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Poder e legitimidade

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PODERE LEGITIMIDADE· 
Presidente: THEMISTOCLES CAVALCANTI 
Participantes: CÂNDIDO MOTA FILHO; 
MANOEL GoNÇALVES FERREIRA FILHO; 
D.JACIR MENEZES; FERNANDO WHITAKER 
DA CuNHA; FRANCISCO DE SoUZA BRA­
SIL; LÚCIA MARIA GoMES KLEIN; AR­
MANDO DE OLIVEIRA MARINHo; ADILSON 
MAcABU. 
Sr. Presidente - Quero antes de tudo agradecer a todos pelo compareci­
mento a esta reunião, atendendo· à nossa convocação, feita para discutir 
um tema sugerido pelo Prof. Djacir Menezes, que é "Poder e legitimidade". 
Tema extremamente vago, permite um debate livre, não somente sobre 
o poder, mas também sobre o problema da legitimidade. Não vou dissertar 
sobre o assunto, porque estou aqui para aprender. Assim, dou a palavra 
a quem colocou o problema, para dizer como encaminhá-lo. Com a pa­
lavra O Prof. Djacir Menezes, que nos vai dizer alguma coisa sobre o 
assunto .. 
Prol. D;acir Menezes - Sr. Presidente, senhores componentes desta mesa­
redonda, o que temos realizado até agora tem sua motivação nos ensaios 
publicados na revista, pelo Centro de Estudos Jurídicos e Filosofia Polí­
tica. e apenas pretexto - eu sempre Caço questão de ressaltar isso -
porque as teses aqui apresentadas não só às vezes são um tanto omissas, 
como não verSam todos os aspectos que o problema oferece. Então, é uma 
espécie de ponto de partida, com a oportunidade de ouvir as exposições 
dos presentes. O debate incidirá sobre ó que for conveniente, publicando-se 
o resultado destes nossos trabalhos na revista. 
Temos sempre trabalhado sob a orientação superior e competente 
do Min. Themistocles Cavalcanti. As falhas são da responsabilidade do 
coordenador, que nem sempre pôde cumprir exatamente tudo. '.S •• r ... .,.· . 
• Mesa-redonda realizada em 29.8.75. 
R. Cio pol., Rio de Janeiro, 19(1) :73-101 jan./mar. 1976 
Tendo já os senhores lido essa tentativa de incitamento ao debate, 
que é o ensaio publicado, creio que o melhor seria o Sr. Presidente ir 
dando a palavra, sucessivamente, aos que se interessarem em iniciar nossa 
troca de idéias sobre os problemas sugeridos. 
Min. Cândido Mota Filho - Sr. Presidente, eu escrevi umas notas sobre 
o assunto. Se V. Ex/!- quiser, poderei começar. 
Sr. Presidente - Com muito prazer. 
Min. Cândido Mota Filho - "Poder e legitimidade. O tema da legitimi­
dade vem sendo debatido, principalmente depois que foi contestada a 
origem divina do poder. A palavra alargou o seu significado. O Dicionário 
Morais dá a palavra 'legítimo' com dois sentidos, um porém decorrente do 
outro. Significa "conforme a lei", o que tem todos os requisitos para o 
estado civil. E passa a significar também o que é 'genuíno', não espúrio." 
Modernamente, Maurice Duverger, em seu estudo sobre as ditaduras, 
sustenta que a legitimidade não é senão um processo de crença, cujo con­
teúdo varia conforme a época e conforme o país. No século XVIII, diz 
ele: a monarquia heréditária era o governo legítimo; hoje, no Ocidente, 
é a democracia, baseada na eleição pluralista. 
O fato de se dizer que um governo é legítimo não leva à conclusão 
de que ele representa o bem comum; mas, somente que a massa dos 
governados o consideram como legítimo. 
Porém, devemos lembrar que o termo vem como uma decorrência 
da disputa pelo poder. Quando Talleyrand, no Congresso de Viena, viu 
a atmosfera revolucionária da França, sustentou a legitimidade dos Bour­
bons, reivindicando para eles, como um direito incontestável, o trono 
tradicional. 
Sob pontos diferentes, no século XVII, ·Hobbes e Bossuet já tinham 
sustentado o legitimismo. Os reis, para De Maitre, reinam porque são 
reais, isto é, sempre legítimos e respeitáveis. E se fixou corno uma vontade 
de Deus. Um velho opúsculo político de SommineIli chega a referir-se ao 
'princípio augusto da legitimidade', decorrente de deveres religiosos. E foi 
com esse princípio que, mais tarde, Nàpoleão m reivindicou para si a 
restauração. 
Essa preocupação cresceu naturalmente com a Revolução Francesa, 
para transformar-se, segundo Treistchcke, numa questão de ordem prática, 
sustentada por esta ou aquela conveniência. 
A Monarquia brasileira nasceu sob o signo das aspirações democrá­
ticas e o assunto começou a tomar vulto com a dissolução da primeira 
Constituinte, quando é dissolvida por Pedro I. 
Na reunião de 3 de maio de 1823, o Imperador, na sua fala do trono, 
justifica a sua legitimidade na direção política do País, recordando que 
nele ficou por vontade do povo e pela felicidade geral da Nação. E disse: 
'Parece-me que o Brasil seria desgraçado, se eu não atendesse ao apelo 
como atendi. Bem sei que este era meu dever, ainda que expusesse minha 
vida; mas, como era em defesa deste Império, estava pronto, assim como 
hoje e sempre, se for preciso.' 
74 R.C.P. 1/76 
E ao terminar sua oração, Pédio I ouviu do Presidente, em resposta, 
a aftrmação da distinção dos pQc:Ieres independentes e harmônicos entre 
si, nos limites de sua esfera, acreSéentaOdo ainda o Presidente: 'Esta doce 
harmonia dos poderes não pode· ser somente a obra dos talentos e das 
luzes, que hoje se têm difundido por tOda parte; dela se espera, principal­
mente e com todo fundamento, a afirm!lção da legitimid4J,de da democracia, 
as altas virtudes, as paixões bem téguladas pela razão, os bons costumes 
e. maneiras, os sinceros sentimentos religiosos das autoridades públicas 
e dos indivíduos particulares.' 
Acontece que a dissolução da Constituinte foi feita, e em nome da 
legitimidade, pois o Imperador conquistara o título de defensor perpétuo 
do Brasil. 
A Monarquia, com o correr do tempo, foi-se legitimando, e cabe a 
D. Pedro n levá-la assim até 1860, quando começa a perder sua solidez e 
escorada tão-só pelo poder pessoal. . 
B conhecido, nesse crepúsculo dramático, o diálogo do Imperador 
com o Marquês de São Vicente. O Imperador: 'Sr. São Vicente, antes o 
país que se governe como entender e dê razão a quem tiver.' 'Senhor -
responde o marquês - Vossa Majestade não tem o direito de pensar por 
esse modo. A Monarquia é dogma da Constituição, que V. Majestade 
jurou manter; ela não está encarnada na pessoa de V. Majestade.' 
'Ora - disse-lhe o Imperador· -'- se os brasileiros não me quiserem 
para Imperador, irei ser professor.' 
Joaquim Nabuco, em Um estadista do Império, preocupado em deci­
frar o papel do Iinperador, cita este trecho de um discurso do Conselheiro 
Nabuco; 'Governe quem quiser, quem governa sem legitimidade.' 
Os conflitos se avolumaram sem solução, a questão dos escravos, a 
questão religiosa, a questão militar e a Monarquia acabam por perder as 
características de sua índole 'constitucional e representativa'. 
Na República Velha, a legitimidade dos eleitos para a presidência 
da República é várias vezes coDtestilda. E fói cioso de sua' legitimidade, 
quando da revolta da Escola Militar, que Rodrigues Alves afirma: 'Aqui 
é meu lugar.' 
Depois da Guerra Mundial de 1914, a República não percebe a 
renovação tempestuosa dos valores' e não dá conta dos novos interesses 
que estavam em jogo. A voz de c comando do Gen. Café não foi ouvida, 
porque para o Presidente Washington Luís a legitimidade de seu Governo 
estava além das crises econômicas., O coronelismo, que eta a linguagem 
política que os bacharéis expressavam, tomou-se incompreensível. As crí­
ticas se avolumam: centralização do Governo Federal, o hábito das inter­
venções nos Estados, os males das oligarquias, o abandono da zona 
sertaneja entregue ao cangaço, à doença e à ignorância, a poHtica dominada 
de forma caudilhesca por; Pinheiro Machado, campanha civilista, que é o 
prefácio monumental de Ruy sobre a Revolução de 30. 
. A legitimidade, porém, toma-se vulnerável na maioria dos países do 
Ocidente. A revolução industrial compõe a movimentação dos novos qua­
dros políticos. Em 1958, no Centro de Estudos Políticos de Nice, debate-
Poder e legitimidade 75 
se o tema 'Política e técnica'. Ela começa a atuar com a máquina a vapor 
e alcança a sua plenitude com os meios de comunicação de massa. Nessa 
reunião, André Siegfriedcomeça por chamar a atenção para o direito 
administrativo, antes em plano secundário e alcançando então o primeiro 
plano. E diz que 'o Estado torna-se um amigo de todos e um inimigo de 
cada um'. 
Por sua vez, o Prof. Marcel Merle profetiza a abdicação do poder 
político para as mãos dos técnicos. 
A legitimidade parece ser aquilo que impõe a sociedade mecanizadã. 
Mas, ao mesmo tempo, se opera a reação e a política de movimento, 
abastecida de valores sociais. Se surgem as grandes entidades, surgem tam­
bém atuantes pequenos organismos, os institutos científicos, as universi­
dades, os grupos de pressão, as modificações no trabalho pela automação, 
a modernização da pobreza, assinalada por Illich, para quem as taxas de 
crescimento das frustraçõ~ excedem largamente as da produção. 
J. M. Chevalier, afirmando que 48% daS' reservas de urânio são 
controladas pelos petroleiros americanos, diz que a Europa oferece a ima­
gem da maior irracionalidade energética possível. E esse pessimismo é 
acentuado por Ezra Minham, quando diz que o crescimento anotado pelos 
economistas significam muito mais uma degradação do que uma melhoria. 
E Michel Bosque sustenta que a Standard Oil, a Gulf OH, os bancos 
Rockfeller e Mellon já estão se prevenindo para agir depois do esgota­
mento da energia petrolífera. 
Por isso, a atmosfera reinante é no sentido de se viver do provisório 
e todos estão de acordo com Tocqueville que, em 1834, já dizia em De la 
démocratie en Amérique: 'E preciso uma ciência política nova para um 
mundo inteiramente novo.' 
