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Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia Adelaide H. P. Silva Código Logístico 58171 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6162-4 9 788538 761624 Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia IESDE BRASIL S/A 2019 Adelaide H. P. Silva Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ S578L 2. ed. Silva, Adelaide H. P. Língua portuguesa I : fonética e fonologia / Adelaide H. P. Silva. - 2. ed. - Curitiba [PR] : IESDE Brasil, 2019. 154 p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6162-4 Língua portuguesa - Fonética. 2. Língua portuguesa - Fonologia. I. Título. 18-54466 CDD: 469.15 CDU: 811.134.3’34 © 2009-2019 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Woters/iStockphoto Adelaide H. P. Silva Doutora e mestre em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e gra- duada em Letras pela mesma instituição. É professora na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e atua na área de Linguística, com ênfase em Fonética e Fonologia. Sumário Apresentação 7 1 Como a Linguística estuda os sons da fala? 9 1.1 Do que trata a Fonética? 9 1.2 O ciclo de produção da voz 13 1.3 Fonética articulatória 16 1.4 Articuladores do trato 18 2 Distinguindo os sons da fala: vogais 25 2.1 Distinguindo as vogais entre si 27 2.2 Arredondamento dos lábios 32 2.3 Nomeando as vogais 32 2.4 Articulações que se sobrepõem às vogais 33 3 Distinguindo os sons da fala: consoantes 37 3.1 Distinguindo as consoantes entre si 37 4 Uma notação para os sons da fala 49 4.1 Falta de correspondência entre sons da fala e grafemas 49 4.2 O Alfabeto Fonético Internacional (IPA) 52 5 Prosódia 63 5.1 A melodia dos sons da fala 63 5.2 Entoação 65 6 Análise acústica dos sons da fala 75 6.1 O que é um som? 75 6.2 Características das ondas sonoras 76 6.3 Tipos de ondas 78 6.4 Parâmetros acústicos para a caracterização dos sons da fala 81 7 Caracterização acústica dos sons da fala 85 7.1 Caracterização acústica das vogais 85 7.2 Caracterização acústica das consoantes 90 7.3 Sonoridade das consoantes obstruintes 100 8 Estudo dos sons com função comunicativa: Fonologia 105 8.1 Objeto de estudo da Fonologia 105 8.2 Unidades de análise fonológica 107 8.3 Análise fonêmica 110 9 Identificando os fonemas de uma língua 115 9.1 Pares mínimos 117 9.2 Pares análogos 119 9.3 Pares suspeitos 119 9.4 Metodologia de análise fonêmica 121 10 Fonemas do português brasileiro: vogais 125 10.1 Distribuição das vogais no interior da sílaba 125 10.2 Inventário das vogais em função do acento 126 11 Fonemas do português brasileiro: consoantes 135 11.1 Distribuição dos fonemas 135 Gabarito 145 Referências 149 Apresentação Os sons da fala constituem o primeiro aspecto que chama nossa atenção quando nos depara- mos com uma língua qualquer ou com um dialeto de nossa própria língua, mas diferente daquele que falamos. Despertam nosso interesse seja por sons cuja pronúncia varia relativamente à nossa própria pronúncia, seja por sons “diferentes” daqueles de nossa língua e que existem em uma lín- gua estrangeira que nos propomos a aprender, seja ainda por diferenças na prosódia, que fazem uma língua ou um dialeto parecerem mais ou menos “cantados” do que nossa língua ou nosso dialeto. Quem nunca reparou no “s” chiado de um carioca, ou no “r” retroflexo, ainda insistente e inapropriadamente chamado caipira, de paulistas, mineiros, paranaenses, ao pronunciarem uma palavra como porta? Quem nunca se deparou com o “th” do inglês, e a dificuldade inicial de pro- nunciá-lo, assim como com o “r” vibrante do espanhol, em palavras como rato? Pois bem, a Linguística – grosso modo definida como a ciência da linguagem – ao abordar seu objeto de estudo, enfoca partes dele sob o argumento de que a compreensão das partes pode levar à compreensão do todo. Por isso, estabelece disciplinas várias, cada uma voltada para um aspecto específico da linguagem. O nível sonoro da linguagem, entretanto, é contemplado por duas disciplinas: a fonética e a fonologia. O que muda de uma para outra é o recorte que se faz da metodologia que se segue para abordá-lo. Este livro foi, então, elaborado de modo a apresentar o objeto e a metodologia de análise, tanto da fonética como da fonologia. Assumimos em princípio a distinção entre as duas disciplinas – herança ainda do estruturalismo linguístico que se mantém no cenário atual – por uma questão didática: consideramos que, dessa maneira, a exposição ficaria mais acessível do que se assumíssemos uma outra perspectiva, mais recente, que considera não haver a dissociação entre fonética e fonologia, o que implica tratar todos os aspectos sonoros das línguas em um mesmo e único nível, o fônico. Para apresentar o objeto e a metodologia de análise da fonética, recorremos inicialmente a uma fonética articulatória impressionística, ou seja, que envolve a conscientização sobre os ar- ticuladores acionados para produzir um determinado som da fala. Em seguida, apresentamos a metodologia de análise da fonética acústica, que se tem difundido no Brasil nas últimas décadas, e requer essencialmente que aprendamos a “ver” os sons. É esse aprendizado que tentamos construir, relacionando o tempo todo o dado acústico ao dado articulatório, como objetiva a Teoria Acústica de Produção da Fala (FANT, 1960), modelo que fundamenta nosso procedimento analítico. 1 Como a Linguística estuda os sons da fala? 1.1 Do que trata a Fonética? Se recorrermos à etimologia da palavra fonética, veremos que ela vem do grego phonetikós e quer dizer “conhecimento do som” (HOUAISS, 2009). É preciso notar, entretanto, que a Fonética não se ocupa do conhecimento de qualquer som: não lhe interessa estudar os ruídos de caminhões que trafegam pela rua ou os de aparelhos domésticos. Interessa-lhe estudar os sons produzidos pelo aparato vocal dos seres humanos. Como consequência desse objetivo mais geral, a Fonética estabelece diálogos muito profícuos com diferentes áreas. Assim, há uma grande interface entre Fonética e música, que permite investigar, por exemplo, semelhanças e diferenças entre os sons produzidos pela fala e pelo canto. Cabe adicionar, inclusive, que alguns foneticistas renomados, como os suecos Björn Lindblom e Johan Sundberg, são músicos de formação. Aqui no Brasil, a professora Beatriz Raposo de Medeiros (USP) estuda há alguns anos a produção dos sons na fala e no canto, verificando se- melhanças e diferenças entre as produções nas duas modalidades. Além da música, a Fonética conversa de maneira próxima com a Medicina, notadamente com a Fonoaudiologia, que se vale dos estudos desse ramo da linguística para descrever e estudar a produção dos sons decorrentes de variadas patologias da fala. A Fonética, por sua vez, se vale dos desafios que a fala patológica apresenta: sons produzidos por indivíduos portadores de patologias de fala diferem dos sons default (padrão) de uma língua. Portanto, descrever, analisar e explicar a produção dos sons nessa condição especial permite compreender melhor os mecanismos de pro- dução da fala. As interfaces entre Fonética e outras áreas do conhecimento não param aí: do diálogo com a Psicologia surgem estudos sobre a aquisição dos sons de uma língua por crianças falantes nativas dessa língua; investigações sobre a maneira como a fala é processada, desde seu planejamento até a sua enunciação propriamente; e ainda estudos sobre a percepção dos sons da fala: como ela acon- tece e como ela se relaciona à produção dos sons. A conversa entre Fonética e as áreas de Computação e Engenharia Elétrica fez surgir uma área que recebeu o nome de Ciência e tecnologia da fala. A partirda parceria entre engenheiros e linguistas, pode-se ensinar uma máquina a falar, ou seja, podem-se construir sistemas de síntese de fala. É igualmente possível construir sistemas de reconhecimento de fala, por meio dos quais o sistema atende a comandos do usuário. Recentemente, dispositivos de automação residencial têm usado sistemas de reconhecimen- to e síntese de fala conjugados, é o caso do Google Home1. Outro dispositivo semelhante, desen- 1 Você pode conhecer o Google Home acessando: https://www.youtube.com/watch?v=LnC72JqRVfc&t=46s. Acesso em: 10 dez. 2018. Vídeo Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia10 volvido pela empresa norte-americana Amazon é o Alexa, que você pode conhecer aqui. Ambos os sistemas estão sendo desenvolvidos para o português e podem ser muito úteis para pessoas com necessidades especiais, como os cegos. Outra interface possível ocorre entre a Fonética e o Direito: utiliza-se a análise acústica dos sons da fala para fins periciais, por meio de um procedimento conhecido como identifica- ção de locutor, que consiste, basicamente, no confronto entre gravações de áudio, para verificar se os locutores das gravações confrontadas são de uma mesma pessoa ou se são de pessoas distintas. Para essa tarefa, além das propriedades acústicas dos sons da fala, outros traços lin- guísticos idiossincráticos devem ser considerados, como certas escolhas lexicais, que levam ao uso recorrente de uma palavra. Mais recentemente, em razão da onda migratória que o Brasil vive, a Fonética estabelece laços novos com o ensino de línguas, em virtude do fortalecimento de uma área que, até há bem pouco tempo, era incipiente no país: o ensino de português para estrangeiros. Há muito o que avançar nessa área, mas cabe dizer que a Fonética tem um papel importante nesse processo, porque é preciso ensinar a um falante nativo de árabe, por exemplo, que o português faz distinção entre os sons iniciais de palavras como pote e bote, e a um falante nativo de crioulo haitiano que o português distingue os sons consonantais em sequências como ela e era. No entanto, é importante pensar em estratégias para ensinar os estrangeiros a produzirem essas diferenças, considerando-se que as dificuldades de falantes de