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COHEN Renato - Performance como linguagem

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renato cohen
PERFORMANCE
COMO LINGUAGEM
CRIAÇÃO DE UM TEMPO-ESPAÇO
DE EXPERIMENTAÇÃO
EDITORA PERSPECTIVA
1* edição - Ia reimpressão
Direitos reservados à
EDITORA PERSPECTIVA S.A.
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025
01401-000 - São Paulo - SP - Brasil
Telefax: (0—11) 3885-8388
www.editoraperspectiva.com.br
2002
a Joseph Beuys
artista radical
e humanista.
SUMARIO
UMA BOA PERFORMANCE-Renato Cohen 13
PREFÁCIO-Artur Matuck 15
DO PERCURSO 19
INTRODUÇÃO 23
Dos Objetivos 25
Dos Conceitos 28
Do Processo de Pesquisa 30
1. DAS RAÍZES: LIVE ART- PONTE ENTRE VIDA E
ARTE 35
Ontologia da Performance: Aproximação entre Vida e
Arte 37
Das Raízes: Uma Arte de Ruptura 40
Movimentos Congêneres: Da Contracultura à Não-
Arte 45
2. DA LINGUAGEM: PERFORMANCE-COLLAGECOMO
ESTRUTURA 47
Da Legião Estrangeira das Artes: Criação de um Anti-
Gesamtkunstwerk 49
Da Criação: Livre-Associação e Collage como
Estrutura 60
Da Utilização dos Elementos Cênicos: O Discurso da
MiseenScène 65
Estudos de Casos: Do Ritual do Conceituai como
Expressões de Performance 76
Da Ideologia da Performance: Uma Reversão da
Mídia 87
3. DA ATUAÇÃO: O PERFORMER, RITUALIZADOR DO
DSfSTANTE-PRESENTE 91
A Dialética da Ambivalência 93
Ruptura com a Representação: Valorização do Sentido
de Atuação 96
Verticalização do Processo de Criação: O Ator
Encenador. 98
Do Momento de Concepção: Criação de uma Cena
Formalista 102
Do Momento de Atuação: Ritualização do Instante-
Presente 109
4. DAS INTERFACES: PERFORMANCE -CRIAÇÃO DE
UM TOPOS DE EXPERIMENTAÇÃO 113
A Idéia de um Topos Cênico 115
Da Relação Binaria: Emissão e Recepção 121
O Modelo Estético: Da Representação à Fruição 123
O Modelo Mítico: Da Vivência à Intelecção 128
Free Teatre - Happening e Performance: Ruptura da
Convenção Teatral 132
Da Passagem do Happening para a Performance:
Aumento de Esteticidade 134
Das Relações de Gêneros: Proposta de um Modelo
Topológico 139
5. DO ENVIRONMENT: ANOS 80 - PASSAGEM DE EROS
PARATHANATOS 141
Niilismo e Esquizofrenia: Um Retrato de Época 143
10
Do New Wave ao Pós-Moderno: Estética da Releitura.... 147
O Darkismo Punk: Culto a Thanatologia 152
6. DOS LIMITES: PERFORMANCE COMO TOPOS
ARTÍSTICO DIVERGENTE 155
Eive Art e Performance como Topos Artístico
Divergente 157
Da Experiência Brasileira: Limites 161
Do Futuro: Mídias Dinâmicas como Suporte de uma Arte
de Resgate 163
BIBLIOGRAFIA 165
Livros 165
Artigos 167
APÊNDICE 169
Material Fonte 171
Fontes Textuais 172
Artigos/Textos/Poesias 173
Roteiro de Peças/ Performances Assistidas 174
ILUSTRAÇÕES
Yggy Pop 2 e 3
Collage- Renato Cohen 18
DeafmanGlance(Robert Wilson) 24
Performance (Yves Klein, Piero Manzoni) 36
Performance,Disappearances 48
BoífyArt-GilbertandGeorge 92
Cenas - Antonin Artaud 114
Punks-1976 142
Performance - Projeto Magritte - Rento Cohen 156
Ciclo Performances-FUNARTE-1984 170
11
UMABOAPERFORMANCE
Performance como Linguagem volta às mãos do leitor, em
reedição. Em relação ao seu aparecimento inicial, o momento é
outro, já de plena absorção dessas manifestações expressivas,
disruptoras, nos mais diversos segmentos que vão da arte dramática
- com pleno diálogo no teatro contemporâneo - às artes plásticas
e literárias, da moda ao cotidiano, da televisão à política.
A questão da performance torna-se central na sua manifestação
contemporânea e o próprio campo de estudos amplia-se desde as
manifestações da arte-performance, cuja genealogia e modo de
produção são abordados neste livro, desde as questões da ritualização,
da oralidade, da tecnologia, até as de todo o contexto cultural envolvido
na ação performática e performativa, estudos esses que têm sido
desenvolvidos pela Performance Studies - associação filiada aos
estudos pioneiros de Richard Schechner da New York University.
13
Por outro lado, os modos inventivos e as ações ideológicas
da arte-performance perpetrados por Joseph Beuys, pelos
situacionistas em maio de 1968 e pela ação antiartística do Fluxus
ou contracultural de inúmeros atuantes são, hoje, contra-
absorvidos ou antropofagizados pelos curiosos mecanismos da
mídia e da indústria cultural, que diluem assim sua virulência anti-
sistema - dos ridículos reality-shows aos contorcionismos dos
apresentadores "performáticos" da MTV, enforma-se toda uma
produção associada, de certo modo, ^performance, mas destituída
de sua virulência transformadora.
Como foco de resistência, a investigação da performance
tem migrado, desde os anos de 1990, de seu ponto de partida nas
contundentes ações antropológicas e investigativas da
consciência e da corporeidade humana. É o caso das realizações
do La Fura dei Baús, daperformer Orlan, de Marina Abramovic,
de Tunga e outros, que colocam sua psique e corpo na busca das
extensões - e, curiosamente, grande parte deles está nomeada
como pesquisa do "Corpo Extenso" - e, em outra frente, das ações
e performances com tecnologia, desde trabalhos com mediação
de corpo até inúmeras produções na Arte WEB (Internet), que
democratizam a veiculação de cenas e acontecimentos e criam
ambientes de produção, semelhantes às ações dos anos de 1960.
Assim, são geradas quer pesquisas de mutação e identidade, como
as de Eduardo Kac, quer experimentação erótica e subjetiva e
veiculação de "rádios livres", como a Zapatista, as resistências
do Kosovo, entre outros acontecimentos performativos e políticos.
Em outra frente, incorporam-se inúmeros processos de
subjetivação, como as recentes pesquisas cênicas e performáticas
na confluência entre arte e loucura, a exemplo dos trabalhos da
Cia Ueinzz (São Paulo), sob minha direção e de Sérgio Penna.
Por último, importa lembrar que Performance como
Linguagem tornou-se uma espécie de cult pioneiro (no caminho
visionário da Editora Perspectiva), em língua portuguesa, junto
com o livro de Luiz Roberto Galizia, Os Processos Criativos de
Robert Wilson, na apresentação de repertórios e procedimentos
da cena moderna e contemporânea, da performance em sua
manifestação radical, corroborando, segundo depoimentos, o
caminho de inúmeros jovens artistas confrontados e autorizados
por essas perspectivas vitais.
Renato Cohen
agosto de 2002
14
PREFÁCIO
A partir dos anos 50 a atuação do artista plástico co-
meçou a se inscrever na obra pictórica fazendo com que
os processos de criação fossem registrados na superfície
da tela. Esta tendência de se valorizar o momento da cria-
ção era o prenuncio de uma mutação na arte contem-
porânea.
