procurando ser também um estudioso da natureza viva e de seus
processos de mudanças e evolução.
Aristóteles é considerado como aquele que, na cultura grega,
organizou, sistematizou e ordenou as várias ciências.
Ele dizia que as ideias não nascem conosco, elas se formam em nós
com base nas experiências que temos na vida. Por exemplo: para Platão,
existe primeiro a ideia de cavalo (razão) da qual cada cavalo que vemos
é uma cópia. Para Aristóteles, existia a forma do cavalo, derivada
daquilo que chamamos de espécie, classificação que fazemos pelos
sentidos. Para ele, a realidade está em percebermos ou sentirmos tudo o
que está a nossa frente e, com base nisso, elaborarmos nossa visão de
mundo.
Pensava ele que todas as nossas ideias e todos os nossos
pensamentos tinham entrado em nossa consciência através do que
víamos e ouvíamos. Mas acreditava que temos uma razão inata – temos
a capacidade de ordenar em diferentes grupos e classes todas as nossas
impressões sensoriais. Somos capazes de criar conceitos e classificá-los,
por exemplo, em animal, vegetal ou mineral.
Aristóteles era um homem meticuloso e queria encontrar ou
explicar racionalmente os acontecimentos dos fenômenos da natureza.
Para ele, era importante ficar claro como nossos sentidos captam as
formas das coisas. Tomando o exemplo de uma árvore, ele dizia que
existe a forma da árvore, captada pelos nossos sentidos. Mas existe
também uma substância, que é aquilo que faz com que a árvore seja
árvore. Na semente, a substância da árvore já está presente, mas que ela
deve atualizar aquilo que ainda é uma possibilidade, germinando,
crescendo e transformando-se em árvore. O movimento que ocorre na
natureza, segundo ele, é uma transformação nas formas que, pela
atualização da substância, faz com que uma possibilidade se torne
realidade. Se percebemos as formas pelos sentidos, a substância só pode
ser encontrada pela razão.
Percebemos que, no pensamento de Aristóteles, existe um esforço
de ordenação. Ele estabeleceu uma certa ordem lógica na classificação
do mundo da natureza e afirmou que, para chegar a certas conclusões
sobre ela, era preciso estabelecer certos princípios. Por exemplo: todas
as criaturas vivas são mortais. O homem é um ser vivo. Portanto, todo
homem é mortal. Essa é a forma do que ele chamou de silogismo, e a
lógica formal sistematizada por Aristóteles é a que rege nosso
pensamento até hoje.
No pensamento de Aristóteles, encontramos também uma
preocupação com a organização da sociedade (política) e também com a
forma que cada indivíduo dá para sua própria vida particular. Talvez ele
tenha sido o primeiro filósofo da Antiguidade a falar em ética com uma
preocupação central em relação à vida humana.
A vida humana se diferencia da dos animais porque se manifesta
com intencionalidade, vontade e desejo de ser feliz. Aristóteles
acreditava em três formas de felicidade: a primeira é uma vida de
A filosofia e
os demais
conhecimentos
prazeres e satisfações; a segunda é uma vida de cidadão livre e
responsável; e a terceira é viver como pesquisador e filósofo. E essas
três formas só se sustentam se realmente forem integradas entre si. Ou
seja, é preciso buscar um equilíbrio corporal, espiritual e social para que
a vida humana se realize como expressão da felicidade.
Dentro dessa preocupação com a vida e suas buscas de realização,
Aristóteles procurou expressar uma visão de sociedade que permitisse o
convívio harmônico dos seres humanos. Como não podemos viver
somente segundo nossas intenções, é preciso organizar a sociedade de
forma que ela nos auxilie a viver melhor. E a forma mais elevada do
convívio humano, segundo Aristóteles, só pode ser o Estado.
Para Aristóteles, existem três formas puras de governar o Estado: a
monarquia (ou governo de um só), a aristocracia (ou governo dos
melhores) e a democracia (ou governo realizado porum grande número
de cidadãos). Segundo ele, essas três formas só são válidas e justas se
encontrarem um verdadeiro sentido de organização dos cidadãos, em
que necessidades básicas como comida, trabalho, educação e família
sejam colocadas no plano de convívio humano e de satisfação das
nossas necessidades vitais de existência, visando a promoção do bem de
todos.
Diferente de Platão, Aristóteles escrevia na forma dissertativa,
procurando argumentar segundo as leis da lógica, inaugurando a forma
pela qual a escrita filosófica seria conhecida ao longo dos séculos.
Tentamos aqui caracterizar a atividade
filosófica por meio de uma rápida visão desses
três filósofos clássicos, que viveram numa
época muito próxima da origem dessa forma
de saber. Fica evidente que suas contribuições
ao mundo do conhecimento enriquecem nossas
pesquisas e nos dão oportunidade para compreender melhor como o
pensamento filosófico evoluiu. Percebemos também que, embora
tenham vivido próximos entre si – Platão foi aluno de Sócrates e
Aristóteles, aluno de Platão –, suas ideias diferenciam-se bastante. Ao
longo do desenvolvimento da história, poderemos ver o aparecimento
das mais diferentes posturas e ideias filosóficas.
Outra coisa que esperamos que tenha ficado clara para você é que a
filosofia é uma forma de conhecimento. Ela surgiu em oposição a uma
outra forma de conhecimento, o mito. Se o mito caracteriza-se por
buscar explicações sobrenaturais e definitivas sobre os fatos do
cotidiano, a filosofia constitui-se numa constante interrogação, busca
explicações racionais, baseadas na própria natureza, para dar significado
ao mundo e a nossas vidas. Essas duas formas de conhecimento
coexistem até hoje, junto com outras.
Na busca de explicações racionais, a filosofia não ficou sozinha. Na
verdade, ela se desenvolveu tanto que, num determinado momento, já
não era possível que uma única pessoa pudesse se dedicar a pesquisar
sobre muitas coisas. Como já vimos, Aristóteles estudava lógica,
matemática, física, biologia, política, ética... Hoje, se alguém se dedica
a estudar matemática, é provável que passe toda a sua vida pesquisando,
e não conheça mais do que algumas partes específicas dessa área do
conhecimento.
Com o crescente desenvolvimento dos conhecimentos e o
consequente acúmulo de informações, além da busca constante de uma
forma (método) de produzir conhecimentos verdadeiros, surgiu na Idade
Moderna uma nova forma de conhecimento: a ciência. Podemos afirmar
que todas as ciências que conhecemos hoje são filhas da filosofia, pois
todas elas foram, num primeiro momento, uma área da interrogação
filosófica. Aos poucos, cada uma delas foi se isolando, constituindo
uma área própria de pesquisa e de saber.