uma dada língua estrangeira – como o árabe – não são necessariamente as mesmas dificuldades que falantes de outra língua estrangeira têm ao adquirir português. Como deve ter ficado claro nessa breve exposição, a interlocução da Fonética com áreas diversas é grande, mas, para a Linguística, a Fonética tem um objetivo bem específico: investigar os sons da fala que, concatenados a outros, formam unidades, como sílabas e palavras. À Fonética cabe igualmente descrever, estudar e explicar a “melodia” da fala, isto é, a prosódia, com o intuito de associar um determinado padrão entoacional a um tipo específico de enunciado. Considere uma pergunta como: Você foi ao cinema ontem? Ela admite apenas duas respostas: sim ou não. Considere agora outra pergunta: Quando você vai ao cinema? Embora essa também seja uma pergunta, ela admite várias respostas possíveis. Os foneticistas, que estudam a entonação do português brasileiro, mostram-nos que a “melodia” associada ao nosso primeiro exemplo é diferente da associada ao segundo. É importante considerar que os objetivos da Fonética na Linguística se relacionam com os objetivos da Fonologia, outra disciplina da Linguística que toma os sons da fala como objeto de estudo, mas com outro enfoque que abordaremos mais adiante. Na verdade, é impossível fazer Fonologia sem Fonética – e vice-versa – e nisso têm insistido vários autores, como John Ohala (1990) ou John Kingston (2007). Os trabalhos deste último autor, inclusive, originaram, em conjunto com trabalhos de Mary Beckman, uma vertente metodológi- ca chamada Fonologia de laboratório. Essa vertente preconiza que as representações propostas no Como a Linguística estuda os sons da fala? 11 nível fonológico devem ser testadas por meio de dados experimentais, fonéticos, portanto2. Essa perspectiva metodológica tem se disseminado consideravelmente desde que foi proposta e, hoje, como resultado, não se concebe estudar uma sem a outra. Entretanto, nem sempre foi assim, o estruturalismo linguístico se encarregou de estabelecer uma fronteira muito grande entre as duas disciplinas, em grande parte por inspiração de Nikolai Trubetzkoy, o eminente linguista russo, que em seu clássico Princípios de fonologia3, afirma que o es- tudo dos sons pertencentes à fala e que se ocupa de fenômenos físicos concretos deverá usar métodos das ciências naturais, enquanto o estudo dos sons que pertencem a sistemas linguísticos deverá uti- lizar apenas os métodos linguísticos, das ciências humanas ou das ciências sociais, respectivamente. Designamos o estudo dos sons da fala pelo termo fonética e o estudo dos sons pertencentes a um sistema linguístico pelo termo fonologia4 (TRUBETZKOY, 1964, p. 4, tradução nossa). Essa visão, adotada por muitos estruturalistas como Roman Jakobson e Kenneth Lee Pike, relegou a Fonética a um plano secundário nos estudos linguísticos, pois preconizava um distan- ciamento dela em relação à Linguística, ao mesmo tempo em que a aproximava das ciências ditas naturais, como a Física ou a Fisiologia. Como decorrência, inaugurou-se uma forte dissociação entre essas duas áreas. Segundo a concepção estruturalista, a Fonética passou a ser concebida como a disciplina que estuda os sons da fala sob os aspectos articulatório, acústico e perceptual – essa definição ainda se encontra em manuais introdutórios da área. Fique claro que a Fonética de fato estuda os aspectos articulatórios, acústicos e perceptuais concernentes aos sons da fala, mas não só isso: as caracterizações acústicas e articulatórias e as investigações relacionadas à maneira como os indivíduos percebem os sons de sua língua são o ponto de partida para responder a outras ques- tões, por exemplo: • quais sons constituem o inventário fônico5 de uma determinada língua? • que características são comuns a alguns desses sons e, portanto, possibilitam seu agrupa- mento em uma mesma classe? • como e por que alguns sons de uma dada língua têm algumas de suas características alte- radas em função do ambiente em que ocorrem? • quais são os aspectos dos sons necessários para se atribuir um significado ao que está sendo dito? 2 Para saber mais sobre a Fonologia de Laboratório, o leitor pode recorrer ao capítulo homônimo na obra Fonologia, fonologias: uma introdução, organizado por Dermeval da Hora e Carmen Lúcia Matzenauer. São Paulo: Contexto, 2017. 3 Originalmente escrito em alemão, sob o título Grundzüge der phonologie, cuja primeira edição data de 1939, tornou-se um clássico e é o primeiro – desde o surgimento da ciência linguística, em 1916 – a expor objetivos e métodos da fono- logia. 4 Lê-se, no original: “[…] the study of sound pertaining to the act of speech, which is concerned with concrete physical phe- nomena, would have to use the methods of the natural sciences, while the study of sound pertaining to the system of language would use only the methods of linguistics, or the humanities, or the social sciences respectively. We designate the study of sound pertaining to the act of speech by the term ‘phonetics’, the study of sound pertaining to the system of language by the term ‘phonology’” (TRUBETZKOY, 1964, p. 4). 5 O termo fônico tem um caráter mais neutro que os termos fonético e fonológico e acaba abarcando a ambos, em modelos dinâmicos de produção da fala, como a fonologia articulatória (BROWMAN; GOLDSTEIN, 1992). Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia12 A resposta a essas perguntas acaba estabelecendo – inevitavelmente – uma relação muito íntima entre Fonética e Fonologia, o que como consequência nos faz retomar a visão de fonólogos como John Ohala e John Kingston de que é impossível dissociar essas duas disciplinas. Essa ver- tente encontra uma versão mais radical em modelos comoa fonologia articulatória (BROWMAN; GOLDSTEIN, 1992) e a fonologia acústico-articulatória (ALBANO, 2001): nesses modelos, ditos dinâmicos, a tese central é a de que a dissociação entre Fonética e Fonologia não existe, uma vez que é possível dar conta dos fatos fônicos de uma língua mediante um arcabouço baseado em uma unidade de análise ao mesmo tempo simbólica e numérica, portanto fonológica e fonética. Quer adotemos essa visão mais recente que associa Fonética e Fonologia, quer adotemos uma outra visão menos recente e que dissocia as duas disciplinas, o ponto de partida é exatamente o mesmo: precisamos entender como produzimos os sons da fala. Para tanto, é possível enfocar a fala humana sob três aspectos diferentes: 1. articulatório; 2. acústico; e 3. perceptual (ou auditivo). O estudo dos sons da fala sob o aspecto articulatório, fonética articulatória, visa explicar, por exemplo, como as pessoas utilizam órgãos como lábios, língua ou laringe, assim como os mo- vimentos ou posições da língua e outras partes da boca que se diferenciam quando pronunciamos diferentes sons. Estudar os sons da fala sob o aspecto acústico, isto é, fonética acústica, requer a observação dos atributos físicos desses sons, como frequência, intensidade e duração, atributos esses que, ao mesmo tempo em que caracterizam um determinado som da fala, tornam-no distinto dos demais. A abordagem dos sons da fala considerando os aspectos perceptuais, chamada fonética au- ditiva, por sua vez, tem por objetivo explicar como se dão os processos psicológicos pelos quais as pessoas percebem a fala, ou seja, como o cérebro utiliza vários traços e características de um “pedaço” de um som para reconstruir a imagem fônica pretendida pelo falante. É importante observar que, apesar de cada uma das áreas mencionadas anteriormente se preocupar com um aspecto específico envolvido na produção dos sons da fala, os aspectos arti- culatórios, acústico e auditivo estão intrinsecamente relacionados. Afinal, as mudanças de con- figuração do trato acarretam, em última instância, formas de onda com frequências distintas. E as diferenças articulatórias e acústicas, por sua vez, fornecem diferentes pistas para que o ouvinte perceba, por exemplo, um som como [i], e não como [a]. Assim, ressaltamos que a dissociação entre os três aspectos, que faremos nas seções seguintes, obedece a fins estritamente expositivos. Como a Linguística estuda os sons da fala? 13 Mas o primeiro passo nos estudos de Fonética é responder à questão que colocávamos ante- riormente: como produzimos os sons da fala? Vamos a ela, então! 1.2 O ciclo de produção da voz Para entender como a voz humana é produzida, podemos partir de uma ana- logia entre esse processo e a produção de sons por meio de instrumentos musicais de sopro, como a flauta. Quando o músico sopra pelo bocal da flauta, são emitidas correntes de ar que se deslocam pelo interior do instrumento. Mas só soprar pelo bocal da flauta não é suficiente para fazê-la produzir sons diferentes. Para isso, o músico periodicamente fecha com os dedos alguns orifícios no corpo da flauta, ao mesmo tempo em que deixa outros abertos, permitindo a passagem do fluxo de ar por eles e pelo pé da flauta. A alternância periódica entre obstrução/liberação dos orifícios modula as correntes de ar no interior do corpo da flauta e produz ondas sonoras de diferentes formatos e comprimentos, por meio das quais o som da flauta com frequência e amplitude se tornam detectáveis pelos nossos ouvidos. Por isso dizemos que, no caso da flauta, a corrente de ar é a fonte sonora. Mas como esse exemplo se relaciona à produção dos sons da fala? Na verdade, o processo de fonação, por meio do qual a voz humana é produzida, é bastante semelhante à produção do som da flauta. No caso da voz, dizemos que a fonte sonora é a laringe, porque é nela que se localizam as pregas vocais6, que, ao vibrar, dão início à produção dos sons da fala. A fonação acontece sempre durante a expiração, porque para promovermos a vibração das pregas vocais utilizamos parte do volume de ar armazenado nos pulmões. Daí a impossibilidade de o ser humano falar durante a inspiração. Durante a inspiração, o diafragma –músculo responsável pela respiração humana, que se localiza entre as cavidades torácica e abdominal – contrai-se, reduzindo a pressão intratorácica. Essa manobra facilita a entrada de ar nos pulmões. Quando o volume de ar nos pulmões atinge seu máximo, o diafragma relaxa, aumentando a pressão intratorácica facilitando a expulsão do ar dos pulmões. O ar egresso dos pulmões passa pela traqueia e chega até a glote, um espaço entre as pregas vocais, localizada no alto da laringe. Ao chegar nela, o ar encontra as pregas vocais aduzidas, isto é, fechadas, obstruindo a passagem do ar nesse ponto. Veja na Figura 1 o caminho que a corrente de ar percorre desde que o ar é expelido dos pul- mões até o momento em que chega à traqueia. 