Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
renato cohen PERFORMANCE COMO LINGUAGEM CRIAÇÃO DE UM TEMPO-ESPAÇO DE EXPERIMENTAÇÃO EDITORA PERSPECTIVA 1* edição - Ia reimpressão Direitos reservados à EDITORA PERSPECTIVA S.A. Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025 01401-000 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: (0—11) 3885-8388 www.editoraperspectiva.com.br 2002 a Joseph Beuys artista radical e humanista. SUMARIO UMA BOA PERFORMANCE-Renato Cohen 13 PREFÁCIO-Artur Matuck 15 DO PERCURSO 19 INTRODUÇÃO 23 Dos Objetivos 25 Dos Conceitos 28 Do Processo de Pesquisa 30 1. DAS RAÍZES: LIVE ART- PONTE ENTRE VIDA E ARTE 35 Ontologia da Performance: Aproximação entre Vida e Arte 37 Das Raízes: Uma Arte de Ruptura 40 Movimentos Congêneres: Da Contracultura à Não- Arte 45 2. DA LINGUAGEM: PERFORMANCE-COLLAGECOMO ESTRUTURA 47 Da Legião Estrangeira das Artes: Criação de um Anti- Gesamtkunstwerk 49 Da Criação: Livre-Associação e Collage como Estrutura 60 Da Utilização dos Elementos Cênicos: O Discurso da MiseenScène 65 Estudos de Casos: Do Ritual do Conceituai como Expressões de Performance 76 Da Ideologia da Performance: Uma Reversão da Mídia 87 3. DA ATUAÇÃO: O PERFORMER, RITUALIZADOR DO DSfSTANTE-PRESENTE 91 A Dialética da Ambivalência 93 Ruptura com a Representação: Valorização do Sentido de Atuação 96 Verticalização do Processo de Criação: O Ator Encenador. 98 Do Momento de Concepção: Criação de uma Cena Formalista 102 Do Momento de Atuação: Ritualização do Instante- Presente 109 4. DAS INTERFACES: PERFORMANCE -CRIAÇÃO DE UM TOPOS DE EXPERIMENTAÇÃO 113 A Idéia de um Topos Cênico 115 Da Relação Binaria: Emissão e Recepção 121 O Modelo Estético: Da Representação à Fruição 123 O Modelo Mítico: Da Vivência à Intelecção 128 Free Teatre - Happening e Performance: Ruptura da Convenção Teatral 132 Da Passagem do Happening para a Performance: Aumento de Esteticidade 134 Das Relações de Gêneros: Proposta de um Modelo Topológico 139 5. DO ENVIRONMENT: ANOS 80 - PASSAGEM DE EROS PARATHANATOS 141 Niilismo e Esquizofrenia: Um Retrato de Época 143 10 Do New Wave ao Pós-Moderno: Estética da Releitura.... 147 O Darkismo Punk: Culto a Thanatologia 152 6. DOS LIMITES: PERFORMANCE COMO TOPOS ARTÍSTICO DIVERGENTE 155 Eive Art e Performance como Topos Artístico Divergente 157 Da Experiência Brasileira: Limites 161 Do Futuro: Mídias Dinâmicas como Suporte de uma Arte de Resgate 163 BIBLIOGRAFIA 165 Livros 165 Artigos 167 APÊNDICE 169 Material Fonte 171 Fontes Textuais 172 Artigos/Textos/Poesias 173 Roteiro de Peças/ Performances Assistidas 174 ILUSTRAÇÕES Yggy Pop 2 e 3 Collage- Renato Cohen 18 DeafmanGlance(Robert Wilson) 24 Performance (Yves Klein, Piero Manzoni) 36 Performance,Disappearances 48 BoífyArt-GilbertandGeorge 92 Cenas - Antonin Artaud 114 Punks-1976 142 Performance - Projeto Magritte - Rento Cohen 156 Ciclo Performances-FUNARTE-1984 170 11 UMABOAPERFORMANCE Performance como Linguagem volta às mãos do leitor, em reedição. Em relação ao seu aparecimento inicial, o momento é outro, já de plena absorção dessas manifestações expressivas, disruptoras, nos mais diversos segmentos que vão da arte dramática - com pleno diálogo no teatro contemporâneo - às artes plásticas e literárias, da moda ao cotidiano, da televisão à política. A questão da performance torna-se central na sua manifestação contemporânea e o próprio campo de estudos amplia-se desde as manifestações da arte-performance, cuja genealogia e modo de produção são abordados neste livro, desde as questões da ritualização, da oralidade, da tecnologia, até as de todo o contexto cultural envolvido na ação performática e performativa, estudos esses que têm sido desenvolvidos pela Performance Studies - associação filiada aos estudos pioneiros de Richard Schechner da New York University. 13 Por outro lado, os modos inventivos e as ações ideológicas da arte-performance perpetrados por Joseph Beuys, pelos situacionistas em maio de 1968 e pela ação antiartística do Fluxus ou contracultural de inúmeros atuantes são, hoje, contra- absorvidos ou antropofagizados pelos curiosos mecanismos da mídia e da indústria cultural, que diluem assim sua virulência anti- sistema - dos ridículos reality-shows aos contorcionismos dos apresentadores "performáticos" da MTV, enforma-se toda uma produção associada, de certo modo, ^performance, mas destituída de sua virulência transformadora. Como foco de resistência, a investigação da performance tem migrado, desde os anos de 1990, de seu ponto de partida nas contundentes ações antropológicas e investigativas da consciência e da corporeidade humana. É o caso das realizações do La Fura dei Baús, daperformer Orlan, de Marina Abramovic, de Tunga e outros, que colocam sua psique e corpo na busca das extensões - e, curiosamente, grande parte deles está nomeada como pesquisa do "Corpo Extenso" - e, em outra frente, das ações e performances com tecnologia, desde trabalhos com mediação de corpo até inúmeras produções na Arte WEB (Internet), que democratizam a veiculação de cenas e acontecimentos e criam ambientes de produção, semelhantes às ações dos anos de 1960. Assim, são geradas quer pesquisas de mutação e identidade, como as de Eduardo Kac, quer experimentação erótica e subjetiva e veiculação de "rádios livres", como a Zapatista, as resistências do Kosovo, entre outros acontecimentos performativos e políticos. Em outra frente, incorporam-se inúmeros processos de subjetivação, como as recentes pesquisas cênicas e performáticas na confluência entre arte e loucura, a exemplo dos trabalhos da Cia Ueinzz (São Paulo), sob minha direção e de Sérgio Penna. Por último, importa lembrar que Performance como Linguagem tornou-se uma espécie de cult pioneiro (no caminho visionário da Editora Perspectiva), em língua portuguesa, junto com o livro de Luiz Roberto Galizia, Os Processos Criativos de Robert Wilson, na apresentação de repertórios e procedimentos da cena moderna e contemporânea, da performance em sua manifestação radical, corroborando, segundo depoimentos, o caminho de inúmeros jovens artistas confrontados e autorizados por essas perspectivas vitais. Renato Cohen agosto de 2002 14 PREFÁCIO A partir dos anos 50 a atuação do artista plástico co- meçou a se inscrever na obra pictórica fazendo com que os processos de criação fossem registrados na superfície da tela. Esta tendência de se valorizar o momento da cria- ção era o prenuncio de uma mutação na arte contem- porânea. Enquanto as pinturas performáticas de Pollock e Kou- nellis registrando gestos expressivos ainda resultavam em representações estéticas objetuais, o nascente movimento da body art deslocava o ponto focai do produto para o processo, da obra para o criador. A body art assumia o corpo como suporte artístico. A ação do artista sustentava- se como mensagem estética por si mesma e o seu registro residual ou documental representava um epifenômeno. A autoflagelação controlada, programada de Gina Pane pro- 15 punha ao espectador um contato direto com uma ação dra- mática não representada, concebida como um elemento estático. A expansão das artes plásticas em direção ao territó- rio do invisível, do irrepresentável questionava a sedimen- tação do pensar artístico e reclamava novos conceitos. A noção de performance respondeu às novas proposições estéticas e ao mesmo tempo sugeriu uma nova perspec- tiva de leitura da história das artes. Roselee Goldberg identifica uma "história oculta" da performance em nosso século identificando muitas das teatralizações, das manifestações para-artísticas dos futu- ristas, construtivistas, dadaístas e surrealistas como per- formáticas. Jorge Glusberg em seu livro A Arte da Per- formance (traduzido por Renato Cohen e publicado pela Perspectiva) refere-se à chamada pré-história da perfor- mance, identificando movimentos,artistas e eventos que levaram ao reconhecimento da especificidade desta forma artística. Glusberg no entanto reconhece que a origem da performance remonta à Antigüidade. Gregory Battcock, em The Art of Performance, com- plementa esta concecpção ao afirmar: Antes do homem estar consciente da arte ele tornou-se cons- ciente de si mesmo. Autoconsciência é, portanto, a primeira arte. Em performance a figura do artista é o instrumento da arte. É a própria arte. Atualmente a performance é um gênero plenamente estabelecido no cenário artístico internacional e no brasi- leiro. A partir da década de 70 surgiram inúmeros artis- tas plásticos dedicando-se exclusivamente a esta forma de atuação estética. No Brasil, no entanto, a absorção da performance re- fletiu um típico processo de colonização cultural, no qual os mais recentes avanços da cultura americana ou euro- péia são excessivamente valorizados pela mídia e assu- midos de maneira rápida e superficial, gerando eventos, obras e publicações equivocadas, e um público despre- parado. O trabalho de Renato Cohen representa um esforço de se reformar esta situação. Fundamentado numa exce- lente pesquisa teórica e histórica da linguagem performá- tica Renato Cohen incorpora o Brasil em seu estudo, incluindo uma visão crítica de performances de brasileiras, 76 concentrando-se nos trabalhos de Guto Lacaz e de Otávio Donasci. O livro reflete um dilema de Renato Cohen em sua atuação profissional — ampliar os limites do teatro, absor- vendo a contracultura e a performance e ao mesmo tem- po fazer teatro, estabelecendo-se como profissional neste campo de atuação. O autor reconhece um topos específico à performance, mas a observa da perspectiva do teatro e assim esta- belece um confronto dialético e enriquecedor para ambos os gêneros. Uma conseqüência possível e desejável desta publi- cação seria o incentivo à inclusão de performances em eventos do circuito