Recordo-me de um velho político paulista, Ataliba Leonel, senhor e 
possuidor de grande prestígio, que me dizia como que corrigindo o meu 
gosto pelas teorias: 'A política não se ensina, não se aprende, exercita-se.' 
O que ele queria dizer é que a política tem sempre um caráter provi­
sório. Recomenda este ou aquele rumo conforme as circunstâncias, porque 
ela fala a linguagem dos interesses comuns. E o que aconteceu com os 
burgueses no século XVII, com o individualismo retórico do século XVIII 
e com o dogma da representatividade no século XIX. Todos estes séculos 
dão um sentido peculiar à legitimidade, porque, como dizia o Senador 
Nabuco de Araújo, quem governa sem ela, governa como quiser! 
Um dos pensadores que traduziram esse estado de ânimo, Max Weber, 
que, na opinião de Franco Ferrarotti 'ê stato piu usato che compreso', 
reconhece que o núcleo da civilização ocidental que reverenciou o reino 
das idéias, conforme a tradição liberal, não consegue legitimar a própria 
sociologia e não consegue nada. Acentua, com isso, a natureza problemá­
tica do poder e diz textualmente que, sob o ponto de vista sociológico, 
'o poder é a chance de se fazer obedecido'. 
Volta-se a falar no poder como força. E Maquiavel é lembrado, em­
prega pela primeria vez a palavra stato, tendo sido interpretado como um 
dos campeões do poder como força. No entanto, Maquiavel mostra que a 
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política é, antes de tudo, a hâbi1i~de de se contornar as incontinências 
da força. E daí o seu empe1i1ló dê verSoderine salvar, pela sabedoria 
política, ao mesmo tempo, a independência de Florença e sua forma re-
publicana. . .' 
O marxismo não tem sido visto' se~ãt> como uma arma revolucionária 
e não como uma construção de. uma nova sociedade. É pelo menos assim 
que o vê Karl Copper, em seu liVíoA sociedade democrática e seus ini­
migos e a propósito diz que a estratégia da revolta contra a liberdade sem­
pre tem sido a de tirar a vantagem dos sentimentos, sem gastar energia 
em fúteis ,esforços para destruí-los. Por isso mesmo, reconhece que a 
maior realização de Marx foi a de ter contraditado o psicologismo, assim 
o fazendo como sociólogo, o q'Je toma maior vulto na obra contestatória 
de lIerbert Marcuse, insistindo no' tema da birilensionalidade da existência 
- necessidade e liberdade. 
Por isso, hoje há uma inclinação visível para estudar-se, ao invés 
da teoria política, o fato político, como o conseguiu fazer Michel Debrun 
num. livro publicado por esta casa. E, muito embora inclua a força material 
na definição do fato político, reconhece contudo a integração dos fatos 
sociais, da qual a política se aproveita. Assim, para ele, as forças sociais, 
surgiram com a Revolução Francesa e o Império Napoleônico foi aceito 
pelos Bourbons, permitindo a salvaguarda das conquistas econômicas e p0-
líticas da burguesia. 
Mas é exatamente no exame atual do fato político, que vemos a legi­
timidade atiJlgida iámbém pela crise, quando se tenta .manter as regras 
do passado para pôr em ordem as aspirações novas do presente. O Estado, 
estruturado 4e uma forma, n~o pode 'suportar as mudanças que afetam 
essa forma. Numa monarquia baseada na economia escravagista, como a 
nossa no Império, as medidas tomadas por Pedro li para modificá-la 
somaram-se contra o regime. Machado de Assis, com sua habitual malícia, 
nos descreve um negro fugido sendo impiedosamente açoitado por um 
outro negro, que era um negro liberto. 
I acques Ellul, em seu livro Autopsie de la révolution, diz que nos 
movimentos revolucionários o que domina é o sentimento do intolerável. 
. Muitas vezes, ela não tem consciência desse 'intolerável' e não sabe o 
que quer, o que mostra que a força só não basta. E dá um exemplo: 
Pancho Villa, diz Jacques EIlul, instalado no poder, não sabe como decidir. 
E mostra que Spartacus em Roma, era um revoltado, mas não era um 
revolucionário. 
Eessa é uma das fases dramáticas da Revolução Francesa. Ela se rebe­
lava contra o intolerável, mas como nos mostra Hannah Acendt, os homens 
da Revolução Francesa não possuíam concepção alguma dos valores hu­
manos, nem o respeito pela personalidade verdadeira que devia ser garan­
tida pelo direito, nem encontraram um meio de fixar a legitimidade po­
pular. A nova ordem, que dela nasce. é resultante de trágicos e sucessivos 
acontecimentos em nome de' uma nova legitimidade. 
A revolução ainda, na maioria dos casos, é feita contra a arbitrarie­
dade do poder, em nome de sua legitimidade. Entre muitos casos, está 
Poder e legitimidade 
o da Revolução de 1842, chefiada em Minas por Teófilo Ottoni e, em 
São Paulo, pelo Pe. Antonio Feijó. O intolerável então era para os revo­
lucionários o desprezo do poder pela legitimidade de suas' ações. Feijó, 
apesar de doente, não perde sua energia e, em 19 de janeiro de 1842, 
envia à Assembléia Provincial de São Paulo um ofício, no qual diz que 
se as leis de 9 de novembro e de 3 de dezembro de 1841 continuassem 
toleradas, brevemente a Constituição se tomaria irrisória! 
A crise da cultura ocidental, que envolve a ação política, é talvez 
a mais profunda de todos os tempos. Nela o Estado perde, não raro, sua 
condição de Estado de direito, para ser um Estado executivo, com os 
rótulos extremistas à sua disposição. O que Carl Schmitt denomina 'Mono­
pólio político', não tem tempo nem prazo. Há uma inquietação política 
decorrente dos novos aspectos da sociedade, conduzindo para um plano 
secundário a diferença entre presidencialismo e parlamentarismo, entre 
bipartidarismo e pluripartidarismo, entre trabalhismo e sindicalismo, entre 
unitarismo e federalismo, porque as transformações exigem outro esquema 
para a direção da vida política e, portanto, uma outra legitimidade com 
outras substâncias. 
As preocupações legislativas não se demoram só em opiniões, mas 
procuram o auxílio dos técnicos para esclarecer medidas técnicas. Antes 
não era assim, tanto que Maurice Duverger, em seu livro Janus, informa 
que 'há menos de 20 anos o Parlamento da Noruega foi obrigado a decidir, 
por uma lei, se o inferno existe!' 
Aparece, com isso tudo, uma legitimidade adequala às épocas de 
crise, configurada em nome da salvação pública. Por outro lado, a época 
em que vivemos é de contestação por todos os meios e por toda a parte, 
que chega a acusar a cultura como elemento de arbitrariedade social que 
mostra em verdadeiros supermercados. 
Atualmente, nos Estados Unidos, diz Jean François Revelem Les 
idées de notre temps, os escolares entre 13 e 15 anos, são oscontestatórios 
mais virulentos do que os universitários. 
Para esse estado de coisas, todas as medidas tomadas pelo poder são 
legítimas, porque são para socorrer uma situação provisória. 
Poderíamos ir mais longe, mas não é preciso, porque ninguém nega 
que a idéia do definitivo vai ficando esquecida nos dicionários. 
A Universidade de Pádua, entre ábril e maio de 1951, promoveu 
uma série de conferências sobre a crise do direito. Nela, Ripert mostra que 
o jurista se vê desamparado pela abundância móvel da legitimação. E 
Giuseppi Capograssi diz que 'nascono tremendi statidi necessitá per la 
societá distrutte'. 
Mas, assim como há provisoriedade do legítimo, assim também há 
a provisoriedade do poder, que é um hoje e outro amanhã. 
Sr. Presidente - Com a palavra o Prof. Francisco de Souza Brasil. 
Prol. Francisco de Souza Brasil - Sr. Presidente, diante de tão abalisados 
mestres do direito, limitar-me-ei a, apenas, alguns comentários, que reputo 
interessantes, para uma boa compreensão histórica do próblema. Aludiu 
o mestre Cândido Mota Filho ao caráter sagrado do Imperador. O mais 
78 R.C.P. 1/76 
cwioso é que esse caráter era :ftIQOnbecido na própria Constituição do 
Império que, segundo Afonso Arinos, até hoje, é uma das melhores e 
mais bem f~itas que o ,Brasil já-~, Dizia "a Constituição: "A pessoa 
do Imperador é inviolável e sagraula.". Se, examinarmos as moedas do 
Império, encontraremos, noçunho, ~ mesmas, uma contradição, qual 
seja dos priticípios que, como· ~ OJ franceses, "hurlent de se trouver 
ensemble": "Dom Pedro 11, pela, 9~ça, (ie Deus e unânime aclamação dos 
povos, Imperador' Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil." O grande 
Augusto Comte, na sua Lei dos Três, Estados, .foi contestado por Vico, 
que reivindicou a idéia dos cors,; i rjéorli iíaevolução social, o que é uma 
grande verdadé, ou seja, a coexis~Jicia' pacífica digamos assim, usando 
um termo bem atual, de princípios, que, -na realidade, historicamente, de­
veriam ter-se sucedido e, no' entanto, coexistem, até hoje. Por exemplo, 
com todas as inovações, impostas'- ao constitucionalismo japonês, após a 
fi Grande Guerra, \Terifica-se' que, na realidade, a legitimidade do poder 
do Imperador repousa, até hoje, na crença inabalável de que ele descende, 
diretamente, de uma divindade. Tive oportunidade de assistir, em Bra­
sília, ao tempo do Presidente' Médici, à exibição de um filme sobre a 
ináuguração da Feira dê Osasko. Lamento, profundamente, que esse filme 
não tenha sido difundido pelo Brasil, porque era extremamente interes­
sante., A inauguração da Feira foi presidida pelo Imperador. Falaram as 
mais altas autoridades do Corpo Diplomático. No momento -em que o ,,­
Imperador se levantou para falar, não somente todos se levantaram, como, 
também, baixaram as cabeças, pois não podiam :encará-Io. Isso, em pleno 
ano de 1974, q~ando o Japão, evidentemente, cheio de cientistas:eminen­
~ mantinha; como mantém até hoje, coexistindo pacificamente, uma 
idéia de legitimidade, que- repousa no direito divino, incontestável e abso­
luto. Isso, num país onde há e continua ~vendo, incontestavelmente, 
progresso material extraordinário. De maneira que gostaria, apenas de 
colocar, na mesa dos debates, essa idéia: a coexistência, digátnos assim, 
pacífica. Desses princípios que, por definição deveriam ser antagônicos 
ou, no' míninto,' sucessivos. 
Prol. Djacir Menezes - E a história do astrônomo com medo tremendo 
do trovão. 
Prol. Francisco de Souza Brasil - Descendo a esse detalhe, há Um fato 
ainda mais interessante. 