6 Preferimos essa nomenclatura a cordas vocais porque, como bem frisa Mota Maia (1986, p. 36), cordas vocais “é um termo problemático, porque sugere serem cordas o que, na realidade, é uma válvula constituída por membranas, múscu- los e ligamentos”. Vídeo Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia14 Figura 1 – Órgãos do sistema respiratório por onde o ar se propaga até chegar à laringe. Palato Língua Epiglote Laringe Pregas vocais Traqueia O rt is a/ Jm ar ch n/ W ik im ed ia C om m on s No momento em que o ar chega à glote, a pressão dele na cavidade inferior a esse órgão (cavidade subglótica) é bem maior que a pressão do ar na porção do trato que fica acima da glote (cavidade supraglótica). Desse modo, em um mecanismo que visa estabelecer um equilíbrio da pressão do ar nas duas cavidades, o ar força a passagem por entre as pregas vocais, que se localizam na porção superior da glote e que, quando o ar chega até elas, estão aduzidas (juntas). Como resultado desse processo, as pregas se afastam – constituindo o que em fisiologia se denomina movimento de abdução das pregas – e o ar pode se propagar entre elas. Assim que o ar passa pelas pregas vocais, a pressão subglótica diminui – concomitantemente ao aumento da pres- são supraglótica. Devido a isso, as pregas se aproximam novamente, constituindo um “movimento de adução”, por meio do qual a passagem do ar entre elas é bloqueada7. Dá-se, então, início a um novo ciclo de produção da voz. A Figura 2a ilustra as pregas vocais em dois momentos: respiração e momento imediatamente precedente ao início do processo de fonação. A figura 2b, por sua vez, ilustra um desses ciclos. 7 A título de esclarecimento, o volume de ar necessário para o processo de fonação é bem maior do que o volume de ar que utilizamos na respiração. Para se ter uma ideia, durante a expiração liberamos aproximadamente 1 litro de ar (o volume de ar liberado por homens, durante o processo, é maior do que o liberado por mulheres). Por outro lado, para pro- movermos o afastamento das pregas e darmos início à fonação, precisamos de aproximadamente 4 litros de ar, conforme mostram Gick, Wilson e Derrick (2013). Como a Linguística estuda os sons da fala? 15 Figura 2a – Estado das pregas vocais durante a inspiração e no momento imediatamente precedente ao início da fonação. Nesta figura as pregas vocais são vistas de cima. Pregas vocais abertas durante a respiração permitem que o fluxo de ar se propague para os pulmões. Pregas vocais fechadas durante a fala. O ar egres- so dos pulmões faz com que se afastem, promo- vendo sua vibração e, consequentemente, som. is to ck _s ho pp e/ iS to ck ph ot o Figura 2b – Movimentos de adução e abdução das pregas vocais, vistas de frente. Traqueia Falsas pregas vocais Epiglote 1 4 2 5 3 6 Pregas vocais IE SD E Br as il S. A. É preciso ficar claro que a fonação só é possível graças à grande elasticidade das pregas vo- cais, constituídas de tecido muscular e que medem alguns poucos centímetros– cerca de 1,75 cm a 2,5 cm para homens e de 1,25 cm a 1,75 cm para mulheres, de acordo com Titze (1994). Devido à elasticidade das pregas vocais, os movimentos de adução e abdução se repetem muitas vezes, periodicamente, fazendo as pregas vibrarem8. No momento em que as pregas vibram, produz-se a voz, também denominada tom laríngeo. Inevitável, novamente, a analogia com a música: como um som musical, a voz é igualmente produzida por vibrações periódicas, e nisso ambos – som musical e voz – se distinguem do ruído, que é aperiódico. O resultado do processo de fonação, o tom laríngeo, é um só para todos os sons da fala que têm a laringe como fonte sonora9. Isso quer dizer que, no momento em que a voz é produzida, não há distinção entre os sons da fala. Entretanto, sabemos da diversidade deles. Como, então, são 8 Para ver as pregas vocais vibrando, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=9Tlpkdq8a8c. Data de acesso: 10 dez. 2018. Há, ali, o registro de uma estroboscopia, exame por meio do qual é possível observar a ação das pregas vocais, geral- mente utilizado por otorrinolaringologistas, quando desejam verificar se há alguma anormalidade na ação das pregas. 9 Na verdade, alguns sons, como [s], têm o ruído como fonte sonora, que se sobrepõe ao tom laríngeo. vibrações periódicas: vibra- ções que se repetem regularmente em um espaço de tempo. Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia16 produzidos os diversos sons da fala? Como veremos, isso se dá em razão das diferentes configu- rações assumidas pelo trato vocal. Descrever essas diferenças assumidas pelas várias estruturas do trato vocal, explicando como cada som é produzido, é tarefa que cabe à fonética articulatória, área da qual começaremos a tratar em seguida. Você deve ter notado, aliás, que, para abordarmos a pro- dução da voz, recorremos a considerações de ordem articulatória, bem como de ordem acústica. Daqui em diante, tentaremos separar essas considerações, embora por razões meramente expositi- vas, na prática, o que se busque seja justamente a associação das diversas informações. 1.3 Fonética articulatória Antes de abordarmos este tópico, cabe um esclarecimento: a fonética articu- latória é feita com o auxílio de equipamentos. No começo do século XX, tinha-se à disposição aparelhos de raios X. À medida que a tecnologia avança, surgem novas técnicas, como a eletromiografia, a eletropalatografia e, mais recentemente, a ultras- sonografia. Desse modo, as considerações apresentadas nesta seção são baseadas em estudos de autores que se valeram de técnicas como as mencionadas para elencar os articuladores do trato vocal, para descrever a produção dos sons da fala e o papel de cada articulador nessa tarefa. 1.3.1 O trato vocal Chamamos de trato vocal a região que se estende desde a laringe até os lábios e fossas nasais e que é constituída de várias estruturas ao longo da cabeça e do pescoço. Apresentamos a seguir uma figura esquemática do trato vocal. Figura 3 – Estruturas que constituem o trato vocal. Alvéolos Porção frontal Dentes Porção posterior Cavidade nasal Palato (duro) Lábios Ponta Lâmina Faringe Língua Véu Palatino Laringe Úvula Esôfago Epiglote Pregas vocais Traqueia IE SD E Br as il S. A. Raiz da língua Vídeo Como a Linguística estuda os sons da fala? 17 A Figura 3 apresenta todas as estruturas anatômicas que são usadas para produzir sons da fala, à exceção do esôfago e da traqueia. É preciso acrescentar uma observação que, até este ponto, não havíamos feito: como você deve ter notado, o trato vocal e os articuladores não são exclusivos para a produção dos sons da fala. Explicando melhor: o corpo humano tem sistemas de órgãos dedicados a funções específicas. Assim, em linhas gerais, o sistema circulatório, por exemplo, é constituído de coração, veias, arté- rias, vasos linfáticos e tem como tarefa levar oxigênio às células do corpo humano, coletando gás carbônico e outras excretas. O sistema nervoso, por sua vez, é constituído por estruturas como o encéfalo, a medula espinhal, neurônios e nervos e é responsável pela transmissão de impulsos que coordenam ações voluntárias e involuntárias de todo o corpo humano. Não existe, por outro lado, um sistema responsável unicamente pela produção dos sons da fala. A tarefa de falar é desempenhada por órgãos que pertencem ao sistema respiratório e ao sis- tema digestório e que se especializaram para realizarem uma tarefa adicional. Autores como Peter MacNeilage (2018) argumentam que a fala é o resultado de uma adaptação evolutiva pela qual passou a espécie humana ao longo de sua história. Como parte desse processo evolutivo, que permitiu à espécie humana desenvolver a fala, a adaptação de órgãos de sistemas diversos para a articulação de sons foi fundamental. Mas por que só os humanos falam? Por que nem mesmo outras espécies evolutivamente próximas da nossa, como os macacos, têm fala? Ou, colocando de modo mais preciso: por que outras espécies não têm fala constituída de sons parecidos com aqueles que formam a fala humana? Até há pouco tempo, os estudiosos argumentavam que, além da estrutura do cérebro, a localização da laringe poderia ter impacto sobre a produção dos sons. Entretanto, em 2016, Fitch, de Boer, Mathur e Ghazanfar publicaram um artigo no qual relatam que o trato vocal de macacos é mais flexível do que se pensava e que as limitações para a produção da fala são provavelmente causadas pela organização neuronal e pelo tamanho do cérebro dos macacos. Os autores chegaram a essa conclusão por meio do exame do trato vocal de macacos, utilizando raios X. Esse exame possibilitou o modelamento computacional de um trato vocal desses animais. O modelamento, por sua vez, evidencia que os macacos conseguiriam produzir facilmente vários sons de fala diferentes. Os autores elaboraram, inclusive, amostras de fala sintética desses animais10. Aparentemente, portanto, a resposta à pergunta colocada no início deste parágrafo é: o cérebro da espécie humana percorreu um caminho diferente do cérebro de outras espécies, e esse fato é que possibilitou aos humanos falarem. Voltando à questão que colocávamos ao final da seção 1.2, relativa à maneira como são produzidos os diferentes sons da fala, e voltando à discussão que iniciamos ao abrir esta seção, os responsáveis por produzir diferentes sons da fala, a partir do tom laríngeo – que é produzido pela vibração das pregas vocais e é indistinto – são os articuladores do trato. 