Enquanto as pinturas performáticas de Pollock e Kou-
nellis registrando gestos expressivos ainda resultavam em
representações estéticas objetuais, o nascente movimento
da body art deslocava o ponto focai do produto para o
processo, da obra para o criador. A body art assumia o
corpo como suporte artístico. A ação do artista sustentava-
se como mensagem estética por si mesma e o seu registro
residual ou documental representava um epifenômeno. A
autoflagelação controlada, programada de Gina Pane pro-
15
punha ao espectador um contato direto com uma ação dra-
mática não representada, concebida como um elemento
estático.
A expansão das artes plásticas em direção ao territó-
rio do invisível, do irrepresentável questionava a sedimen-
tação do pensar artístico e reclamava novos conceitos. A
noção de performance respondeu às novas proposições
estéticas e ao mesmo tempo sugeriu uma nova perspec-
tiva de leitura da história das artes.
Roselee Goldberg identifica uma "história oculta" da
performance em nosso século identificando muitas das
teatralizações, das manifestações para-artísticas dos futu-
ristas, construtivistas, dadaístas e surrealistas como per-
formáticas. Jorge Glusberg em seu livro A Arte da Per-
formance (traduzido por Renato Cohen e publicado pela
Perspectiva) refere-se à chamada pré-história da perfor-
mance, identificando movimentos,artistas e eventos que
levaram ao reconhecimento da especificidade desta forma
artística. Glusberg no entanto reconhece que a origem da
performance remonta à Antigüidade.
Gregory Battcock, em The Art of Performance, com-
plementa esta concecpção ao afirmar:
Antes do homem estar consciente da arte ele tornou-se cons-
ciente de si mesmo. Autoconsciência é, portanto, a primeira arte.
Em performance a figura do artista é o instrumento da arte. É a
própria arte.
Atualmente a performance é um gênero plenamente
estabelecido no cenário artístico internacional e no brasi-
leiro. A partir da década de 70 surgiram inúmeros artis-
tas plásticos dedicando-se exclusivamente a esta forma de
atuação estética.
No Brasil, no entanto, a absorção da performance re-
fletiu um típico processo de colonização cultural, no qual
os mais recentes avanços da cultura americana ou euro-
péia são excessivamente valorizados pela mídia e assu-
midos de maneira rápida e superficial, gerando eventos,
obras e publicações equivocadas, e um público despre-
parado.
O trabalho de Renato Cohen representa um esforço
de se reformar esta situação. Fundamentado numa exce-
lente pesquisa teórica e histórica da linguagem performá-
tica Renato Cohen incorpora o Brasil em seu estudo,
incluindo uma visão crítica de performances de brasileiras,
76
concentrando-se nos trabalhos de Guto Lacaz e de Otávio
Donasci.
O livro reflete um dilema de Renato Cohen em sua
atuação profissional — ampliar os limites do teatro, absor-
vendo a contracultura e a performance e ao mesmo tem-
po fazer teatro, estabelecendo-se como profissional neste
campo de atuação.
O autor reconhece um topos específico à performance,
mas a observa da perspectiva do teatro e assim esta-
belece um confronto dialético e enriquecedor para ambos
os gêneros.
Uma conseqüência possível e desejável desta publi-
cação seria o incentivo à inclusão de performances em
eventos do circuito cultural.
Artur Matuck
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DO PERCURSO
Várias motivações podem levar à escolha de um tema
e à delimitação de um feixe de interesse: motivações ideo-
lógicas, estéticas e até afetivas. Evidentemente existe uma
combinação desses fatores, mas, talvez, o mais importante
seja mesmo a identificação afetiva através da empatia com
a obra e o processo criativo de alguns artistas.
Dois pontos se mostraram claros nesse processo —
por um lado uma identificação com a cultura under-
ground1 e, ao mesmo tempo, a busca dentro do teatro,
que foi a expressão pela qual eu me engajei, de um re-
sultado que não levasse unicamente à representação e ti-
vesse maior aproximação com a vida.
1. Hoje, o underground já não é mais subterrâneo — essa
identificação diz respeito à contracultura, ao movimento hippie,
à sociedade alternativa, à arte experimental etc.
19
Ao falar do meu percurso acredito estar falando da
história de outras pessoas da minha geração, dos filhos de
64, todos bombardeados pelos mesmos influxos: obscuran-
tismo cultural, formação de idéias padronizadas pela mí-
dia institucionalizada, patrulhamento estético-ideológico
promovido pela esquerda, "ilhagem" em relação ao exte-
rior etc. etc.
Do Teatro ficou o relato de uma "época de ouro",
dos anos 60, principalmente em termos de um teatro expe-
rimental: o Oficina, os festivais, a vinda do Living Thea-
tre e de Bob Wilson, a presença de Victor Garcia, Jérome
Savary e outros. Acompanhamos também, com o devido
retardo e filtro, comum às informações que vêm de fora,
a passagem de inúmeras "ondas" e estéticas; o movimento
beat, a hippie generation e a contracultura, e mais recen-
temente o movimento punk-new wave com todos seus des-
dobramentos.
Esse contato através de relatos, leituras e alguma obser-
vação despertava uma série de perguntas: como era esse
processo do Living Theatre de "viver" teatro e não "re-
presentar" teatro — será que conseguiam realizar Artaud?
Que tipo de experiências Andy Warhol fazia na sua fá-
brica? Como a antipsiquiatria e as técnicas orientais entra-
vam no processo dos happenings? E muitas outras per-
guntas que, transportadas para o que se via no Brasil,
abriam outras indagações: por que as outras artes alcan-
çavam grandes progressos e o teatro continuava tão
estagnado? A prática do teatro teria que ficar isolada das
outras artes? Será que a única alternativa para a caretice
era Brecht?
O meu início no teatro foi igual ao de quase todo
mundo — trabalho de ator baseado no método de Stanis-
lavski. A partir de 1981, tomei contato com a obra de
Artaud e sua proposta de um teatro ritualístico, transcen-
dente, e realizei, em âmbito escolar, alguns happenings
com base nos textos "O Teatro e A Peste" e "O Teatro
e A Metafísica"2.
Talvez um pouco desgastado pelo percurso da "Via
Negativa" seguida por Artaud, acabei me direcionando
para a obra de um artista que me abriu toda uma nova
perspectiva de criação e de atuação: Bob Wilson. Além
da busca deste se dar por um caminho "luminoso" — ele
2. ANTONIN ARTAUD, O Teatro e seu Duplo, Lisboa,
Editorial Minotauro, s.d.
20
já foi chamado de Messias das Artes, o grande mérito de
Bob Wilson, é o de ser um artista que conseguiu sintetizar,
e colocar em obra, grande parte da criação artística do
século XX. Pelo menos em termos de uma criação de
vanguarda.
Nessa época, final de 1982, tomava contato também
com o pesquisador e artista Luiz Roberto Galizia, que foi
o primeiro orientador da pesquisa. Galizia havia traba-
lhado diretamente com Robert Wilson e seu interesse pe-
los arstistas americanos contemporâneos e pela idéia de
pensar uma arte total deram um grande impulso para a
minha pesquisa, ainda incipiente.
Seguindo essa trilha, comecei a estudar outros teóricos
como Appia e Gordon Craig, e acompanhar o trabalho
de artistas contemporâneos como John Cage, Richard Fo-
reman, Meredith Monk e Brian Eno, para citar alguns.
No Brasil, alguns artistas como Aguillar, Ivald Granatto
e Denise Stocklos realizavam experiências cênicas dife-
rentes do que se acompanhava no teatro.
Em 1982, ainda, passei a fazer parte da equipe piloto
de "animadores culturais" que faziam a programação do
recém-criado Sesc Fábrica da Pompéia. Foi um tempo de
grande efervescência artística e, em apenas um mês, foi
lançado o I Festival Punk de São Paulo, e o I Evento
de Performances.
A perfcrmance começa a impor-se como linguagem e
para ela convergem uma série de artistas das mais diver-
sas mídias, atraídos por essa novidade que abarca as expe-
riências d vanguarda. Nesta época inicio minha pesquisa
sobre o tema.