Após séculos de esforços e discussões acumuladas de inúmeros
filósofos, apareceu no século XVII o método científico que conhecemos
hoje, baseado na experiência. A aplicação desse método a cada objeto
de curiosidade constituiu uma ciência diferente: primeiro a física,
depois a química, um pouco mais tarde a biologia e, mais recentemente
– apenas no século XIX –, as chamadas ciências humanas e sociais:
psicologia, história, sociologia...
A característica básica da ciência, portanto, é ter um único método
aplicado a vários objetos; muda o objeto, muda a ciência. Já a filosofia,
como vimos, pode ser construída de várias maneiras (não tem um
método único) e possui vários objetos de estudo (de fato, qualquer coisa
pode ser objeto de estudo filosófico). Fica claro, então, que, embora as
ciências tenham surgido da filosofia, hoje elas constituem formas de
conhecimento diferentes. Mas tanto a filosofia como as ciências
caracterizam-se por buscar um conhecimento verdadeiro, fundamentado
racionalmente e que não se contente com explicações imediatas e
definitivas.
De outro lado, teríamos o mito e a religião como outras formas de
conhecimento, baseadas numa busca de explicações definitivas e
inquestionáveis sobre os acontecimentos de nosso dia a dia.
Texto complementar
“DEFINIÇÕES DE FILOSOFIA”
Você percebeu que nesta unidade não tentamos em momento algum “definir” o que seja
filosofia, pois não há um consenso em torno disso, isto é, ainda não foi criada uma
definição que satisfaça a todos os filósofos. Citaremos aqui a tentativa que alguns
grandes filósofos fizeram de definir sua atividade.
“A admiração sempre foi, antes como agora, a causa pela qual os homens começaram a
filosofar: a princípio, surpreendiam-se com as dificuldades mais comuns; depois,
avançando passo a passo, tentavam explicar fenômenos maiores, como, por exemplo, as
fases da lua, o curso do sol e dos astros e, finalmente, a formação do universo. Procurar
uma explicação e admirar-se é reconhecer-se ignorante.” Aristóteles (384 a.C. - 322
a.C.)
“Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem o canse fazê-lo quando se é
velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para
conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já
passou assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz.”
Epicuro (341 a.C. - 270 a.C.)
“... filosofia, tal como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária no gelo e nos cumes
– a busca de tudo o que é estranho e questionável no existir, de tudo o que a moral até
agora baniu.” Friedrich Nietzsche (1844-1900)
“O que pretendo sob o título de filosofia, como fim e campo de minhas elaborações, sei-
o, naturalmente. E contudo não o sei... Qual o pensador para quem, na sua vida de
filósofo, a filosofia deixou de ser um enigma?” Edmund Husserl (1859-1938)
“Qual o seu objetivo em filosofia? – Mostrar à mosca a saída do vidro.” Ludwig
Wittgenstein (1889-1951)
“A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo.” Maurice Merleau-Ponty (1908-
1961)
“A filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos... O filósofo é o amigo
do conceito, ele é conceito em potência... Criar conceitos sempre novos é o objeto da
filosofia.” Gilles Deleuze (1925-1996) e Félix Guattari (1930-1993)
Proposta de atividades
1. Organizar com a classe, na forma de um teatro, um debate sobre um tema polêmico
da atualidade (de preferência escolhido de uma pesquisa em jornais) que reproduza a
estrutura de um diálogo de Platão, aplicando o método socrático de investigação.
2. Fazer uma pesquisa nos livros de História Antiga sobre a Grécia no período de
surgimento da filosofia (século VII a.C.) e dos filósofos estudados nesta unidade.
Procure perceber as suas características sociais, políticas e culturais.
3. Entrevistar professores de outras disciplinas, das várias áreas, perguntando como eles
veem a relação de sua ciência com a filosofia.
4. Analise e discuta a letra de música a seguir, estabelecendo suas relações com o
estudado nesta unidade.
TEMPO
(Arnaldo Antunes e Paulo Miklos)
será que a cabeça tem o mesmo tempo que a mão?
o tempo do pensamento, o tempo da ação
será que o teto tem o mesmo tempo que o chão?
o tempo de decompo tempo de decomposição
será que o filho tem o mesmo tempo que o pai?
o tempo do nascimento, crescimento, envelhecimento
um momento
como matar o tempo?
(Do CD Ninguém, 1995)
Indicações de leitura
Se você quiser conhecer um pouco da história da filosofia
desde o seu surgimento na Grécia até os dias de hoje, uma
boa pedida é o livro de Jostein Gaarder, O mundo de Sofia,
publicado no Brasil pela Editora Companhia das Letras e que
já vendeu milhões de exemplares em todo o mundo. Na
forma de uma história policial, o autor conta a história de
Sofia, que está para completar 15 anos, e da misteriosa
Hilde. Tudo recheado pelas ideias dos principais filósofos de
todos os tempos, descritas com muita precisão e
simplicidade.
Sobre Platão, há o livro de Jorge Cláudio Ribeiro: Platão –
Ousar a utopia, da coleção Prazer em Conhecer, paradidáticos
de filosofia publicados pela Editora FTD; sobre Aristóteles, duas
possibilidades interessantes: Aristóteles – O equilíbrio do ser, de
Otaviano José Pereira, publicado na mesma coleção do anterior,
e Aristóteles– A plenitude como horizonte do ser, de Maria do
Carmo Bettencourt de Faria, este da Editora Moderna, Coleção
Logos, outra dedicada a publicar paradidáticos sobre importantes
filósofos. No livro sobre Platão, você encontrará o texto da
“alegoria da caverna”, trecho de um dos principais diálogos de
Platão (A república), em que ele explica como vê o filósofo e a
filosofia. O autor faz uma análise muito interessante do texto,
além de apresentar algumas “versões atualizadas” da história.
Sugestões de trabalho complementar
MÚSICAS:
• Roda viva, de Chico Buarque
• Pensamento, do Cidade Negra
• Como uma onda, de Lulu Santos
• Maluco beleza, de Raul Seixas
• O que swingnifica isso?, de Arnaldo Antunes (no CD O
silêncio)
FILMES:
• O nome da rosa. Adaptação do célebre romance de
Umberto Eco, que retrata uma biblioteca medieval e a
relação com o conhecimento naquele período. Um bom
exemplo do exercício da lógica na investigação de
assassinatos.