10 Você pode ouvir esses sons acessando o seguinte link: https://medienportal.univie.ac.at/presse/aktuelle-pressemel- dungen/detailansicht/artikel/why-cant-monkeys-speak/. Acesso em: 10 dez. 2018. Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia18 Na sequência, expomos cada um deles, com uma breve descrição sobre sua estrutura e fun- cionamento, e oferecemos exemplos de sons produzidos por intermédio da ação deles. A ordem de exposição obedecerá à sequência anatômica dos articuladores, desde a laringe até os lábios. 1.4 Articuladores do trato • Laringe Localizada na porção superior da traqueia, a laringe é constituída principalmente de cartilagens e músculos e é o canal que conecta o nariz e a boca com a traqueia e, consequentemente, os pulmões. Em sua porção superior, encontram-se as pregas vocais – duas tiras de músculos esticadas transversalmente em relação ao ar egresso dos pulmões. A Figura 3a ilustra a laringe e as pregas vocais. Figura 3a – Laringe IE SD E Br as il S. A. Osso hioide Membrana tireo-hióidea Cartilagem tiroide Cartilagem cricoide Traqueia Vista externa IE SD E Br as il S. A. Prega ventricular Epiglote Traqueia Cartilagem corniculada Vista interior Como nós já sabemos, as pregas vocais são responsáveis pela produção da voz, ou tom laríngeo. Além disso, na laringe podem ser articulados alguns sons. Assim, se mantemos as pregas vocais próximas, esticadas, permitindo a passagem de ar por entre elas, produzimos sons comoaqueles que iniciam palavras do inglês como house, ou help. Não é só o inglês que tem sons produ- zidos na laringe: línguas semíticas, como o hebraico, contêm sons produzidos por ela. O próprio português brasileiro tem sons produzidos na laringe, pelas pregas vocais. Trata-se de uma variante do som de <r> que pode ocorrer no início de palavras como rato. • Epiglote Os órgãos utilizados na produção dos sons da fala são os mesmos empregados na respira- ção e na deglutição; porém, como sabemos, é impossível falarmos e engolirmos ao mesmo tempo – engasgamos porque ambos, o ar e a comida, passam acidentalmente pela laringe e, por uma questão de sobrevivência, é preciso fazer com que o bolo alimentar retome seu percurso pelo sistema digestivo. Por isso, é necessário haver alguma estrutura que impeça água e comida de seguirem pela laringe e os demais órgãos do sistema respiratório Vídeo Como a Linguística estuda os sons da fala? 19 enquanto falamos. Essa estrutura é a epiglote, uma pequena cartilagem localizada logo acima da laringe e das pregas vocais e que se fecha quando deglutimos, impedindo assim que o bolo alimentar siga para a laringe e direcionando-o, através do esôfago, ao sistema digestório. A epiglote humana não toca o véu palatino, mas em outros mamíferos a epi- glote e a laringe formam uma oclusão estreita com abertura para a cavidade nasal. Isso possibilita, a esses mamíferos, beber e respirar ao mesmo tempo porque a água (ou a co- mida) passa ao redor da laringe, no esôfago, sem o risco de cair no conduto do fluxo de ar. A Figura 3b traz uma ilustração da epiglote. Figura 3b – Epiglote Epiglote Corpo do osso hioide Cartilagem tiroide Cartilagem cricoide Cartilagens da traqueia IE SD E Br as il S. A. Epiglote Cartilagem aritenoide Corpo do osso hioide Prega vestibular Cartilagem tiroide Ligamento cricotiroide Ligamento cricotraqueal Cartilagem cricoide Cartilagens da traqueia IE SD E Br as il S. A. A epiglote também pode ser utilizada para a produção de alguns sons que utilizamos na fala, mas como pontuam Ladefoged e Maddieson (1996), são sons raros, empregados em poucas línguas no mundo. De acordo com Catford (1983 apud LADEFOGED; MADDIESON, 1996), um som realizado na epiglote é produzido “com a epiglote dobrada para traz e para baixo, promovendo uma constrição, ou obstrução epigloto-aritenoidal11”. • Faringe É o espaço aberto entre a úvula e a laringe. Um traço que distingue crucialmente essa cavidade nos humanos, relativamente a outras espécies animais, é que a parede frontal da faringe na cavidade oral é formada pela porção posterior – ou raiz – da língua. A língua é uma estrutura extremamente móvel, decorrendo desse fato a possibilidade de uma grande variação na forma e no tamanho da faringe. A Figura 3c traz uma ilustração da faringe. A título de esclarecimento, cabe mencionar que embora anatomicamente se reconheçam três “partes” da faringe, aquela que nos inte- ressa, ao estudar a produção dos sons da fala, é a orofaringe. É a ela que as considerações desta seção se referem. 11 No original: “may be produced by the epiglottis actively folding back and douwn to produce an epiglotto-arytenoydal cons- triction, or closure” (LADEFOGED; MADDIESON, 1996, p. 37, tradução nossa). Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia20 Figura 3c – Faringe Nasofaringe Orofaringe Laringofaringe IE SD E Br as il S. A. A atuação desse articulador para a produção dos sons da fala se dá pelo estreitamento ou alargamento do canal faríngeo, que se obtém pela retração ou pela projeção frontal da raiz da lín- gua. Línguas como o árabe utilizam sons produzidos na faringe. • Palato mole Também denominado véu palatino – ou simplesmente véu –, é a parte do céu da boca formada por tecido, e não por osso que devido à sua estrutura móvel, pode ser abaixada. Quando isso acontece, há um alargamento da cavidade orofaríngea, ao mesmo tempo em que o fluxo de ar que passa pela cavidade oral diminui. Como resultado dessa mano- bra articulatória, são produzidos sons nasais, como as duas consoantes e a vogal final da palavra manhã, por exemplo. Se o véu palatino não se abaixa, dizemos que ele está em repouso, e o resultado é a produção de sons da fala apenas na cavidade oral. A Figura 3d ilustra o véu palatino. Figura 3d – Véu Palatino Pe ar so n Sc ot t F or es m an /W ik im ed ia Co m m on s PalatoVéu palatino Você deve ter notado, na região terminal do véu, na Figura 3d, um pequeno apêndice pendu- rado, denominado úvula – ou, usando a nomenclatura popular, “campainha” –, outro articulador. Ao se mover repetidamente, para frente e para trás, a úvula produz um som de <r> a que chama- mos vibrante e que ainda pode ser encontrado no francês. Se você quiser exemplos nítidos desse som, procure no Youtube por interpretações de canções francesas por Edith Piaf (1915-1963). Como a Linguística estuda os sons da fala? 21 • Palato duro Também denominado simplesmente palato, é a “abóbada do céu da boca” e se loca- liza entre o palato mole e os alvéolos. A Figura 3d sinaliza a localização do palato no trato vocal. Embora não seja um articulador móvel, já que se constitui de osso, no palato se produ- zem sons como a vogal [i] ou a consoante que representamos, na escrita, por <lh>, e que ocorre em palavras como palhaço. Em ambos os casos, a língua se desloca em direção ao palato, tornando possível a produção desses sons. • Alvéolos É a região que se localiza entre o palato duro e os dentes da arcada superior, como se vê na Figura 3. Não é um articulador móvel como o palato, mas é nessa região – devido à ação da língua, que se move ao encontro dela – que se produzem vários sons consonantais do português brasileiro, como os sons iniciais de tapioca; dália; navio, sapo, zebra; lago e, ainda, as duas consoantes da palavra arara. • Dentes Igualmente articuladores não móveis, os dentes participam da articulação de sons como aqueles representados ortograficamente por <th>, no inglês, em palavras como thief. Para produzir esse som, a língua se eleva ao encontro dos dentes da arcada superior sem, no entanto, encostar neles. • Lábios Articuladores móveis, os lábios podem se projetar para frente, aproximando-se, o que lhes causa um efeito de arredondamento. Tome como exemplo a vogal inicial da palavra uva. O arredondamento é uma manobra articulatória que participa ativamente na distin- ção de vogais em línguas como o francês ou o alemão. Além disso, os lábios envolvem-se na articulação de várias consoantes, como a que inicia a palavra fada. • Mandíbula A mandíbula é o osso que constitui o queixo e, como ela se liga por meio de diversos mús- culos à língua, mais especificamente à parte chamada de “dorso”, ou “corpo” da língua, o movimento da mandíbula pode fazer com que a língua também se desloque, especial- mente no sentido vertical. Esse deslocamento de mandíbula – e consequentemente do dorso da língua – constitui a manobra articulatória responsável pela distinção da abertura das vogais, isto é, pela distinção entre as vogais iniciais de uva e ovo, por exemplo. • Língua A língua é um dos articuladores mais importantes, devido à sua grande mobilidade e flexibilidade, que lhe permitem tocar várias outras estruturas do trato, o que resulta na formação de constrições típicas de muitas consoantes. Além disso, como podemos con- trolar a elevação e o abaixamento da língua, no interior do trato vocal, pelo controle do movimento vertical da mandíbula, podemos produzir distinção entre as vogais, como a que existe entre o som inicial de ilha e o som inicial de ela. A língua também se desloca Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia22 facilmente para a porção frontal do trato vocal (do palato em direção aos lábios) e para a porção posterior do trato vocal (do palato em direção à laringe). Esse deslocamento possibilita articular distinções entre vogais. É o que acontece com as vogais iniciais daspalavras ilha e uva. A literatura estabelece regiões distintas na língua, como nos mostra a Figura 4. Figura 4 – Regiões da língua centro dorsolâmina lábio trás raiz LÍNGUA ponta Fonte: Ladefoged, 1975, p. 4. Cada uma dessas regiões será responsável pela articulação de conjuntos distintos de sons. Assim, a ponta da língua, sua região mais frontal, participa da articulação de sons con- sonantais, como o som grafado pela sequência <th> do inglês. A coroa da língua, a região imediatamente seguinte, é o articulador responsável pela produção de sons como os que ini- ciam as palavras tapioca, dália, navio, sapo, zebra, lago. O dorso da língua, região de maior extensão desse órgão, é o principal responsável pela articulação dos sons vocálicos. Por fim, a raiz constitui a parede frontal da faringe, como já mencionado, e participa da articulação de sons posteriores, como o de algumas consoantes. Atividades 1. Assinale a alternativa que completa corretamente a frase: O objeto de estudo da fonética (...) a) confunde-se com o objeto de estudo de ciências naturais como a Medicina e, por isso, a fonética é uma disciplina secundária da Linguística. b) consiste nos diversos sons que o ser humano é capaz de produzir, tanto os que constituem a fala, como assobios, tosses ou risos. c) confunde-se com o objeto de estudo de ciências como a Física, porque interessa à fonéti- ca investigar quaisquer sons, sejam humanos, sejam ruídos de máquinas. d) consiste nos sons da fala, apenas, mas, pela maneira como são abordados, promove uma interface grande com outras áreas, inclusive externas à Linguística. 