Em 1983, no curso "Processos Criativos de Robert
Wilson", de Luiz Galizia, apresento a performance Mou-
ra Bruma, uma criação a partir de trechos e imagens de
Ulisses de James Joyce. O título vem de uma aliteração
de Molly Bloom, principal personagem feminina do ro-
mance. A seguir realizei como roteirista e performer o
espetáculo Dr. Jericko em Performance, calcado no Teatro
da Crueldade e que foi apresentado na FAU/USP e na
ECA, juntamente com um show punk na festa do dire-
tório acadêmico.
Em 1984 realizo como diretor e ator o espetáculo
Tarô-Rota-Ator, apresentado no Madame Satã durante
dois meses. Esse espetáculo, baseado na simbologia do taro
medieval, pesquisa a linguagem do teatro ritual.Algumas
21
características dessa apresentação, como o predomínio do
símbolo sobre a palavra, o uso de estrutura não narrativa,
a forma de ocupação do espaço etc, aproximavam-na da
linguagem de performance.
Em meados de 1985, Jacó Guinsburg assume a orien-
tação da Dissertação. Sua orientação inicia-se num mo-
mento crucial da pesquisa — o de estruturação e redação
final do trabalho — e a discussão de inúmeros pontos
conceituais abrangendo questões de linguagem, de repre-
sentação, de estetização etc, permitiram uma visão menos
rígida de algumas posições e uma abordagem muito mais
globalizante da questão da performance.
Em reuniões que alcançaram um cunho epistemológico,
indo das discussões de princípios filosóficos (a fundamen-
tação do momento de vida e do momento de representa-
ção) até uma organização semiológica do tema, a interlo-
cução com meu orientador permitiu um amadurecimento
tanto intelectual quanto prático a respeito dos temas en-
volvidos.
Em 1986 realizo como roteirista e diretor o espetáculo
O Espelho Vivo-Projeío Magritte. Essa montagem, apoia-
da em multimídia, permitiu exercitar uma série de con-
ceitos elaborados na pesquisa e colocar em cena toda a
experimentação inerente à performance, levando às últi-
mas conseqüências os aspectos de formalização.
Essa experimentação veio se somar à pesquisa teórica
e espero com essa publicação possibilitar ao público em
geral a tomada de contato com um universo que é ao
mesmo tempo mandálico, inesgotável e pouco conhecido
e, ao contrário do que se pensa, não somente regido pela
criação impulsiva e aleatória.
Destaco a seguir, alguns nomes que foram grandes
impulsionadores deste trabalho: Regina Schnaiderman,
Luiz Roberto Galizia, Wolney de Assis, Cláudio, Marcos
e Malina Cohen, Marisa Joelsons, I. E. Vendramini, Artur
Matuck, Beth Lopes, Sérgio Farias, Guto Lacaz, Otávio
Donasci, Gil Finguerman, Nando Ramos, Paulo Dud e
Jacó Guinsburg.
Renato Cohen
Mestre pela ECA/USP
22
INTRODUÇÃO
4 : *>.*:.<
Dos Objetivos
O objetivo primeiro deste trabalho é o de analisar a
chamada "arte de performance"1, estabelecendo suas re-
lações com o teatro e outras artes.
Se de um ponto de vista prático muito se realizou no
Brasil, em termos de performance, de 1982 para cá, o
mesmo não aconteceu de um ponto de vista conceituai,
sendo raras as formulações teóricas sobre esta expressão,
Da mesma forma, todo um universo relacionado com
esta expressão que engloba desde o teatro formalista con-
temporâneo de grupos como o de Bob Wilson ou o Mabou
1. Nos artigos e ensaios, os americanos utilizam perfor-
mance art para definir a expressão. Nesse sentido, adotaremos a
tradução acima ou, simplesmente, o termo performance.
25
Mines, até a música minimalista, por exemplo, não tem
sido acompanhado, da forma necessária, por nossas publi-
cações, independentemente do interesse que desperta no
público em geral2.
Dentro da carência que caracteriza nossa produção
cultural, enveredou-se, nas publicações de artes cênicas,
pelos textos dramatúrgicos e pelo teatro engajado, na linha
brechtiana, criando-se um vácuo para toda produção vol-
tada para o imagético, para o não-verbal, produção esta
suportada em temas existenciais e em processos de cons-
trução mais irracionais.
Essa mesma carência verifica-se em escolas e centros
de formação de artistas, onde, em termos de teatro, prati-
camente ainda somente se trabalha com o Método de Sta-
nislavski e com montagens totalmente apoiadas na drama-
turgia.
Recentemente, com a crescente preocupação de inte-
gração das artes — usa-se muito o termo "dança-teatro",
por exemplo — e com o sucesso de grupos como os de
Pina Baush, Arianne Mnouchkine e Jérome Savary, que
privilegiam a encenação (calcada na experimentação), tem
havido uma abertura para outro tipo de abordagem e para
a pesquisa de linguagem nas artes cênicas3.
Por outro lado, se existia um risco pela carência, com
o advento da performance como expressão, que veio preen-
cher com um nome mágico todo o vazio da vanguarda,
passou a existir um risco do lado oposto, com um excesso
de espetáculos oportunistas que vieram trazer um desgaste
para as tendências de experimentação dentro da arte.
O que aconteceu é que a partir do momento que
performance começou a ser associada com "acontecimento
2. Esse interesse é despertado por artigos em jornais, princi-
palmente da Folha Ilustrada que acompanha os eventos de van-
guarda pelo mundo. É importante lembrar, no que diz respeito
às publicações, que uma obra fundamental como O Teatro e seu
Duplo, de Antonin Artaud, só foi publicada no Brasil em 1982
(com a atenuante que já havia uma versão portuguesa da obra),
e que os escritos beats também só estão sendo publicados agora,
virando moda vinte anos depois de seu lançamento.
3. É importante lembrar que São Paulo foi, nos anos 70,
um dos centros mundiais de experimentação teatral, estando aqui
Arrabal, Bob Wilson, o Living Theatre e o próprio Jérome Savary,
que trabalhou no Teatro Ruth Escobar. No entanto grande parte
da informação que se refere a esses anos de experimentação
(exceto a que diz respeito às montagens do Teatro Oficina) não
foi transmitida aos novos artistas.
26
de vanguarda", qualquer artista ou grupo que fizesse
um trabalho menos acadêmico atribuía-lhe essa designa-
ção, independentemente ou não da produção ter alguma
contigüidade com o que se entende por performance. A
noção que ficou para o público brasileiro é que perfor-
mance é um conjunto de sketches improvisados e que é
apresentada eventualmente e em locais alternativos.
Na verdade, o que procuramos demonstrar com o pre-
sente estudo é que essas características são mais próprias
do que se entendia por happening e que justamente o que
caracteriza a passagem do happening para a performance*
é o aumento de preparação em detrimento do improviso
e da espontaneidade. Performances, como as de Laurie
Anderson ou do grupo Ping Chong, são extensamente pre-
paradas e pouco improvisadas. No Brasil, trabalhos como
os de Guto Lacaz ou de Otávio Donasci também têm
essa característica. É lógico que, numa comparação com
o teatro, a performance de fato se realiza, em geral, em
locais alternativos, com poucas apresentações e com mui-
to maior espaço para a improvisação.
É nosso objetivo, portanto, efetuar um balanço de toda
essa "experimentação" ocorrida no Brasil, documentando
o que de principal se produziu, ao mesmo tempo que com
a introdução de algumas discussões e exemplos teóricos
esperamos trazer uma contribuição para encenadores, di-
retores, atores e interessados em geral, proporcionando o
contato com um universo ainda parcialmente desconhecido
no Brasil.
Por último, a característica de arte de fronteira da
performance, que rompe convenções, formas e estéticas,
num movimento que é ao mesmo tempo de quebra e de
aglutinação, permite analisar, sob outro enfoque, numa
confrontação com o teatro, questões complexas como a
da representação, do uso da convenção, do processo de
criação etc , questões que são extensíveis à arte em geral.