• Giordano Bruno. A vida e as ideias desse monge
renascentista, cientista e filósofo, e o trabalho da Inquisição, que
acaba por condená-lo à fogueira.
• Matrix, 13º andar e Vanilla sky. Cada um deles apresenta, à sua
maneira, um interessante questionamento sobre o que é, de fato,
a realidade. No caso de Matrix, temos ainda uma visão atual da
“Alegoria da caverna”, de Platão, além da possibilidade de
discussão da filosofia de Descartes, Hegel ou Marx, por
exemplo.
UNIDADE 2
POLÍTICA E
CIDADANIA
Maurício está vendo o final do Jornal
Nacional com Sandra, sua namorada. Não
foram para a escola hoje, e esperam para
ver o último capítulo da novela das oito, que
há muito tempo não começa nem às oito nem
às oito e meia. Às 20h30min, o jornal
termina e eles ficam felizes, pois isso é difícil
de acontecer. – Oba, já vai começar a
novela! Mas a decepção é imediata; a TV
anuncia: “Interrompemos nossa
programação para transmitir o horário
eleitoral gratuito, conforme determinação do
Ministério da Justiça. Voltamos a seguir com
a programação normal.” –Ah, não! Teremos
que aguentar aqueles chatos de novo!
Maurício e Sandra desligam-se da TV
enquanto namoram no sofá, mas, de vez em
quando, ainda veem na tela aquelas mesmas
caras de sempre, que certamente estarão
fazendo, de novo, as mesmas promessas.
Desligam a TV e voltam ao namoro.
Novela mesmo, só mais tarde.
Participação:
Palavra de
ordem
Volta e meia, a sociedade chama seus membros
para participar. Participar de uma missa, de um
torneio esportivo, de uma campanha de
aquisição de agasalhos etc. Participação, essa é a
palavra de ordem. Porém, será que já paramos
para pensar nessa tal participação?
Interessante reparar, antes de mais nada, que o ato de participar nunca é
feito sozinho; não é um ato isolado de alguém que não tem companhia,
mas algo que fazemos com os outros.
O solidário, que está sempre disposto a participar, porta-se desta
maneira: está em comunhão; vive ansioso pelo encontro; faz questão de
trocar as suas experiências de vida com os outros. Sabe muito bem que
viver é acima de tudo con-viver. O solidário é o companheiro; você já
pensou sobre o significado dessa palavra? Ela vem do latim, cum-
panere, e significa algo mais ou menos como “aqueles que comem
juntos o pão da vida”. Logo, o companheiro, o solidário, é aquele que
divide sua vida com os outros, aquele para quem a vida não é apenas
uma coexistência com os outros, mas uma verdadeira convivência, um
viver com os outros.
Mas há outros que são diferentes: um indivíduo que está sempre em
seu canto, não compartilha seus desejos, suas emoções, seus
pensamentos, enfim, sua vida com os outros. Pode-se dizer que tal
indivíduo é um marginalizado, não por que foi discriminado, mas
porque ele mesmo se isolou dos outros. Essa vivência à margem tem
como resultado a consideração de que o ser humano pode e, às vezes,
até deve se isolar dos demais. Mas como podemos fugir do encontro se,
queiramos ou não, estamos sempre partilhando uns com os outros?
O poeta inglês John Donne começou um poema com o verso:
“Homem algum é uma ilha.” Somos seres sociais, “animais políticos”
como já definiu Aristóteles há 2.500 anos atrás, o que nos leva a
necessariamente tomar parte de grupos humanos, a viver nossa vida
As relações
humanas e
o poder
junto a muitas outras pessoas iguais a nós. É por isso que, por mais que
queiramos escapar, fugir para uma ilha deserta, a sociedade está sempre
atrás de nós. Até podemos nos isolar por alguns instantes, mas, ao irmos
para a escola, para o trabalho, para o clube, para a igreja ou para
qualquer outro lugar, estaremos encontrando pessoas, estaremos
participando de grupos sociais.
O ato de participar é uma condição humana da qual não podemos
escapar. Quem pensa que escapa, está iludindo a si mesmo.
Convivendo com outros homens, os conflitos de
vontades e interesses são sempre inevitáveis. No
momento do impasse, que é uma luta entre
diferentes desejos, um indivíduo quer impor ao
outro a sua vontade. Normalmente quem vence
esse conflito é aquele mais bem aparelhado:
dependendo da circunstância, pode ser o mais forte, o mais inteligente,
o mais jovem, o mais bonito...
A capacidade de transformar as vontades dos outros na sua vontade
é aquilo que chamamos de poder. Numa primeira aproximação, o poder
seria a capacidade de realizar qualquer ato ou ação; um aspecto
importante é que ele pressupõe até mesmo a oposição, constituindo,
então, a capacidade de superar essa oposição pela força, impondo-se a
ela. De modo geral, o poder seria a potência para realizar determinado
desejo ou vontade.
O jogo de poder apresenta-se, assim, como um jogo de vontades, no
qual a vontade de um – o mais forte, por alguma razão – acaba se
impondo sobre a vontade de outro ou outros. A noção de poder implica
também a capacidade de ter suas ordens obedecidas. Aquele que é
investido de poder – um indivíduo ou uma instituição – tem a chance e
os instrumentos para potencializar suas vontades, transformando-as em
atos.
Não podemos, entretanto, julgar que a ação do poderoso dá-se
unicamente no sentido de subjugar e neutralizar a(s) vontade(s)
alheia(s). Embora em casos bastante específicos a ação hegemônica do
poder só seja possível por meio da neutralização das demais vontades –
é o caso do totalitarismo –, de modo geral, o poder age pelo
convencimento e pela manipulação das vontades alheias. Assim, em vez
de agir pela neutralização das vontades, o poder age muito mais por
meio de sua transformação; tomar o conjunto das vontades diferentes e
torná-las uma, a vontade do poderoso, com a qual os demais devem
concordar.
Nessa visão clássica do poder, ele é compreendido como uma coisa
que se concentra em determinados espaços de um grupo social: o lugar
do poder é o Palácio do Governo, é a Câmara dos Deputados, ou mesmo
o próprio corpo do rei, que a todos governa.