cultural. Artur Matuck lie se emerginy hdmis luve oniy íhe fost tenuous umnecttoni uiíh the ;ew York Punk Rtnk wxne, as ílourished for some ands like The New Yoi' amones, ;irtd The }ic,v iuch closer musicall> tt f Knigíit, The Leave* jnk mck bands of th ress almosí exclusiv unk unifbrrn. Tíir jeakers, t-shirts a e stiü pretendinp arscirca 1965. On the other h ' :ene, íar from sgusted by ord. The ny *stefday's XQ cias/ ItdíCU JIUJÍl thun Aniciica cver was, has liltíe ^esthetic refinements. cmerging as a jSeif-destrucüve ^- olíen stubs * j ^ •earm.' His ban Vw^ fceryíhing1. prenee, too. Ne in íheir mie DO PERCURSO Várias motivações podem levar à escolha de um tema e à delimitação de um feixe de interesse: motivações ideo- lógicas, estéticas e até afetivas. Evidentemente existe uma combinação desses fatores, mas, talvez, o mais importante seja mesmo a identificação afetiva através da empatia com a obra e o processo criativo de alguns artistas. Dois pontos se mostraram claros nesse processo — por um lado uma identificação com a cultura under- ground1 e, ao mesmo tempo, a busca dentro do teatro, que foi a expressão pela qual eu me engajei, de um re- sultado que não levasse unicamente à representação e ti- vesse maior aproximação com a vida. 1. Hoje, o underground já não é mais subterrâneo — essa identificação diz respeito à contracultura, ao movimento hippie, à sociedade alternativa, à arte experimental etc. 19 Ao falar do meu percurso acredito estar falando da história de outras pessoas da minha geração, dos filhos de 64, todos bombardeados pelos mesmos influxos: obscuran- tismo cultural, formação de idéias padronizadas pela mí- dia institucionalizada, patrulhamento estético-ideológico promovido pela esquerda, "ilhagem" em relação ao exte- rior etc. etc. Do Teatro ficou o relato de uma "época de ouro", dos anos 60, principalmente em termos de um teatro expe- rimental: o Oficina, os festivais, a vinda do Living Thea- tre e de Bob Wilson, a presença de Victor Garcia, Jérome Savary e outros. Acompanhamos também, com o devido retardo e filtro, comum às informações que vêm de fora, a passagem de inúmeras "ondas" e estéticas; o movimento beat, a hippie generation e a contracultura, e mais recen- temente o movimento punk-new wave com todos seus des- dobramentos. Esse contato através de relatos, leituras e alguma obser- vação despertava uma série de perguntas: como era esse processo do Living Theatre de "viver" teatro e não "re- presentar" teatro — será que conseguiam realizar Artaud? Que tipo de experiências Andy Warhol fazia na sua fá- brica? Como a antipsiquiatria e as técnicas orientais entra- vam no processo dos happenings? E muitas outras per- guntas que, transportadas para o que se via no Brasil, abriam outras indagações: por que as outras artes alcan- çavam grandes progressos e o teatro continuava tão estagnado? A prática do teatro teria que ficar isolada das outras artes? Será que a única alternativa para a caretice era Brecht? O meu início no teatro foi igual ao de quase todo mundo — trabalho de ator baseado no método de Stanis- lavski. A partir de 1981, tomei contato com a obra de Artaud e sua proposta de um teatro ritualístico, transcen- dente, e realizei, em âmbito escolar, alguns happenings com base nos textos "O Teatro e A Peste" e "O Teatro e A Metafísica"2. Talvez um pouco desgastado pelo percurso da "Via Negativa" seguida por Artaud, acabei me direcionando para a obra de um artista que me abriu toda uma nova perspectiva de criação e de atuação: Bob Wilson. Além da busca deste se dar por um caminho "luminoso" — ele 2. ANTONIN ARTAUD, O Teatro e seu Duplo, Lisboa, Editorial Minotauro, s.d. 20 já foi chamado de Messias das Artes, o grande mérito de Bob Wilson, é o de ser um artista que conseguiu sintetizar, e colocar em obra, grande parte da criação artística do século XX. Pelo menos em termos de uma criação de vanguarda. Nessa época, final de 1982, tomava contato também com o pesquisador e artista Luiz Roberto Galizia, que foi o primeiro orientador da pesquisa. Galizia havia traba- lhado diretamente com Robert Wilson e seu interesse pe- los arstistas americanos contemporâneos e pela idéia de pensar uma arte total deram um grande impulso para a minha pesquisa, ainda incipiente. Seguindo essa trilha, comecei a estudar outros teóricos como Appia e Gordon Craig, e acompanhar o trabalho de artistas contemporâneos como John Cage, Richard Fo- reman, Meredith Monk e Brian Eno, para citar alguns. No Brasil, alguns artistas como Aguillar, Ivald Granatto e Denise Stocklos realizavam experiências cênicas dife- rentes do que se acompanhava no teatro. Em 1982, ainda, passei a fazer parte da equipe piloto de "animadores culturais" que faziam a programação do recém-criado Sesc Fábrica da Pompéia. Foi um tempo de grande efervescência artística e, em apenas um mês, foi lançado o I Festival Punk de São Paulo, e o I Evento de Performances. A perfcrmance começa a impor-se como linguagem e para ela convergem uma série de artistas das mais diver- sas mídias, atraídos por essa novidade que abarca as expe- riências d vanguarda. Nesta época inicio minha pesquisa sobre o tema. Em 1983, no curso "Processos Criativos de Robert Wilson", de Luiz Galizia, apresento a performance Mou- ra Bruma, uma criação a partir de trechos e imagens de Ulisses de James Joyce. O título vem de uma aliteração de Molly Bloom, principal personagem feminina do ro- mance. A seguir realizei como roteirista e performer o espetáculo Dr. Jericko em Performance, calcado no Teatro da Crueldade e que foi apresentado na FAU/USP e na ECA, juntamente com um show punk na festa do dire- tório acadêmico. Em 1984 realizo como diretor e ator o espetáculo Tarô-Rota-Ator, apresentado no Madame Satã durante dois meses. Esse espetáculo, baseado na simbologia do taro medieval, pesquisa a linguagem do teatro ritual.Algumas 21 características dessa apresentação, como o predomínio do símbolo sobre a palavra, o uso de estrutura não narrativa, a forma de ocupação do espaço etc, aproximavam-na da linguagem de performance. Em meados de 1985, Jacó Guinsburg assume a orien- tação da Dissertação. Sua orientação inicia-se num mo- mento crucial da pesquisa — o de estruturação e redação final do trabalho — e a discussão de inúmeros pontos conceituais abrangendo questões de linguagem, de repre- sentação, de estetização etc, permitiram uma visão menos rígida de algumas posições e uma abordagem muito mais globalizante da questão da performance. Em reuniões que alcançaram um cunho epistemológico, indo das discussões de princípios filosóficos (a fundamen- tação do momento de vida e do momento de representa- ção) até uma organização semiológica do tema, a interlo- cução com meu orientador permitiu um amadurecimento tanto intelectual quanto prático a respeito dos temas en- volvidos. Em 1986 realizo como roteirista e diretor o espetáculo O Espelho Vivo-Projeío Magritte. Essa montagem, apoia- da em multimídia, permitiu exercitar uma série de con- ceitos elaborados na pesquisa e colocar em cena toda a experimentação inerente à performance, levando às últi- mas conseqüências os aspectos de formalização. Essa experimentação veio se somar à pesquisa teórica e espero com essa publicação possibilitar ao público em geral a tomada de contato com um universo que é ao mesmo tempo mandálico, inesgotável e pouco conhecido e, ao contrário do que se pensa, não somente regido pela criação impulsiva e aleatória. Destaco a seguir, alguns nomes que foram grandes impulsionadores deste trabalho: Regina Schnaiderman, Luiz Roberto Galizia, Wolney de Assis, Cláudio, Marcos e Malina Cohen, Marisa Joelsons, I. E. Vendramini, Artur Matuck, Beth Lopes, Sérgio Farias, Guto Lacaz, Otávio Donasci, Gil Finguerman, Nando Ramos, Paulo Dud e Jacó Guinsburg. Renato Cohen Mestre pela ECA/USP 22 INTRODUÇÃO 4 : *>.*:.< Dos Objetivos O objetivo primeiro deste trabalho é o de analisar a chamada "arte de performance"1, estabelecendo suas re- lações com o teatro e outras artes. Se de um ponto de vista prático muito se realizou no Brasil, em termos de performance, de 1982 para cá, o mesmo não aconteceu de um ponto de vista conceituai, sendo raras as formulações teóricas sobre esta expressão, Da mesma forma, todo um universo relacionado com esta expressão que engloba desde o teatro formalista con- temporâneo de grupos como o de Bob Wilson ou o Mabou 1. Nos artigos e ensaios, os americanos utilizam perfor- mance art para definir a expressão. Nesse sentido, adotaremos a tradução acima ou, simplesmente, o termo performance. 25 Mines, até a música minimalista, por exemplo, não tem sido acompanhado, da forma necessária, por nossas publi- cações, independentemente do interesse que desperta no público em geral2. Dentro da carência que caracteriza nossa produção cultural, enveredou-se, nas publicações de artes cênicas, pelos textos dramatúrgicos e pelo teatro engajado, na linha brechtiana, criando-se um vácuo para toda produção vol- tada para o imagético, para o não-verbal, produção esta suportada em temas existenciais e em processos de cons- trução mais irracionais. Essa mesma carência verifica-se em escolas e centros de formação de artistas, onde, em termos de teatro, prati- camente ainda somente se trabalha com o Método de Sta- nislavski e com montagens totalmente apoiadas na drama- turgia. Recentemente, com a crescente preocupação de inte- gração das artes — usa-se muito o termo "dança-teatro", por exemplo — e com o sucesso de grupos como os de Pina Baush, Arianne Mnouchkine e Jérome Savary, que privilegiam a encenação (calcada na experimentação), tem havido uma abertura para outro tipo de abordagem e para a pesquisa de linguagem nas artes cênicas3. Por outro lado, se existia um risco pela carência, com o advento da performance como expressão, que veio preen- cher com um nome mágico todo o vazio da vanguarda, passou a existir um risco do lado oposto, com um excesso de espetáculos oportunistas que vieram trazer um desgaste para as tendências de experimentação dentro da arte. O que aconteceu é que a partir do momento que performance começou a ser associada com "acontecimento 2. Esse interesse é despertado por artigos em jornais, princi- palmente da Folha Ilustrada que acompanha os eventos de van- guarda pelo mundo. É importante lembrar, no que diz respeito às publicações, que uma obra fundamental como O Teatro e seu Duplo, de Antonin Artaud, só foi publicada no Brasil em 1982 (com a atenuante que já havia uma versão portuguesa da obra), e que os escritos beats também só estão sendo publicados agora, virando moda vinte anos depois de seu lançamento. 