Se por um lado a arte de performance tem sido exaus-
tivamente estudada no exterior, através de ensaios e arti-
gos, não temos conhecimento de nenhum trabalho que se
proponha a uma análise comparativa com o teatro da
forma que estamos fazendo.
4. No Cap. 4 analisamos com detalhe a transição da expres-
são artística happening para a performance.
27
Dos Conceitos
Apesar de sua característica anárquica e de, na sua
própria razão de ser, procurar escapar de rótulos e defi-
nições, a performance é antes de tudo uma expressão
cênica: um quadro sendo exibido para uma platéia não
caracteriza uma performance; alguém pintando esse qua-
dro, ao vivo, já poderia caracterizá-la.
A partir dessa primeira definição, podemos entender
a performance como uma função do espaço e do tempoP = f(s, t); para caracterizar uma performance, algo
precisa estar acontecendo naquele instante, naquele local.
Nesse sentido, a exibição pura e simples de um vídeo,
por exemplo, que foi pré-gravado, não caracteriza uma
performance, a menos que este vídeo esteja contextuali
zado dentro de uma seqüência maior, funcionando como
uma instalação5, ou seja, sendo exibido concomitantemen-
te com alguma atuação ao vivo.
Para se adentrar nessa discussão topológica e sígnica,
é interessante introduzir-se a conceituação de Jacó Guins-
burg6 a respeito de encenação: para este, a expressão cê-
nica é caracterizada por uma tríade básica (atuante-texto-
público) sem a qual ela não tem existência.
Tomaremos esses conceitos, usados originalmente para
o teatro, e os ampliaremos, à guisa de formulação da
expressão performance, aos seus limites mais extensos:
O atuante não precisa ser necessariamente um ser
humano (o ator), podendo ser um boneco7, ou mesmo um
animal8. Podemos radicalizar ainda mais o conceito de
"atuante", que pode ser desempenhado por um simples
objeto9, ou uma forma abstrata qualquer.
5. Uma instalação é algum elemento sígnico, que pode ser
um objeto, um ator, um vídeo, uma escultura etc, que fica "ins-
talado" num local fixo e é observado por pessoas que geralmente
chegam em tempos distintos.
6. JACÓ GUINSBURG, "O Teatro no Gesto", Polímica,
São Paulo, 1980.
7. GORDON CRAIG, em Da Arte ao Teatro (Lisboa, Edi-
tora Arcádia, 1911), defendia a utilização de sur-marionetes (bone-
cos) que poderiam reproduzir de forma mais precisa as idéias do
encenador, por não estarem afetadas pela emoção humana.
8. JACK SMITH, um encenador underground, montou uma
peça de Ibsen, onde as personagens, devidamente trajadas, eram
interpretadas por macacos, e as falas apareciam gravadas, focando-
se cada persongem no momento de sua fala (Queer Theatre.
Stefan Brecht).
9. GUTO LACAZ em sua Eletroperformance cria um atuan-
te que é um rádio que pisca enquanto fala.
28
A palavra "texto" deve ser entendida no seu sentido
semiológico, isto é, como um conjunto de signos que po-
dem ser simbólicos (verbais), icônicos (imagéticos) ou
mesmo indiciais10.
No que tange à presença do público, é intreessante
ter-se em mente a proposta de Adolphe Appia11 de se
chegar a uma cena, que ele chama de "Sala Catedral do
Futuro", onde não haja espectadores, só atuantes. A ques-
tão da necessidade do espectador para algo ser caracte-
rizado como arte (a supressão deste implicaria algo como
um psicodrama, onde todos têm a possibilidade de ser
espectadores-atuantes) tem sido objeto de grande polêmica.
A posição que adotamos (ver Cap. 4) foi de considerar
duas formas cênicas básicas: a forma estética, que implica
o espectador, e a forma ritual, em que o público tende
a se tornar participante, em detrimento de sua posição
de assistente.
Definidos os três axiomas da cena, é importante fa-
larmos da relação espaço-tempo, já que definimos a per-
formance como uma função desta relação; podemos en-
tender a determinação espacial na sua forma mais ampla
possível, ou seja, qualquer lugar que acomode atuantes e
espectadores e não necessariamente edifícios-teatro (a tí-
tulo de exemplo, já foram realizadas performances em
praças, igrejas, piscinas, museus, praias, elevadores, edifí-
cios etc) .
A determinação temporal também é a mais ampla
possível: Bob Wilson12, que justamente faz experiências
com a relação espaço-tempo, realiza espetáculos de 12 a
24 horas de duração (no Festival de Xiraz, em 1972, rea-
lizou o trabalho Ka Mountain Guardenia Terrace, que du-
rou sete dias e consistiu basicamente numa experiência de
tempo).
Por último, dentro dessa conceituação inicial da per-
formance, é importante discutir-se a questão da hibridez
desta linguagem: para muitos, a performance pertenceria
muito mais à família das artes plásticas, caracterizando-se
por ser a evolução dinâmico-espacial dessa arte estática.
10. Sombras, ruídos, fumaças, figuras delineadas por luzes
ele.
11. ADOLPHE APPIA, A Obra de Arte Viva, Lisboa, Edito-
ra Arcádia, 1919.
12. Não podemos classificar o teatro de Bob Wilson como
performance, no entanto, existe uma aproximação entre seu pro-
cesso de criação e trabalho e o processo dos artistas da perfor-
mance.
29
Essa colocação é bastante plausível; na sua origem
(ver Cap. 1) a performance passa pela chamada body art,
em que o artista é sujeito e objeto de sua arte (ao invés
de pintar, de esculpir algo, ele mesmo se coloca enquanto
escultura viva). O artista transforma-se em atuante, agin-
do como um performer (artista cênico).
Soma-se a isto o fato de que, tanto a nível de conceito
quanto a nível de prática, a performance advém de artis-
tas plásticos e não de artistas oriundos do teatro. Para
citar alguns exemplos, Andy Warhol, Grupo Fluxus, Allan
Kaprow, Claes Oldenburg. No Brasil, Ivald Granatto,
Aguillar, Guto Lacaz etc.
Poderíamos dizer, numa classificação topológica, que
a performance se colocaria no limite das artes plásticas
e das artes cênicas, sendo uma linguagem híbrida que guar-
da características da primeira enquanto origem e da se-
gunda enquanto finalidade.
Do Processo de Pesquisa
Para uma conceituação mais aprimorada da perfor-
mance lidamos com duas dificuldades básicas:
Primeiro, que o que melhor se fez em termos da per-
formance art foi realizado no exterior, principalmente nos
Estados Unidos. Destas performances, temos alguma do-
cumentação — fotos, relatos, descrições — o que não
contribui, contudo, para uma real tomada de contato com
esses espetáculos. É claro que a dificuldade de falar-se
sobre algo que não se presenciou é extensível a qualquer
análise de arte, mas, no caso da performance, esta dificul-
dade é maior pelo fato de estarmos lidando com o que
Schechner13 chama de multiplex code. O multiplex code
é o resultado de uma emissão multimídica (drama, vídeo,
imagens, sons etc), que provoca no espectador uma re-
cepção que é muito mais cognitivo-sensória do que racio-
nal. Nesse sentido, qualquer descrição de performance
fica muito mais distante da sensação de assisti-las, repor-
tando-se, geralmente, essa descrição ao relato dos "fatos"
acontecidos14.
13. RICHARD SCHECHNER, "Post Modern Performance:
Two Views", Performings Arts Journal, p. 13.
14. Descrição do tipo, "aconteceu isto. . . o cenário era
assim... o tempo foi tal e t c . . . " e que aumenta a dificuldade,
porque nas performances, como nos rituais, muitas vezes interessa
mais o como do que o quê.