2. Assinale a alternativa que completa corretamente a frase: O ciclo de produção de voz (fonação) (...) Como a Linguística estuda os sons da fala? 23 a) acontece durante a inspiração, porque o indivíduo precisa do ar que vai para os pulmões para fazer vibrar as pregas vocais. b) acontece durante a expiração, utilizando o ar egresso dos pulmões e promove a vibração das pregas vocais. c) estabelece-se como consequência de um mecanismo dinâmico de equilíbrio de pressão do ar no trato vocal. d) acontece tanto durante a inspiração como durante a expiração, porque resulta do equilí- brio da pressão do ar ingresso e egresso dos pulmões. 3. Assinale a alternativa que completa corretamente a frase: São articuladores do trato vocal (...) a) palato mole, laringe e traqueia. b) dentes, lábios e pulmões. c) palato, alvéolos e língua. d) mandíbula, úvula e vértebras. 2 Distinguindo os sons da fala: vogais Sabemos que a produção da voz acontece durante o processo de fonação, quando as pre- gas vocais vibram, como consequência dos seus movimentos alternados de abdução e adução. Sabemos também que o som produzido pela ação das vibrações das pregas, o tom laríngeo, é indistinto, ou seja, não é [a], [s] ou [i], por exemplo. A distinção entre os diversos sons da fala acontece no trato vocal, como resultado dos movimentos dos articuladores. O trato vocal, que se estende da laringe aos lábios e compreende a cavidade nasal, tem órgãos que utilizamos para produzir os sons da fala e aos quais chamamos de articuladores. São exemplos de articuladores os lábios, a língua e o véu palatino. Tendo apresentado os articuladores do trato vocal no Capítulo 1, podemos agora começar a realizar uma das tarefas do foneticista, que é a de descrever como as pessoas utilizam esses articu- ladores para produzir os sons da fala. Em linhas gerais, podemos observar que os articuladores da porção inferior do trato – como língua ou lábio inferior – geralmente se movem ao encontro dos articuladores da porção superior – como alvéolos, palato ou lábio superior. Ao descrever esse movimento, os articuladores promovem o estreitamento do trato, diminuindo a dimensão do canal pelo qual o ar se propaga. Esse estreita- mento forma “constrições”, cuja presença ou quase ausência determina uma distinção básica entre os sons da fala, que é a distinção entre consoantes e vogais. Tente pronunciar uma palavra como papa, por exemplo. Observe que, durante a produção de [a], sua boca se encontra totalmente aberta, permitindo que o ar se propague livremente1 pelo trato vocal. Em contrapartida, durante a produção de [p], os lábios se aproximam maximamente, a ponto de se tocarem, obstruindo totalmente a passagem do ar pelo trato. Assim, podemos perceber que a produção das vogais praticamente não envolve constrição, fato que nos possibilita, inclusive, sustentar a produção desses sons por tanto tempo quanto o fôlego permitir. O som [p], por outro lado, não pode ser sustentado de maneira alguma. Conseguimos apenas prolongar o toque do lábio inferior e do lábio superior, mas essa manobra articulatória sozinha não é suficiente para produzir- mos [p], como deverá ficar mais claro no Capítulo 3. 1 Ressaltamos que afirmar que as vogais são produzidas pela propagação livre do ar pelo trato, como fazem algumas gramáticas escolares ou como o texto faz, nesse momento, é uma grande simplificação. Afinal, as vogais envolvem constrição do trato, causada pelo deslocamento do dorso da língua, para cima ou para baixo, para frente ou para trás, relativamente à sua posição de repouso. Mas, comparativamente com a constrição que se forma para a articulação de qualquer consoante, a das vogais é mínima. Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia26 Assim, em linhas gerais, os sons da fala produzidos pela ação de uma constrição significativa no trato vocal são as consoantes. Por outro lado, os sons que não envolvem constrição – ou quase nenhuma – são as vogais. Além dessa diferença entre a articulação de consoantes e vogais, há outra, igualmente fun- damental, que se relaciona à área do trato que utilizamos para produzir vogais: esses sons são produzidos em uma porção muito pequena do nosso aparelho fonador. Esta área abrange a região do palato e do véu palatino, apenas (a Figura 1 traz demarcada a região do trato utilizada para a produção de vogais.). As consoantes, por sua vez, como será exposto no capítulo a seguir, ocupam toda a extensão do trato para sua produção. Figura 1 – Região do trato vocal utilizada na produção das vogais palato véu palatino Fonte: Elaborada pela autora com base em Ladefoged, 1975, p. 4. Duas diferenças adicionais entre consoantes e vogais: a. vogais são geralmente produzidas concomitantemente à vibração das pregas vocais. As consoantes, por outro lado, podem ser produzidas acompanhadas ou não de vibração das pregas vocais; b. vogais podem ser produzidas concomitantemente ao arredondamento dos lábios. Essa manobra articulatória, aliás, pode distinguir sons vocálicos em línguas como o francês ou o alemão. Mas como, afinal, produzimos os diferentes sons vocálicos? Como veremos a seguir, há mais estratégias além do arredondamento dos lábios que usamos para diferenciar os vários sons vocá- licos entre si. Distinguindo os sons da fala: vogais 27 2.1 Distinguindo as vogais entre si Para dar conta da tarefa de distinguir os sons vocálicos entre si, os foneticis- tas tomam três parâmetros articulatórios: • grau de abertura da mandíbula, que se reflete na altura da língua no trato; • posição ântero-posterior da língua no trato; • arredondamento dos lábios. 2.1.1 Abertura da mandíbula A mandíbula pode-se mover para baixo, relativamente à sua posição de repouso. Pode tam- bém voltar à sua posição de repouso, a partir de uma posição de deslocamento máximo, o que requer que ela se mova para cima. Esse movimento vertical da mandíbula – ou sua abertura – é crucial para que se estabeleçam as diferenças entre os graus de abertura das vogais. Assim, por exemplo, a diferença fundamental entre [e] – em uma palavra como ele2 – e [ε] – em uma palavra como ela – é o fato de que [e] é produzida com a mandíbula mais fechada, ou mais alta, do que [ε]. A mesma observação vale para [i] e [e] ou para [u] e [o], assim como para [o] e [ɔ]. Note que o assoalho da língua se liga à mandíbula por meio de diversosmúsculos, conforme ilustra a Figura 2. Figura 2 – Ilustração esquemática da língua e da mandíbula Palatoglosso Estilo-hioideo Estiloglosso Hioglosso Processo Estiloide Língua Mandíbula GenioglossoGenio-hioideo Osso Hioide Frênulo lingual IE SD E Br as il S. A. 2 Observe que a vogal frisada nesse exemplo é aquela representada pela primeira ocorrência da letra “e”, que está ne- gritada. A segunda ocorrência não foi sinalizada porque, como veremos mais adiante, ela representa um som ligeiramente diferente de [e]. Vídeo Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia28 Como os dois órgãos estão ligados, obviamente quando a mandíbula se abaixa ou se levanta o dorso da língua acompanha esse movimento, abaixando-se ou levantando-se também. As vogais produzidas com a mandíbula fechada são ditas fechadas ou altas. O termo alta – convém explicar – faz alusão à posição vertical do dorso da língua no interior do trato vocal. São vogais fechadas ou altas [i] e [u], por exemplo, como em ilha ou uva. Se abrirmos um pouco a mandíbula, o dorso de língua abaixará ligeiramente, resultando dessa manobra as vogais semifechadas, como [e] e [o], como as vogais iniciais das palavras erro e ovo. Abrindo um pouco mais a mandíbula e, consequentemente, abaixando um pouco mais o dor- so, teremos as vogais meio abertas, como [ε] e [ɔ], como em ela ou pó. Finalmente, se abrirmos ainda mais um pouco a mandíbula, chegaremos à sua abertura má- xima e, consequentemente, ao abaixamento máximo de dorso de língua. Dessa manobra resultam as vogais [a] e [ɑ]. Esta última vogal ocorre no inglês britânico em palavras como father. Um rápido adendo: o português é uma das poucas línguas do mundo que utiliza quatro graus de abertura para diferenciar as vogais entre si. Isso coloca alguns problemas, de ordens diver- sas: a teoria fonológica há tempos discute sobre qual seria a melhor maneira de representar esses graus de abertura da vogal. Por outro lado, falantes nativos de outras línguas, como o espanhol, por exemplo, tem problema em perceber e produzir distinções como a que fazemos em erro (substan- tivo) e erro (1a. pessoa do singular do verbo errar). 