QuaÍJ.do exerci as funções de adido cultural do Brasil, na América 
'Central, havia lá uma Comissão Geodésica americana, interessada em fazer 
levantamentos específicos. Naquela área existe um fenômeno curioso: 
quando se encerram as estações do ano, 'que são apenas duas - chuva e 
calor; ou calor com' chuva ou sem chuva - há um tremor de terra. Isso 
nos assustou, a mim e à minha mulher. Indaguei de um cientista americano 
qual a relação que havia, pois, à pergunta de minha esposa à empregada, 
dela obtivera a seguinte resposta: "Houve um tremor, vamos ter chuva 
hoje à tarde." Perguntei, . então, ao americano se havia uma relação de 
causa. e efeito entre o tremor de terra e o encerramento da estação, o 
começo e o fim da chuva. Respondeu-me: "Cientificamente, não há relação 
Poder e legitimidade 79 
alguma, mas esse fenômeno ocorre, sem exceção, desde que estou aqui, 
há sete anos." 
De modo que é este o problema: a questão do fato ainda não disci­
plinado, propriamente, pela lei científica. Acho, portanto, que, sob esses 
aspectos históricos, poder-se-ia descer a maiores detalhes. Exemplo: ao 
tempo do absolutismo, D. João VI, Rei do Brasil, além de sagrado, foi 
aclamado pelo povo. O alferes-mor desfraldava a bandeira da monarquia 
e, diante do pavilhão, armado no Campo de Santana, gritou, por três 
vezes: "Real, real, real, Sua Majestade o Rei de Portugal." Era unânime a 
aclamação do povo, já exigida em pleno regime absolutista. Permitam-me 
uma pequena digressão, para encerrar: por causa desse princípio da legi­
timidade, baseado no direito divino, que se transmitia pelo sangue, o nas­
cimento dos príncipes reais está descrito numa cena extremamente inte­
ressante, que ocorreu no paço da cidade, quando uma das filhas de D. João, 
casada com um infante espanhol, teve um filho, aqui nascido. Conta-se 
que o infante é trazido numa bandeja de prata - fato comum, em todas 
as cortes da Europa, até hoje - pelo nobre mais categorizado - no caso, 
o Duque de Cada vai, primeiro duque não-real de Portugal - e apresen­
tado à corte, na presença do Rei, que deveria reconhecê-lo, publicamente, 
como seu descendente, para que, a partir daquele momento, tivesse em 
si a qualidade que o investiria da possibilidade de o suceder. 
Vejam, portanto, os ilustres debatedores, aqui presentes, como essa 
coexistência, em pleno século das luzes, digamos assim, essas reminiscên­
cias históricas, que se perdem em a noite dos tempos, são como que um 
desafio, sempre perene, à indagação: Há progresso linear ou há, como 
queria Vico, "corsi i ricorsi", nesse aspecto da evolução social? 
Muito obrigado pela atenção. 
Min. Cândido Mota Filho - Pode haver essa coincidência, porque hoje é 
provisório o sentido da legitimidade. 
Prol. Fernando Whitaker da Cunha - Sr. Presidente, ouvi, com muito 
prazer, a preleção brilhante do Ministro Cândido Mota Filho e as inte­
ressantes observações do Prof. Souza Brasil e li, principalmente, com 
muita atenção, o estudo do Prof. Djacir Menezes, que é o ponto funda­
mental de nossa mesa-redonda, publicado no n. 18 da Revista de Ciência 
Política, abalisada publicação que V. Ex~ com idealismo dirige. Este artigo 
foge aos padrões convencionais sobre a matéria. Tenho lido, sobre ela, 
inúmeros livros e trabalhos e, ultimamente, tenho-me acostumado ao 
cantochão das imagens feitas, das idéias preconcebidas. Fazendo jus à 
inteligência e à penetração de seu autor - ensaísta, economista, sociólogo, 
pensador, crítico - devo dizer que ele abordou dois pontos fundamentais 
desse problema angustiante, que é "poder e legitimidade". Esses pontos 
são as relações entre a democracia e o poder e entre o poder e a re­
presentação. 
Obviamente, eu vou me dispensar de evocar as raízes da questão da 
legitimidade (legitimista), porque ela, hoje em dia, foi laicizada; perdeu 
80 R.C.P. 1/16 
os culptes das.. idéias monárqoiçlls. ~ 1p,.rn~1l-se um instrumento indefectível 
da oraem constitucional. .; .; .:, 'J .' 
A lejitimidade foi c()ncebiAA, .pc". vez .primeira, por Sto. AgQstinbo; 
depoi.$ Rouss~u foi sensível.a c;la.;~. foi Talleyrand. quem a .fO)'DlW;m 
devidamente no Congresso<l~ ViClljl. ..:r-osteJiormente, Fabred'Olivet • 
aceitou-a. Ela nasceu como uma, ~ia te~iosa, uma iQéia reaciooária, 
porque tendia a restaurar um mundo ~~dido, que era o mundo do abso­
lutismo e das. realezas, mas q~d9 to.sfollDou-senuma Jorçacoletiva, 
ela serviu aos ideais da Revolução. F'~~§l e não aos da Restauraçã(>. 
Na verdade, hpje em dia a'legítiJ:Qidade perdeu aquela cor:ultrapassa­
da que tinha em 1815. Aliás. Telleyrand assim o fez, não por espírito 
monárquico, . mas porque, nutml"Çpoça em Que a França derrotada, os­
cilav~. entre as potências. ven~as.."~ll precjso lJD)a .POlítica QpoItunIJ,.e 
sagaz. Foi então que defendeu, no Palácio HQfburg de Viena, . as teses da 
legitimidade e da não-intervenção. . 
Mas, como dizia eu, os pontos fugdamentais são esses; a esgrima 
entre a democracia e o poder e as relações entre o poder· e a repJ:esen­
tação. Vivemos ainda, sob. um. certo. aspecto, exceto umpugilo de estu­
diosos, no clima liberalóide do século XIX, mormente pelos compêndios 
polidos de direito público e teoria geral do Estado, nos. quais ainda se 
congemina, ainda se pensa e ~ argumenta em termos- do século JüX. 
Os exemplos são copiado, uns dos oooos.O refrão de que o Estado 
é meio e não fi.m, as defesas de. um falso liberalismo que· afeta a ordmn 
pública,. tudo isso pertence a um m.uD.do destruído .pelo . primeiro pós­
guerra. 
De modo que quando se fala -. e o Prof. Djacir levantou essa tese 
na coexistência da democracia com o poder -. aflora-se a um. dos pontos 
nevrálgicos da ~ência polítiça .co.n~mporânea, porque·.a; democ1'aeia é, 
na realidade, a niais difícil fonna. de governo. Exige tantc) de governantes 
quanto de governados. A democracia direito cedeu lugar' à delllOCl'aCia 
dever. O liberalismo do século. XI},(,. que criava um antagonism~ entre 
o indivíduo e o Estado, gerandQ um _ çllina de privilégios ao indivíduo, 
está morto. O, Estado conte~râneo não mais podo coabitar com os 
falsos direitos do indivíduo, Que conflitam com os inter~ da 'cole­
tividade. 
Então ocorre que autores como Pompeu Biondi, que· dedicou uma 
série de monografias a este tema e que nega a possibilidade de uma con­
vivência entre poder e liberdade, então, data venia, deslocados dentro do 
panorama filosófico moderno, mesmo porq'Je, se nós ~rct)bermos .as in­
discutíveis e. necessárias atividades do Estado. contemporâneo, intervindo 
na ordem privada, não. intervindo no sentido de absolutismo, mas para 
salvaguardar o bem coletivo, .. necessariamente, publicizando o direito pri­
vado, tomando o direito público autônomo do direito privadQ através 
de série de recursos. O direito adIpinistrativo, por exemplo, do qual V. :Er., 
Sr. Presidente, é uma autofidade, veio aos· poucos libertando-se <la ·tutela 
do direito privado, utilizando uma série de conceitos que lhe são es-
pecífico. \ s. 
Poder ti legitimidade 81 
Então o Estado contemporâneo é, sem dúvida alguma, um Estado­
fim, mas não no sentido em que os taumaturgos do liberalismo temiam, 
isto é, o de um Estado que denega os interesses individuais, mas no sen­
tido de que só o Estado pode propiciar o bem comum, com o qual, aliás, 
sob certo aspecto, se identifica, como dizia Kelsen. Dirão alguns: mas 
Kelsen é suspeito, seu pensamento nutriu tendências extremistas, mas a 
pureza da construção kelseniana, que possibilitou um trabalho, aliás clás­
sico sobre a democracia, essência e valor dela, demonstra claramente 
que o "L'Etat c'est moi", de Luiz XIV, é hoje "l'Etat c'est nous". O 
Estado somos nós, porque o Estado é uma abstração, como pressentiram 
Platão e a doutrina do corpo místico da Igreja. 
O Estado é uma realidade fisiológica, histológica e até patológica, 
nas épocas revolucionárias; tem angústias, compulsões, neuroses, sublima­
ções, estudadas pela psicologia política, a psicanálise coletiva e a psiquia­
tria social. 
De modo que, entre o Estado eI, o indivíduo, os laços são muito 
íntimos. O Estado não existe como um inimigo do indivíduo, ele não é 
uma sombra, uma ficção, uma criação da mente. Ele é uma realidade 
concreta e palpável. 
Ora, quando o insuspeito Maritain escreveu que o fim do indivíduo é 
o Estado, apesar de o fim do Estado ser a pessoa, ele distinguiu muito 
bem a órbita política do homem e a sua órbita subjetiva, colocando-se 
na vanguarda de um pensamento político de alto cotumo. Leio, num livro 
de teoria do Estado, volumoso tratado de um catedrático da Universidade 
de Lima, Raul Ferrero, uma observação muito sagaz: o Estado é o fim 
do homem, para a aprimoração deste. 
Os próprios autores que se poderiam ter como suspeitos, como Bo­
sanguet, reconhecem que o Estado é um fim, em si mesmo, mas no sen­
tido de que propicia ao indivíduo o clima jurídico e o oxigênio do bem 
comum. 
Em outras palavras, aquela reação contra o Estado-fim foi uma rea­
ção contra o absolutismo e uma reação contra o nazi-fascismo. Mas mesmo 
os autores, que preparam contra o nazi-fascismo, usando a velha tese 
do Estado-meio, evoluíram para a aceitação de um Estado-fim interme­
diário, que é uma contradição substancial. Porque, como dizia Aristóteles, 
não podemos ser e deixar de ser ao mesmo tempo. O Estado não pode 
ser fim e meio, ao mesmo tempo. Só por um inútil exercício de imaginação. 