30
Por outro lado, o que vem preencher um pouco este
vazio é o fato de que a performance, como expressão
artística, está correlacionada em termos de ideologia, esté-
tica e formalização, com todo um universo que inclui des-
de a sound poetry até os videoclips new waves. Desta for-
ma, temos contato através de vídeos, discos, storyboards
de peças, manifestos, exposições de artes plásticas, com a
obra de uma série de artistas ligados à performance que
não se apresentaram no Brasil.
Um exemplo é Laurie Anderson, cuja performance
United States I-IV (1983) pode ser acompanhada, em par-
te, através de vídeo apresentado em São Paulo, e pelo
disco do espetáculo15.
O conjunto do material levantado nessa pesquisa, bem
como uma relação de performances que julgamos signifi-
cativas estão apresentados, como material fonte, em anexo
a este trabalho.
A outra dificuldade básica para a análise diz respeito
à confusão que se criou em torno do termo no Brasil: é
claro que, na sua própria essência, a performance se ca-
racteriza por ser uma expressão anárquica, que visa esca-
par de limites disciplinantes e que comporta tanto as
apresentações do falecido faquir Bismarck (que engolia
bolas de bilhar na Praça da Sé), quanto um espetáculo
de intensa elaboração síquica como Shaggy Dog (1978)
de Mabou Mines.
Mas, nem por isso, podem se designar por performancecertas experiências (na verdade "intervenções") feitas por
radicais ou livre-atiradores16.
Para se ter uma melhor compreensão da trilha da
arte de performance no Brasil e mesmo com um objetivo
15. O que também é limitado, porque, obviamente, nunca
o vídeo vai substituir a característica do aqui-agora, da perfor-
mance.
16. Coisas como fritar ovo na fila do Centro Cultural ou
queimar dinheiro em cena durante longos minutos. É importante
ressaltar que não criticamos esse tipo de evento, que tem uma
certa importância no sentido de dessacralizar a arte ou mexer
com o público, tirando-o de sua cômoda posição de observador
etc. No entanto, levando-se em conta a época que esses eventos
acontecem (anos 80) e a distinção que fizemos em relação ao
happening, não podemos considerar tais intervenções como per-
formances.
31
de documentação17, é interessante, nesse momento, darmos
um breve histórico do movimento.
Pode-se associar o início da difusão da performan-
ce
18
, em 1982, com a criação quase que simultânea de
dois centros culturais: o Sesc Pompéia e o Centro Cul-
tural São Paulo. Nesses dois centros, buscou-se priorita-
riamente abrir espaço para as manifestações alternativas
que não estavam encontrando local em outros circuitos.
No Sesc Pompéia se realizam então dois eventos: as
"14 Noites de Performance" e o I Festival Punk de São
Paulo. O festival de performances do Sesc Pompéia foi
o primeiro grande evento deste tipo realizado em São Pau-
lo e contou com a participação de artistas oriundos das
várias artes: do teatro — Ornitorrinco, Manhas & Manias,
Denise Stocklos; das artes plásticas — Ivald Granatto,
Arnaldo & Go.; da dança — Ivaldo Bertazzo. Participam
também Patrício Bisso e uma série de artistas da música,
vídeo e grafismo. O evento foi uma "fusão" de mídias
e linguagens, que trouxe a oportunidade de justapor artis-
tas e pesquisas de diferentes rumos, chegando-se a resulta-
dos que caminham para a totalização das artes.
Na trilha dos Centros Culturais, e em conseqüência
de um certo sucesso da produção alternativa (principal-
mente em termos da música, com os grupos punk-new
wave), abrem-se novos espaços. Os mais importantes são,
por ordem cronológica de aparecimento, o Carbono 14,
o Napalm e o Madame Satã. Nesses espaços assiste-se a
performance, videoclips e aos grupos de rock-new wave
tupiniquins.
Em 1983, o Sesc Pompéia realiza o II Ciclo de Per-
formances. No Centro Cultural cria-se um espaço desti-
nado a essa linguagem: "o Espaço Performance". No
MIS, no mesmo ano, realiza-se o I Festival de Vídeo e do
17. De 1982 para cá, procurei acompanhar tudo o que se
realizou em termos de performance em São Paulo (que foi o
principal centro de expressão no Brasil). Esse trabalho não foi
exaustivo, mas eu o considero significativo para a pesquisa. A
possibilidade que tive de trabalhar dentro do Sesc Pompéia, como
animador cultural, bem como o fato de ter realizado performances
junto com meu grupo, me permitiram um contato mais direto
com a produção desta arte. Em anexo, relaciono o conjunto de
trabalhos e festivais acompanhados.
18. Ê claro que antes disso, artistas plásticos como Aguillar,
Granatto e outros já realizavam experiências com performances,
mas estas ficavam restritas a um circuito muito pequeno, prati-
camente só de artistas plásticos.
32
evento participam performers que utilizam tecnologia e
vídeo na sua criação — caso de Otávio Donasci com as
suas videocriaturas.
Nesse momento a performance já está devidamente in-
corporada ao cenário artístico (eixo Rio-São Paulo) viran-
do uma espécie de moda. Realizam-se uma série de even-
tos em que se experimenta de tudo: body art, teatro da
crueldade, tecnologia, arte terapia, intervenção, criação
aleatória etc. Nessa profusão de trabalhos se incluem ex-
periências que vão da alta criatividade à mediocridade.
Fechando de certa forma um ciclo, a Funarte realiza
em agosto de 1984, o seu I Festival de Performances. Par-
ticipam desse evento — Guto Lacaz, Ivald Granatto,
TVDO, Paulo Yutaka e artistas de vários Estados do Bra-
sil. Se nessa mostra não se atingiu o nível de festivais do
Sesc, tendo se realizado algumas performances bastante
primárias, o evento teve seu valor pela polêmica instau-
rada. Eis o trecho da crítica de Sheila Leirner19 que co-
briu o festival:
Lamentável. A Sala Guiomar Novaes, transformada subita-
mente numa "casa de ninguém", como palco para um desfile de
incompreensões. A começar pelo próprio conceito de performance.
Pois performance não é "qualquer coisa". A idéia de que "qual-
quer um pode fazer arte" ou de que "qualquer coisa pode ser
arte" já constituiu há algum tempo um paroxismo eficaz. Hoje,
quando já se experimentou tudo ou quase tudo, ela é uma idéia
ultrapassada, reacionária e até ideologicamente suspeita. O público
foi uma vítima. . . perdeu-se uma excelente oportunidade de reve-
lar novos conceitos e provocar a reflexão de uma audiência excep-
cionalmente receptiva.
Essa crítica de certa forma enfatiza nossa colocação
anterior e traz de volta a polêmica sobre a institucionali-
zação da arte20.
19. "A Perda de uma Excelente Oportunidade de Revela-
ção", O Estado de S. Paulo. 7.8.84.
20. A argumentação de Sheila Leirner é que faltou cura-
doria para o evento. Já Roberto Bicelli, organizador do evento,
argumentou que a performance é um movimento anárquico, não
ortodoxo como pretende a crítica, é que não cabia a ele censurar
previamente certos trabalhos inscritos para o evento. A crítica
de Sheila Leirner, levantada em 1984, tornou-se emblemática no
decorrer dos anos seguintes, pois em consqüência da série de even-
tos mal produzidos, improvisados e, principalmente, de baixa
qualidade que receberam a denominação de performance, o termo
caiu em total desgaste e passou a ser conotado como "qualquer
coisa". Isso impediu, por parte do público e dos artistas, o con-
tato com espetáculos de outro nível que também pertencem à
chamada performance art.
33
De 1984 para cá a performance se diluiu enquanto
vanguarda21, sendo em contrapartida bastante absorvida
pelas formas artísticas mais tradicionais. A nosso ver,
houve um esgotamento dos espetáculos intensamente es-
pontâneos, havendo, porém, espaço para performances
mais elaboradas (praticamente desconhecidas no Brasil).
Fica claro que sempre haverá espaço para espetáculos
que permeiem essa linguagem (do experimental, do ritual,
do sígnico) e que, com o esgotamento da performance,
algo novo se sucederá dentro da vanguarda, da mesma
forma que a performance sucedeu ao happening.