2.1.2 Movimento sagital do dorso da língua Outro parâmetro articulatório que caracteriza a produção das vogais é o movimento do dor- so da língua no sentido sagital do trato, isto é, da posição anterior (próxima aos lábios) à posição posterior (próxima à glote). Lembre-se, entretanto, de que, quando nos referimos à produção das vogais, temos de considerar que o ponto mais frontal do trato que o dorso consegue alcançar cor- responde à região do palato; o ponto mais posteriorizado que o dorso consegue alcançar, por sua vez, corresponde à região do véu palatino (conforme mostra adiante a Figura 3). Nessa região, a linha constituída de pequenos pontinhos corresponde à posição mais alta e mais frontal que o dorso da língua consegue alcançar, portanto a posição que resulta na produ- ção da vogal inicial da palavra ilha. A linha pontilhada menor corresponde à posição mais alta e mais posterior que o dorso da língua consegue, como na vogal inicial de uva. A linha pontilhada maior corresponde à posição mais baixa e frontal que o dorso atinge, durante a produção de uma vogal, como na vogal inicial de ato. Finalmente, a linha contínua representa a posição mais baixa e mais posterior que o dorso da língua alcança durante a produção de uma vogal, como no caso do primeiro som vocálico de father. Cabe acrescentar que o português não tem essa vogal em seu inventário de sons. Distinguindo os sons da fala: vogais 29 Figura 3 – Trato vocal com os pontos máximos que o dorso da língua alcança para a produção das vogais. i a u ɑ a Fonte: Elaborada pela autora. Considerando-se, assim, o movimento do dorso nessa dimensão sagital, podemos classificar as vogais em frontais3, ou seja, aquelas produzidas com o dorso maximamente projetado para fren- te, portanto mais próximo do ponto palatal, como [i], [e] ou [ε]. As vogais produzidas com o dorso maximamente retraído, portanto na região do véu palati- no, são chamadas posteriores. É o caso de [u], [o] e [ɔ]. Há, ainda, a possibilidade de que sejam produzidas vogais intermediárias a esses dois pontos extremos, isto é, nem anteriorizadas, nem posteriorizadas, mas centrais. É o caso, por exemplo, da vogal [a] no português brasileiro. Ainda sobre a Figura 2, é preciso comentar, adicionalmente, que ela representa a posição do dorso da língua, no interior do trato vocal, requerida para a produção de cada uma das quatro vogais mencionadas. Não é obrigatório, porém, que o dorso sempre esteja naquelas posições exatas para que articulemos as vogais. Como qualquer atividade motora, a posição que os articuladores 3 Por sugestão de um orientando de mestrado, o Mateus Dubiela, tenho usado, já há alguns anos, o termo frontal para me referir às vogais que a literatura fonética e fonológica de língua portuguesa insiste em rotular “anteriores”. Essa razão se justifica pelo fato de desfazer uma ambiguidade que o termo “anterior” enseja com os traços distintivos da fonologia gerativa. Ao desfazer a ambiguidade, desfaz-se, por conseguinte, a associação equivocada e comum entre o traço [ante- rior] e vogais como [i] ou [e]. Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia30 ocupam durante a produção dos sons da fala pode variar ligeiramente entre falantes de uma mes- ma língua. Pode até variar na fala de um mesmo indivíduo. Para tentar deixar mais claro esse pon- to, pense na tarefa motora de caminhar: nós sabemos que, para caminhar, é preciso colocar um pé em frente ao outro, mas não em fila. Eles têm de estar paralelos. Sabemos também que precisamos alternar o pé que fica na frente. Desse modo conseguimos nos deslocar. Ou seja, nós temos uma “imagem mental” da posição que os pés têm de ocupar para que possamos andar. Mas pode acon- tecer que duas pessoas posicionem os pés em ângulos ligeiramente diferentes, ao pousarem-no, quando alternam o movimento com o outro pé. Ainda assim, ambas as pessoas caminharão. O mesmo acontece com as vogais e a posição do dorso ilustrada na Figura 2: temos ali uma representação da posição aproximada que o dorso da língua tem de ocupar para produzir, por exemplo, a vogal inicial de ilha. É como se os pontos daquela figura fossem pontos de referência para a articulação das vogais – as quatro vogais da Figura 2, aliás, são as vogais “extremas”, justamente porque são produzidas no ponto máximo que o dorso da língua consegue alcançar para cima e para a frente, para baixo e para a frente, para cima e para trás, para baixo e para trás. Podemos dizer, por isso, que as quatro vogais da Figura 2 são análogas aos pontos cardeais, no sentido de que servem de orientação espa- cial sobre o deslocamento do dorso da língua. 2.1.3 Alturas intermediárias do dorso da língua Na seção “2.1.1 Abertura da mandíbula” abordamos o movimento vertical da mandíbula e, consequentemente do dorso da língua, que resulta nos diferentes graus de abertura das vogais. Assim, dizemos que as vogais iniciais das palavras ilha e uva são fechadas, ou altas, porque são produzidas com a mandíbula muito próxima de sua posição de repouso e o dorso da língua maximamente elevado (lembre-se de que a língua se conecta à mandíbula por músculos, conforme mostra a Figura 2). As vogais iniciais das palavras ele e ovo, por sua vez, são chamadas meio fechadas ou meio al- tas, porque são produzidas com a mandíbula um pouquinho menos fechada do que ela se encontra na articulação das vogais mencionadas no parágrafo anterior. Já as vogais iniciais de palavras como era e ode são classificadas como meio abertas ou meio baixas porque requerem que a mandíbula abaixe ainda um pouquinho com relação à posição que ocupava para a produção das vogais iniciais em ele e ovo. Finalmente, a vogal inicial da palavra ato requer que a mandíbula se abra maximamente e, como decorrência, que o dorso da língua se abaixe também maximamente. Por isso,a vogal inicial dessa palavra é chamada aberta ou baixa4. Tudo o que comentamos até aqui nesta seção não é novo para você, mas a retomada desses pontos foi intencional para fazermos observações adicionais concernentes à altura do dorso da língua. 4 Você pode ter uma ideia mais precisa do movimento da mandíbula e do dorso da língua em: https://www.youtube. com/watch?v=qtGHv1a4b48. Acesso em: 10 dez. 2018. Trata-se de um filme de ressonância magnética e, embora não tenha som, sinaliza ao lado do filme cada vogal que está sendo produzida. Distinguindo os sons da fala: vogais 31 É possível produzir vogais entre aquelas que já mencionamos, ou seja, é possível produzir vogais entre as fechadas e as meio-fechadas, como decorrência de um grau de abertura da man- díbula intermediário a esses dois outros. Em suma, é possível estabelecer vogais distintas utili- zando-se um grau de abertura muito pequeno da mandíbula. Algumas línguas fazem exatamente isso: no inglês, por exemplo, a vogal da palavra sheep (ovelha) e a vogal da palavra ship (navio) se distinguem por uma variação muito pequena no grau de abertura, de modo que a vogal de ship tem uma altura intermediária à de sheep, que é a vogal fechada, e à primeira vogal de espresso, que é meio fechada. A vogal de ship é denominada na literatura fonético-fonológica do inglês de vogal “frouxa”, em oposição à vogal de sheep, compreendida como “tensa” (vide, por exemplo, ODDEN, 2005, p. 21). Raciocínio análogo se aplica às vogais de food (comida) e foot (pé). A vogal de foot tem um grau de altura de dorso da língua intermediário àquele que o dorso assume para a produção da vo- gal de food ou da vogal inicial de uma palavra como overview (visão geral). Nesse caso, a vogal de foot também é rotulada na literatura de “vogal frouxa”, em oposição à “vogal tensa” de food. O português brasileiro também faz uso de vogais com abertura intermediária à da vogal ini- cial de ilha e a da primeira sílaba de medo. Trata-se da vogal átona que ocorre no final de palavras, isto é, da átona final em palavras como: cáqui e parque. Há mais uma produzida com grau de altura intermediário a duas outras, trata-se da vogal final da palavra ato, que requer que o dorso assuma posição intermediária à que ele ocupa para a produção da final de tatu e para a produção da final de avô. No português brasileiro, essas vogais com altura intermediária a de duas outras acontecem em um contexto específico em que são átonas, isto é, essa vogal não pode ser a mais intensa em uma palavra e ocorre, preferencialmente, na posição final de palavras, como nos exemplos men- cionados no parágrafo anterior. Eventualmente, em uma palavra como escola, a vogal da primeira sílaba, que é átona, pode ser realizada com um grau de altura intermediária ao das vogais das pri- meiras sílabas de ilha e de medo. Há, ainda, uma vogal com altura intermediária àquela que o dorso da língua assume para a produção da vogal inicial de ato e a vogal da primeira sílaba de quero. Trata-se da vogal final da palavra casa. Para verificar que a vogal final dessa palavra tem altura diferente da vogal da primeira sílaba, você pode lançar mão de um procedimento simples: vá para a frente de um espelho, coloque sua mão aberta embaixo do seu queixo e pronuncie a palavra casa. Você verá que durante a vogal da última sílaba sua mão sobe um pouquinho. Por que isso acontece? Porque a mandíbula se fecha ligeiramente e, como consequência, o dorso da língua fica um pouco mais alto do que estava du- rante a produção da vogal na primeira sílaba de casa. Para fazermos referência às vogais descritas nos parágrafos anteriores, no português brasilei- ro, utilizamos o termo “reduzida”, em vez de “frouxa”. A escolha do termo se justifica porque essas vogais são mais breves que as vogais tônicas. E, na nossa língua, essas vogais têm a particularidade de refletirem uma forte interação entre a estrutura acentual e a estrutura segmental na língua, já que só acontecem em posição átona, como comentamos. Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia32 2.2 Arredondamento dos lábios Apesar de estabelecer diferença entre algumas vogais, o cruzamento de aber- tura de mandíbula e posição do dorso da língua não é suficiente para caracterizar e diferenciar todos os sons vocálicos. Até porque há línguas, como o francês, que opõem vogais anteriores altas como [i] – em palavras como folie5 (loucura) – a vogais como [y] – em palavras como rue (rua). Como, então, diferenciar essas vogais? Por meio de um terceiro parâmetro classificatório, o arredondamento dos lábios que resulta de uma manobra de aproximação e protrusão labial. Essa manobra articulatória, que independe da posição da língua no trato – por tornar possível sobre- pô-la a vogais frontais, centrais e também a vogais posteriores – é explorada por algumas línguas em seus sistemas vocálicos. O francês é apenas um exemplo de língua que explora essa manobra. Línguas como o vietnamita6, por exemplo, opõem vogais da série posterior apenas por meio do arredondamento dos lábios. Assim, palavras como [tɯ] avante e [tu] beber têm como traço que as distingue apenas o arredondamento dos lábios, presente na vogal da primeira palavra, mas não na da segunda. Ambas as vogais são posteriores e fechadas. As palavras [tɤ] seda e [to] prato de sopa também se distinguem apenas pelo arredondamento dos lábios, presente na vogal da segunda palavra do par. Tanto essa quanto a vogal da primeira palavra do par são posteriores semifechadas. Por fim, as palavras [ʌŋ] favor e [tɔ] largo têm vogais posteriores meio abertas, sendo a vogal da primeira palavra não arredondada e a vogal da segunda, arredondada. Uma observação adicional: segundo o World Atlas of Linguistic Structures Online7, a maioria das línguas do mundo não tem vogais arredondadas. Nas línguas que exibem essas vogais, são mais frequentes as vogais arredondadas fechadas e médias. Por vogais médias a literatura fonética en- tende as vogais que ficam entre as fechadas e as abertas, ou seja, vogais entre [i] e [a], por exemplo. 2.3 Nomeando as vogais Como você já sabe, os três parâmetros que citamos anteriormente – abertura da mandíbula, posição do dorso da língua e arredondamento dos lábios – nos permi- tem chegar à caracterização de um, e apenas um, som vocálico no inventário de todas as vogais registradas nas línguas do mundo. Para dar nome a uma determinada vogal, então, ou caracterizá-la do ponto de vista articulatório, recorremos aos três parâmetros, na seguinte ordem: primeiro, mencionamos a posição do dorso da língua; em seguida, a abertura da mandíbula e, finalmente, o movimento dos lábios. Assim, uma vogal como [i] será frontal alta não arredondada, contrariamente à [y], aquela 5 Estão negritados os dois grafemas vocálicos, tanto desse exemplo como do seguinte, pelo fato de ambos os grafe- mas representarem o som da vogal em questão. 6 Os dados são de Ladefoged e Maddieson, 1996, p. 293. 7 Você pode acessar World Atlas of Linguistic Structures Online por meio do link: https://wals.info/feature/ 11A#2/22.6/152.9. Acesso em: 11 dez. 2018. Vídeo protrusão: movimen- to ou projeção para frente. Vídeo Distinguindo os sons da fala: vogais 33 que, como vimos anteriormente, ocorre no francês e é frontal alta arredondada. A vogal [o], por sua vez, é posterior semifechada arredondada, e assim por diante. Frisamos, mais uma vez, que alta e fechada são sinônimos, assim como baixa e aberta. Para nomearmos as vogais de altura intermediária a que nos referimos no item “2.1.3 Alturas intermediárias do dorso da língua”, utilizamos critérios quase idênticos aos expostos neste item, exceto pelo fato de que devemos frisar que se tratam de vogais “diferentes” e fazemos isso utilizando o termo “reduzido”, em razão da particularidade mencionada também na seção citada anteriormente: essas vogais acontecem em razão de uma forte interação entre o nível segmental e a estrutura acentual e, por isso, ocorrem em posiçãoátona. Como consequência, elas são mais breves do que as demais vogais do português brasileiro. Por isso, a vogal átona final de parque, por exemplo, deverá será nomeada vogal frontal alta não arredondada reduzida. Analogamente, a vogal átona final de ato deverá será nomeada vogal posterior alta arredondada reduzida. 2.4 Articulações que se sobrepõem às vogais 2.4.1 Vogais com ATR e vogais faringalizadas As manobras articulatórias relativas à posição do dorso da língua, à abertura da mandíbula e ao arredondamento dos lábios produzem as vogais que abordamos nas seções anteriores. Mas essas manobras podem ainda ser sobrepostas por outra adicional. Assim, Ladefoged e Maddieson (1996) observam que o movimento de raiz da língua pode diferenciar vogais em alguns sistemas linguísticos, como é o caso da língua akan (falada em Gana e na Costa do Marfim – África), ou da língua igbo (falada na Nigéria). Nessas línguas, sobrepõe-se à articulação das vogais uma manobra de projeção da raiz, que se convencionou chamar de ATR (sigla em inglês para advanced tongue root, ou raiz da língua avançada8). Ladefoged e Maddieson (1996) mencionam, com base em dados articulatórios – lâminas de raios X – que, nessas línguas, a distinção das vogais quanto à ATR é mais óbvia para as vogais altas. De acordo com os dados experimentais, mantém-se igual à altura das vogais – por exemplo [i] e sua contraparte produzida com avanço de raiz de língua –, mas a principal diferença é que, na primeira vogal, a raiz da língua é mais retraída que na segunda. É possível também que o movimento antagônico à projeção da raiz da língua se sobreponha à articulação das vogais: nesse caso, tem-se a retração do dorso da língua, que, sobreposto aos sons vocálicos, produz as vogais faringalizadas. Ladefoged e Maddieson (1996) relatam que essas vogais são encontradas na língua even (falada ao norte da Sibéria) e também nas línguas caucasianas (fa- ladas na Rússia, Turquia e Jordânia) e nas línguas khoisan (faladas em regiões próximas ao deserto de Kalahari, como Angola, Botswana, Namíbia e África do Sul). Ainda de acordo com esses auto- res, por meio dos estudos realizados com raios X, na língua even, por exemplo, é possível encontrar as vogais [i, u, o] e suas contrapartes faringalizadas. 8 Mantemos a sigla em inglês por ser essa a denominação corrente na literatura para a manobra articulatória que descrevemos nesta seção. Vídeo raiz da língua: por- ção mais posterior da língua, que cons- titui a parede frontal da faringe. Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia34 2.4.2 Nasalização Das manobras que se podem sobrepor à articulação das vogais, a mais frequente nas línguas do mundo9, e também a mais familiar para nós, é a nasalização, porque o português opõe vogais nasalizadas a vogais não nasalizadas, ou orais, como em ata/anta ou cita/cinta. Neste ponto, são necessários breves parênteses para comentar que a escrita é representação da fala. Por isso, inexiste uma correspondência de um para um entre escrita e fala, quer dizer, um mesmo som pode ser grafado por letras diferentes, ou dois sons diferentes podem ser grafados com a mesma letra, conforme veremos mais adiante neste livro. A falta de correspondência entre escrita e fala traz – entre outras consequências – a possibilidade de se representar a nasalidade das vogais de maneiras distintas. Assim, por exemplo, pode-se escrever a mesma vogal nasal como <ã> ou <an>, ou ainda <am>. Com essas considerações, queremos chamar a atenção para o fato de que em uma palavra como anta, o que se tem são três sons, sendo o primeiro da palavra uma vogal nasalizada. Não há, nessa sequência, um som de consoante nasal, seguindo uma vogal oral. A letra <n> tem por função marcar a nasalidade da vogal que a precede. Feita essa ressalva, podemos voltar ao cerne desta seção: como se produzem as vogais nasa- lizadas? Basicamente, sobrepondo-se a cavidade nasal à cavidade oral. Considere, então, que toda aquela estrutura anatômica que constitui o trato vocal, e que abordamos no Capítulo 1, pode ser esquematizada como na Figura 4. Figura 4 – Desenho esquemático do trato vocal Lábios Pregas vocais Fonte: Elaborada pela autora. É nessa estrutura que produzimos vogais como [i, a, u]. A maneira como se faz isso é abor- dada nas primeiras seções deste capítulo. Considere, em seguida, que, além dos movimentos de dorso, mandíbula e lábios que reali- zamos para articular cada uma dessas vogais, é possível abaixar o véu palatino, conforme explica- mos no Capítulo 1. Quando o véu palatino se abaixa, o ar egresso dos pulmões pode se propagar também pela cavidade nasal – além, obviamente, de se propagar pela cavidade oral. Temos, então, o acoplamento da cavidade nasal à oral, como pode ser visto na Figura 5. 9 Maddieson (1984 apud LADEFOGED; MADDIESON, 1996, p. 298) nota, com base em um conjunto de dados perten- centes a mais de 300 línguas diferentes, que a nasalização ocorre em mais de 20% dessas línguas. Distinguindo os sons da fala: vogais 35 Figura 5 – Desenho esquemático do acoplamento da cavidade nasal à cavidade oral para a produção de vogais nasalizadas. Cavidade nasal Cavidade oral Lábios Pregas vocais Fonte: Elaborada pela autora. O efeito do acoplamento da cavidade nasal à oral, no caso específico do português brasileiro, é o seguinte: desfaz-se a distinção entre as vogais médias, isto é, as vogais meio fechadas e meio abertas, como as vogais iniciais de etapa e ética ou as vogais iniciais de olho e óleo. Ao se desfazer essa distinção, tem-se como resultado a vogal [ẽ] – como em êmbolo, ente – e a vogal [õ] – como em ombro e onde. A vogal [a], ao ser realizada com nasalidade sobreposta, eleva-se – porque a mandí- bula fecha ligeiramente e o dorso da língua assume uma posição praticamente intermediária à série anterior e à posterior –, resultando daí o som inicial de uma palavra como anta, ou o som final da palavra maçã. As vogais [i, u] praticamente não têm sua qualidade10 alterada, resultando, então, vo- gais como as que temos no início das palavras índice e untar. Em razão da perda da distinção entre as vogais médias, que explicamos há pouco, o português brasileiro fica com um conjunto de cinco vogais nasalizadas, ao lado de sete vogais orais. Para finalizar: embora as vogais nasalizadas sejam muito frequentes nas línguas do mundo, elas não ocorrem, obrigatoriamente, em todas as línguas, ainda que algumas possam ser aparen- tadas. É o caso do espanhol, que não tem as vogais nasalizadas. Essa diferença no sistema vocálico causa problemas tanto para falantes nativos de português que aprendem espanhol como para falan- tes nativos de espanhol que aprendem português. No primeiro caso, a dificuldade existe porque os falantes de português tendem a nasalizar vogais que, no espanhol, são realizadas como vogais orais seguidas de consoantes nasais. No outro caso – o dos falantes nativos de espanhol que aprendem português –, a dificuldade existe porque tendem a pronunciar como uma vogal oral seguida de consoante nasal uma vogal que, em português, é nasalizada. Dificuldades análogas para os falantes nativos de português surgem, ainda, quando aprendem italiano ou alemão, por exemplo, e pelas mesmas razões apontadas. 