Então o Estado é fim como um clima que propicia ao indivíduo atin­
gir as suas finalidades. Não como instrumento opressor. 
:a por esta razão, entre outras coisas, que a citação do Prof. Djacir 
Menezes, de que a democracia tem de se sofrear para que não seja per­
dida a liberdade extremamente sutil, porque a franqueza das instituições 
é o túmulo das garantias. Todo poder corrompe, daí a diferença entre 
poder e autoridade, porque o poder sem autoridade resvala na mais exe­
crável agressão física. Quando eu me refiro ao poder, refiro-me ao poder 
legítimo, ao poder que encontra consentimento na alma popular. :a por 
esta razão, entre outras coisas, que nós teríamos de reformular o conceito 
82 R.C.P. 1/76 
de Estado de direito, porque o ·Eatadode direito é a casca vazia ·de : lega­
lidac:le ~ic~do os regimes· de' esquerda e de direita; porque" teenicao­
mente, todos são Estados de direito, pelo fato de estarem sujeitos a· llma 
ordem normati~a. Então o que dá 1 a'o um "Estado democrático autêntico a 
sua característica é a legitimidade; que 6 o,.fundamento da ordem 'consti­
tucional. Assim, o conceito tradicional de Estado de direito é um conceito 
hoje em dia, 'na filosofia, tr~~t em virtude de o clireito . não ~. a 
única finalidade do Estado; é uma delas. O Sstado incorpo~ o direito, 
consuma a experiência jurídica eCOllCinua"aIé1D de~ para, realizar a cul­
. tura, este aprovisionamento espiritual que a. comunidade estatalirada c0n-
seguiu através da história. , 
Há uma Constituição contemporânea, de. um país que na órbita·· ex­
tema não tem maior projeção política." mucuja.Carta é muito bem.feita, 
a do Panamá,. que no art. 76 acolhe expressamente esse . Estado ,de cul­
tura, não a cultura no sentido ..folclórico da palavra, no SlCntido. ~ 
nal, mas a cultura como criação da história, como criação:do homem 
sob um certo meia social.. 
O próprio earl Schmitt, que influiu em a nossa teoria, constitucion:al, 
. reconhece essa fragilidade da expressão "Estado de direito" . no mundo 
-conteJ!lPOrâneo. . 
Verifiquem V. Ex.lIs, por conseguinte, que não há dúvida ;algumà 
quanto à primeira sugestão do Prof. Djacir Menezes.· Ela· tem . alta tele­
vância, porque na verdade toda ciência política é produto de úDla esgriDia 
entre o poder e a liberdade. o cómando e· a dignidade;·. IibtJrdade oa 
.autoridade. E não se pode ser'livre Sem uma autoridadé 'fOeconteDha~ \. 
liberdade, dentro de seus limites, e que não tenha por essência :O ~ti1nI). 
De nada .adianta um governo forte num Estado fraoa e 'muito menos 
um governo' democrático num ·Bst.ado que não o é, por deféité de, itif .... 
estrutura. A democracia autêntica·aflui das bases populares para a, c6pu1a 
dirigente, como um sentimento glóbalizador, que nutre- Gcontexto sócial. 
A segunda questão que.o Prof. Djacir Menezes abordou, com muita 
precisão, foi a questão das relações' entre o poder' e a· reptelleotação, eJriol­
,vendo também a .legitimidade, :a legitimidade que méSmo- nasrevoluçõCsnão evita o governo de fato. O governo de fato pode. vir na l'evolução 
legítima ou na ilegítima. A legitimidade tem os foros de autocoostituinte 
.c, por outro' lado, não está ligada ao direito natural. O direito. natural 
não ééQndição da legitimidade. Pode existir legitimidade com ele e pode 
a legitimidade não se inserir dentro dele. 
É neste caso, interessa profundamente a. questão da representação. 
Porque a representação política, conforme está formulada, ainda é '1UIUl 
reminiscência de um privativismo do direito público, quando o mundo 
contemporâneo caminha para a publicização do direito privado. A questão 
do mandato político - e Rousseau usava também expressões do direito 
privado - é típica de quando o direito público não tinha recumo para se 
autodefinir . 
. O direito público é muito recente; o constitucional data do final do 
século XIX, na Itália; o administrativo do começo do século XIX; o 
Poder e legitimidtule 
direito financeiro, o direito tributário deste século. Estamos nascendo no 
direito público. Mas, evidentemente, ele já tem recursos próprios que o 
tomam autônomo. 
Os conceitos de mandato político, de representação política, etc. têm 
ressaibos de um civilismo de direito constitucional. Isso não tem mais razão 
de ser, mormente com a teoria do Estado-órgão, que não se confunde, é 
claro, com o organicismo do século XIX, spenceriano, enfocado pela socio­
logia biológica. O meu organicismo é ético, idealista, cultural. 
Ravá mostrou que o Estado ético não é totalitário, de sorte que não 
há nenhuma relação substancial entre o organicismo cultural e o fascismo. 
Evidentemente, isso não impede que muitos conceitos válidos que hoje apli­
camos tenham sido utilizados, em outras circunstâncias, por pensadores 
de direita ou de esquerda. Temos que adotar dos teorizadores aquilo que 
permanece de seu pensamento. Em toda doutrina de pensador político há 
uma parte que parece com sua época, em que paga tributo, paga tributo à 
ideologia que segue, ao seu gosto estético, a seu tempo, mas há uma outra 
parte que encerra o intenso núcleo de suas idéias e que permanece porque 
desvinculada do jogo circunstancial. 
O organicismo demonstra claramente que, com a teoria do Estado­
órgão, o direito público libertou-se totalmente do problema da represen­
tação política, nos termos em que ela era colocada pelos pensadores do 
século XIX e até deste século, que recorriam ao direito privado. E por quê? 
Porque a teoria do Estado-órgão faz o direito público colher em si mesmo 
os elementos para resolver seus problemas. Vejam V. Ex.as, que essas 
questões são profundamente atuais. Quando estudamos a miranda do poder, 
quer dizer, a sua simbólica, ou a sua credenda, o consentimento que damos 
ao poder para que ele seja legítimo, nós estamos abordando um assunto 
de todas as épocas, nesta mesa-redonda, em que existem pessoas da maior 
autoridade intelectual e que tem significativa experiência dos três poderes 
do Estado, razão pela qual podem sentir o problema em suas diversas e 
perturbadoras nuanças, ansiosos de ver um Brasil economicamente forte, 
política e juridicamente soberano e socialmente justo. 
Sr. Presidente - Com a palavra o Dr. Manoel Gonçalves Fereira Filho. 
Dr. Manoel Gonçalves.Ferreira Filho - f: para mim uma experiência extre­
mamente enriquecedora participar desta mesa-redonda, conjuntamente com 
tantas figuras de realce do pensamento brasileiro, seja do pensamento filo­
sófico, seja do pensamento jurídico; seja do pensamento sociológico. 
Como professor de direito constitucional, a ordem de preocupações 
que me traz o tema "Poder e legitimidade" é, de certa forma, mais chã, 
mais rasteira do que as considerações filosóficas especialmente, que foram 
tão bem expendidas pelos oradores que me precederam. 
O ponto fundamental, na minha opinião, a respeito desta questão, é 
a distinção entre legitimidade e legalidade. A legitimidade, como referência 
a um conjunto de crenças que a comunidade tem, num determinado mo­
mento, ou seja, como uma idéia que essa comunidade faz do que seja 
direito, do que seja justo, portanto, de quem deve governar, de como deve 
ser estruturado o governo, ou de até onde pode ir o governo. E a legali-
R.C.P. 1/76 
dáde, a refe~ncia a um corpo de,:regras, pdsitivas, isto é, regras editadas 
e garantidas pelo Estado, pelo podt6 POUtico. 
Nessas condições, estabelecida.essa distinção, nós podemos encontrar 
um poder legítimo que não seja um;poder legal,' um poder legítimo que 
seja poder ilegal, como nós podemos~encontrar um poder ilegal que seja 
um poder legítimo. :e exatamente em Virtude dessa dualidade de situaçOOs, 
que cabe o fenômeno revolucionmo, freqüentemente um fenômeno de 
restauração da legitimidade contraumgovemo legal, que se tomou ilegí:­
timo, mas que pode ter a conotação inversa de um movimento para o esta­
belecimento, ou para o prevalecimento de uma nova legitimidade. 
Esta minha última afirmação pode deixar de pé uma certa dúvida, ou 
pode parecer uma certa incoerência. Mas o fato é que em determittada~ 
fases históricas é propriamente encontrado um conflito de legitimidade, 
porque não prevalece, globalmente falando, uma concepção sobre o justo, 
uma idéia de direito, mas se ch'éX:am e lutam entre si diferentes concepções 
do "que seja o direito. 
Esse problema foi ~orado, brilhantemente, pelo meu Prof. Souza 
Brasil, há pouco, quando ele apontava o fenômeno histórico da coexistência 
de princípios que são opostos, como muito bem traduz o preâmbulo à 
Constituição de 1824, a Carta Constitucional do Império, fazendo refe­
rência de um lado à soberania de direito divino, ao direito diviao dos reis, 
e de outro lado à soberania popular. 
Nessas épocas de conflito" de' legitimidade, é extremamente difícil' a 
situação do poder político, porque este tem pela frente dois paradigmas 
diferentes, um o paradigma legal, outro o paradigma legítimo, e o- paradigma 
legítimo, às vezes, dividido entre si. 
Essa matéria é de suma importância, 'quando nóS analliiáníós a 'queS~ 
tão no estrito prisma do direito constitucional. O direito constitucloi1al 
começa com a Constituição. Mas CO'DlO começa uma constituição? Numa 
análise fenomenológica, nós enCOl1tramos um grupo que se arroga o direito 
de estabelecer instituições novas, ou seja, triunfando por esta ou aquela 
maneira edita um 'ato que pretende venha a ser uma constituição. Mas, 
de certa forma, qualquer 'um pode fazer isso, qualquer grupo pode preten­
der estabelecer uma constituição nova, pode formular essa declaração' de 
instituições novas. Mas em que momento, ou em que condições esse ato 
se transforma numa constituição? A meu ver, esse ato se tnrosforma numa 
constituição, no momento em que se toma eficaz, ou seja, no momentO 
em que ganha a aceitação dos governados, a aceitação global e mansa da 
comunidade que pretende seja regida por essas regras. Essa aceitação,evi­
dentemente, é facilitada, quando essa declaração de instituições nóvas, e,sse 
ato constituinte, coincide com uma idéia de direito preexistente, uma legi-:­
timidade preexistente. Mas pode ocorrer em sentido oposto, ou seja, essa 
declaração pode não encontrar, por si, a legitimidade. E aí me parece 
caber a análise de um outro fenôn;teno, que é o fenômeno da legitiniaçlo. 