3. É importante lembrar que São Paulo foi, nos anos 70, um dos centros mundiais de experimentação teatral, estando aqui Arrabal, Bob Wilson, o Living Theatre e o próprio Jérome Savary, que trabalhou no Teatro Ruth Escobar. No entanto grande parte da informação que se refere a esses anos de experimentação (exceto a que diz respeito às montagens do Teatro Oficina) não foi transmitida aos novos artistas. 26 de vanguarda", qualquer artista ou grupo que fizesse um trabalho menos acadêmico atribuía-lhe essa designa- ção, independentemente ou não da produção ter alguma contigüidade com o que se entende por performance. A noção que ficou para o público brasileiro é que perfor- mance é um conjunto de sketches improvisados e que é apresentada eventualmente e em locais alternativos. Na verdade, o que procuramos demonstrar com o pre- sente estudo é que essas características são mais próprias do que se entendia por happening e que justamente o que caracteriza a passagem do happening para a performance* é o aumento de preparação em detrimento do improviso e da espontaneidade. Performances, como as de Laurie Anderson ou do grupo Ping Chong, são extensamente pre- paradas e pouco improvisadas. No Brasil, trabalhos como os de Guto Lacaz ou de Otávio Donasci também têm essa característica. É lógico que, numa comparação com o teatro, a performance de fato se realiza, em geral, em locais alternativos, com poucas apresentações e com mui- to maior espaço para a improvisação. É nosso objetivo, portanto, efetuar um balanço de toda essa "experimentação" ocorrida no Brasil, documentando o que de principal se produziu, ao mesmo tempo que com a introdução de algumas discussões e exemplos teóricos esperamos trazer uma contribuição para encenadores, di- retores, atores e interessados em geral, proporcionando o contato com um universo ainda parcialmente desconhecido no Brasil. Por último, a característica de arte de fronteira da performance, que rompe convenções, formas e estéticas, num movimento que é ao mesmo tempo de quebra e de aglutinação, permite analisar, sob outro enfoque, numa confrontação com o teatro, questões complexas como a da representação, do uso da convenção, do processo de criação etc , questões que são extensíveis à arte em geral. Se por um lado a arte de performance tem sido exaus- tivamente estudada no exterior, através de ensaios e arti- gos, não temos conhecimento de nenhum trabalho que se proponha a uma análise comparativa com o teatro da forma que estamos fazendo. 4. No Cap. 4 analisamos com detalhe a transição da expres- são artística happening para a performance. 27 Dos Conceitos Apesar de sua característica anárquica e de, na sua própria razão de ser, procurar escapar de rótulos e defi- nições, a performance é antes de tudo uma expressão cênica: um quadro sendo exibido para uma platéia não caracteriza uma performance; alguém pintando esse qua- dro, ao vivo, já poderia caracterizá-la. A partir dessa primeira definição, podemos entender a performance como uma função do espaço e do tempoP = f(s, t); para caracterizar uma performance, algo precisa estar acontecendo naquele instante, naquele local. Nesse sentido, a exibição pura e simples de um vídeo, por exemplo, que foi pré-gravado, não caracteriza uma performance, a menos que este vídeo esteja contextuali zado dentro de uma seqüência maior, funcionando como uma instalação5, ou seja, sendo exibido concomitantemen- te com alguma atuação ao vivo. Para se adentrar nessa discussão topológica e sígnica, é interessante introduzir-se a conceituação de Jacó Guins- burg6 a respeito de encenação: para este, a expressão cê- nica é caracterizada por uma tríade básica (atuante-texto- público) sem a qual ela não tem existência. Tomaremos esses conceitos, usados originalmente para o teatro, e os ampliaremos, à guisa de formulação da expressão performance, aos seus limites mais extensos: O atuante não precisa ser necessariamente um ser humano (o ator), podendo ser um boneco7, ou mesmo um animal8. Podemos radicalizar ainda mais o conceito de "atuante", que pode ser desempenhado por um simples objeto9, ou uma forma abstrata qualquer. 5. Uma instalação é algum elemento sígnico, que pode ser um objeto, um ator, um vídeo, uma escultura etc, que fica "ins- talado" num local fixo e é observado por pessoas que geralmente chegam em tempos distintos. 6. JACÓ GUINSBURG, "O Teatro no Gesto", Polímica, São Paulo, 1980. 7. GORDON CRAIG, em Da Arte ao Teatro (Lisboa, Edi- tora Arcádia, 1911), defendia a utilização de sur-marionetes (bone- cos) que poderiam reproduzir de forma mais precisa as idéias do encenador, por não estarem afetadas pela emoção humana. 8. JACK SMITH, um encenador underground, montou uma peça de Ibsen, onde as personagens, devidamente trajadas, eram interpretadas por macacos, e as falas apareciam gravadas, focando- se cada persongem no momento de sua fala (Queer Theatre. Stefan Brecht). 9. GUTO LACAZ em sua Eletroperformance cria um atuan- te que é um rádio que pisca enquanto fala. 28 A palavra "texto" deve ser entendida no seu sentido semiológico, isto é, como um conjunto de signos que po- dem ser simbólicos (verbais), icônicos (imagéticos) ou mesmo indiciais10. No que tange à presença do público, é intreessante ter-se em mente a proposta de Adolphe Appia11 de se chegar a uma cena, que ele chama de "Sala Catedral do Futuro", onde não haja espectadores, só atuantes. A ques- tão da necessidade do espectador para algo ser caracte- rizado como arte (a supressão deste implicaria algo como um psicodrama, onde todos têm a possibilidade de ser espectadores-atuantes) tem sido objeto de grande polêmica. A posição que adotamos (ver Cap. 4) foi de considerar duas formas cênicas básicas: a forma estética, que implica o espectador, e a forma ritual, em que o público tende a se tornar participante, em detrimento de sua posição de assistente. Definidos os três axiomas da cena, é importante fa- larmos da relação espaço-tempo, já que definimos a per- formance como uma função desta relação; podemos en- tender a determinação espacial na sua forma mais ampla possível, ou seja, qualquer lugar que acomode atuantes e espectadores e não necessariamente edifícios-teatro (a tí- tulo de exemplo, já foram realizadas performances em praças, igrejas, piscinas, museus, praias, elevadores, edifí- cios etc) . A determinação temporal também é a mais ampla possível: Bob Wilson12, que justamente faz experiências com a relação espaço-tempo, realiza espetáculos de 12 a 24 horas de duração (no Festival de Xiraz, em 1972, rea- lizou o trabalho Ka Mountain Guardenia Terrace, que du- rou sete dias e consistiu basicamente numa experiência de tempo). Por último, dentro dessa conceituação inicial da per- formance, é importante discutir-se a questão da hibridez desta linguagem: para muitos, a performance pertenceria muito mais à família das artes plásticas, caracterizando-se por ser a evolução dinâmico-espacial dessa arte estática. 10. Sombras, ruídos, fumaças, figuras delineadas por luzes ele. 11. ADOLPHE APPIA, A Obra de Arte Viva, Lisboa, Edito- ra Arcádia, 1919. 12. Não podemos classificar o teatro de Bob Wilson como performance, no entanto, existe uma aproximação entre seu pro- cesso de criação e trabalho e o processo dos artistas da perfor- mance. 29 Essa colocação é bastante plausível; na sua origem (ver Cap. 1) a performance passa pela chamada body art, em que o artista é sujeito e objeto de sua arte (ao invés de pintar, de esculpir algo, ele mesmo se coloca enquanto escultura viva). O artista transforma-se em atuante, agin- do como um performer (artista cênico). Soma-se a isto o fato de que, tanto a nível de conceito quanto a nível de prática, a performance advém de artis- tas plásticos e não de artistas oriundos do teatro. Para citar alguns exemplos, Andy Warhol, Grupo Fluxus, Allan Kaprow, Claes Oldenburg. No Brasil, Ivald Granatto, Aguillar, Guto Lacaz etc. Poderíamos dizer, numa classificação topológica, que a performance se colocaria no limite das artes plásticas e das artes cênicas, sendo uma linguagem híbrida que guar- da características da primeira enquanto origem e da se- gunda enquanto finalidade. Do Processo de Pesquisa Para uma conceituação mais aprimorada da perfor- mance lidamos com duas dificuldades básicas: Primeiro, que o que melhor se fez em termos da per- formance art foi realizado no exterior, principalmente nos Estados Unidos. Destas performances, temos alguma do- cumentação — fotos, relatos, descrições — o que não contribui, contudo, para uma real tomada de contato com esses espetáculos. É claro que a dificuldade de falar-se sobre algo que não se presenciou é extensível a qualquer análise de arte, mas, no caso da performance, esta dificul- dade é maior pelo fato de estarmos lidando com o que Schechner13 chama de multiplex code. O multiplex code é o resultado de uma emissão multimídica (drama, vídeo, imagens, sons etc), que provoca no espectador uma re- cepção que é muito mais cognitivo-sensória do que racio- nal. Nesse sentido, qualquer descrição de performance fica muito mais distante da sensação de assisti-las, repor- tando-se, geralmente, essa descrição ao relato dos "fatos" acontecidos14. 