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Síntese para as aulas de Ética ambiental – PGTA/UFF – Prof. Ozanan 1 1 AS TEORIAS ÉTICAS A RESPEITO DO MEIO AMBIENTE Enquanto a ética tradicional se limitava às relações dos homens entre si ou entre eles e a sociedade, a ética ambiental se interessa pelas relações do homem com a terra ou com a natureza. A ética tradicional não contém os recursos necessários para responder aos novos desafios da ética ambiental e novos conceitos se fazem necessários. Outros, ao contrário, sustentam que os princípios das éticas clássicas são suficientes para responder aos problemas da natureza e para proteger o meio ambiente. Pode-se falar de duas tradições éticas: uma que insiste sobre a finalidade de uma ação ou o bem de uma ação (teleológica) e outra que fala de uma obrigação, um dever (deontológica). As éticas teleológicas se dividem em dois tipos: éticas da virtude (coragem, compaixão, temperança, etc) ou éticas consequencialistas que se detêm nas consequências de uma ação. A tradição dita deontológica (dever) coloca o enfoque na ideia de dever. Na história da filosofia, essa ética deontológica tomou várias formas: do dever estrito (Kant), do contrato (Locke, Rawls) e a da ética da discussão (Habermas, Otto-apel). Tanto o termo moral como a ética remetem a costumes, hábitos, caráter. A ética tem a ver com regras de comportamento, obrigações, interdições, injunções que vigoram numa coletividade humana e permitem o viver juntos. Ela critica também as normas que ela considera insuficientemente fundadas. Já a Moral designa um conjunto de regras e de valores em vigor numa sociedade e que servem para julgar o comportamento dos indivíduos sobre o plano moral. O meio ambiente teria sido deixado entregue à apropriação e à instrumentalização econômica. Daí a urgência de uma Ética da Terra ou de uma ética ambiental não centrada no homem, voltada para um comportamento justo com relação à natureza. Importante notar que o moral se distingue do legal (direito). A moral é bem mais ampla que o Direito e a lei pode ser imoral, muitas vezes ou injusta. O agente moral: é um ser capaz de moralidade, um ser que se espera comportar de uma certa maneira ou agir segundo normas ou valores. A princípio, somente os seres humanos possuem as características de um agente moral. O paciente moral é aquele em relação ao qual um agente moral está particularmente obrigado (um bebê, um deficiente físico), ou seja, ele é o beneficiário de um comportamento, da ação ou da decisão do agente moral. Se todos os agentes morais são também pacientes morais, nem todos os pacientes morais podem ser agentes morais como, por exemplo, um deficiente mental que é somente destinatário de obrigações morais. E quanto aos animais? Eles não podem agir de maneira moral, mas nós, enquanto agentes morais, temos obrigações em relação a eles: não os fazer sofrer inutilmente, não os deixar morrer, etc. Numa ética ambiental não antropocêntrica, as plantas, as espécies, os ecossistemas devem ser considerados pacientes morais, embora não possam ser nunca agentes morais. Um ser humano adulto como Síntese para as aulas de Ética ambiental – PGTA/UFF – Prof. Ozanan 2 2 sujeito moral está então em condições de se obrigar em relação não somente aos outros seres humanos, mas também em relação aos seres não humanos. O Sujeito moral é ainda diferente do Sujeito de direito. O Sujeito de direito beneficia de direitos protegidos por um sistema jurídico e pode cobrar seus direitos diante de uma comunidade jurídica, em caso de violação. Um sujeito moral é também um sujeito de direito na medida em que somente aquele que tem direitos tem simultaneamente obrigações, conforme o princípio de reciprocidade. Uma criança, por exemplo, só tem direitos que ela pode fazer valer através de seus representantes legais. É, no entanto, concebível que o conceito de sujeito de direito se aplique, segundo a lei, a seres que não são sujeitos morais, ou seja, um paciente moral pode ser qualificado como um sujeito de direito mesmo que ele não seja um agente ou sujeito moral. Um sujeito de direito pode ter seus direitos defendidos na Justiça através de um representante legal. As associações de proteção da natureza podem, portanto, se tornar sujeitos de direito. Há dois tipos reconhecidos como sujeitos de direito: as pessoas físicas e as pessoas morais (associações, empresas, etc). A personificação substancial dota certas entidades não humanas como os animais de propriedades (crenças, desejos, sofrimentos) reservados até então aos humanos. Por outro lado, a personificação procedural dá “uma voz mais ou menos perceptível aos não- humanos”. Perspectivas teleológica e deontológica do discurso ético Tomando