Eu assim designaria por falta de um termo melhor, é a ação do próprio 
poder que se estabelece, liga-se pela força, para ganhar a '8céitaçio da 
COIpUnidade, para conquistar essa aceitação. E temos inúmeros exemplos 
Poder e' lelfÍtimidode 
históricos em que o poder, ilegítimo em sua origem, consegue por sua 
ação, usando todos os recursos e, modemamente, em especial, dos meios 
de comunicação de massa, transformar a legitimidade, transformar-se a 
legitimidade, transformar-se de poder ilegítimo, de início, em poder legítimo. 
Esse problema de conflito de legitimidade, parece-me ser o problema 
político fundamental da época em que vivemos. Nós vivemos - e, especial­
mente, em alguns países, vivemos mais intensamente - o conflitoentre 
o princípio democrático e o princípio liberal, em face de novas circunstân­
cias e de uma conjuntura especialmente difícil. f: preciso, porém, bem 
distinguir esses dois princípios, o que nem sempre aparece nas disputas 
e nos debates. O princípio democrático já é de caracterização difícil, 
porque quem se debruça sobre a história das idéias políticas, encontra 
diferentes colocações do princípio democrático. De fato, o princípio de­
mocrático pode significar simplesmente a resposta à indagação de quem 
provém o poder, ou a quem cabe o exercício do poder. 
Tomada na primeira acepção, a concepção de democracia. Suáfez, 
por exemplo, seria um democrata. Mas há uma colocação mais restrita, 
que éa de que democracia significa quem exerce o poder, todos ou maioria 
dentre todos. Essa, por exemplo, seria, de alguma forma a colocação de 
Aristóteles, na Antiguidade, seria a colocação de Rousseau, no Contrato 
social. Só. haveria democracia, propriamente, quando todos, ou a maioria, 
exercessem diretamente o poder. Entretanto falta uma terceira concepção, 
que já coloca a democracia como, simplesmente, a participação no poder, 
especialmente pela designação dos representantes. Daí o problema tão bem 
colocado pelo Prof. Whitaker da Cunha. 
f: preciso, num debate sobre a democracia no século XX, começar por 
distinguir o que se vai entender por democracia no plano dos princípios. 
E existe hoje, sem dúvida, uma legitimidade formada em torno do prin­
cípio- democrático: todos são pela democracia. Mas se a análise se apro­
funda, já não existe legitimidade tão firme. Pelo menos, uma legitimidade 
sobre o que se entender por democracia estritamente falando. Esse pro­
blema ainda . avulta, quando se combina a problemática da democracia 
com a problemática· do liberalismo, ou do princípio liberal. Este o prin­
cípio é, na verdade, não um princípio relativo à estruturação do poder, 
mas à limitação do poder. O princípio liberal significa que o homem tem 
determinados direitos,· tem determinadas liberdades, que estão fora da 
esfera do Estado. Na verdade, o pensamento revolucionário do fim do 
século XVII, na Inglaterra, e século XVIII, na França, era, em primeiro 
lugar, um pensamento liberal e, só secundariamente, um pensamento demo­
crático. A grande preocupação era garantir a liberdade, e não estabelecer 
a democracia. O estabelecimento da democracia era, de certa forma, um 
instrumento para a defesa da liberdade. O princípio democrático, no século 
XVIII, é um princípio ancilar do princípio liberal. Acredito que o princípio 
liberal, ·nosell.tido da afirmàção dos direitos do homem, superiores ao 
Estado, postos além da esfera legítima de ação do Estado, continue um 
princípio· válido. Não acredito que se tenha de pôr de lado o princípio 
liberal. O que é" preciso, a-meu ver, em face das condições deVida da 
86 R.C;P. 1176 
segunda metade do século xx, é, ~trar uma outra formulação,· uma 
outra combinação de instituições, pua temperar-se o eterno conflito entre 
democracia e liberalismo, entre piidcípio democrático e princípio liberal. 
O princípio democrático, levado às últimas conseqüências, pode ser um 
princípio profundamente antiliberal. Na verdade, os gregos antigos, quando 
concebiam a democracia, não concebiam uma democracia limitada. Certas 
decisões que, legitimamente, eram tomadas pelos poderes democráticos 
atenienses, seriam intoleráveis para nós, no século XX. 
Uma última questão, suscitada, muito bem, pelo Prof. Fernando Whi­
taker da Cunha, merece um exame detido por esta assembléia: a rel~ 
entre poder e representação. Não há dúvida - e muito bem colocou o 
Prof. Fernando Whitaker da Cunha - que a representação nasceu mar­
cada por uma reminiscência do privativismo. Isso se nota, especialmente, 
no seu vocabulário. O que me parece mais preocupante, no tocante à 
representação, no tempo que corre, é que ela tem, verdadeira e politica­
mente, dois sentidos: primeiro, a escolha de quem vai governar em nome 
do povo. Poderemos chamar de representante-governante, por exemplo, o 
presidente da república, o governador do estado e, mesmo, o parlamentar, 
na medida em que ele exerce o poder legislativo, para estabelecer normas, 
para tomar decisões. Segundo, o do defensor de certos interesses: advogado, 
se preferirem uma colocação mais 'nobre, ou despachante, se preferirem 
a menos nobre. Coexistem ambas, especialmente. em relação aos membrQS 
do poder legislativo, que é tomado, sobretudo nos Estados que têm interior, 
também como defensor de certos interesses particulares: de grupos ou 
intereses, até de pessoas. Na verdade, ele gasta grande parte de seu tempo, 
ainda hoje, na defesa desses interesSes. Essa dualidade é de grande reper .. 
cussão, na procura de um modelo de instituições. No caso <1;0 poder legis­
lativo, o membro deste Poder é um representante-governante~ e ao mesmo 
tempo um representante-advogado. Freqüentemente, não exerce <te modo 
ad~uado nenhuma dessas duas tarefas, exatamente por causa dessa duali­
dade. Pergunto se não seria de j,maginar-se uma reestruturação da repre­
seÍltação, em que .se separasse o representante-governante do representante­
advogado. Isso, de alguma forma, já reponta, com a formação dos lobbies. 
que é caminho para a manifeStação dessa defesa de interesses. O reconhe­
cimento dos grupos de pressão não seria, de alguma forma, a institucio­
nalização, desse segundo aspecto da representação? 
Perdoem-me os eminentes mestres, aqui reunidos, se me alonguei um 
pouco, mas o interesse que o tema me suscitou, especialmente as palavi'às 
tão bem Colocadas pelos professores que me antecederam, me levaram a 
não ser breve. 
Sr. Presidente - Vou dar a palavra à Prol' Lúcia Maria Gomes Klein. 
ProF Lúcia Maria Gomes Klein - Minhas preocupações vão bem mais 
longe do que as suscitadas aqui e se aproximam mais das do Prof. Ferreira 
Filho e do Min. Cândido Mota Filho, quando colocam o problema dá pro­
visoriedade das bases de legitimidade, nos sistemas de poder atuais, e mais 
especificamente· com o que o Prof. Ferreira Filho chamou de proceSso 
de legitimação de sistemas de· poder, que se instauram' por vias nio-insti-
Foder e legitimidade 17 
tucionalitadas. Conviria, então, lembrar mais uma vez a distinção entre 
dois tipos de legitimidade, nos sistemas de poder atuais. No primeiro caso, 
a legitimidade que decorre da existência de um pacto entre governantes e 
governados, no sentido de que o poder foi obtido e é exercido em' conso­
nância com regras preestabelecidas, claramente definidas, e promulgadas 
segundo procedimentos aprovados. Nesse tipo de regime, o exercício do 
poder visa, em última instância, a consecução dos fins definidos como 
prioritários pela sociedade. O Estado é visto como um instrumento para 
a consecução desses fins, e as bases de legitimidade são estáveis. A rotati­
vidade do poder é um processo relativamente indolor ê esses sistemas são 
relativamente autônomos em relação ao seu próprio desempenho, no sen­
tido de que esse aspecto importante, mas não há componente básica para a 
legitimação. Já no caso de sistemas de poder que se instauram por vias 
não-institucionalizadas, vigora, como colocou o Prof. Ferreira Filho, um 
processo de legitimáção a posteriori. Na medida em que se instauram sem 
a observância a normas preestabelecidas e socialmente aprovadas, esses 
sistemas de poder se vêem na contingência de forjar a sua legitimidade 
de criar a sua própria legitimação. O problema que me tem ocorrido, nesse 
último caso - e penso que o estamos vivendo agora - é que as bases 
de legitimidade são extremamente instáveis e essa legitimação, criada 
a posteriori, tende a esgotar-se. Vale a pena urna referência ao caso brasi­
leiro, ainda não mencionado até o momento. Uma das grandes dificuldades 
do atual regime, nesses últimos 11 anos, tem sido a estruturação de bases 
estáveis de legitimidade. Desde 1964, o regime vem se apoiando em dife­
rentes bases de legitimidade. Uma delas, como o Prof. Djacir Menezes 
deixa claro. emseu artigo, está explicitada no Ato Institucional nQ 1, e 
consiste na legitimação do poder pelo poder. Mais tarde, durante o Gover­
no Castelo Branco, o regime procurou se legitimar para o poder, em 
função da presença de um compromisso democrático. Em seguida, o eixo 
da legitimidade foi deslocado para a eficácia, expressa através da perfor­
mance governamental na esfera econômico-administrativa. No momento, 
parece estar se processando um novo deslocamento das bases de legitimi­
dade, desta vez para a dimensão social do desempenho do governo. 
Os sistemas de poder instaurados por via não-institucionalizada pare­
cem, portanto, debater-se permanentemente com o problema da criação 
de bases estáveis de legitimidade. Não surpreende que os momentos cru­
ciais do sistema político brasileiro, nestes últimos 11 anos, tenham corres­
pondido precisamente, aos períodos em que a legitimidade do próprio regi­
me foi colocada em xeque. 
Ao tentar institucionalizar-se, através da criação de suas próprias bases 
de legitimidade, o regime tem enfrentado um sério impasse. A verdade 
é que a' criação de bases estáveis de legitimidade, condição sine qua non 
para institucionalização do regime, requer a autolimitação do poder. Entre­
tanto todas as vezes que se tem deparado com esse tipo de situação, o 
regime tem optado por lançar mão de instrumentos jurídico-poIíticos, que, 
na. verdade, invalidam as normas que ele próprio estabeleceu para criar 
88 R.C.P. 1/76 
novas -normas que lhe confiram' maiór, àutoiiomia e que resultem na ex­
pansão' do seu próprio raio de 'ação. - -:. 
Eu coloco então em debate este problema específico, que é o da 
criação de bases estáveis de legitimidade, num sistema de poder que se 
instaura por vias não-institucionalizadas. 