13. RICHARD SCHECHNER, "Post Modern Performance: Two Views", Performings Arts Journal, p. 13. 14. Descrição do tipo, "aconteceu isto. . . o cenário era assim... o tempo foi tal e t c . . . " e que aumenta a dificuldade, porque nas performances, como nos rituais, muitas vezes interessa mais o como do que o quê. 30 Por outro lado, o que vem preencher um pouco este vazio é o fato de que a performance, como expressão artística, está correlacionada em termos de ideologia, esté- tica e formalização, com todo um universo que inclui des- de a sound poetry até os videoclips new waves. Desta for- ma, temos contato através de vídeos, discos, storyboards de peças, manifestos, exposições de artes plásticas, com a obra de uma série de artistas ligados à performance que não se apresentaram no Brasil. Um exemplo é Laurie Anderson, cuja performance United States I-IV (1983) pode ser acompanhada, em par- te, através de vídeo apresentado em São Paulo, e pelo disco do espetáculo15. O conjunto do material levantado nessa pesquisa, bem como uma relação de performances que julgamos signifi- cativas estão apresentados, como material fonte, em anexo a este trabalho. A outra dificuldade básica para a análise diz respeito à confusão que se criou em torno do termo no Brasil: é claro que, na sua própria essência, a performance se ca- racteriza por ser uma expressão anárquica, que visa esca- par de limites disciplinantes e que comporta tanto as apresentações do falecido faquir Bismarck (que engolia bolas de bilhar na Praça da Sé), quanto um espetáculo de intensa elaboração síquica como Shaggy Dog (1978) de Mabou Mines. Mas, nem por isso, podem se designar por performancecertas experiências (na verdade "intervenções") feitas por radicais ou livre-atiradores16. Para se ter uma melhor compreensão da trilha da arte de performance no Brasil e mesmo com um objetivo 15. O que também é limitado, porque, obviamente, nunca o vídeo vai substituir a característica do aqui-agora, da perfor- mance. 16. Coisas como fritar ovo na fila do Centro Cultural ou queimar dinheiro em cena durante longos minutos. É importante ressaltar que não criticamos esse tipo de evento, que tem uma certa importância no sentido de dessacralizar a arte ou mexer com o público, tirando-o de sua cômoda posição de observador etc. No entanto, levando-se em conta a época que esses eventos acontecem (anos 80) e a distinção que fizemos em relação ao happening, não podemos considerar tais intervenções como per- formances. 31 de documentação17, é interessante, nesse momento, darmos um breve histórico do movimento. Pode-se associar o início da difusão da performan- ce 18 , em 1982, com a criação quase que simultânea de dois centros culturais: o Sesc Pompéia e o Centro Cul- tural São Paulo. Nesses dois centros, buscou-se priorita- riamente abrir espaço para as manifestações alternativas que não estavam encontrando local em outros circuitos. No Sesc Pompéia se realizam então dois eventos: as "14 Noites de Performance" e o I Festival Punk de São Paulo. O festival de performances do Sesc Pompéia foi o primeiro grande evento deste tipo realizado em São Pau- lo e contou com a participação de artistas oriundos das várias artes: do teatro — Ornitorrinco, Manhas & Manias, Denise Stocklos; das artes plásticas — Ivald Granatto, Arnaldo & Go.; da dança — Ivaldo Bertazzo. Participam também Patrício Bisso e uma série de artistas da música, vídeo e grafismo. O evento foi uma "fusão" de mídias e linguagens, que trouxe a oportunidade de justapor artis- tas e pesquisas de diferentes rumos, chegando-se a resulta- dos que caminham para a totalização das artes. Na trilha dos Centros Culturais, e em conseqüência de um certo sucesso da produção alternativa (principal- mente em termos da música, com os grupos punk-new wave), abrem-se novos espaços. Os mais importantes são, por ordem cronológica de aparecimento, o Carbono 14, o Napalm e o Madame Satã. Nesses espaços assiste-se a performance, videoclips e aos grupos de rock-new wave tupiniquins. Em 1983, o Sesc Pompéia realiza o II Ciclo de Per- formances. No Centro Cultural cria-se um espaço desti- nado a essa linguagem: "o Espaço Performance". No MIS, no mesmo ano, realiza-se o I Festival de Vídeo e do 17. De 1982 para cá, procurei acompanhar tudo o que se realizou em termos de performance em São Paulo (que foi o principal centro de expressão no Brasil). Esse trabalho não foi exaustivo, mas eu o considero significativo para a pesquisa. A possibilidade que tive de trabalhar dentro do Sesc Pompéia, como animador cultural, bem como o fato de ter realizado performances junto com meu grupo, me permitiram um contato mais direto com a produção desta arte. Em anexo, relaciono o conjunto de trabalhos e festivais acompanhados. 18. Ê claro que antes disso, artistas plásticos como Aguillar, Granatto e outros já realizavam experiências com performances, mas estas ficavam restritas a um circuito muito pequeno, prati- camente só de artistas plásticos. 32 evento participam performers que utilizam tecnologia e vídeo na sua criação — caso de Otávio Donasci com as suas videocriaturas. Nesse momento a performance já está devidamente in- corporada ao cenário artístico (eixo Rio-São Paulo) viran- do uma espécie de moda. Realizam-se uma série de even- tos em que se experimenta de tudo: body art, teatro da crueldade, tecnologia, arte terapia, intervenção, criação aleatória etc. Nessa profusão de trabalhos se incluem ex- periências que vão da alta criatividade à mediocridade. Fechando de certa forma um ciclo, a Funarte realiza em agosto de 1984, o seu I Festival de Performances. Par- ticipam desse evento — Guto Lacaz, Ivald Granatto, TVDO, Paulo Yutaka e artistas de vários Estados do Bra- sil. Se nessa mostra não se atingiu o nível de festivais do Sesc, tendo se realizado algumas performances bastante primárias, o evento teve seu valor pela polêmica instau- rada. Eis o trecho da crítica de Sheila Leirner19 que co- briu o festival: Lamentável. A Sala Guiomar Novaes, transformada subita- mente numa "casa de ninguém", como palco para um desfile de incompreensões. A começar pelo próprio conceito de performance. Pois performance não é "qualquer coisa". A idéia de que "qual- quer um pode fazer arte" ou de que "qualquer coisa pode ser arte" já constituiu há algum tempo um paroxismo eficaz. Hoje, quando já se experimentou tudo ou quase tudo, ela é uma idéia ultrapassada, reacionária e até ideologicamente suspeita. O público foi uma vítima. . . perdeu-se uma excelente oportunidade de reve- lar novos conceitos e provocar a reflexão de uma audiência excep- cionalmente receptiva. Essa crítica de certa forma enfatiza nossa colocação anterior e traz de volta a polêmica sobre a institucionali- zação da arte20. 19. "A Perda de uma Excelente Oportunidade de Revela- ção", O Estado de S. Paulo. 7.8.84. 20. A argumentação de Sheila Leirner é que faltou cura- doria para o evento. Já Roberto Bicelli, organizador do evento, argumentou que a performance é um movimento anárquico, não ortodoxo como pretende a crítica, é que não cabia a ele censurar previamente certos trabalhos inscritos para o evento. A crítica de Sheila Leirner, levantada em 1984, tornou-se emblemática no decorrer dos anos seguintes, pois em consqüência da série de even- tos mal produzidos, improvisados e, principalmente, de baixa qualidade que receberam a denominação de performance, o termo caiu em total desgaste e passou a ser conotado como "qualquer coisa". Isso impediu, por parte do público e dos artistas, o con- tato com espetáculos de outro nível que também pertencem à chamada performance art. 33 De 1984 para cá a performance se diluiu enquanto vanguarda21, sendo em contrapartida bastante absorvida pelas formas artísticas mais tradicionais. A nosso ver, houve um esgotamento dos espetáculos intensamente es- pontâneos, havendo, porém, espaço para performances mais elaboradas (praticamente desconhecidas no Brasil). Fica claro que sempre haverá espaço para espetáculos que permeiem essa linguagem (do experimental, do ritual, do sígnico) e que, com o esgotamento da performance, algo novo se sucederá dentro da vanguarda, da mesma forma que a performance sucedeu ao happening. Por último, dentro do processo de pesquisa, é impor- tante ressaltar a contribuição que minha observação prá- tica32 trouxe para a minha pesquisa, visto que muitos conceitos se completaram e se modificaram a partir dessa observação "de dentro". 21. Em meados de 1988, o Madame Satã e o Espaço Off ainda mantinham espaços para realização de performances. 22. Em Do Percurso, relaciono meus trabalhos práticos. 34 1. DAS RAÍZES: LIVE ART — PONTE ENTRE VIDA E ARTE O artista é um homem que não pode se conformar com a renúncia à satisfação das pul- sões que a realidade exige. Toda arte é o dese- nho do desejo. O artista dá livre vazão a seus desejos eróticos e fantasias. A realidade inter- dita o tempo todo. Desde coação social até a gramática. A obra de arte se caracteriza pela transgressão, por não obedecer a gramática^-. SIGMUND FREUD Ontologia da Performance: Aproximação entre Vida e Arte Qual o desígnio da arte: representar o real? Recriar o real? Ou, criar outras realidades? 