Se apenas um tem o poder, todos os outros indivíduos não têm
poder algum: é uma sociedade servil. Mas de onde viria o poder desse
indivíduo? Por que todos o obedecem?
Um filósofo do século XVI chamado Etienne de la Boétie, num
pequeno livro, o Discurso da servidão voluntária, forneceu a pista para
entender a charada: quando um indivíduo manda, seu poder vem não
dele mesmo, mas dos outros que se submetem. De sua perspectiva, o
que sustenta o tirano não é a sua própria autoridade, mas a entrega dos
súditos, isto é, a dominação só é possível com o concurso direto dos
próprios dominados. Segundo ele, em torno do tirano constrói-se uma
rede de interesses. O tirano tem 6 assessores diretos, cada um deles tem
mais 60 empregados e assim por diante, de modo que toda a sociedade
acaba envolvida nessa rede de interesses.
Desse modo, o que garante o poder do tirano é uma rede de
micropoderes e interesses que se constrói a sua volta, o que, ao invés de
enfraquecer esse poder central pela diluição, fortalece-o, sendo seu
próprio sustentáculo e sua própria garantia.
A política
Mas, se os indivíduos se recusarem a servir, acaba o poder do
tirano. Portanto, a sociedade servil dependedo consentimento dos
indivíduos; se eles resolverem não mais obedecer a um rei e solucionar
seus próprios problemas políticos, eles podem construir novas formas
de relação social.
Ao decidir fazer algo, o ser humano deve levar em
conta seus interesses. O interesse é o objetivo que a
decisão poderá alcançar. Por exemplo: quando
alguém decide estudar, acredita que, com um nível
mais alto de conhecimento, poderá conseguir uma ascensão, seja
profissional, social ou interior. Esse mesmo alguém prefere o estudo ao
analfabetismo. Estão implicados nesta ação o interesse em ascender e a
decisão de se alfabetizar. Em filosofia, isso é o que chamamos de valor.
Todo ato humano está fundamentado em determinados valores, em
determinados interesses; para dizer de outra maneira, sempre que
fazemos alguma coisa, temos em mente algum objetivo a ser alcançado
com aquela ação.
Até aqui, a discussão se fez em um nível particular. A discussão
sobre a orientação das ações humanas em caráter particular é chamada
de ética; é ela quem pode nos ensinar a bem conduzir nossas vidas.
Mas, quando alguém procura conduzir a um público maior seu interesse
e sua decisão, a fim de que esse público se engaje, ele está exercendo
aquilo que denominamos de política. Se a ética é a reflexão sobre a
fundamentação dos atos humanos em sua particularidade – isto é, no
que diz respeito à vida privada de cada indivíduo –, a política é a
reflexão sobre os atos humanos que se cometem em sociedade, na vida
pública. O engajamento do público se dará pelos interesses que
estiverem em jogo.
Portanto, política é a tomada de decisões que visem objetivar
interesses que irão refletir na coletividade. Deve ficar claro para você
que ética e política devem sempre andar juntas, pois, se vivemos em
A democracia
sociedade, é muito difícil distinguir se determinadas ações que fazemos
terão consequências apenas privadas ou se estenderão para outras
pessoas, na esfera pública. Apenas um exemplo: se alguém decide
estudar para conseguir certa ascensão social, isso não diz respeito
apenas a essa pessoa; para a coletividade, faz muita diferença tomar
parte dela um indivíduo analfabeto ou um indivíduo bem formado.
No momento em que se fala sobre política, logo vem à mente o
governo. Faz-se a relação de que fazer política é governar. Se
pensarmos assim, apenas poucas pessoas “fazem política”. Mas será
que, de fato, a política é apenas exercida na esfera do governo?
Também se fala muito que vivemos sob a forma de governo
chamada democracia. Abrimos um jornal ou uma revista e lá está essa
palavra estampada. Na televisão e no rádio também se diz muito sobre
ela. Mas que coisa é essa? O que é a democracia? Você já pensou a
respeito?
Vamos recuar um pouco no tempo e dar uma
olhada na pólis grega, que foi a primeira
experiência histórica de democracia.
Os gregos, que no início eram tribos de pastores nômades, aos
poucos foram se fixando em determinadas regiões, quando começaram
a dominar as técnicas da agricultura e da pecuária. Como os demais
povos antigos, começaram a constituir as cidades que, na sua língua,
chamaram de pólis. Mas as cidades antigas eram um tanto quanto
diferentes das nossas, pois eram unidades políticas autônomas. O que
significa isso? Ora, a cidade na qual você mora não tem autonomia
política; ela pode criar algumas leis, mas está submetida a uma série de
leis estaduais, sendo que os Estados brasileiros, por sua vez, estão
submetidos a leis federais. Nos dias de hoje, os países são as unidades
políticas autônomas. No tempo dos gregos antigos, era como se cada
cidade fosse um verdadeiro país, pois ela criava suas próprias leis. Por
exemplo: uma lei válida em Atenas poderia não existir em Esparta ou
em Delfos.
A convivência entre os indivíduos, o envolvimento com os
negócios relativos à administração da cidade, da pólis é o que eles
chamavam de política. Muitas formas os gregos criaram para
administrar a cidade, dependendo de como as pessoas se envolviam
com essas atividades. Quando apenas uma governava, chamavam de
monarquia; quando era um grupo maior de pessoas que se envolvia com
a administração, chamavam de aristocracia. Num certo período da
história de Atenas, uma das principais cidades gregas, por volta do ano
500 a.C., um legislador chamado Clístenes resolveu fazer uma reforma
radical, fazendo com que todos os cidadãos se envolvessem com as
atividades de administração da cidade.
Clístenes fez uma arrojada divisão do território de Atenas, sendo
que a cada unidade regional básica ele chamou de demos. Dos 30 demos
que compunham a cidade eram sorteados os indivíduos que
participariam dos diversos conselhos administrativos, encarregados da
criação das leis e de sua execução. A aprovação das leis era feita pela
Assembleia, que se reunia uma vez por mês e da qual poderiam
participar todos os cidadãos. O nome democracia significa, portanto,
governo dos demos, e não exatamente governo do povo como
normalmente se diz.
Se as decisões eram tomadas nas Assembleias, os homens
precisavam exercer seu poder de persuasão nos debates realizados em
praças públicas. O resultado desses debates eram decisões que refletiam
na vida de todos os habitantes da pólis. Para fazer valer seus interesses,
um indivíduo precisava dominar com perfeição as artes da retórica e da
oratória, para convencer os demais a votar naquilo que ele defendia.