Por último, dentro do processo de pesquisa, é impor-
tante ressaltar a contribuição que minha observação prá-
tica32 trouxe para a minha pesquisa, visto que muitos
conceitos se completaram e se modificaram a partir dessa
observação "de dentro".
21. Em meados de 1988, o Madame Satã e o Espaço Off
ainda mantinham espaços para realização de performances.
22. Em Do Percurso, relaciono meus trabalhos práticos.
34
1. DAS RAÍZES:
LIVE ART — PONTE ENTRE VIDA E ARTE
O artista é um homem que não pode se
conformar com a renúncia à satisfação das pul-
sões que a realidade exige. Toda arte é o dese-
nho do desejo. O artista dá livre vazão a seus
desejos eróticos e fantasias. A realidade inter-
dita o tempo todo. Desde coação social até a
gramática. A obra de arte se caracteriza pela
transgressão, por não obedecer a gramática^-.
SIGMUND FREUD
Ontologia da Performance: Aproximação entre
Vida e Arte
Qual o desígnio da arte: representar o real? Recriar
o real? Ou, criar outras realidades?
1. Os grifos são meus.
37
Isso, sem esquecermos da questão primeira, que já
extrapola o campo da especulação estética, ou seja, de
definir o que é o real?
Tomando como ponto de estudo a expressão artística
performance, como uma arte de fronteira, no seu contínuo
movimento deruptura com o que pode ser denominado
"arte-estabelecida"2, a performance acaba penetrando por
caminhos e situações antes não valorizadas como arte. Da
mesma forma, acaba tocando nos tênues limites que sepa-
ram vida e arte.
A performance está ontologicamente ligada a um mo-
vimento maior, uma maneira de se encarar a arte; A live
art. A live art é a arte ao vivo e também a arte viva. É
uma forma de se ver arte em que se procura uma aproxi-
mação direta com a vida, em que se estimula o espontâ-
neo, o natural, em detrimento do elaborado, do ensaiado.
A live art é um movimento de ruptura que visa dessa-
cralizar a arte, tirando-a de sua função meramente estética,
elitista. A idéia é de resgatar a característica ritual da arte,
tirando-a de "espaços mortos", como museus, galerias, tea-
tros, e colocando-a numa posição "viva", modificadora.
Esse movimento é dialético, pois na medida em que,
de um lado, se tira a arte de uma posição sacra, inatingí-
vel, vai se buscar, de outro, a ritualização dos atos comuns
da vida: dormir, comer, movimentar-se, beber um copo
de água (como numa performance de George Brecht do
Fluxus) passam a ser encarados como atos rituais e artísti-
cos. John Cage diz: "Gostaria que se pudesse considerar
a vida cotidiana como teatro"3.
Dentro desse modo de encarar a arte, Isadora Duncan,
Mercê Cunninghan e outros "libertaram" de certa forma a
2. ALLAN KAPROW, o idealizador de happening, que se
autodenomina um fazedor de conceitos, estabelece o contraponto
ARTE-arte e NÃO-ARTE. A primeira, que chamamos de "arte-
estabelecida", é herdeira da arte instituída, é intencional, tem fé
e aspira a um plano superior. Exprime-se numa série de formas
e "ambientes sagrados" (exposições, livros, filmes, monumentos
etc). A não-arte engloba tudo o que não tenha sido aceito como
arte, mas que haja atraído a atenção de um artista com essa possi-
bilidade em mente (em A Educação do A-Artista). Um exemplo
claro disto são os ready-mades de Mareei Duchamp, que vão dar
um valor de objetos de arte a produtos industriais, feitos em série
e absolutamente cotidianos, como uma bicicleta ou um vaso
sanitário.
3. Material do Grupo Fluxus — Bienal 1983 (ver fontes
textuais).
38
dança, incorporando ao seu repertório movimentos e situa-
ções comuns do dia-a-dia, como andar, parar e trocar de
roupa, por exemplo. Personagens diárias (e não míticas),
como guardas, operários, mulheres gordas etc , passam a
fazer parte das coreografias. Tudo isso hoje é lugar-co-
mum na chamada "dança moderna", mas antes dessa rup-
tura, era considerado abjeto por alguns estetas.
Na música, essa ruptura se deu com Satie, Stockhausen,
John Cage e outros: silêncio, ruídos etc , passam a ser
aceitos como formas musicais. Cage introduz a aleatorie-
dade nos seus "concertos", reforçando a idéia (que se
apoia num conceito zen de vida) de uma arte não-inten-
cional.
Na literatura, podem se mencionar tanto experiências
empíricas, como a proposta surrealista da escrita automá-
tica, em que vale o jorro, o fluxo e não a construção for-
mal, quanto experiências altamente elaboradas, como as
de James Joyce que em Ulisses, por exemplo, procura
reproduzir o fluxo vital da emoção e do pensamento e
narra a epopéia de um cidadão absolutamente comum.
Nas artes plásticas esse processo de entropização4 é
quase automático. Podemos citar todos os movimentos da
arte moderna (cubismo, dadaísmo, abstracionismo etc.)
que guardam uma relação modificadora com o objeto re-
presentado5.
É também nas artes plásticas que surge o conceito de
action painting passando pelos assemblages e environ-
ments6 que vão desaguar na body art e na performance,
em que o artista passa a ser sujeito e objeto de sua obra.
No teatro, e de uma forma mais global nas artes cê-
nicas, essa quebra com o formalismo, com as convenções
4. Entropia é a medida de desorganização. O aumento de
entropia corresponde ao aumento de desordem e também a maio-
res graus de liberdade na criação.
5. É importante discutir um paradoxo dentro de nossa con-
ceituação de íive art. Apesar de a mesma essencialmente buscar o
vivo, a aproximação entre vida e arte, ela se afasta de toda
tentativa de representação do real. Todo movimento dito "realista"
é divergente das idéias da live art. Um quadro realista visa repre-
sentar o objeto, da forma mais fiel possível. Essa representação,
em si, é a morte do objeto. Nesse sentido, responderíamos às
formulações iniciais, podendo colocar a função da arte dentro
dessa concepção como sendo a de uma reelaboração do real (a
obra de arte tem vida própria, não se limita a representar o
objeto) e não uma representação do real.
6. A action painting é a pintura instantânea, que é reali-
zada como espetáculo na frente de uma audiência. O seu ideali-
39
que "amarram" a linguagem7 só vem a ser concretizada
nos anos 60 com o happening e o teatro experimental de
grupos como o Living Theatre e o La Mamma por
exemplo.
Das Raízes: Uma Arte de Ruptura
De uma forma cronológica, podemos associar o início
da performance6 com o século XX e o advento da moder-
nidade9.
A rigor, antropologicamente falando, pode-se conjugar
o nascimento da performance ao próprio ato do homem
zador é Jackson Pollock e no Brasil, Aguillar, que se dedicou a
essa forma de trabalho. A assemblage é uma espécie de escultura
ambiental onde pode ser usado qualquer elemento plástico-senso-
rial. O environment é uma evolução desta e ambas caminham para
o que hoje se designa por inslalação, que vem a ser uma escultura-
signo-interferente, que muitas vezes vai funcionar como o cenário
para o desenrolar da performance. (Para um acompanhamento
detalhado dessas transições sugerimos a leitura de A Arte da Per-
formance de JORGE GLUSBERG, São Paulo, Perspectiva, 1987,
Debates 206.)
7. Através da história do teatro, existem inúmeras "que-
bras" com a linha convencional, como o teatro expressionista,
e teatro do absurdo etc. Da mesma forma, existem gêneros que
exploram a espontaneidade e escapam das convenções mais pesa-
das do teatro, como a comedia deWarte ou o teatro de rua, por
exemplo. Mas é no happening que essa quebra com a convenção
teatral é mais radical: não existe a clara distinção palco-platéia,
ela é rompida a qualquer instante, confundindo-se atuante e
espectador, não existe nenhuma estruturação de cena que siga as
clássicas definições aristotélicas (linha dramática, continuidade de
tempo e espaço etc), não existe a distinção personagem atuante
etc.