1. Os grifos são meus. 37 Isso, sem esquecermos da questão primeira, que já extrapola o campo da especulação estética, ou seja, de definir o que é o real? Tomando como ponto de estudo a expressão artística performance, como uma arte de fronteira, no seu contínuo movimento deruptura com o que pode ser denominado "arte-estabelecida"2, a performance acaba penetrando por caminhos e situações antes não valorizadas como arte. Da mesma forma, acaba tocando nos tênues limites que sepa- ram vida e arte. A performance está ontologicamente ligada a um mo- vimento maior, uma maneira de se encarar a arte; A live art. A live art é a arte ao vivo e também a arte viva. É uma forma de se ver arte em que se procura uma aproxi- mação direta com a vida, em que se estimula o espontâ- neo, o natural, em detrimento do elaborado, do ensaiado. A live art é um movimento de ruptura que visa dessa- cralizar a arte, tirando-a de sua função meramente estética, elitista. A idéia é de resgatar a característica ritual da arte, tirando-a de "espaços mortos", como museus, galerias, tea- tros, e colocando-a numa posição "viva", modificadora. Esse movimento é dialético, pois na medida em que, de um lado, se tira a arte de uma posição sacra, inatingí- vel, vai se buscar, de outro, a ritualização dos atos comuns da vida: dormir, comer, movimentar-se, beber um copo de água (como numa performance de George Brecht do Fluxus) passam a ser encarados como atos rituais e artísti- cos. John Cage diz: "Gostaria que se pudesse considerar a vida cotidiana como teatro"3. Dentro desse modo de encarar a arte, Isadora Duncan, Mercê Cunninghan e outros "libertaram" de certa forma a 2. ALLAN KAPROW, o idealizador de happening, que se autodenomina um fazedor de conceitos, estabelece o contraponto ARTE-arte e NÃO-ARTE. A primeira, que chamamos de "arte- estabelecida", é herdeira da arte instituída, é intencional, tem fé e aspira a um plano superior. Exprime-se numa série de formas e "ambientes sagrados" (exposições, livros, filmes, monumentos etc). A não-arte engloba tudo o que não tenha sido aceito como arte, mas que haja atraído a atenção de um artista com essa possi- bilidade em mente (em A Educação do A-Artista). Um exemplo claro disto são os ready-mades de Mareei Duchamp, que vão dar um valor de objetos de arte a produtos industriais, feitos em série e absolutamente cotidianos, como uma bicicleta ou um vaso sanitário. 3. Material do Grupo Fluxus — Bienal 1983 (ver fontes textuais). 38 dança, incorporando ao seu repertório movimentos e situa- ções comuns do dia-a-dia, como andar, parar e trocar de roupa, por exemplo. Personagens diárias (e não míticas), como guardas, operários, mulheres gordas etc , passam a fazer parte das coreografias. Tudo isso hoje é lugar-co- mum na chamada "dança moderna", mas antes dessa rup- tura, era considerado abjeto por alguns estetas. Na música, essa ruptura se deu com Satie, Stockhausen, John Cage e outros: silêncio, ruídos etc , passam a ser aceitos como formas musicais. Cage introduz a aleatorie- dade nos seus "concertos", reforçando a idéia (que se apoia num conceito zen de vida) de uma arte não-inten- cional. Na literatura, podem se mencionar tanto experiências empíricas, como a proposta surrealista da escrita automá- tica, em que vale o jorro, o fluxo e não a construção for- mal, quanto experiências altamente elaboradas, como as de James Joyce que em Ulisses, por exemplo, procura reproduzir o fluxo vital da emoção e do pensamento e narra a epopéia de um cidadão absolutamente comum. Nas artes plásticas esse processo de entropização4 é quase automático. Podemos citar todos os movimentos da arte moderna (cubismo, dadaísmo, abstracionismo etc.) que guardam uma relação modificadora com o objeto re- presentado5. É também nas artes plásticas que surge o conceito de action painting passando pelos assemblages e environ- ments6 que vão desaguar na body art e na performance, em que o artista passa a ser sujeito e objeto de sua obra. No teatro, e de uma forma mais global nas artes cê- nicas, essa quebra com o formalismo, com as convenções 4. Entropia é a medida de desorganização. O aumento de entropia corresponde ao aumento de desordem e também a maio- res graus de liberdade na criação. 5. É importante discutir um paradoxo dentro de nossa con- ceituação de íive art. Apesar de a mesma essencialmente buscar o vivo, a aproximação entre vida e arte, ela se afasta de toda tentativa de representação do real. Todo movimento dito "realista" é divergente das idéias da live art. Um quadro realista visa repre- sentar o objeto, da forma mais fiel possível. Essa representação, em si, é a morte do objeto. Nesse sentido, responderíamos às formulações iniciais, podendo colocar a função da arte dentro dessa concepção como sendo a de uma reelaboração do real (a obra de arte tem vida própria, não se limita a representar o objeto) e não uma representação do real. 6. A action painting é a pintura instantânea, que é reali- zada como espetáculo na frente de uma audiência. O seu ideali- 39 que "amarram" a linguagem7 só vem a ser concretizada nos anos 60 com o happening e o teatro experimental de grupos como o Living Theatre e o La Mamma por exemplo. Das Raízes: Uma Arte de Ruptura De uma forma cronológica, podemos associar o início da performance6 com o século XX e o advento da moder- nidade9. A rigor, antropologicamente falando, pode-se conjugar o nascimento da performance ao próprio ato do homem zador é Jackson Pollock e no Brasil, Aguillar, que se dedicou a essa forma de trabalho. A assemblage é uma espécie de escultura ambiental onde pode ser usado qualquer elemento plástico-senso- rial. O environment é uma evolução desta e ambas caminham para o que hoje se designa por inslalação, que vem a ser uma escultura- signo-interferente, que muitas vezes vai funcionar como o cenário para o desenrolar da performance. (Para um acompanhamento detalhado dessas transições sugerimos a leitura de A Arte da Per- formance de JORGE GLUSBERG, São Paulo, Perspectiva, 1987, Debates 206.) 7. Através da história do teatro, existem inúmeras "que- bras" com a linha convencional, como o teatro expressionista, e teatro do absurdo etc. Da mesma forma, existem gêneros que exploram a espontaneidade e escapam das convenções mais pesa- das do teatro, como a comedia deWarte ou o teatro de rua, por exemplo. Mas é no happening que essa quebra com a convenção teatral é mais radical: não existe a clara distinção palco-platéia, ela é rompida a qualquer instante, confundindo-se atuante e espectador, não existe nenhuma estruturação de cena que siga as clássicas definições aristotélicas (linha dramática, continuidade de tempo e espaço etc), não existe a distinção personagem atuante etc. É importante ressaltar que, em termos de radicalidade, o happening é o momento maior, e que na passagem do happening, dos anos 60. para a performance, dos anos 70, há um retrocesso em relação à quebra com as convenções, havendo um ganho, em contrapartida, de esteticidade. 8. Estamos vinculando a performance à tive art e utilizan- do a conceituação de Rose Lee Goldberg (Performance Live Art 1909 to the Present), que recorre ao artifício de aplicar o termo performance (que só vai ser veiculado nos anos 70) a todas as manifestações predecessoras. 9. A rigor, o início da modernidade nas artes cênicas é associado à apresentação de Vbu Rei, de Alfred Jarry, em 1896, no Théâtre de L'Oeuvre em Paris, peça que rompe completa- mente os padrões estéticos da época, trazendo a semente do que iria acontecer no próximo século. 40 se fazer representar (a performance é uma arte cênica) e isso se dá pela institucionalização do código cultural10. Dessa forma, há uma corrente ancestral da performance que passa pelos primeiros ritos tribais, pelas celebrações dionisíacas dos gregos e romanos, pelo histrionismo dos menestréis e por inúmeros outros gêneros, calcados na in- terpretação extrovertida, que vão desaguar no cabaret do século XIX e na modernidade. No século XX a arte de performance se desenvolve na sua plenitude. Através das décadas, o movimento cami- nha sob várias formase por diversos países. Procuraremos, nesse breve resumo, focar os fluxos de maior criatividade e significação artística por onde o movimento se desloca, de uma forma que se possa entender o elo entre os pri- meiros trabalhos da década de 1910 e a performance contemporânea. O movimento futurista italiano, na década de 1910, marca o início de atividades e idéias organizadas. Mari- netti lança o Manifesto Futurista, e no movimento agru- pam-se pintores, poetas, músicos e artistas das mais diversas artes. A prática resulta em seratas onde se exe- cutam recitais poéticos, música e leitura de manifestos. A proposta futurista radicalizava os conceitos vigentes de arte, não apenas na idéia (proposta de peças-sínteses de trinta segundos, por exemplo) mas também na prática (a prática das seratas não era nada convencional, muitas ve- zes terminando em escândalos e pancadarias). O movi- mento futurista italiano repercute em toda a Europa, principalmente na França e na Rússia, onde Maiakóvski vai liderar um movimento altamente revolucionador. O ano de 1916 marca a abertura do Cabaret Voltaire em Zurique. Hugo Bali e Emmy Hennings trazem a idéia de Munique onde acompanharam as inovadoras experiên- cias dramatúrgicas de Wedekind, calcadas nos teatro- cabarets da cidade. No Cabaret Voltaire, que atrai artistas da Europa inteira fugidos da guerra para a neutra Suíça, vai se dar a germinação do movimento Dada. Nos cinco 10. Nesse processo de instalação da cultura, usando a ter- minologia de Nietzsche, existiria uma síntese dialética de duas energias dicotômicas: o apolíneo e o dionisíaco. Ambas são ma- trizes das artes cênicas e do teatro. O apolíneo dirigindo a orga- nização, a mensagem, a razão, e o dionisíaco a pulsão. a emo- ção e o irracional. Nesse ponto há a separação: o teatro clássico. calcado na organização aristotélica, se apoia numa forma mais apolínea e a performance (assim como uma parte do teatro) resgata a corrente que se reporta ao ritual, ao dionisíaco. 