Nesse momento, quando os homens tentavam convencer uns aos outros
sobre determinadas coisas, estavam em pé de igualdade. A igualdade
que todos tinham de falar para a pólis na Assembleia.
Entretanto, um último detalhe histórico é necessário: nesse período,
a cidade de Atenas contava com uma população de aproximadamente
400 mil pessoas. Mas nem todas eram cidadãs: os 200 mil escravos não
eram considerados nem como gente; os 100 mil estrangeiros e mais as
60 mil mulheres e crianças não tinham direitos políticos. Eram cidadãos
apenas 40 mil indivíduos livres do sexo masculino. E eram esses 10%
da população que participavam da administração da cidade.
Na Idade Moderna, quando as revoluções burguesas colocam fim
ao regime feudal da Idade Média, a democracia volta à cena: é esse
regime que será implantado como o melhor meio de governar, em
oposição à monarquia que havia predominado até então. Mas agora já
não existem escravos e a unidade política passou a ser o país (temos o
Estado-nação e não mais a cidade-Estado), o que permite que mesmo as
pessoas nascidas em outras cidades tenham direitos políticos. Como
garantir então a participação de todos? A noção moderna de democracia
como acesso de todos os indivíduos à administração da sociedade passa
pela questão da representatividade. Clístenes criou em Atenas uma
democracia direta ou participativa (todos os cidadãos participavam
diretamente da administração), ao passo que a modernidade colocou a
ideia de uma democracia representativa, isto é, um sistema no qual os
indivíduos elegem uma certa quantidade de pessoas que vão representar
seus interesses nos assuntos de administração da sociedade.
A ideia é a seguinte: a ação democrática consiste em todos tomarem
parte do processo decisório sobre aquilo que terá consequência na vida
de toda a coletividade. Quem pode dizer o que é bom para todos?
Aquele mesmo que irá provar – o próprio ser humano. Se não de forma
direta, pelo menos por meio de seus representantes, desde que ele se
mantenha ativo e vigilante, acompanhando o trabalho daqueles que
elegeu.
Mas a democracia representativa, se supostamente garante o acesso
de todos aos mecanismos do poder, também possibilita o fenômeno da
marginalização.
A marginalização
política
Vamos nos reportar novamente ao
isolamento. Os marginalizados políticos se
retiram do processo decisório e se afastam
dos demais. Abdicam do direito de falar
sobre assuntos de interesse coletivo. É a
instituição do silêncio político. Eles o fazem porque acreditam que
assim poderão resolver melhor seus problemas particulares. Na época
das eleições, desligam a TV na hora do horário eleitoral gratuito, ou a
deixamligada sem prestar atenção ao que os sujeitos dizem. No dia de
votar, cumprem com seu dever votando em qualquer um, pois tanto faz:
“São todos iguais, mesmo.”
Temos o abandono das questões públicas e a excessiva preocupação
com as questões particulares. Cria-se um amontoado de indivíduos que
buscam tão-somente voltar seus olhos para si mesmos. Nesse
amontoado, ninguém se propõe a falar. O único conselho dado é não
aconselhar. Esses indivíduos não se preocupam em votar em alguém
que possa representar seus interesses e suas necessidades no governo. E
parecem não perceber que, queiram ou não, vivem em meio a outros
indivíduos, o que significa que sua vida depende dos outros e que aquilo
que ele fizer também influenciará nas vidas alheias.
O que significa isso? Relembrando que viver é acima de tudo con-
viver, a esfera pública sempre vai existir. Se sempre existirá, alguém
estará se ocupando dela. Quanto menos as pessoas participarem da
política mais os interesses daqueles que se ocuparam da esfera pública
irão prevalecer. As decisões a serem tomadas serão baseadas nesses
interesses particulares, e não visando aos interesses coletivos.
O silencioso político, queira ou não, perceba isso ou não, assume o
que foi decidido pelos outros, sem nem mesmo colocar a público seu
interesse. Portanto, assume a obediência e abdica da autodireção. Herda
o status de governado e não o de governante. Quem prioriza em
demasia suas questões particulares, priva-se da autodeterminação.
A ação
cidadã
Mas as engrenagens da máquina de governo democrática não param
de funcionar apenas porque algumas pessoas – mesmo que sejam
milhares ou milhões – não dão atenção a elas. Elas continuam a fabricar
as leis e os mecanismos sociais por meio daqueles, mesmo que sejam
poucos, que estão participando. Mas é claro que estará funcionando
segundo as ideias e os interesses dos que participam e não daqueles que
se omitem.
A democracia representativa permite ao indivíduo se esconder atrás
de si mesmo e não participar, porque assim ele se exime da
responsabilidade pelas questões políticas. É mais fácil afirmar que a
questão da inflação é um problema do governo, que são os “políticos”
que precisam resolvê-la. Mas esses indivíduos se esquecem de que a
inflação tem consequências sérias na sua vida particular, e que ele
jamais poderá dar conta delas sozinho. As questões públicas são
responsabilidade de todos nós e, mesmo que alguns indivíduos tenham
sido eleitos para cuidar delas, não basta que eles ajam, é necessário que
cada um de nós, como membro dessa sociedade, faça a sua parte – por
menor que seja.
Ao trazer à tona o fato da marginalização política,
podemos perceber que ela se volta contra o próprio ser
humano. Quando os indivíduos se recusam a participar
das decisões sociais, estão se recusando a decidir sobre
suas próprias vidas. Estão aceitando que os problemas
que dizem respeito a suas vidas sejam pensados e resolvidos por outras
pessoas. Estamos, então, cara a cara com uma sociedade servil.
Atestado o problema, é imperativo que se encontre a solução. Essa
solução é a participação dos cidadãos nas questões públicas. Entenda-se
aqui cidadão como uma categoria de mobilização e não de localização.
Para os gregos antigos, o político era aquele que participava dos
negócios da pólis. Quando a cultura grega foi assumida e difundida
pelos romanos, que falavam latim, a pólis virou a cive em sua língua. É
da palavra latina cive que se origina a palavra cidade, no português, e é
também dela que vem a palavra cidadão. Portanto, cidadania é sinônimo
de política no sentido grego, assim como cidadão e político são a
mesma coisa.
O cidadão não espera que o outro lhe dê as condições necessárias
para participar, pois essas condições brotam de si mesmo. É a
autodeterminação. O cidadão sabe que é preciso buscar; é preciso
conquistar. É uma ação que não se acaba. O cidadão é sobretudo o
participante.