as três teorias ou metodologias no domínio da ética – consequencialista, das virtudes e deontológica – as duas primeiras provêm do mesmo paradigma teleológico, mas todas podem ser especificadas segundo consequências ou virtudes. As Teorias teleológicas: nelas, a moralidade de uma ação é concebida em relação a uma finalidade qualificada como boa. A ação deve ter em vista a felicidade, o bem-estar, a realização humana e a prosperidade. No caso da ética ambiental, o bem-estar pode ser o dos animais, o desenvolvimento dos organismos, a vida, a saúde dos ecossistemas, sua integridade, etc. O Consequencialismo e o Utilitarismo: nem toda ação que visa o bem é necessariamente uma ação moral. No consequencialismo, a ação moral é aquela que, por suas consequências, promete o bem visado. No caso da medicina, o bem visado é o bem do paciente e o médico age moralmente quando ele escolhe fazer o que lhe permite melhor curar o paciente. Entre as diversas opções (cirurgia ou outro tratamento), ele escolhe a alternativa mais correta e garantida. Se se trata de preservar a qualidade biológica de um ecossistema ameaçado, os agentes morais devem tomar as decisões cujas consequências permitem salvaguardar a qualidade do ecossistema (restringir as atividades humanas dentro dele, tomar Síntese para as aulas de Ética ambiental – PGTA/UFF – Prof. Ozanan 3 3 medidas de proteção, etc). O consequencialismo não define a natureza do que é bom, mas as consequências em relação às quais a ação é definida como moral são boas de maneira neutra em relação ao agente. A versão mais corrente do consequencialismo é o utilitarismo. O utilitarista visa maximizar o bem visado segundo um cálculo racional. Trata-se de aumentar ao máximo o bem visado ou diminuir o que lhe é contrário: o maior bem para o maior número. Deve-se escolher sempre o melhor bem! O Bem aqui é o utilitário! Jeremy Bentham definia o útil como “a propriedade presente em todo objeto que o faz produzir benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade ou aquilo que impede que prejuízo, pena, mal ou infelicidade afetem a parte interessada ou o que é de interesse” (Hess, pág. 93). Aqui a utilidade pode ser tanto a do indivíduo como a de uma comunidade. A felicidade é a soma dos interesses dos diversos membros que compõem uma comunidade e, no caso de um indivíduo, a soma total de seus prazeres. Trata-se então de um cálculo racional do que é mais útil ou mais prazeroso. No caso de conflito entre os interesses dos animais, por exemplo, e os interesses humanos, deve-se considerar qual o lado da balança que mais pesa: as somas diferentes resultando dos diferentes cálculos são então adicionadas, comparadas e expõem a boa tendência geral de uma ação (ao prazer) ou sua má tendência geral (à pena ou sofrimento). Ou o prazer de alguns deverá compensar o sofrimento de outros. Limites do utilitarismo: na busca da maximização de satisfações, ele faz abstração da individualidade daqueles que provam essas satisfações, pois o cálculo utilitarista descontextualiza a ação visada. Esse é o preço pago pela igualdade! Ética das Virtudes: vem de Aristóteles, especialmente. Critica a noção de dever ou obrigação vinda do cristianismo (Kant), que ordena obedeceros mandamentos de Deus. Numa sociedade laica, busca-se inspiração num modelo de vida virtuosa anterior ao cristianismo. Também aqui interessa o bem visado por uma ação, mas esse bem não é a maximização do prazer nem um bem calculável entre a quantidade de prazeres e de sofrimentos. O Bem aqui é o que contribui para o desenvolvimento humano (eudaimonia) ou ainda para a vida boa ou uma vida de qualidade (bem-viver). Alguns tentam elaborar uma doutrina da vida boa ou da felicidade baseada na prudência aristotélica (phronesis). Num comportamento virtuoso, não se valoriza somente os fins, mas também o interesse que um indivíduo dá a seus fins. Ela está menos centrada na ação a se realizar que no agente que o deseja realizar. O agente deve procurar se aperfeiçoar! Não se trata de agir por interesse nem por dever ou obrigação, mas de se tornar melhor e mais perfeito. O ideal da ética das virtudes não é uma regra que se deve seguir, mas aquilo que fará do agente um agente virtuoso em circunstâncias similares. O agente deve agir segundo o modelo virtuoso ao qual se tende. Para ser feliz, deve-se ser virtuoso e para ser virtuoso, deve-se agir de maneira virtuosa. A questão de fundo é: que tipo de pessoa eu quero me tornar? A phronesis (prudência, temperança ou justa medida) exige ao mesmo tempo a prática e a inteligência, a deliberação e a ética. Deliberação é essa faculdade da alma que me Síntese para as aulas de Ética ambiental – PGTA/UFF – Prof. Ozanan 4 4 leva a fazer uma