4) meses de existência do cabaret se experimenta de tudo, de expressionismo ao rito, do guinol ao macabro. Artistas de peso, das mais diversas artes, que vão germinar as idéias das próximas décadas se confrontam no cabaret: Kan- dinsky, Tristan Tzara, Richard Huelsenbeck, Rudolf von Laban, Jean Arp, Blaise Cendras, para citar alguns. Ao fim dessa experiência, o Dada já se espalha pela Europa e, com Paris, tornando-se o principal eixo de ati- vidades. Em 1917, acontecem dois lançamentos importan- tes: as estréias de Parade de Jean Cocteau e Les Mamelles de Tirésias de Apollinaire, que revolucionam o conceito de dança e de encenação. As duas peças causam espanto no público parisiense e principalmente a segunda é rece- bida com amplos protestos (o público a toma como uma afronta). Com esses espetáculos e com o lançamento da revista Littérature por André Breton, Paul Elouard, Philippe Soupault e Louis Aragon, começam a se criar as bases para o advento do movimento surrealista. Em termos cênicos, o surrealismo vai seguir como tática e ideologia a estética do escândalo. O ingrediente é o de lançar provocação contra as platéias. O surrealismo ataca de forma veemente o realismo no teatro. Inovações cênicas são testadas, como a de se representar multidões numa só pessoa, apresentar-se peças sem texto, ou perso- nagens-cenário fantásticos. A maioria das peças apresentadas na Salle Gaveau, em 1920, tomam emprestada a estrutura do vaudeville, em que um mestre de cerimônias explica cada seqüência (lo- gicamente sem um nexo) e os outros atores "demonstram" a idéia. As peças surrealistas acontecem tanto em edifícios- teatro, quanto em caminhadas de demonstração dos líde- res do movimento, e visam, através do escândalo, chamar a atenção para as propostas do movimento, tanto a nível ideológico quanto artístico. É clara a identificação entre as atitudes dos surrealistas, nos anos 20 e os futuros hap- penings, dos anos 60. Paralelamente ao surrealismo, a Bauhaus alemã desen- volve importantes experiências cênicas, que se propõem integrar, num ponto de vista humanista, arte e tecnologia. A Bauhaus é a primeira instituição de arte a organizar workshops de performance. Oskar Schlemmer, que dirige a seção de artes da Bauhaus, cria espetáculos como o 42 Ballet Triádico (1922) e Treppenwits (1926-1927), até hoje não superados dentro de sua linha de pesquisa. Em 1933, com o advento do nazismo, a escola é fechada, praticamente encerrando com isto o capítulo europeu das performances. A partir daí, o eixo principal do movimento se des- loca para a América, com a fundação, em 1936, na Caro- lina do Norte, da Black Mountain College. O objetivo da instituição é o de desenvolver a experimentação nas artes e de incorporar a experiência dos europeus (grande parte dos professores da Bauhaus se transfere para lá). Dois artistas exponenciais, na arte de performance, vão emergir da Black Mountain College: John Cage e Mercê Cunninghan. Cage tenta fundir os conceitos orientais para a música ocidental, incorporando aos seus concertos silên- cios, ruídos e os princípios zen da não previsibilidade. Cunninghan propõe uma dança fora de compasso (não segue a música que a orquestra) e não coreografante, abrindo, nessa quebra, passos importantes para o movi- mento da dança moderna. A partir da escola, o eixo se desloca para New York, com os artistas realizando uma série de espetáculos, que em 1959 vão ganhar um novo nome-conceito: happening. Allan Kaprow realiza na Reuben Gallery, em New York, seu 18 Happening in 6 Parts, encetando um novo con- ceito de encenação que vai ser propagado através da dé- cada seguinte. A tradução literal de happening é acontecimento, ocor- rência, evento. Aplica-se essa designação a um espectro de manifestações que incluem várias mídias, como artes plásticas, teatro, art-collage, música, dança etc.11. Com o florescimento da contracultura e do movimento hippie, os anos 60 vão ser marcados por uma produção maciça, que usa a experimentação cênica como forma de se atingir as propostas humanistas da época. Vários artis- tas buscam conceituar essas novas tendências de multilin- guagem: Joseh Beuys as chama de Aktion (para ele o ponto central seria a ação). Wolf Vostell de de-collage (prevalecendo a fusão). Claes Oldemburg usa pela pri- meira vez o termo performance (valorizando a atuação). 11. Mesmo com essa fusão, o happening mantém como princípio aglutinador sua característica de arte cênica, conservan- do, da forma mais livre possível, a tríade que definimos na Intro- dução (atuante-texto-público). 43 O happening, que funciona como uma vanguarda cata- lisadora, vai se nutrir do que de novo se produz nas diver- sas artes: do teatro se incorpora o laboratório de Gro- towski, o teatro ritual de Artaud, o teatro dialético de Brecht; da dança, as novas expressões de Martha Grahan e Yvonne Rainier, para citar alguns artistas. É das artes plásticas que irá surgir o elo principal que produzirá a performance dos anos 70/80: a action painting. Conforme já comentado, Jackson Pollock lança a idéia de que o artis- ta deve ser o sujeito e objeto de sua obra. Há uma transfe- rência da pintura para o ato de pintar enquanto objeto artístico. A partir desse novo conceito, vai ganhar impor- tância a movimentação física do artista durante sua "ence- nação". O caminho das artes cênicas será percorrido então pelo approach das artes plásticas: o artista irá prestar atenção à forma de utilização de seu corpo-instrumento, a sua interação com a relação espaço-tempo e a sua ligação com o público. O passo seguinte é a body art (arte do corpo) em que se sistematizam essa significação corporal e a inter-relação com o espaço e a platéia. O fato de se lidar com os velhos axiomas da arte cênica, sob um novo ponto de vista (o ponto de vista plástico), traz uma série de inovações à cena: o não-uso de temasdramatúrgicos, o não-uso da palavra impostada, para citar alguns exem- plos12. A partir da década de 70, vai-se partir para experiên- cias mais sofisticadas e conceituais (a nível de signo, por exemplo) que irão, para isso, incorporar tecnologia e in- crementar o resultado estético. É o início do que os ame- ricanos chamam de performance art13. 12. Simples movimentações espaciais, por exemplo, criam peças de alia densidade dramática. Muitos artistas, como Laurie Anderson. usam microfones e nunca passou pela cabeça deles a preocupação de impostar a voz e de usar todos esses recursos que o teatro considera axiomáticos. 13. Conforme já comentamos, no Brasil, sob o termo per- formance, agrupam-se tanto experiências desse tipo, quanto even- tos mais rudimentares que guardam maior pertinência com as fases anteriores do movimento. É importante ressaltar também, no caso brasileiro, o trabalho singular e pioneiro de artistas como Flávio de Carvalho, e posteriormente de Hélio Oiticica e Ligia Clark que influenciaram as gerações seguintes. 44 Movimentos Congêneres: Da Contracultura à Não-Arte É importante enfatizar o papel de radicalidade que a performance, como expressão, herda de seus movimentos predecessores: a performance é basicamente uma linguagem de experimentação, sem compromissos com a mídia, nem com uma expectativa de público e nem com uma ideologia engajada. Ideologicamente falando, existe uma identifi- cação com o anarquismo que resgata a liberdade na cria- ção, esta a força motriz da arte. A arte, como formula Freud, caminha com base no princípio do prazer e não no princípio de realidade. O artista lida com a transgressão, desobstruindo os impedi- mentos e as interdições que a realidade coloca (a obra de arte vai se caracterizar por ser uma outra criação: se eu vejo uma paisagem que objetivamente é verde, sob uma ótica vermelha, nada me impede de pintá-la assim). O trabalho do artista de performance é basicamente um trabalho humanista, visando libertar o homem de suas amarras condicionantes, e a arte, dos lugares comuns im- postos pelo sistema. Os praticantes da performance, numa linha direta com os artistas da contracultura, fazem parte de um último reduto que Susan Sontag14 chama de "he- róis da vontade radical", pessoas que não se submetem ao cinismo do sistema e praticam, à custa de suas vidas pessoais, uma arte de transcendência. Ao trilhar o caminho do princípio do prazer15, a per- formance resgata as idéias de uma prática da arte pela arte. Ou seja, a arte não se submetendo a ditames exter- nos: não se faz uma comédia de costumes ao gosto comer- cial, nem um texto ideológico que fomente a conscienti- zação política, nem uma montagem dramatúrgica regiona- lista. A performance trabalha ritualmente as questões existenciais básicas utilizando, para isso, recursos que vão desde o Teatro da Crueldade até elaborados truques sígnicos. A apresentação de uma performance muitas vezes causa choque na platéia (acostumada aos clichês e à pre- visibilidade do teatro). A performance é basicamente uma 14. Styles ofRadical Will. 15. Na verdade, a performance atua dialeticamente tanto a nível do princípio do prazer — com um fluxo criativo e um processo de atuação dionisíaco, quanto a nível do princípio de realidade — com uma clara preocupação de organização da men- sagem elaborada. 