Para ter uma participação política efetiva, os cidadãos devem se
organizar para a defesa de interesses comuns, adquirindo vez e voz.
Estamos nos referindo à passagem do servilismo para o exercício da
autêntica destinação da vida.
Pela associação de todos os cidadãos, manter-se-á viva a noção de
que o ser humano con-vive e far-se-á a defesa da democracia como a
forma de governo que permite essa efetiva participação. E, com ela, os
membros da sociedade não esperarão o chamamento, pois estarão
participando por livre e espontânea vontade.
Texto complementar
A COTOVIA E OS SAPOS
(adaptação livre de uma fábula chinesa)
Era uma vez uma sociedade de sapos que vivia no fundo de um poço escuro e profundo,
do qual absolutamente nada se via do mundo exterior. Eram governados por um enorme
Sapo-Chefe, um valentão que afirmava, sob pretextos um tanto dúbios, ser dono do
poço e de tudo quanto nele saltava ou rastejava. O Sapo-Chefe jamais movia uma palha
para se alimentar ou se manter, vivendo do trabalho de diversos sapos trabalhadores
com os quais ele compartilhava o poço. Essas pobres criaturas passavam todas as horas
de seus dias escuros e muitas de suas noites tenebrosas a se matar na umidade e no lodo
para encontrar os vermes e os insetos que engordavam o Sapo-Chefe.
De vez em quando, uma cotovia excêntrica voava para dentro do poço (sabe Deus por
quê!) e contava para os sapos as maravilhas que vira em suas viagens pelo imenso
mundo lá fora. Falava do sol, da lua e das estrelas, das montanhas altaneiras, dos vales
férteis e dos vastos mares, e ainda da delícia de explorar o espaço infinito.
Sempre que a cotovia chegava de visita, o Sapo-Chefe recomendava aos sapos
trabalhadores que escutassem atentamente tudo o que o pássaro tinha para contar. “Ela
lhes está falando”, explicava o Sapo-Chefe (que, de qualquer modo, era meio surdo e
nunca sabia direito o que a cotovia estava dizendo; achava aquela ave esquisita e
inteiramente maluca), “da terra feliz para onde vão todos os sapos bons...”
É possível que um dia os sapos trabalhadores se houvessem imbuído daquilo que o
Sapo-Chefe lhes dizia. Com o tempo, porém, haviam se tornado céticos em relação aos
contos da carochinha e chegado à conclusão de que aquela cotovia tinha um parafuso a
menos. Além disso, haviam sido convencidos por alguns sapos livre-pensadores de que
aquele pássaro estava sendo usado pelo Sapo-Chefe para consolá-los e distraí-los com
histórias das maravilhas que existem no céu para os que morrem. “E isso é mentira!”,
coaxavam furiosamente os sapos trabalhadores.
Entretanto, havia entre eles um Sapo-Filósofo que formulara uma idéia nova e
interessante a respeito da cotovia. “O que a cotovia diz não é exatamente uma mentira”,
dizia ele. “Nem é loucura. Na verdade, ao falar dessa maneira esquisita, ela está se
referindo ao lugar maravilhoso em que poderíamos transformar esse poço, se
quiséssemos. Quando fala do sol e da lua, está se referindo às magníficas formas de
iluminação moderna que poderíamos adotar para afugentar as trevas em que vivemos.
Quando canta os céus altos, refere-se à saudável ventilação de que devíamos gozar, ao
invés dos ares úmidos e fétidos a que nos acostumamos. Quando louva a embriaguez
que vive ao lançar-se pelos céus, refere-se à delícia dos sentidos liberados que todos nós
conheceríamos se não fôssemos obrigados a desperdiçar nossas vidas nesta labuta
opressiva. E o que é mais importante: quando a cotovia enaltece o vôo altivo e livre
entre as estrelas, refere-se à liberdade que todos teremos quando nos livrarmos da
opressão do Sapo-Chefe. Veem? Não devemos desdenhar do pássaro. Em lugar disso,
ele deve ser apreciado e louvado por nos proporcionar uma inspiração que nos livra do
desespero.”
Graças ao Sapo-Filósofo, os sapos trabalhadores passaram a olhar a cotovia com
afeição. Na verdade, quando chegou afinal a revolução (pois as revoluções sempre
acabam vindo), os sapos trabalhadores até mesmo pintaram a imagem da cotovia em
seus estandartes e marcharam para as barricadas fazendo o máximo que podiam para,
com o seu coaxar, imitar-lhe o belo canto. Derrubadoo Sapo-Chefe, o poço escuro e
úmido tornou-se magnificamente iluminado e ventilado, transformando-se num lugar
muito melhor para viver. Além disso, os sapos experimentaram um novo e gratificante
lazer, acompanhado de muitas delícias dos sentidos – justamente como o Sapo-Filósofo
havia previsto.
Entretanto, a cotovia continuou a visitar o poço, contando histórias do sol, da lua e das
estrelas, de montanhas, vales e oceanos, e de esplêndidas aventuras que vivera nos céus.
“Quem sabe – conjeturou o Sapo-Filósofo – se afinal de contas esse pássaro não seja
mesmo louco? Já não temos necessidade alguma dessas canções enigmáticas. E, seja
como for, é muito cansativo ter de escutar fantasias quando já perderam sua relevância
social.”
Assim, um dia, os sapos conseguiram capturar a cotovia. Depois, empalharam-na e
colocaram-na no recém-construído Museu Cívico (entrada gratuita...) em lugar de
honra.
Proposta de atividades
1. No ambiente político que você vive mais de perto:
• Como se dão as decisões políticas em sua escola? São democráticas e
participativas ou não? Como você vê isso?
• Existe um grêmio em sua escola? Se existe, como ele se organiza? É uma
democracia direta ou indireta?
• Se não há um grêmio, que tal criar um? Peça ajuda a seus professores.
2. Na sociedade:
• Entreviste pessoas que participem de movimentos sociais, partidos políticos,
sindicatos, associações etc., e relacione seus depoimentos com o conceito de
participação estudado nesta unidade.
• Faça uma pesquisa de campo para saber o que as pessoas pensam sobre a política.
Confronte as respostas com o conceito grego de política.
3. Analise e discuta a letra da música Umbigo, de Lenine e Bráulio Tavares, gravada
por Lenine no CD Falange canibal, levando em conta as questões do isolamento
político apresentadas nessa unidade.