escolha num mundo contingente feito de acaso, desordem, mas também de espontaneidade criativa e de liberdade. Para Aristóteles, a prudência define a virtude desde que seu fim resida na felicidade. A prudência visa a felicidade! O homem feliz é o homem virtuoso e prudente. Sem a prudência, ele não pode ser feliz! A regra em que ele se baseia aqui é relativa à situação em que ele se encontra. Mentir, por exemplo, pode ser bom ou mau, dependendo da situação que é o que faz do ato moral ou imoral. A prudência não se aplica apenas à vida individual, mas também à esfera pública. Enquanto o utilitarismo se inspira numa visão econômica da natureza, a ética das virtudes, aplicada ao meio ambiente, procura superar o antropocentrismo moral. Teorias deontológicas: rejeitam a ideia de um fim particular ou de um bem como a bondade ou o prazer. A ação moral não é aquela que visa o bem, mas aquela que é justa, ou seja, o bem é o que é justo. A ação justa não depende das consequências positivas ou negativas nem da maximização da utilidade ou ainda das virtudes do agente. A ação é justa porque ela corresponde a uma obrigação ou injusta se ela corresponde a uma proibição. Ex: não se cuida de um doente por causa do bem que constitui sua santidade, mas simplesmente porque é o que se deve fazer, em nome de uma obrigação de cuidar dele ou do direito que ele tem em ser cuidado. Há três maneiras de justificar essa ação moral: o imperativo categórico (o dever), o contrato e a discussão argumentada. 1. Ética do dever: vem de Kant. Nem o sentimento, nem a sensibilidade nem o conhecimento metafísico podem definir o bem. O utilitarismo, diz Kant, faz depender o dever-ser do ser! Hume: não se pode tirar uma norma do que é! Para Kant, só uma boa vontade pode ser qualificada de absolutamente boa. A boa vontade é boa em si mesma. Por isso, é de boa vontade um homem que age por dever. A ação de um homem não tira seu valor moral de um fim que deva ser atingido por ele mesmo, mas da máxima segundo a qual ele é decidido. Essa máxima não pode ser qualquer máxima, mas somente a máxima que pode se impor a todo ser racional ou que possa se tornar uma lei universal: age segundo a máxima que te leve a querer que ela se torne lei universal. A boa vontade leva o homem a proceder segundo a universalização de sua máxima. Ex: a proibição de mentir não goza de nenhuma exceção! O homem de boa vontade age por puro respeito à lei. Essa universalização pressupõe também o princípio da não-contradição. Uma máxima que não possa ser universalizada não é expressão da lei moral, pois ela se contradiz. Qualquer indivíduo racional, em qualquer lugar do mundo, faria o mesmo que me ordena minha máxima na situação em que eu me encontro. Essa regra, diz Ricoeur, se encontra no budismo, no zoroastrismo e no Evangelho de Mateus: ame teu próximo como a ti mesmo! O imperativo categórico de Kant exprime a objetividade da lei moral e todo ser humano razoável se representa sua própria existência como um fim em si e Síntese para as aulas de Ética ambiental – PGTA/UFF – Prof. Ozanan 5 5 nunca como um meio a serviço de uma vontade estrangeira. Isso significa que a minha humanidade se manifesta a mim mesmo e na pessoa dos outros como um fim em si. Logo, cada ser de razão, constitutivo da humanidade, tem um valor que independe de qualquer interesse outro que não o seu próprio valor intrínseco. A terceira significação do imperativo categórico de Kant reside na autonomia da vontade moral. Isso significa que cada um age segundo sua própria vontade racional e não segundo uma razão externa (heteronomia). A vontade é autolegislativa: ela se dá seus próprios princípios de ação que são também universais. Embora a ética do dever seja antropocêntrica, a ética ambiental se serve dela para justificar deveres para com os animais, os organismos, os ecossistemas. 2. Ética do Contrato: nasce na modernidade com os contratualistas: Locke, Hobbes e Rousseau. O contrato social justifica os deveres mútuos que se impõem os membros de uma comunidade. Pelo contrato, os homens renunciam à sua liberdade natural para realizar um certo fim como o da busca da manutenção da paz. No estado de natureza, é a guerra de uns contra os outros. Para escapar à violência e ao medo, os homens se submetem ao poder do Estado que mantém a paz e protege a comunidade do inimigo comum. Locke fala de um consentimento de cada indivíduo para formar a sociedade e cada um contrai a obrigação de se submeter à decisão da maioria e de se deixar dirigir por ela. O homem é livre, no estado de natureza, proprietário de sua pessoa e de suas possessões. Mas cada um cobiça o que é do outro. O contrato obriga então todos a respeitarem a propriedade dos outros. Para Rousseau, o