10 Diz-se “qualidade da vogal” a impressão auditiva que se tem dela e que resulta dos movimentos de dorso, mandíbula e lábios. Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia36 Ampliando seus conhecimentos Nesses manuais didáticos para o ensino de fonética e fonologia você encontrará a caracteri- zação dos sons vocálicos. • CALLOU, D.; LEITE, Y. Introdução à fonética e à fonologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. • SILVA, T. C. Fonética e fonologia do português. São Paulo: Contexto, 1999. Atividades 1. Quais são os parâmetros articulatórios utilizados para a caracterização dos sons vocálicos? 2. Explique por que os parâmetros utilizados na caracterização das vogais são distintos daque- les das consoantes e por que se podeafirmar que a mandíbula desempenha um papel crucial na articulação das vogais. 3. Como são produzidas as vogais nasais? 3 Distinguindo os sons da fala: consoantes Ao abordarmos as vogais, no Capítulo 2, observamos que esses sons são produzidos pela ação de uma constrição muito tênue no interior do trato vocal tal que o fluxo de ar, ao passar pelo trato, encontra pouca ou nenhuma resistência. As consoantes, por sua vez, são produzidas por uma constrição maior que a das vogais e em diferentes graus – do mais ao menos severo – de modo que a propagação do fluxo de ar no interior do trato vocal é pouco, parcialmente ou totalmente interrompida. Assim, por exem- plo, a consoante inicial da palavra sapo requer uma grande constrição para sua produção, mas a consoante seguinte dessa mesma palavra requer total interrupção à propagação do fluxo de ar pelo interior do trato vocal. Outro fato que distingue consoantes de vogais é a área do trato vocal que elas utilizam para serem produzidas, visto que, conforme mencionado no Capítulo 2, as vogais ocupam uma área pequena do trato para sua produção. Essa área se estende do palato ao véu palatino. As consoantes, por sua vez, como ocupam toda a extensão do trato vocal e podem ser produzidas desde as pregas vocais até os lábios. Outra diferença entre vogais e consoantes está na ação das pregas vocais: as vogais, via de regra, são realizadas com vibração das pregas vocais. No caso das consoantes, há aquelas que são realizadas com vibração das pregas vocais, mas também há outras cuja produção não envolve vi- bração dessas. Assim, na palavra zelo, a consoante inicial requer a vibração das pregas vocais; na palavra selo, por outro lado, a consoante inicial não requer que as pregas vocais vibrem. Dadas essas diferenças envolvidas na articulação de consoantes e vogais, não se podem em- pregar os mesmos parâmetros classificatórios para os dois conjuntos de sons. Como, então, distin- guir uma consoante da outra? Que parâmetros motores devemos empregar para isso? Esses são os pontos que tentaremos responder a partir da próxima seção. 3.1 Distinguindo as consoantes entre si A constrição que as consoantes requerem em sua produção é bem mais se- vera do que aquela necessária para produzirmos vogais. Além disso, há diferentes graus de constrição envolvidos na produção das consoantes – do mais ao menos severo. Esse, então, será um dos parâmetros tomados para a diferenciação entre as consoantes e será chamado modo de articulação. Outro parâmetro que os foneti- cistas tomam para caracterizar as consoantes é o lugar, ou o ponto do trato onde as consoantes são articuladas. Esse, aliás, é um bom parâmetro classificatório já que, como vimos no Capítulo 2, as consoantes ocupam toda a extensão do trato vocal em sua produção. Vídeo Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia38 Finalmente: a ação das pregas vocais é importante para se distinguirem as consoantes, como comentamos na seção anterior e, por isso, se constitui em um parâmetro classificatório adicional desses sons. Dessa forma, as consoantes serão descritas em função de envolverem vibração das pregas em sua produção ou não. A partir da próxima seção, abordaremos detidamente cada um dos três parâmetros classi- ficatórios das consoantes. De maneira análoga ao que ocorre com as vogais, os foneticistas con- cebem que o cruzamento entre os três parâmetros articulatórios que caracterizam as consoantes permite que cheguemos à descrição de um, e apenas um, som consonantal. 3.1.1 Ponto de articulação O ponto de articulação é o parâmetro classificatório de consoantes concernente ao local do trato onde dois articuladores se aproximam ou se tocam, provocando aí uma constrição de modo a impedir parcial ou totalmente a passagem do ar. Os pontos de articulação empregados na produção das consoantes estão ilustrados na Figura 1. Em seguida, fornecemos a descrição de cada um deles. Figura 1 – Pontos de articulação do trato vocal dental labiodental bilabial dental retroflexo glotal velar Ponto de articulação faringal palatal alveolar pós-alveolar uvular Fonte: Ladefoged e Maddieson, 1996, p.13. • Bilabial É o primeiro ponto do trato em que podem ser produzidos sons e que envolve a aproxi- mação dos lábios superior e inferior. São produzidos nesse ponto as consoantes iniciais de palavras como pátio, bula e máscara. • Labiodental É o ponto localizado logo depois dos lábios. As consoantes produzidas nesse ponto – como as iniciais de farinha e vacina – envolvem a aproximação do lábio inferior com os dentes da arcada superior. • Dental As consoantes produzidas nesse ponto envolvem a aproximação da ponta ou da lâmi- na da língua com os dentes superiores frontais. São exemplos de sons consonantais Distinguindo os sons da fala: consoantes 39 produzidos nesse ponto os primeiros de palavras inglesas como think (pensar) ou thy (vosso). Em português, não existem sons produzidos nesse ponto. • Alveolar Caracteriza as consoantes produzidas pela aproximação ou pelo toque da ponta ou da lâ- mina da língua nos alvéolos, que são a estrutura óssea localizada imediatamente atrás dos dentes da arcada superior. São exemplos de sons produzidos nesse ponto as consoantes iniciais de tábua; doca; cinco; ou zinco; nuvem; lábio e a consoante da palavra arara. • Pós-alveolar Os sons produzidos nessa região envolvem a aproximação da lâmina da língua com a re- gião posterior dos alvéolos. Eles estão presentes, por exemplo, nos sons iniciais de xícara ou girafa. • Retroflexo Como observam Ladefoged e Madddieson (1996, p. 25, grifo do original; tradução nossa): O termo “retroflexo” é utilizado para designar várias articulações diferentes, relacionadas tanto pela forma que a língua assume na produção dessas articula- ções, como pela região superior do trato. Uma articulação retroflexa se caracte- riza, até certo ponto, pelo movimento curvo da ponta da língua1. Esse movimento da ponta da língua curvando-se sobre o dorso pode ocorrer na altura dos alvéolos, ou um pouco mais para trás, na altura do palato2. Sons retroflexos ocorrem no português como variantes de /r/, marcando o dialeto que se convencionou denominar caipira. No geral, são encontrados no meio de palavra ou em final de sílaba e palavra, como em carta ou favor, respectivamente. Em alguns diale- tos – como no interior do estado de São Paulo – pode ser encontrado também em grupos consonantais, como na palavra prato. • Palatal Caracteriza consoantes produzidas pela aproximação da porção anterior da língua e do palato duro, como os sons iniciais das palavras nhoque e lhama, ou as consoantes mediais de unha e alho. • Velar Consoantes produzidas nesse ponto – como os primeiros sons de casa e gula – envolvem a aproximação ou o toque do dorso da língua no palato mole. 1 The term “retroflex” has been used for a variety of different articulations, which are linked as much by the shape of the tongue involved as the region on the upper surface of the mouth. A retroflex articulation is one in which the tip of the tongue is curled up to some extent. 2 Pela caracterização dos sons retroflexos, nota-se que a retroflexão se configura praticamente como um modo de articulação, mais que como ponto. Essa é uma discussão antiga e controversa entre os foneticistas. Por motivos didáti- cos, optamos aqui por simplificar essa discussão e adotar a visão da Associação Fonética Internacional, considerando-se então retroflexo um ponto de articulação. Língua Portuguesa I: Fonética e Fonologia40 • Uvular Ponto que caracteriza consoantes produzidas na região da úvula, a exemplo do primeiro som da palavra francesa rue (rua). Esses sons não ocorrem em português, e mesmo no francês estão caindo em desuso, segundo Demolin (2007). • Faringal Consoantes produzidas nesse ponto envolvem a aproximação da raiz da língua com a pa- rede posterior da faringe. São consoantes encontradas especialmente em línguas faladas ao norte e a leste da África, como
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