Indicações de leitura
Na coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense, você
encontrará diversos títulos interessantes voltados para algumas
temáticas trabalhadas nesta unidade. Indicamos alguns:
• O que é poder, de Gérard Lebrun;
• O que é política, de Wolfgang Leo Maar;
• O que é democracia, de Denis L. Rosenfield;
• O que é participação política, de Dalmo de A. Dallari;
• Política para meu filho, de Fernando Savater, Editora
Martins Fontes.
No livro Rousseau: O bom selvagem, de Luiz R.S. Fortes,
publicado na coleção Prazer em Conhecer, da Editora FTD,
você encontrará um bom estudo sobre o filósofo que mais
influenciou o conceito moderno de democracia.
Sugestões de trabalho complementar
MÚSICAS:
• Podres poderes, de Caetano Veloso (álbum Velô)
• Estado violência, dos Titãs (álbum Cabeça dinossauro)
• Perfeição, do Legião Urbana (álbum O descobrimento do
Brasil)
• Uns iguais aos outros, dos Titãs (álbum Domingo)
• Minha tribo sou eu, de Zeca Baleiro (no CD Pet Shop
Mundo Cão)
FILMES:
• Danton – O processo da revolução. O revolucionário
francês e sua ação na Assembléia Legislativa; ótima pedida
para ilustrar e debater o conceito moderno de democracia.
• O homem que virou suco. A sociedade brasileira e o
processo de exclusão são retratados nesse filme.
• A língua das mariposas. As relações políticas e sociais na
Espanha durante a Guerra Civil vistas por um garoto que
começa sua vida na escola, onde encontra um professor
anarquista.
• O que é isso, companheiro?. Uma visão sobre a militância
política no Brasil durante os anos 60, em oposição à ditadura
militar.
UNIDADE 3
IDEOLOGIA
Juliana está indo de ônibus para o
shopping. Como sempre, vai observando a
paisagem pela janela, perdida em seus
pensamentos. De repente, algo chama sua
atenção: um outdoornovo e enorme, todo
colorido... uma modelo alta, magra, loura,
de olhos azuis posa com uma nova calça da
grife “X”. Juliana é morena, baixa e até um
pouco gordinha, mas fica alucinada com a
roupa mostrada no cartaz. Ela precisa
comprar uma igual, nem que para isso tenha
de fazer um crediário e comprometer seu
salário por alguns meses. Já pensou o que
suas amigas iriam pensar se a vissem dentro
de uma calça como aquela, linda e
deslumbrante como a modelo do outdoor? E
os garotos, então?
Você já parou para prestar um pouco de atenção nas propagandas
que bombardeiam nossos olhos e ouvidos a todo momento? Já pensou
sobre as mensagens que nos são transmitidas pelos meios de
comunicação: TV, rádio, jornais e revistas, outdoors?
Fiquemos, por enquanto, com o exemplo das propagandas feitas
para a televisão. Independentemente do produto e da marca que
divulgam, os comerciais de TV operam por meio da afirmação de certas
características desejadas pelas pessoas. Assim, vemos comerciais que
procuram ligar a imagem de seu produto à de uma pessoa independente,
criativa, livre. É como se você se tornasse tudo aquilo pelo simples fato
de consumir aquele produto. Simples assim, sem nenhum esforço maior.
O investimento é feito em torno da imagem: o produto cria uma
imagem de sucesso, ou de liberdade, ou de independência, ou de
juventude, ou de irreverência etc., ou mesmo de tudo isso junto. E a
imagem do produto age sobre o consumidor em potencial como uma
forma de identificação: você escolhe os produtos que consome de
acordo com os valores que eles representam.
E talvez o mais interessante seja o poder de autorreferência da
propaganda, isto é, a capacidade que ela tem de criticar a si mesma.
Apenas um exemplo: você certamente conhece o comercial de uma
marca de refrigerante que trabalhou o seguinte slogan: “Imagem não é
nada; sede é tudo. Beba...”. Ora, essa propaganda trabalhava com uma
crítica da vinculação a uma imagem, colocando que o importante
mesmo era a sede. Tentava, com isso, passar uma imagem de
irreverência e crítica. Mas, se de fato imagem não é nada, então por que
não beber água, e sim o refrigerante x?
O que fica bem evidente nos comerciais de TV é o fundamento do
mecanismo de qualquer propaganda. Se sua função é vender um
determinado produto, é necessário que você se convença da necessidade
de consumi-lo. O convencimento do consumidor é a tarefa básica do
marketing. Mas esse convencimento, na maioria das vezes, é feito com
O conceito
de ideologia
base em mentiras (talvez fosse menos pesado falar em criação de
ilusões): não é verdade que você será mais livre consumindo o produto
x, mais arrojado dirigindo o carro de marca y ou mais sofisticado se sua
escolha for pela bebida z. Talvez você até se sinta assim uma vez ou
outra, mas certamente não será por causa do produto consumido...
A essa tentativa de convencer as pessoas por meio de um
falseamento da realidade nós chamamos de ideologia.
A palavra ideologia foi criada no começo do
século XIX para designar uma “teoria geral das
ideias”. Foi Karl Marx quem começou a fazer uso
político dela quando escreveu um livro junto com
Friedrich Engels intitulado A ideologia alemã.
Nessa obra, eles mostram como, em toda sociedade dividida em classes,
aquela classe que domina as demais faz tudo para não perder essa
condição. Uma forma de manter-se no poder é usar a violência contra
todos aqueles que forem contrários a ela. Mas a violência pode voltar-se
também contra ela: a violência pode gerar a revolta do povo. É, então,
muito mais fácil e mais eficiente dominar as pessoas pelo
convencimento.
É aí que entra a ideologia: ela constituirá um corpo de ideias
produzidas pela classe dominante que será disseminado por toda a
população, de modo a convencer a todos de que aquela estrutura social
é a melhor ou mesmo a única possível. Com o tempo, essas ideias se
tornam as ideias de todos; em outras palavras, as ideias da classe
dominante tornam-se as ideias dominantes na sociedade.
Essa classe que se encontra no poder vai fazer uso de todos os
mecanismos possíveis e imagináveis para distribuir suas ideias para
todas as pessoas, fazendo com que acreditem apenas nelas. Numa
sociedade de dominação, essa é a função dos meios de comunicação,
das escolas, das igrejas e das mais diversas instituições sociais. Onde
Ideologia: Desejo,
vontade, necessidade
houver pessoas reunidas, ou mesmosozinhas, haverá uma forma de
ideologia em ação.