homem é essencialmente bom. É a sociedade que o corrompe. Na origem, o homem vive livre e em harmonia com a natureza, mas diferentemente de Hobbes a lei do estado de natureza não é a lei do mais forte do qual se sai pelo contrato. Há uma evolução social que começa com a propriedade que faz nascer a sociedade civil. Nós nos esquecemos que “os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém”. Daí surge uma desigualdade crescente que culmina num estado de guerra. O rico então concebe o contrato para proteger seu direito à propriedade e assim a desigualdade. O Contrato social deveria remeter à igualdade natural, preservando a liberdade do homem social, sua liberdade civil e sua propriedade, nos limites da vontade geral. Para os modernos, o único limite à liberdade é aquele da liberdade do outro. Na ética ambiental, essa liberdade se torna problemática diante da escassez de recursos naturais, biosféricos e das mudanças climáticas. Tais problemas exigem certas restrições impostas aos cidadãos como formas menos poluentes de transporte e de energia. Sustentar essa liberdade ilimitada para alguns Síntese para as aulas de Ética ambiental – PGTA/UFF – Prof. Ozanan 6 6 pode comprometer a vida de milhões obrigados a se locomover ou a carecer de água e alimentos. Os filósofos contratualistas se esforçam em definir as condições puramente formais que conduzem a escolher os princípios de justiça que garantem a cooperação social dentro da sociedade. John Rawls fala de um acordo hipotético (universal e imparcial) entre os membros da comunidade. Rawls imagina uma posição original em que os contratantes estariam cobertos por um véu da ignorância(desconhecem sua posição social, suas próprias capacidades e talentos e sua própria concepção de bem). Os princípios então escolhidos para reger a sociedade bem organizada resultam desse acordo ou dessa situação equitável. Ele os resume em dois princípios: uma base igual de liberdade para todos (liberdade política, liberdade de expressão, de reunião, de pensamento e de consciência) que permite a atribuição de direitos e deveres fundamentais. O segundo princípio seria a igualdade de oportunidades e, de outra parte, a ideia de uma desigualdade sócio-econômica que favoreça os desfavorecidos da sociedade ou os menos favorecidos. Esse segundo princípio visa a repartição de riquezas no seio de uma mesma geração (justiça intrageneracional) ou entre várias gerações (intergeneracional). A ética ambiental supõe uma responsabilidade para com as gerações futuras. 3. Ética da discussão: a ética kantiana parte de um monólogo com a própria razão e ignora o contexto e a contingência de situações particulares. Habermas então recorre à ideia de uma comunidade de comunicação. O sujeito racional nunca está sozinho em sua relação ao mundo. A relação sujeito-objeto supõe uma relação complementar do sujeito com outros sujeitos. Para Apel, todo sujeito é sujeito de uma argumentação ligada ao diálogo e, enquanto tal, ele é membro de uma comunidade real de comunicação histórica e portanto ele é membro de uma comunidade ideal de comunicação (em razão das pretensões à validade absolutamente universal da argumentação), antecipada sob um modo contrafactual (Hess, p. 107). Na discussão argumentada, cada indivíduo busca a intercompreensão partilhada e o ultrapassamento em direção a um acordo aceito por todos. O indivíduo participa da busca comum de um consenso. Essa comunidade ideal de comunicação partilha de certas normais morais sem as quais a argumentação não seria possível. A primeira norma diz respeito ao direito de todos os membros da comunidade de se exprimir em suas reivindicações que podem levar ao consenso (justiça). A segunda regra diz respeito à solidariedade entre todos os participantes da comunidade, graças à qual se estabelece um reconhecimento mútuo. A terceira norma é a da corresponsabilidade de todos os indivíduos tomando parte na discussão para formular e resolver os problemas em torno de uma questão crucial. Todos devem poder cooperar com as discussões. O princípio escolhido deve ser aquele da universalização imposto por Kant ou o da imparcialidade. Síntese para as aulas de Ética ambiental – PGTA/UFF – Prof. Ozanan 7 7 Como aplicar a ética da discussão à questão ambiental se os animais não podem argumentar? Ao mostrar que é o homem que deve tomar em conta o sofrimentos dos animais e as ameaças ao ambiente, a ética da discussão permanece antropocêntrica. Ela ajuda, no entanto, quando se discutem políticas rigorosas de proteção do ambiente que devem gozar de amplo consenso. Fonte: HESS, Gérard. Éthiques de la Nature. Éthique et philosophie morale. Paris : PUF, 2013.
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