45 arte de intervenção, modificadora, que visa causar uma transformação no receptor. A performance não é, na sua essência, uma arte de fruição, nem uma arte que se pro- ponha a ser estética (muito embora, como já levantamos, se utilize de recursos cada vez mais elaborados para con- seguir aumentar a "significação" da mensagem). A performance está ideologicamente ligada à não-arte, proposta por Kaprow, na medida que, como nesta, vai contra o profissionalismo e a intencionalidade na arte: o que diferencia o praticante da não-arte, que ele vai cha- mar de a-artista, do artista praticante da arte-arte, é a intencionalidade. O a-artista não se coloca como um pro- fissional. Tanto que a mensagem final de Kaprow é "Artis- tas do mundo. Caiam fora. Vocês nada têm a perder senão suas profissões". No seu manifesto, falando da não intencionalidade da arte, Kaprow dá os seguintes exemplos: . . . É difícil deixar de admitir que o diálogo transmitido entre o Centro Espacial de Houston e os astronautas da Apoio 11 é me- lhor que a poesia contemporânea. . . . que os movimentos aleatórios entrelaçados dos fregueses de um supermercado são mais ricos que qualquer dança contempo- rânea. Nesse sentido os conceitos da não-arte se aproximam dos conceitos da Vive art, ou seja, pelos exemplos citados, escolhidos entre dezenas de outros exemplos do Manifesto, a própria vida, em certos instantes, é arte, e supera ao mesmo tempo tentativas arbitrárias (no sentido de não partirem de um impulso verdadeiro) de imitá-las. O praticante da não-arte, e da mesma forma o per- former, trabalha nesse tênue limite da espontaneidade como no exemplo do movimento dos fregueses de super- mercado que incidentalmente se tornou coreográfico, ou de um artista improvisando sketches para um público, sem perder ao mesmo tempo sua dimensão de verdade. 46 2. DA LINGUAGEM: PERFORMANCE—COLLAGE COMO ESTRUTURA <í-% 9'ÍS Í-V &v A performance é uma pintura sem tela, uma escultura sem matéria, um livro sem escrita, um teatro .sem enredo. . . ou a união de tudo isso. . . 1 Da Legião Esirangeira das Aries: Criação de um /Inrí-Gesamtkunstwerk Arte de fronteira. Teatro de imagens. Arte não-inten- cional. Minimalismo. Intervenção. Blefe. Afinal, o que é performance? Talvez um pouco de tudo isso. Antes de mais nada é preciso fazer-se um adendo: mais do que definir e delimitar a extensão da expressão artís- tica performance — o que por si só já constituiria uma tarefa paradoxal, na tentativa de se decupar o que busca escapar do analítico, de sermos normativos com uma arte que na sua essencialidade procura escapar de definições 1. SHEILA LEIRNER. "A Perda de uma Excelente Opor- tunidade de Revelação". O Estado de S. Paulo. 07.08.1984. e rotulações extintoras — é nossa intenção apontar, atra- vés da observação de diversos espetáculos, a estrutura e, mais do que isso, a ideologia que está por trás da expres- são artística performance, e ao mesmo tempo, com essa análise, enfocar todo um riquíssimo universo de criação ainda parcialmente desconhecido do grande público no Brasil. Por sua forma livre e anárquica, a performance abriga um sem número de artistas oriundos das mais diversas lin- guagens, tornando-se uma espécie de "legião estrangeira das artes"2, do mesmo modo que incorpora no seu reper- tório manifestações artísticas das mais díspares possíveis. Essa "babel" das artes não se origina de uma migração de artistas que não encontram espaço nas suas linguagens, mas, pelo contrário, se origina da busca intensa, de uma arte integrativa, uma arte total, que escape das delimi- tações disciplinares. Como diz Aguillar3: A performance utiliza uma linguagem de soma: música, dan- ça, poesia, vídeo, teatro de vanguarda, ritual. . . Na performance o que interessa é apresentar, formalizar o ritual. A cristalização do gesto primordial. A idéia de uma interdisciplina é fundamental: . . . teatro, vídeo e filmes são empregados, mas nenhum deles como forma única de expressão pode ser considerado per- formance. Isso é típico do ideal pós-moderno, que erradica dis- ciplinas categoricamente distintas4. A idéia da interdisciplina como caminho para uma arte total aparece na performance como uma espécie de reversão à proposta da Gesamtkunstwerk de Wagner. Na concepção da ópera wagneriana esse processo de uso de várias linguagens é harmônico: a música se integra com a dança, ambas são suportadas por um cenário, uma ilu- minação, uma plástica que se compõe num espetáculototal. Na performance — e a "ópera de Bob Wilson" é o melhor contra-exemplo disto — utiliza-se uma fusão de linguagens (dança, teatro, vídeo etc.) só que não se com- pondo de uma forma harmônica, linear. O processo de composição das linguagens se dá por justaposição, cola- 2. AGUILLAR, em roteiro de A Noite do Apocalipse Final, performance apresentada por Aguillar e a Banda Perfomática. 3. Op. cit. 4. SHEILA LEIRNER, uri. cit. 50 gem: na ópera Einstein on The Beach (1976)5, por exem- plo, a música que é composta por Philip Glass não é utili- zada como marcação para dança; apesar de elas ocorrerem simultaneamente, a dança não coreógrafa a música. Cada elemento cênico do espetáculo tem um valor isolado e um valor na obra total (por exemplo: os móveis, que são especialmente desenhados para a peça, são apresentados isoladamente em galerias de arte), produzindo na sua in- tegração uma leitura de maior complexidade sígnica, ao mesmo tempo que se evita a redundância da ópera wag- neriana. Na arte de performance vão conviver desde "espe- táculos" de grande espontaneidade e liberdade de exe- cução (no sentido de não haver um final predeterminado para o espetáculo) até "espetáculos" altamente formali- zados e deliberados (a execução segue todo um roteiro previamente estabelecido e devidamente ensaiado). A seguir, analisaremos, aprioristicamente, três exem- plos de espetáculos que apresentam diferenças radicais entre si. Isto permitirá apontar alguns traços comuns que dão contigüidade entre trabalhos tão diferentes enquanto expressão. 1. New York (René Block Gallery) — Maio de 1974 A "performance"6 se inicia no Aeroporto John Kennedy. Joseph Beuys7 chega da Alemanha e desce 5. Muitos dos conceitos e notas sobre o processo de cria- ção de Bob Wilson vêm do curso de pós-graduação "Robert Wil- son — Processos Criativos em Multimídia" elaborado pelo Pro- fessor Luiz Roberto Galizia que trabalhou diretamente com Bob Wilson e que constam de seu livro Os Processos Criativos de Robert Wilson lançado pela Perspectiva. A descrição da peça citada aparece em ROBERT STEARNS, Robert Wilson - From a Theatre of Imagens, pp. 47-52. 6. Estou usando o termo entre aspas porque mais adiante discutirei se este tipo de espetáculo pode ser classificado como performance. 7. Completamente avesso às instituições e à exploração das artes, considerado louco por muitos, Joseph Beuys, artista ale- mão, recentemente falecido, constitui-se, como lançador e exe- cutor de idéias, numa das mais importantes referências da con- tracultura. Antiacadêmico por natureza Beuys vai até o paro- xismo para demonstrar suas idéias. Sua obra, de um realismo cho- cante, tem como objetivo um profundo humanismo. Para ele, a função da arte é revolucionar o pensamento humano, libertando o homem de suas amarrações. A descrição dessa performance e da obra de Beuys aparece em CAROLINE TISDALL, Joseph Beuys. 51 do avião enrolado dos pés à cabeça em feltro (ele comenta mais tarde que esse material representava para ele um isolante tanto físico quanto metafórico). Do aeroporto, Beuys é carregado numa ambulância (ele já chega em más condições físicas por causa do feltro) para o espaço onde irá conviver com um coio- te selvagem por um período de sete dias. Durante esse tempo, os dois estiveram isolados de outras pessoas, sendo separados do público visi- tante da galeria por uma pequena cerca de arame. Os rituais diários de Beuys incluíam uma série de interações com o coiote (ver foto), onde eram "apre- sentados" objetos para o animal — feltro, uma ben- gala, luvas, uma lanterna elétrica e o Wall Street Journal (entregue diariamente). O jornal era rasga- do e urinado pelo animal, numa espécie de reconhe- cimento, à sua maneira, pela presença humana. Essa "performance" se denominou Coyote: I Like America and America Likes Me. Coyote. . . — Performance de Joseph Beuys. 52 2. Paris (Centre Pompidou) — Abril de 1979 O grupo de Richard de Marcy apresenta a performace Disparitions (Disappearances). O roteiro dessa performan- ce é baseado no poema The Hunting of the Snark (A Ca- çada do Turpente) de Lewis Caroll e o relato que apre- sentamos a seguir é transcrito da descrição de Patrice Davis8: Sentado frontalmente em bancadas o público observa, do andar de cima, o espaço da performance: uma larga extensão (230m2) parcialmente inundada. Essa superfície aquática não alude à representa- ção mimética de um rio ou um lago, mas, pelo con- trário, define claramente, através da região artifi- cialmente inundada, os limites utilizáveis como es- paços da performance. Os objetos (barracas, carro, mesa, cadeiras, es- crivaninhas) não são decididamente objetos náuti- cos: a disposição geométrica dos objetos, disfarça- damente aleatória, dá uma sensação de poder, de hierarquia9. A superfície aquática dá uma impressão de um assustador vazio — o vazio da folha branca de papel antes do ato criativo — um vazio que os performers não tentam preencher com atividades e movimentos preestabelecidos. Os reflexos da água são projetados em três di- mensões, que foram divididas, através de biombos, em numerosas telas posicionadas em diferentes dire- ções, com o intuito de captar as imagens e sombras projetadas. Esse espaço, expandido em três dimensões, ime- diatamente sugere a metáfora de um espaço que deve ser preenchido com impressões visuais, de um espa- ço polimorfo a ser ocupado, e de uma partitura mu- sical através da qual a performance irá fluir. Essa metáfora musical é rapidamente confirmada pela disposição espacial dos seis performers. Sob a dire- ção do capitão, meüeur en scène (diretor) e metteur en abyme (condensador de imagens) da história, eles se posicionam em frente a seus respectivos instru- 8. "Performance Toward a Semiotic Analysis", The Drama Review, p. 94. 9. Isso pode ser observado na foto de abertura deste capí- tulo, referente à performance descrita. 