A ideologia passa a dominar todos os nossos atos. Quando nos
convencemos da verdade dessas ideias, passamos a agir
inconscientemente guiados por elas, ou seja, o corpo de ideias
constituído atravessa nosso pensamento sem nos darmos conta e
passamos a desejar o que o outro determina: quando compro um
sabonete ou um creme dental, estou fazendo uma “escolha” que me foi
determinada pela propaganda. Quando voto num candidato a prefeito,
estou fazendo também uma “escolha” determinada pela propaganda,
pois, na democracia representativa, os discursos são construídos de
forma ideológica para convencer o eleitor de que aquele candidato é o
melhor. Não foi por acaso que o filósofo Herbert Marcuse afirmou que
“na nossa sociedade, os políticos também se vendem, como sabonetes”.
Quando uma ideologia funciona de fato, ela se distribui por toda a
sociedade, de forma a fazer com que cada indivíduo, em cada ato,
reproduza aquelas ideias. O triunfo de uma ideologia acontece quando
todo um grupo social está definitivamente convencido de sua verdade.
Se todos estão convencidos, ninguém questiona, e a sociedade pode
manter-se sempre da mesma maneira. De certo modo, o sucesso da
ideologia está relacionado com o processo da alienação, que
analisaremos no capítulo seguinte.
Mas o que faz com que o poder de
convencimento da ideologia seja tão
forte? Se ela é constituída por ideias
que falseiam a realidade para que na
sociedade tudo continue como está, por
que as pessoas simplesmente não se revoltam contra ela?
É, parece que a coisa não é assim tão simples. Se fosse, não
estaríamos imersos em todo esse processo de dominação e submissão
das pessoas. Para tentar entender o processo de “funcionamento” da
ideologia, voltemos à questão da propaganda. O que leva alguém a
consumir um produto que trabalha com a imagem de sucesso? Por que
essa pessoa não se dá conta de que seu sucesso não depende dos
produtos que ela consome ou deixa de consumir?
É claro que todo indivíduo deseja ter sucesso na vida. Mas também
é evidente que, numa sociedade de dominação e desigualdades, o
sucesso não é possível para todos. Para que alguns possam ser muito
bem-sucedidos, é necessário que muitos outros permaneçam na miséria.
Se for alardeado pelos meios de comunicação que o sucesso não é
possível para todos, certamente teremos uma boa dose de
inconformismo social que pode levar até mesmo a violentas revoltas. A
ideologia trata então de disseminar a ideia de que vivemos numa
sociedade de oportunidades e de que o sucesso é possível, bastando que,
para atingi-lo, cada indivíduo se esforce ao máximo. Em contrapartida,
vemos milhões de pessoas vivendo na miséria...
Às vezes, alguém se esforça ao limite, mas nada de chegar ao
sucesso. Ele permanece como um ideal, um sonho quase inatingível,
mas do qual não abrimos mão, do qual jamais desistiremos. Quando
esse indivíduo vê o belíssimo comercial do produto que estampa a
imagem do sucesso, algo desperta, bem lá no íntimo de seu ser.
Inconscientemente, ele associa a imagem do produto à imagem do
sucesso, e renova suas forças na busca de obtê-lo. Consumir esse
produto é ser bem-sucedido, embora, na verdade, ele continue
insatisfeito com seu trabalho, com seu salário, com seu casamento...
Você já deve ter conseguido perceber o que estamos tentando
explicar: a ideologia funciona tão bem porque age atravessando e
invadindo o íntimo das pessoas. E embora seja um corpo de ideias, não
domina pela ideia, mas pelas necessidades criadas por essas ideias,
pelos desejos que elas despertam. O discurso ideológico é aquele que
consegue tocar nas vontades e ambições mais íntimas de cada
indivíduo, dando-lhe a ilusão de sua realização. Alguns passam a ver
seu patrão como um ideal a ser alcançado, como alguém que gostaria de
ser, imaginando que ele alcançou o sucesso, tem tudo o que quer e é
feliz; alguém tem a vontade de tomar a vitamina Eletrizan para ter mais
energia; alguém quase careca usa um xampu que lhe promete uma
abundante cabeleira, e assim por diante.
Para sermos mais enfáticos, além de lidar com as necessidades e as
vontades e de influenciar os desejos das pessoas, a propaganda produz
outras necessidades e administra sua satisfação, de modo que cada um
tenha uma ilusão de felicidade, uma ilusão de prazer e se acomode à
situação vivida de sempre querer mais. O consumismo nada mais é do
que a afirmação dessa realidade de realizar os desejos dos outros como
se fossem nossos. Por que você sempre precisa usar uma roupa de grife?
Ou cortar o cabelo de acordo com a moda? Enquanto você consome,
suas vontades vão sendo realizadas, mas, ao mesmo tempo, novas
necessidades vão sendo criadas, de forma que é praticamente impossível
escapar dessa “roda viva”. Enquanto você consome, não questiona a
sociedade na qual vive nem o que o leva a consumir tanto.
No âmbito da política, a ideologia aparece da mesma forma.
Observe as propagandas em época de eleições. Elas sempre tocam nas
necessidades básicas das pessoas. Os candidatos que saem vencedores
nas eleições são sempre aqueles que melhor conseguiram tocar nos
desejos dos eleitores, que conseguiram produzir neles a ideia de uma
satisfação futura. Desse modo, nem sempre votamos nos candidatos que
poderiam defender melhor nossos interesses sociais; na maioria das
vezes, ao contrário, votamos naqueles que, de algum modo, prometeram
uma satisfação para nossos desejos.
Texto complementar
UM FILHO E UM CACHORRO
(Zeca Baleiro)
Já tenho um filho e um cachorro
Me sinto como num comercial de margarina
Sou mais feliz do que os felizes
Sob as marquises me protejo do temporal
Oh meu amor me espere
Que eu volto pro jantar
Ainda tenho fome
Eu vejo tudo claramente
Com os meus óculos de grau
Loucura é quase santidade
E o bem também pode ser mal
Engrosso o coro dos com dentes
E me contento em ser banal
Loucura é quase santidade
E o bem meu bem pode ser mal
(CD Pet Shop Mundo Cão)
EU, ETIQUETA
(Carlos Drummond de Andrade)
Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou – vê lá – anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrina me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se

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