É importante ressaltar que, em termos de radicalidade, o
happening é o momento maior, e que na passagem do happening,
dos anos 60. para a performance, dos anos 70, há um retrocesso
em relação à quebra com as convenções, havendo um ganho, em
contrapartida, de esteticidade.
8. Estamos vinculando a performance à tive art e utilizan-
do a conceituação de Rose Lee Goldberg (Performance Live Art
1909 to the Present), que recorre ao artifício de aplicar o termo
performance (que só vai ser veiculado nos anos 70) a todas as
manifestações predecessoras.
9. A rigor, o início da modernidade nas artes cênicas é
associado à apresentação de Vbu Rei, de Alfred Jarry, em 1896,
no Théâtre de L'Oeuvre em Paris, peça que rompe completa-
mente os padrões estéticos da época, trazendo a semente do que
iria acontecer no próximo século.
40
se fazer representar (a performance é uma arte cênica) e
isso se dá pela institucionalização do código cultural10.
Dessa forma, há uma corrente ancestral da performance
que passa pelos primeiros ritos tribais, pelas celebrações
dionisíacas dos gregos e romanos, pelo histrionismo dos
menestréis e por inúmeros outros gêneros, calcados na in-
terpretação extrovertida, que vão desaguar no cabaret do
século XIX e na modernidade.
No século XX a arte de performance se desenvolve
na sua plenitude. Através das décadas, o movimento cami-
nha sob várias formase por diversos países. Procuraremos,
nesse breve resumo, focar os fluxos de maior criatividade
e significação artística por onde o movimento se desloca,
de uma forma que se possa entender o elo entre os pri-
meiros trabalhos da década de 1910 e a performance
contemporânea.
O movimento futurista italiano, na década de 1910,
marca o início de atividades e idéias organizadas. Mari-
netti lança o Manifesto Futurista, e no movimento agru-
pam-se pintores, poetas, músicos e artistas das mais
diversas artes. A prática resulta em seratas onde se exe-
cutam recitais poéticos, música e leitura de manifestos.
A proposta futurista radicalizava os conceitos vigentes de
arte, não apenas na idéia (proposta de peças-sínteses de
trinta segundos, por exemplo) mas também na prática (a
prática das seratas não era nada convencional, muitas ve-
zes terminando em escândalos e pancadarias). O movi-
mento futurista italiano repercute em toda a Europa,
principalmente na França e na Rússia, onde Maiakóvski
vai liderar um movimento altamente revolucionador.
O ano de 1916 marca a abertura do Cabaret Voltaire
em Zurique. Hugo Bali e Emmy Hennings trazem a idéia
de Munique onde acompanharam as inovadoras experiên-
cias dramatúrgicas de Wedekind, calcadas nos teatro-
cabarets da cidade. No Cabaret Voltaire, que atrai artistas
da Europa inteira fugidos da guerra para a neutra Suíça,
vai se dar a germinação do movimento Dada. Nos cinco
10. Nesse processo de instalação da cultura, usando a ter-
minologia de Nietzsche, existiria uma síntese dialética de duas
energias dicotômicas: o apolíneo e o dionisíaco. Ambas são ma-
trizes das artes cênicas e do teatro. O apolíneo dirigindo a orga-
nização, a mensagem, a razão, e o dionisíaco a pulsão. a emo-
ção e o irracional. Nesse ponto há a separação: o teatro clássico.
calcado na organização aristotélica, se apoia numa forma mais
apolínea e a performance (assim como uma parte do teatro)
resgata a corrente que se reporta ao ritual, ao dionisíaco.
4)
meses de existência do cabaret se experimenta de tudo, de
expressionismo ao rito, do guinol ao macabro. Artistas de
peso, das mais diversas artes, que vão germinar as idéias
das próximas décadas se confrontam no cabaret: Kan-
dinsky, Tristan Tzara, Richard Huelsenbeck, Rudolf von
Laban, Jean Arp, Blaise Cendras, para citar alguns.
Ao fim dessa experiência, o Dada já se espalha pela
Europa e, com Paris, tornando-se o principal eixo de ati-
vidades. Em 1917, acontecem dois lançamentos importan-
tes: as estréias de Parade de Jean Cocteau e Les Mamelles
de Tirésias de Apollinaire, que revolucionam o conceito
de dança e de encenação. As duas peças causam espanto
no público parisiense e principalmente a segunda é rece-
bida com amplos protestos (o público a toma como uma
afronta).
Com esses espetáculos e com o lançamento da revista
Littérature por André Breton, Paul Elouard, Philippe
Soupault e Louis Aragon, começam a se criar as bases
para o advento do movimento surrealista.
Em termos cênicos, o surrealismo vai seguir como
tática e ideologia a estética do escândalo. O ingrediente
é o de lançar provocação contra as platéias. O surrealismo
ataca de forma veemente o realismo no teatro. Inovações
cênicas são testadas, como a de se representar multidões
numa só pessoa, apresentar-se peças sem texto, ou perso-
nagens-cenário fantásticos.
A maioria das peças apresentadas na Salle Gaveau, em
1920, tomam emprestada a estrutura do vaudeville, em
que um mestre de cerimônias explica cada seqüência (lo-
gicamente sem um nexo) e os outros atores "demonstram"
a idéia.
As peças surrealistas acontecem tanto em edifícios-
teatro, quanto em caminhadas de demonstração dos líde-
res do movimento, e visam, através do escândalo, chamar
a atenção para as propostas do movimento, tanto a nível
ideológico quanto artístico. É clara a identificação entre
as atitudes dos surrealistas, nos anos 20 e os futuros hap-
penings, dos anos 60.
Paralelamente ao surrealismo, a Bauhaus alemã desen-
volve importantes experiências cênicas, que se propõem
integrar, num ponto de vista humanista, arte e tecnologia.
A Bauhaus é a primeira instituição de arte a organizar
workshops de performance. Oskar Schlemmer, que dirige
a seção de artes da Bauhaus, cria espetáculos como o
42
Ballet Triádico (1922) e Treppenwits (1926-1927), até
hoje não superados dentro de sua linha de pesquisa. Em
1933, com o advento do nazismo, a escola é fechada,
praticamente encerrando com isto o capítulo europeu das
performances.
A partir daí, o eixo principal do movimento se des-
loca para a América, com a fundação, em 1936, na Caro-
lina do Norte, da Black Mountain College. O objetivo da
instituição é o de desenvolver a experimentação nas artes
e de incorporar a experiência dos europeus (grande parte
dos professores da Bauhaus se transfere para lá).
Dois artistas exponenciais, na arte de performance, vão
emergir da Black Mountain College: John Cage e Mercê
Cunninghan. Cage tenta fundir os conceitos orientais para
a música ocidental, incorporando aos seus concertos silên-
cios, ruídos e os princípios zen da não previsibilidade.
Cunninghan propõe uma dança fora de compasso (não
segue a música que a orquestra) e não coreografante,
abrindo, nessa quebra, passos importantes para o movi-
mento da dança moderna.
A partir da escola, o eixo se desloca para New York,
com os artistas realizando uma série de espetáculos, que
em 1959 vão ganhar um novo nome-conceito: happening.
Allan Kaprow realiza na Reuben Gallery, em New York,
seu 18 Happening in 6 Parts, encetando um novo con-
ceito de encenação que vai ser propagado através da dé-
cada seguinte.
A tradução literal de happening é acontecimento, ocor-
rência, evento. Aplica-se essa designação a um espectro
de manifestações que incluem várias mídias, como artes
plásticas, teatro, art-collage, música, dança etc.11.