Pro!. Francisco de Souza Brasil- Sr. Presidente, peço permissão a V.~, 
e peço desculpas por usar novaniente da palavra, mas a posição do nosso 
eminente mestre, Or. Manoel Gonç3Ives Ferreira Filho, complementada 
pela professora que acaba de u~r da palavra, obriga-me a algumas refle­
xões que eu também peço licença para trazer à mesa de debates. 
O primeiro desafio, digamos aSsim, do Dr. Manoel Gonçalves é 
quanto ao sentido das palavras,' especificamente, que se referem à demo­
cracia. Fustel de Coulanges, em livro clássico, foi contraditado por alguns 
que diziam que ele havia empregado mal certas palavras. E citavam entre 
elas a liberdade. Dizia: enganam-se os que pensam tomar como modelo 
a liberdade grega, pois ela nunca existiu. Então enumera uma série de 
casos em que, na realidade, o que existia na Grécia era uma conduta 
extremamente bitolada pelos interesses sociais ou estatais. 
Dr. Manoel Gonçalves Ferreira Filho - La liberté des anciens et la liberté 
des modernes. 
Pro!. Francisco de Souza Brasil - Outro modelo muito interessante, que 
se reflete no campo do direito internacional, é o que se observa nos textos 
legais. 
Por dever de ofício, comparando a Convenção de Havana, que regulava 
as relações consulares, na década de 20, com a Convenção de Viena, na 
década de 6O,que trata do mesmo assunto, entre os dois textos, regulando 
idêntica situação, que não evoluiu muito, as relações consulares se mantêm 
mais ou menos estáveis há muitos anos, acontece o seguinte: enquanto 
a Convenção de Havana entrava diretamente no âmago do problema, a 
Convenção de Viena tem, em seu art. 19 , um longo .ementário dizendo 
como interpretar, Como entender as palavras para aqueles fins. Começa 
dizendo o que é cônsul, o que é família consular, o que é empregado Con­
sular, oq~ é poder consular, o que é chefe de missão consular. Evidente-
,mente, para cada uma dessas expressões, cada um teria o direito de en­
contrar conceitos diversos daqueles, mas, por força de lei, aqueles é que 
são os conceitos e em tomo daqueles conceitos, estabelecidos por lei, é que 
se devem discutir os problemas. 
O que acontece é o seguinte: a nossa brilhante colega situou a ques­
tão em termos muito interessantes. 
Muitas idéias são oriundas da nossa Escola Superior de Guerra. E 
aqui temos, a começar pelo Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o Dr. 
Armando Marinho, o Ministro Themistocles Cavalcanti, diplomado honoris 
causa, conferencista várias vezes, o Ministro Cândido Mota Filho e o Prof. 
Djacir Menezes, que nos honrou diversas vezes com a sua presença. A 
Escola Superior de Guerra, que na realidade foi o primeiro centro brasi­
leiro de estudos políticos, pois há mais de 25 anos, quando não se falava 
Poder e legitimidade 89 
absolutamente em clencia política entre nós, já. ela se preocupava com 
isso, a escola situou muito bem este problema, qual seja o da conotação 
- entre poder e política. 
Disso o espelho está na Constituição atual que foi em grande parte, 
ainda que não completamente, influenciada pelas idéias da Escola Superior 
de Guerra. Dentro da nossa Constituição, que é Constituição vigente em 
termos constitucionais - o Estado tem uma finalidade, que é a de atingir 
determinados objetivos nacionais. 
E, havendo curiosidade poder-se-á, entre as atribuições do Conselho 
de Segurança Nacional que, ao contrário do que muita gente pensa - aí 
também entram as pala\'ras - não tem nada a ver com segurança militar 
ou segurança policial, sendo composto de todos os ministros de Estado, 
onde apenas três são detentores de pastas militares, aí encontrar-se-ão os 
objetivos nacionais e bases políticas. 
Ministro Cândido Mota Filho - Se V. Exl!- me permite, a Constituição 
fala que todo cidadão é responsável pela segurança nacional. 
Prol. Francisco de Souza Brasil - Vou chegar lá também. Pois bem, ao 
Conselho de Segurança Nacional incumbe: fixar os objetivos nacionais 
permanentes do Brasil e as bases da política nacional. Veja bem que não 
são bases nem objetivos de política de segurança nacional. Não. São bases 
da política nacional. 
Assim, dentro da concepção que defendemos, o Estado, que segundo 
George Bourdeau é o titular abstrato do poder, que se exerce concreta­
mente através de seus agentes, os governantes, este Estado usa como 
instrumento o poder nacional. Para quê? Para atingir objetivos nacionais, 
que classificamos de permanentes, quando devem ser atingidos a longo 
prazo, através de um poder que se possa ir apurando ao correr dos anos. 
Mas deve ser meta de cada governo fixar objetivos nacionais atuais, 
aqueles que devem ser alcançados, no decorrer daquele governo, através 
de um poder nacional que existe. Poder nacional este que nada mais é 
do que - como sabem todos os adesguianos - uma síntese, uma soma, 
um conjunto integrado de meios de toda ordem que a Nação dispõe para. 
que, sob orientação do Estado, alcance seus objetivos nacionais. 
Veja bem, ilustre colega, como essas idéias, hoje em dia, já estão 
apresentando uma conotação extremamente diferente. O que sentimos, é. 
uma observação que ultimamente tenho frisado muito, é aquilo que os 
norte-americanos chamam de cultura lag, que é a diferença entre os nossos 
conhecimentos, a tecnologia moderna e a rotina em que vivemos. 
Por exemplo, no momento em que o homem, sentado tranqüila­
mente em sua casa, diante da sua televisão, assiste, instantaneamente, a 
um astronauta pisar no solo da Lua, há determinadas rotinas que ainda se 
prendem a procedimentos usuais à época do direito romano, inteiramente 
em desacordo com a tecnologia que existe e faz com que hoje em dia 
tudo seja profundamente modificado, tendo em vista uma realidade que 
está, cada dia, mais se impondo e atuando. 
Então há este cultural lag, que é a contradição entre o indivíduo com 
as suas idéias em flagrante contraste com a realidade que o cerca. Creio 
90 R.C.P. 1/76 
que, dentro deste panorama de constante evolução e de constante mutação, 
devemos situar o entendimento das palavras, para que elas tenham um 
valor relativo. 
Assim como nascemos, cresceJJlOS, nos desenvolvemos e morremos, 
as palavras também nascem, crescem, desenvolvem-se e morrem, segundo 
o conceito que delas usamos em uma .época determinada.Acredito que dentro deste pequeno argumento, não tão pequeno quan­
to desejaria, infelizmen~e - talvez fosse interessante debater a matéria. 
Sr. Presidente - Eu compreendo o ponto de vista da Prof~ Lúcia Maria. 
Talvez fosse interessante examinar um pouco o problema que ela coloca. 
Eu compreendo bem o que ela quer significar. Como se explica que o 
próprio poder que estabeleceu suas bases constitucionais se tenha autolimi­
tado, ou limitado essas bases constitucionais através de um ato? f: este, 
me parece, o sentido da sua esplanação, não é? 
Projl} Lúcia Maria Gomes Klein - f:. 
Prol. Fernando Whitaker da Cunha - Sr. Presidente, há dois pontos que 
me parece interessante abordar no momento. 
A primeira é ainda a questão democrática, porque faltou uma espla­
nação na minha primeira etapa. Não vi necessidade disso na ocasião, 
mas os debates evoluíram num sentido muito interessante. Inicialmente, 
pela abordagem da questão democrática pelo Prof. Ferreira Filho e depois 
pela questão aventada pela ProP. Lúcia Maria, sobre esta autolimitação 
do poder por si mesmo. 
Na primeira questão, temos que dizer o seguinte: Como poderemos 
chamar a democracia grega de democracia? A palavra democracia foi 
criada por Heródqto, -em seus livros de história. Os gregos adotaram esta 
palavra como . dando a maioria, mas a maioria totalitária. Na Grécia 
antiga, todos sabem, havia escravidão. A mulher não tinha direito algum, 
os estrangeiros não tinham quaisquer prerrogativas, não se exerciam ofícios 
manuais. Havia o horror do cotidiano por aquela aristocracia. Isso era 
democr~cia? Não, etimologicamente falando. A democracia grega não era 
uma democracia. De modo que quando Péricles, na oração aos mortos 
no Peloponeso, diz que a democracia era um modelo, que todos deveriam 
seguir, ele usou uma força de expressão para sua época. Para a democraCia 
antiga não era uma democracia. A democracia, em meu entendimento, 
começou a ser aflorada com o cristianismo, o cristianismo desarraigado 
do seu' aspecto reIígioso. Mesmo porque o deísmo das constituições não 
implica a aceitação dessa ou daquela religião. 
A Constituição do Vaticano não fala no nome de Deus; no entanto, 
é profundamente religiosa. A Constituição dos Estados Unidos, que é pro­
fundamente religiosa, não aborda o problema de religião. Então o nome 
de Deus não pode ser uma invocação formal; tem de ser substancial. Ora, 
então a democracia nasce quando o paganismo aflora à questão de direitos 
individuais, que não havia antes dele. f: a consciência do homem perante 
o ~ado. 
Mas vejam V. Ex.lIs, este é um aspecto curioso. A democracia que 
nós buscamos encontrar é a que se encontra no Evangelho, politicamente 
Poder e legitimidade 91 
considerado, não se discutindo se o Evangelho é obra histórica rigorosa. 
Não é isso que interessa, mas sim saber se no Evangelho há uma mensa­
gem política, o Cristo foi um homo politicus. 
Então a primeira questão importante: essa democracia que o cristia­
nismo pela primeira vez sugeriu não foi ainda realizada na sua integridade, 
e este é o grande defeito do Ocidente, porque enquanto os países marxistas 
têm uma ideologia que se pode discutir, que se pode refutar, da qual se 
pode discordar, mas que é uma ideologia sólida e séria, e perigosa por 
isso, porque apela não só ao espírito como ao estômago, o Ocidente não 
tem qualquer ideologia, nada tem. O Ocidente vive de uma indefmição 
ideológica. Qual a ideologia do Ocidente? 
Min. Cândido Mota Filho - Quando houve a Guerra Civil Americana, 
Lincoln pronunciou aquele famoso discurso no qual defendeu e definiu a 
democracia como governo do povo, para o povo e pelo povo. 
Dr. Manoel Gonçalves Ferreira Filho - Mas isso é forma oratória que 
não esclarece nada, em termos de ciência política, de direito constitucional. 
Min. Cândido Mota Filho - Como não? Governo do povo, que é repre­
sentação; governo pelo povo e governo· para o povo, que é administração. 