53 mentos — num semicírculo, da esquerda para a di- reita, eles são: o padeiro, em frente a uma velha máquina de coser, o açougueiro, afiando sua faca numa meseta, o coureiro conscientemente enchendo a piscina de água; o capitão movendo-se de um "músico" para outro e organizando a caçada do tur- pente10. O texto, especialmente quando se refere ao leit- motiv do turpente, é dito seqüencialmente pelas per- sonagens, e em cada caso isso é feito através de uma composição específica de gesto, dicção e ação. Como no poema de Lewis Carroll, o texto é dividido em oito espasmos ("crises") que contam as desventuras da tripulação. Essa mesma divisão, repetida no espaço inteiro, produz o efeito de um puzzle composto de palavras, gestos e imagens. 3. São Paulo (VII Bienal de Artes de São Paulo) — Outubro de 1983 As performances que descrevemos a seguir11 foram realizadas pelos integrantes do Grupo Fluxus especialmen- te convidados para VII Bienal. Elas se desenvolveram no andar térreo do edifício da Bienal, no que se denominou "espaços-fluxus", espaço esse não delimitado por luz ou qualquer outro tipo de marcação. Segue-se o relato do acontecido. Num determinado instante, iniciam-se simultanea- mente duas performances: Ben Vautier senta-se ao piano e fica dedilhando continuamente a mesma nota; a seu lado, Walter Marchetti senta-se numa cadeira e começa a juntar latas de alimento espalhadas a seus pés: à medida que suas mãos vão se enchendo de latas, estas começam a "escorregar" e ele recomeça a tarefa de pegar as latas. O "trabalho" realizado num gesto contínuo (como um Sísifo), somado à ex- pressão do artista e ao som seco das latas caindo no chão, produz uma sensação de angústia. Nesse ins- tante Wolf Vostell inicia a sua performance provo- 10. Na versão brasileira do poema de Carroll o neologismo snark (snake + shark) foi muito bem traduzido por Álvaro Antu- nes para turpente (Tubarão 4- Serpente).Em A Caça ao Tur- pente, Ed. Interior. 11. Estive presente nesse evento. 54 cando o deslocamento do público para um espaço vizinho. A sua performance consiste em atirar lâm- padas num anteparo de vidro (foto). O ruído e a sensação de explosão produzem alí- vio e prazer na platéia, talvez pelo contraponto da performance anterior. O conjunto das performances apresentadas pelos Fluxus não dura mais que dez minutos. Performance de Wolf Vostell. A partir desses três exemplos, podemos tentar estabe- lecer alguns traços de contigüidade que permitam caracte- rizar todos esses "espetáculos" como performance. Antes disso, seria interessante discutirmos, a nível de referên- cia, duas definições de performance: • • • teatro total, desafiando qualquer classificação porque inclui todas as artes, ou. . . uma arte ao vivo que é justamente o opos- to da Gesamlkunstwerk. . ,12. 12. SALLY BANES, "Performance Anxiety", The Village Voice, 30.12.81, p. 27. Sally Banes é crítica de dança. In XERXES MEHTA, Versions of Performance Art, p. 192. 55 uma forma antiteatral na qual convivem ilusão com tempo real. personagem com pessoa, marcação c o m espontaneidade, o enge- nhoso com o banal. A idéia vale mais que a execução. . . É uma espécie de interarte... 13. A nosso ver, essas definições são complementares e reforçam idéias apresentadas na Introdução deste traba- lho. Pode-se considerar a performance como uma forma de teatro por esta ser, antes de tudo, uma expressão cê- nica e dramática — por mais plástico ou não-intencional que seja o modo pelo qual a performance é constituída, sempre algo estará sendo apresentado, ao vivo, para um determinado público, com alguma "coisa" significando (no sentido de signos); mesmo que essa "coisa" seja um objeto ou um animal, como o coiote de Beuys. Essa "coi- sa" significando e alterando dinamicamente seus signifi- cados comporia o texto, que juntamente com o atuante ("a coisa") e o público, constituiria a relação triádica for- mulada como definidora de teatro. Nesse sentido é fácil ver que a performance está muito mais próxima do teatro do que das artes plásticas, que é uma arte estática — é claro que é muito diferente observar uma figura humana interagindo com um coiote do que observar um quadro ou uma escultura14. Da mesma forma, quando a performance pende para um discurso visual — não-verbal — composto a partir do movimento dos atuantes, é a intenção dramática que vai aproximá-la mais do teatro do que da dança. Disap- pearances é um bom exemplo disto, ficando caracterizada esta "teatralidade" tanto pela linguagem utilizada pelos performers (gesto, entonação, ação etc.) quanto pela com- posição da mise en scène. Por outro lado, pode se considerar a performance uma linguagem antiteatral, na medida em que procura esca- 13. BONNIE MARRANCA, "The Politics of Performance", Performing Arts Journal, 16, p. 62. Bonnie Marranca tem vários ensaios sobre a arte de performance. Idem. 14. Essa comparação não é totalmente precisa, na medida em que um quadro ou uma escultura também poderiam funcionar como instalação no contexto de uma performance. Na verdade, o que distancia a performance das artes plásticas e a aproxima do teatro é o contexto com que esses signos são introduzidos, con- texto este que está ligado ao que se constitui na "linguagem teatral", que é composto de uma série de características como a dinamicidade, a tridimensionalidade, a atemporalidade etc. É importante lembrar também que, como estamos tratando de uma conceituação topológica. estamos nos utilizando aqui de exemplos extremos. 56 par de toda uma vertente teatral (e que é a mais aceita enquanto teatro) que se apoia numa dramaturgia, num tempo-espaço ilusionista e numa forma de atuação em que prepondera a interpretação (na medida em que se cami- nha em cima da personagem)15. Não obstante ser importante perceber por qual lin- guagem passa mais próximo a linguagem híbrida da per- formance, este tipo de distinção torna-se difícil e inopor- tuna em alguns casos, tanto pela já mencionada busca de integração das artes quanto pela característica "dioni- síaca" (no sentido de se escapar do rótulo e da forma caracterizante) da performance. Um diretor como Bob Wil- son, por exemplo, funde propositadamente as linguagens da dança e do teatro, sendo muito difícil dizer até onde vai uma e onde começa a outra. A performance se estrutura, portanto, numa lingua- gem "cênico-teatral" e é apresentada na forma de um mixed-media onde a tonicidade maior pode dar-se em uma linguagem ou outra, dependendo da origem do artis- ta (mais plástica no Fluxus, mais teatral em Disappea- rances). Feitas essas distinções, podemos apresentar alguns tra- ços que caracterizam a linguagem performance e que são comuns aos três espetáculos: A performance não se estrutura numa forma aristo- télica (com começo, meio, fim, linha narrativa etc), ao contrário do teatro tradicional. O apoio se dá em cima de uma collage como estrutura e num discurso da mise en scène. Em Disappearances temos um exemplo desse "discur- so da mise en scène": os atores compõem caracteres que são carregadores de signos. Esses signos podem ser me- tamorfoseados durante a peça. O açougueiro e o cozi- nheiro, num determinado momento, se transformam em porcos e tomam contato com a água. A superfície inun- dada funciona como um hipersigno. Não existe lineari- dade temática e sim um leitmotiv que justifica o enca- deamento da ações. O leitmotiv no caso é a caçada ao turpente, e o espetáculo se suporta com base em um dis- curso visual: separado, solto do espaço e da continuidade lógica da ação, o discurso visual finalmente cria uma corrente que cativa a aten- 15. No Cap. 3 voltamos com mais detalhe a essa questão. 57 ção porque está separado do discurso lingüístico e conectado com a estrutura da fantasia e da imaginação 16. Na performance existe uma ambigüidade entre a fi- gura do artista perjormer e de uma personagem que ele represente17. Na performance de Joseph Beuys quem está lá é o próprio artista e não alguma personagem. É importante distinguir, no entanto, que à medida que Beuys metafori- camente está representando (simbolizando) algo com suas ações, quem está lá é um "Beuys ritual" e não o "Beuys do dia-a-dia". Para se compreender melhor esta questão, é interes- sante ter como referência a Teoria de Papéis. Os papéis que estão presentes não ficam apenas a nível da dicoto- mia ator-personagem. O que existe é uma multifragmen- tação, isto é, existem vários níveis de "máscaras". O performer, enquanto atua, se polariza entre os pa- péis de ator e a "máscara" da personagem. A questão é que o papel do ator também é uma máscara. E é impor- tante clarificar-se essa noção; quando um performer está em cena, ele está compondo algo, ele está trabalhando sobre sua "máscara ritual" que é diferente de sua pes- soa do dia-a-dia. Nesse sentido, não é lícito falar que o performer é aquele que "faz a si mesmo" em detrimen- to do representar a personagem. De fato, existe uma rup- tura com a representação, como demonstramos no capí- tulo seguinte, mas este "fazer a si mesmo" poderia ser melhor conceituado por representar algo (a nível de sim- bolizar) em cima de si mesmo. Os americanos denomi- nam esta auto-representação de self as context18. É lógico que o que Beuys faz na sua performance é diferente do seu fazer cotidiano. Não existe esse natu- ralismo na performance (aliás, o Naturalismo, enquanto movimento estético, é uma das tendências que sofre maio- res ataques por parte dos praticantes de performance). Esse processo de atuação seria semelhante ao dos ín- dios que se "pintam" para ir à guerra ou às cerimônias religiosas. 16. PATRICE DAVIS, Op. cil. 17. No Capítulo 3 tratamos com detalhe esta questão. 18. RICHARD SCHECHNER, "Post Modem Performance Two Views", Performings
Compartilhar