Pro!. Fernando Whitaker da Cunha - Mas eu quero observar o seguinte: 
a democracia não é só isso. A democracia é mais do que a mera vontade 
da maioria expressa. A democracia é também o respeito da minoria à 
estrutura oligárquica como parte do poder, como elite do poder. Isso é 
custoso, isso é muscular, dentro da ciência política. 
Mas dizia eu a razão: é porque o Ocidente jaz por indefinição ideo­
lógica, por uma incapacidade de defender uma ideologia. E aí vem o 
aspecto secundário da observação. No Brasil, atualmente, e é este o grande 
elogio que se pode fazer à Revolução de 64, ocorre o seguinte: eu dei 
aula no Estado-Maior do Exército, na Escola Superior de Guerra; eu 
penso com independência. E na Escola Superior de Guerra, cuja ideologia 
ainda está em elaboração, não se pode tê-la como um fato consumado 
em alguns sentidos, tem muita coisa lacrimosa; pois bem, o Estado para 
essa Escola é apenas um aparelho político, quando o Estado é um aparelho 
político-jurídico. Eu mesmo disse lá, isso que estou dizendo agora. A defi­
nição de Wilson em O Estado-nação é do século passado. Foi utilizada 
depois, mas isso significava o Estado liberal do século XIX. Não é só 
político o Estado. :E: político-jurídico também, porque é a cápsula jurídica 
da nação. Sem ele, a nação não funciona. :E: claro que, num conflito entre 
o Estado e a nação, a legitimidade impõe a nação sobre o Estado. 
Dizia eu da contribuição da Escola Superior de Guerra, inclusive 
sobre o 4Q poder partidário - isso nós fixamos - mas a doutrina dela 
é uma doutrina que tem a grande vantagem de oferecer os princípios de 
uma ideologia. :E: claro que essa ideologia ainda está em elaboração, mas 
ela tem feito apelos aos pensadores que demonstraram objetividade, inclu­
sive V. Exl1-, em vários ensaios publicados, sobre estrutura política; Alberto 
Torres, Oliveira Vianna, Afonso Arinos, Sérgio Buarque de Holanda; e sob 
um certo ângulo, inclusive Plínio Salgado. Então, o que sucede: quando 
92 R;C.P; 1/76 
foi criada a cadeira de probl~lJUIlbtaSileirQS, uma cadeira mal compreen­
dida - eu posso dizer porque:rlOy., titular ,dessa cadeira na Faculdade 
Nacional de Direito - ela foicri~d~; inclusive, inoculada por uma compre-
ensão cristã do fenômeno social,., rlão meramente católico. . 
Prol. Francisco de' Souza Brasil - O(aulQr. do projeto, que se transformou 
nesse decreto, não é propriamente ,um penSador cristão. E mais um teósofo. 
Pr%~~ Fernando Whitaker da Cunha -, .' Mas. a Constituição brasileira, que 
é inspirada obviamente na perfeição técnica da Carta de 37, entre outras 
coisas, e a Constituição atual, elas, fazem um largo apelo à interpretação 
cristã do fenômeno social, tanto q~ um pensador argentino, meu amigo 
particular, Carlos Fayt, notável pensador político, observou num trabalho 
penetrante a itlfluência da Materet Magistra na o.rdem econômica e social. 
,De modo que eu pergunto:'qual é a importância disso'?, A importância 
disso é que no Brasil - e este é o. aspecto importante da Escola Superior 
de ,Guerra - já uma classe começa a pensar, começa a se preocupar em 
criar uma ideologia, . ainda em certos aspectos tateante, indecisa, porque 
é colaboração de não-juristas, 'não-sociólogos, não-políticos,mas de pa­
triotas e isso é' importante., E chegará o dia em que essa ideologia será 
completada, mas essa ideologia sabe onde se inspirar para criar uma 
democracia autêntica e a ideologia é a única forma. Uma idéia é a única 
forma de combater outra idéia. Não se combate uma idéia com tiro. 
, Quando Heine chegou a Paris e foi abordado pela Alfândega e per­
guntaram a ele: "Onde está seu contrabando?, ele respondeu: "Está na 
cabeça." 
Então, nessa questão de limitação do poder por si mesmo, já Jellinek 
havia abordado esse problema de o Estado se autolimitar, porque em 
todo poder de fato há um poder jurídico. Não há poder de fato perma­
nentemente de' fato. De modo que a tendência do poder é tomar-se jurí­
dico; mesmo o poder de fato ilegítimo toma-se poder de direito. A ten­
dência natural do poder é uma tendênciaem se tomar jurídico. ' 
Dr. Manoel Gonçalves Fe"eira Filho - Sr. Presidente, peço excusaS por 
voltar ao assunto. Mas a análise que a Prof/!- Lúcia Maria fez, afinal de 
contas, do problema brasileiro, que se enquadra estritamente dentro do 
problema de conflito de legitimidade, acho que merece um exame mais 
detido. 
A Prof~ Lúcia Maria diagnosticou uma instabilidade de bases de legi­
timidade. Eu diagnosticaria um conflito de legitimidade, porque no Brasil, 
não de 64, mas desde um pouco antes, de 62 e 63, conflitam três con­
cepções de legitimidade, uma das quais eu veria bipartida. 
Uma é a concepção que tem um relativamente grande apoio no que 
eu chamaria de núcleo tradicional, que identifica legitimidade com um 
modelo democrático liberal estabelecido no século XVIII e que gira em 
tomo de dois pólos: o primeiro, o sistema de eleições livres, com a devo­
lução do poder de baixo para cima. O, segundo, o aspecto estritamente 
constitucional da limitação do poder, para que nenhum dos poderes possa 
dispor da existência do outro, ou possa gozar de poderes excepcionais. 
Essa seria a colocação, ou a concepção tradicional que, evidentemente, 
Poder e legitimidade !H 
não entende que a Constituição atual, especialmente por causa de seu art. 
182, corresponda a esse quadro de legitimidade. Temos no extremo oposto 
dessa concepção tradicional, uma outra que poderíamos chamar marxizante, 
que também está presente num setor ponderável da nossa intelectualidade. 
Esta concebe que legítimo é apenas o poder que é atribuído direta ou 
indiretamente ao proletariado e, portanto, não aceitará qualquer corpo de 
instituições que não sejam as instituições da ditadura do proletariado, ou 
de qualquer versão melhorada, adaptada ou modernizada dessa concepção. 
Há uma terceira concepção que, para uso deste debate, se denomina­
ria de concepção revolucionária, revolucionária entendendo-se como a 
concepção da Revolução de 1964. É uma concepção esta que tem, con­
forme muito bem apresentou o Prof. Souza Brasil, a idéia de que poder 
legítimo é aquele que atende à realização dos objetivos nacionais perma­
nentes. Nesse corpo, vejo duas correntes que, na verdade, se têm alternado 
no poder. Uma que governou de 1964 até o At{) Institucional n'? 2, outra 
que preponderou depois do Ato Institucional n'? 2 ou, pelo menos, a 
partir de 15 de março de 1967, até 15 de março de 1974. E, de certa 
forma, é a primeira que volta a partir de março de 1964. A diferença 
fundamental é que uma, a que primeiro prevaleceu e que hoje, ao que 
parece, volta a prevalecer, entende que politicamente o governo se legitima 
pelo respeito ao princípio democrático e ao princípio liberal, mas não 
aceita um modelo tradicional de institucionalização democrático-liberal, se 
propõe resolver um problema grave que é a procura do outro modelo, 
tradicional de institucionalização democrático-liberal, se propõe resolver 
um problema grave que é a procura do outro modelo, daí o convite à 
imaginação criadora. A segunda corrente não cuida desses aspectos formais, 
mas se preocupa pragmaticamente com a realização de um desenvolvi­
mento que importe o atendimento dos objetivos nacionais permanentes 
com o fortalecimento do Estado brasileiro. 
Nesse quadro que, evidentemente, simplifiquei para que pudesse ser 
condensado, nós vivemos um conflito de legitimidade, porque o que é 
legítimo para o tradicional não é legítimo para os demais, o que é legí­
timo para o marxizante não é legítimo para os outros, o que é legítimo 
para um revolucionário não é legítimo para um tradicional, nem para um 
marxizante. E a grande verdade que tem que ser dita aqui é que no próprio 
setor revolucionário, nem todas as iniciativas são igualmente recebidas: 
uns acham que se vai muito depressa, outros acham que se vai muito 
devagar. 
Nós vivemos, a meu ver, um quadro de conflito de legitimidade e 
somente, a meu ver, quando se resolver esse conflito, ôe uma forma ou 
de outra, nós teremos a estabilidade das instituições. 
Min. Themistocles Cavalcanti - Prof~ Lúcia Maria, a senhora quer voltar 
a usar da palavra? 
Profl Lúcia Maria Gomes Klein - Concordo com o Prof Ferreira Filho. 
Gostaria de acrescentar que, na minha opinião, tem-se procurado resolver 
esse conflito de legitimidade através de uma tentativa de legitimar a nova 
ordem legal. Na realidade, vem-se procurando legitimar a ordem legal 
94 R.C.P. 1/76 
que emerge a partir de 1964 e' que 'Se 'configura de uma forma mais nítida 
. a partir de' dezembro de 1968, ao se estabelecer uma vinculação direta 
entre os índices de crescimento· econômico e a vigência da legislação 
de exceção. 
A intensificação a partir de 1975, do uso do Ato Institucional para 
solucionar crimes de corrupção, configura uma nova tentativa de legitimar 
uma ordem legal estruturada no decorrer de diversas etapas, desde 1964. 
Prol. Armando de Oliveira Marinho - Mas me parece que a aplicação 
dos atos institucionais para crimes' de corrupção não é coisa recente. 
Prol. Francisco de Souza Brasil- Uma das origens do ato foi essa. Quero 
lembrar só que há uma definição de revolução, creio que de George 
Bourdeau, muito interessante. Revolução é a' mudança de um Estado de 
direito 'para outro Estado de direito. Vejam bem que o direito está sempre 
presente. A título de aparte, quero dizer que há uma obra clássica de 
Bertrand de Jouvenel, Le pouvoir, que deveria ser lida e meditada. Ela 
não tem nada a ver com a revolução brasileira. Diz o seguinte: entre liber­
dade e segurança, todos escolhem segurança, ao longo da história. Então, 
dá uma explicação histórica admirável, que é a seguinte: por que a cultura 
desenvolveu-se apenas nos mosteiros, na Idade Média? Porque era o único 
lugar onde havia segurança. Os que queriam praticar a cultura, abdicavam 
da liberdade para aceitar a segurança porque, naquele tempo, como até bem 
recentemente, a vida de um monge, de um sacerdote regular, era o que 
. havia de menos livre no mundo inteiro, porque a primeira promessa que 
um sacerdote regular faz ao entrar no mosteiro, diante de seu superior, 
é abdicàr da sua liberdade, da sua vontade, na mão do superior. Pois bem, 
o homem preferia abdicar disso para ter segurança e poder dedicar-se 
aos seus estudos. Quem leu - e todos devem ter lido - Victor Hugo 
no seu famoso O corcunda de Notre Dame, verá que na hora em que 
Esmeralda quis fugir da polícia, refugiou-se na igreja, onde a polícia do 
rei não podia entrar, porque era um lugar de asilo divino. Então, Bertrand 
de Jouvenel situa o poder de uma maneira extraordinária e, ainda mais, 
mostra, cultivando o paradoxo, que nos períodos de absolutismo havia 
muito mais liberdade que nos períodos democráticos. Cita o exemplo 
europeu, sempre o europeu: serviço militar. Por que a Guerra dos Cem 
Anos durou cem anos? Por que levou cronologicamente cem anos? Não. 
No regime feudal, o senhor feudal, o suserano, ao outorgar ao vassalo 
uma terra, dava-lhe o direito inalienável de cultivá-la e, para cultivá-la, 
o vassalo interrompia a ajuda militar que prestava ao suserano. E hoje'! 
As leis votadas pelos parlamentos obrigam o cidadão a dois, três ou quatro 
anos de serviço militar e todo mundo acha isso democrático. O que seria 
mais democrático? O poder absoluto que, no entanto, dava ao vassalo 
o direito de interromper uma. batalha para cultivar a terra, independente 
de consulta à vontade do suserano, ou hoje em dia em que as leis, cada 
vez mais, reduzem a liberdade individual favorecendo o poder do Estado? 
Vejam essa contradição, que é muito interessante. 
Prol. Armando de Oliveira Marinho - Parece-me que hoje há uma aliança 
entre o tradicionalismo e o marxismo, que se sentem frustrados diante da 
Poder e legitimidade 95 
realização dessa terceira corrente, a corrente revolucionária que, reformu­
lando as instituições, modernizando-as, dando-lhes pelo menos a proximi­
dade de uma democracia possível, que é uma democracia identificada com 
a realidade brasileira, e essas duas correntes, então,parece-me que hoje 
em dia têm uma posição antagônica e coexistem pacificamente, apesar 
de serem contrárias. 
Sr. Presidente - Com a palavra o Prof. Armando de Oliveira Marinho. 
Prof. Armando de Oliveira Marin/w - A mim me parece que, na trilogia 
proposta por Maurice Hauriou, "ordem, poder e liberdade", pode ser resu­
mido o cerne da problemática política e, conseqüentemente, do tema, ora 
em debate, segundo ensinamentos de Bidat Campos. 
Esses três elementos, sendo cada um deles uma força, se completam 
e de sua conjugação, avaliada em grau de intensidade, resulta o maior ou 
menor equilíbrio do Estado e a sua tipificação como maior ou menor pro­
ximidade do que se pode ter como democracia. 
A ordem atua como uma força de resistência que pode nos transmitir 
uma imagem de imobilismo, como se disséssemos: alguma coisa está aqui 
e não se move. Não obstante ela é a propulsora da organização, colocando 
os diversos atores do jogo político em seu lugar, tanto os cidadãos como 
as instituições políticas e os governantes. 
Enquanto isso, a liberdade pode ser comparada a uma força em mo­
vimento, em expansão, que necessita ser contida, limitada para não atingir 
a desordem, a anarquia, estado desagregador de qualquer sociedade politi­
camente organizada. 
Esta força de contenção, este freio da liberdade, é exatamente a ordem. 
Finalmente, temos o poder, que, segundo o já citado Bidat Campos, 
secundado por Xifras Heras, se apresenta como uma força de equihôrio. 
Do poder necessitam tanto a ordem quanto a liberdade para suas res­
pectivas ações, para se protegerem. E ao poder são igualmente indispen­
sáveis a ordem e a liberdade. A liberdade se torna indispensável ao poder, 
porque apenas a coação não gera a obediência estável. Sem a ordem, no 
entanto, o poder não obtém o concurso dos governados. Mas o poder há 
que ser equilibrado. Mister se faz que ele se formule de maneira a não 
aniquilar a liberdade, enrijecendo a ordem. 
Entendendo assim, é válido o debate hoje encetado em tomo do 
tema poder e legitimidade. 
É este um dos grandes temas da política cujas ilações e estudo talvez 
possam ser resumidas na resposta a três indagações fundamentais: Quem 
manda? Como manda? Para que manda? 
Principalmente na primeira indagação, de vez que ela está intima­
mente vinculada à titularidade do poder, o que equivale dizer à sua legi­
timidade. 
Dentro de outra formulação, se aquele~ que detêm e exercem o poder 
possuem competência para tal, e qual a fonte primeira desta competência? 
Neste plano, o debate é tão válido quanto se nos colocarmos numa posição 
dosada por certo pragmatismo: a organização do poder, as diversas fun­
ções de seus titulares e os limites destas funções. 
96 R.C.P. 1176 
o fundamental· em torDó'-"teMl í .6realmente saber se quem manda 
tem competência para mandar~lSe' máiída bem: ou mal, é outra indagàção. 
Os debates desta reunião·~· alcançar o nível tradicional dáS 
mesas--redondas efetuadas pel()~IPO, especialÔlente e graças à sabedoria 
destas duas glórias de nosso peWíáfiiêDtopólftico: Ministro Themistocles 
Cavalcanti e Prof. Djacir Lima Menezes. 
Sr. Presidente - Com a palaVra;o ~ Adilson Macabu. 
Prol. Adilson Macabu - Sr. MiniStto,;soStáriá de, inicialmente, cumpri­
mentar o Prof. Djacir Menezes, , pelo' notlvel trabalho que realizou, e . os 
debates aqui 'suscitados, demonstram aqua'tidade das idéias formuladas e 
das proposições oferecidas. 
Em segundo lugar, desejàría diUr~~tambeni;'que,em parte ou numa 
grande parte, concordo com a ópiniãb' do Prof. Whitaker da Cunha, quando 
ele se refere ao problema da rep~ação, quer dizer, ao poder e à re-
presentação. .' , . 
Sabemos que. o sistema políticO é o' conjunto da Vida política de uma 
sociedade. Tradicionalmente, foi co~~ituado dessa forma e, hoje, a res­
posta das elites políticas ao 'desafio do sistema é que lhe vai, concreta­
mente, dar legitimidade. Atualmente, ó corpo eleitoral tem crescido de 
modo considerável, deixando o exercfcio do voto de ser privilégio de certas 
camadas sociais. Assim, uma parCela cada vez mais substancial' da popu­
lação participa das eleições. E, ao participar dessas eleições, o Prol. Djacir 
Menezes coloca muito bem o problema, surge o monopólio político dos 
partidos, umnionopólio político que se consubstancia 'nas ,listas de candida­
tos às eleições, feitas à revelia do eleitorado, inteiraq1eDte estranhas às 
suas preferências. Isso' demonstra, cJl&tamente, a coe~á' dessaS cor­
rentes, muito bem lembrada· pelo Prof. Manoel Gonçalves, Ferreira Filho, 
onde elas se entreChocam, sobtevivendo e' subsistindo, dentro do sistema 
existente no país. Tais dificuldades, evidentemente, geram uma instabili­
dade !;to processo eleitoral, cada v& mais, pressionado pelas reivindicações 
econômicas e sociais dos diversoS' grupos ém jogo. 
Outro ponto sobre o qual gostaria de falar, rapidamente, diz respeito 
à evoltição do conceito de poder e a idéia de legitimidade. . 
COncordo, em grande 'parte, e não insistirei em desenvolver, ainda 
mais, o que já foi dito pelo Prof. Manoel Gonçalves, mas devo dizer que 
a sociedade' contemporânea,' extremamente influenciada pelo progresso 
tecnológico e expansão dos meios de comunicação, adquiriu novos hábitos 
e está condicionada a outro tipo de aspirações que não são as mesmas de 
muitos dos homens públicos, que deixaram de assimilar os novos valores 
mais dinâmicos e definidos. 
Atualmente aumenta, de forma acentuada, a preocupação do cidadão 
em conseguir assegurar para si e sua família melhores condições de edu­
cação, saúde, bem-estar, conforto e segurança. 
Ao mesmo tempo, o Estado para cumprir tais tarefas, precisa adaptar 
suas estruturas, pois se ignorar os anseios populares perderá, gradativa­
mente, o controle do poder e, mesmo que o mantenha, carecerá de sua 
legitimidade política. Este, parece-me ser um dos problemas básicos: o não 
Poder e legitimidade 97 
ajustamento do Estado às novas transformações sociais, políticas e eco­
nômicas, que estão a desafiar os cientistas políticos, não apenas do Brasil, 
mas de todo o mundo, em todas as sociedades, orientadas por doutrinas 
socialistas ou capitalistas, enfim uma nova realidade de concepção de 
poder e do próprio sistema de interdependência, existente entre os diversos 
povos. 
:e preciso, mais do· que nunca, formular uma nova concepção de 
poder, que propicie a modernização das elites e a realização das reformas 
necessárias para garantir uma sustentação democrática, apoiada na possi­
bilidade oferecida a cada indivíduo de desenvolver suas potencialidades 
humanas. 
A estratégia do presente e do futuro é o grande desafio do Estado, 
pois este deve formular uma nova concepção do poder que, ao propor­
cionar a modernização das elites, promova também a sua legitimidade no 
exercício desse poder, bem como a realização das reformas, de modo a dar 
a cada indivíduo aquilo a que, realmente, pode legitimamente aspirar de 
uma nova evolução social, tecnológica, política e humana. 
A idéia de autoridade, outro ponto desenvolvido no trabalho do Prof. 
Djacir Menezes - não pode ser dissociada da noção de poder. 
A autoridade é o direito de dirigir e comandar e o poder é a força 
através da qual se pode obrigar alguém a obedecer. 
Toda autoridade está, portanto, intimamente ligada ao poder, pois 
este subentende aquela. 
Para J acques Maritain "separar o poder e a autoridade, é separar a 
força e a justiça". 
O termo legítimo está ligado à idéia de -um direito baseado l1a justiça 
e na eqüidade. Este é um ponto importante da legitimidade. 
:e um direito superior que pode estar em contradição com o direito 
em vigor, isto é, com o direito positivo. 
Legítimo, portanto. é sinônimo de justo e se opõe a legal, que significa 
obrigatório em razão de uma lei existente. 
De modo que a legitimidade é o consensus geral que justifica o direito 
de mando, dos que governam e o dever de obedecer que cabe aos indivíduos. 
O consensus é uma adesão do espírito a um regime político eficiente, 
em

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