Com o florescimento da contracultura e do movimento
hippie, os anos 60 vão ser marcados por uma produção
maciça, que usa a experimentação cênica como forma de
se atingir as propostas humanistas da época. Vários artis-
tas buscam conceituar essas novas tendências de multilin-
guagem: Joseh Beuys as chama de Aktion (para ele o
ponto central seria a ação). Wolf Vostell de de-collage
(prevalecendo a fusão). Claes Oldemburg usa pela pri-
meira vez o termo performance (valorizando a atuação).
11. Mesmo com essa fusão, o happening mantém como
princípio aglutinador sua característica de arte cênica, conservan-
do, da forma mais livre possível, a tríade que definimos na Intro-
dução (atuante-texto-público).
43
O happening, que funciona como uma vanguarda cata-
lisadora, vai se nutrir do que de novo se produz nas diver-
sas artes: do teatro se incorpora o laboratório de Gro-
towski, o teatro ritual de Artaud, o teatro dialético de
Brecht; da dança, as novas expressões de Martha Grahan
e Yvonne Rainier, para citar alguns artistas. É das artes
plásticas que irá surgir o elo principal que produzirá a
performance dos anos 70/80: a action painting. Conforme
já comentado, Jackson Pollock lança a idéia de que o artis-
ta deve ser o sujeito e objeto de sua obra. Há uma transfe-
rência da pintura para o ato de pintar enquanto objeto
artístico. A partir desse novo conceito, vai ganhar impor-
tância a movimentação física do artista durante sua "ence-
nação". O caminho das artes cênicas será percorrido então
pelo approach das artes plásticas: o artista irá prestar
atenção à forma de utilização de seu corpo-instrumento, a
sua interação com a relação espaço-tempo e a sua ligação
com o público. O passo seguinte é a body art (arte do
corpo) em que se sistematizam essa significação corporal
e a inter-relação com o espaço e a platéia. O fato de se
lidar com os velhos axiomas da arte cênica, sob um novo
ponto de vista (o ponto de vista plástico), traz uma série
de inovações à cena: o não-uso de temasdramatúrgicos,
o não-uso da palavra impostada, para citar alguns exem-
plos12.
A partir da década de 70, vai-se partir para experiên-
cias mais sofisticadas e conceituais (a nível de signo, por
exemplo) que irão, para isso, incorporar tecnologia e in-
crementar o resultado estético. É o início do que os ame-
ricanos chamam de performance art13.
12. Simples movimentações espaciais, por exemplo, criam
peças de alia densidade dramática. Muitos artistas, como Laurie
Anderson. usam microfones e nunca passou pela cabeça deles a
preocupação de impostar a voz e de usar todos esses recursos que
o teatro considera axiomáticos.
13. Conforme já comentamos, no Brasil, sob o termo per-
formance, agrupam-se tanto experiências desse tipo, quanto even-
tos mais rudimentares que guardam maior pertinência com as fases
anteriores do movimento. É importante ressaltar também, no caso
brasileiro, o trabalho singular e pioneiro de artistas como Flávio
de Carvalho, e posteriormente de Hélio Oiticica e Ligia Clark
que influenciaram as gerações seguintes.
44
Movimentos Congêneres: Da Contracultura à Não-Arte
É importante enfatizar o papel de radicalidade que a
performance, como expressão, herda de seus movimentos
predecessores: a performance é basicamente uma linguagem
de experimentação, sem compromissos com a mídia, nem
com uma expectativa de público e nem com uma ideologia
engajada. Ideologicamente falando, existe uma identifi-
cação com o anarquismo que resgata a liberdade na cria-
ção, esta a força motriz da arte.
A arte, como formula Freud, caminha com base no
princípio do prazer e não no princípio de realidade. O
artista lida com a transgressão, desobstruindo os impedi-
mentos e as interdições que a realidade coloca (a obra de
arte vai se caracterizar por ser uma outra criação: se eu
vejo uma paisagem que objetivamente é verde, sob uma
ótica vermelha, nada me impede de pintá-la assim).
O trabalho do artista de performance é basicamente
um trabalho humanista, visando libertar o homem de suas
amarras condicionantes, e a arte, dos lugares comuns im-
postos pelo sistema. Os praticantes da performance, numa
linha direta com os artistas da contracultura, fazem parte
de um último reduto que Susan Sontag14 chama de "he-
róis da vontade radical", pessoas que não se submetem
ao cinismo do sistema e praticam, à custa de suas vidas
pessoais, uma arte de transcendência.
Ao trilhar o caminho do princípio do prazer15, a per-
formance resgata as idéias de uma prática da arte pela
arte. Ou seja, a arte não se submetendo a ditames exter-
nos: não se faz uma comédia de costumes ao gosto comer-
cial, nem um texto ideológico que fomente a conscienti-
zação política, nem uma montagem dramatúrgica regiona-
lista. A performance trabalha ritualmente as questões
existenciais básicas utilizando, para isso, recursos que vão
desde o Teatro da Crueldade até elaborados truques
sígnicos.
A apresentação de uma performance muitas vezes
causa choque na platéia (acostumada aos clichês e à pre-
visibilidade do teatro). A performance é basicamente uma
14. Styles ofRadical Will.
15. Na verdade, a performance atua dialeticamente tanto
a nível do princípio do prazer — com um fluxo criativo e um
processo de atuação dionisíaco, quanto a nível do princípio de
realidade — com uma clara preocupação de organização da men-
sagem elaborada.
45
arte de intervenção, modificadora, que visa causar uma
transformação no receptor. A performance não é, na sua
essência, uma arte de fruição, nem uma arte que se pro-
ponha a ser estética (muito embora, como já levantamos,
se utilize de recursos cada vez mais elaborados para con-
seguir aumentar a "significação" da mensagem).
A performance está ideologicamente ligada à não-arte,
proposta por Kaprow, na medida que, como nesta, vai
contra o profissionalismo e a intencionalidade na arte: o
que diferencia o praticante da não-arte, que ele vai cha-
mar de a-artista, do artista praticante da arte-arte, é a
intencionalidade. O a-artista não se coloca como um pro-
fissional. Tanto que a mensagem final de Kaprow é "Artis-
tas do mundo. Caiam fora. Vocês nada têm a perder senão
suas profissões".
No seu manifesto, falando da não intencionalidade da
arte, Kaprow dá os seguintes exemplos:
. . . É difícil deixar de admitir que o diálogo transmitido entre o
Centro Espacial de Houston e os astronautas da Apoio 11 é me-
lhor que a poesia contemporânea.
. . . que os movimentos aleatórios entrelaçados dos fregueses de
um supermercado são mais ricos que qualquer dança contempo-
rânea.
Nesse sentido os conceitos da não-arte se aproximam
dos conceitos da Vive art, ou seja, pelos exemplos citados,
escolhidos entre dezenas de outros exemplos do Manifesto,
a própria vida, em certos instantes, é arte, e supera ao
mesmo tempo tentativas arbitrárias (no sentido de não
partirem de um impulso verdadeiro) de imitá-las.
O praticante da não-arte, e da mesma forma o per-
former, trabalha nesse tênue limite da espontaneidade
como no exemplo do movimento dos fregueses de super-
mercado que incidentalmente se tornou coreográfico, ou
de um artista improvisando sketches para um público, sem
perder ao mesmo tempo sua dimensão de verdade.
46
2. DA LINGUAGEM:
PERFORMANCE—COLLAGE COMO ESTRUTURA
<í-%
9'ÍS
Í-V
&v
A performance é uma pintura sem tela, uma
escultura sem matéria, um livro sem escrita, um
teatro .sem enredo. . . ou a união de tudo isso. . . 1
Da Legião Esirangeira das Aries:
Criação de um /Inrí-Gesamtkunstwerk
Arte de fronteira. Teatro de imagens. Arte não-inten-
cional. Minimalismo. Intervenção. Blefe. Afinal, o que é
performance? Talvez um pouco de tudo isso.
Antes de mais nada é preciso fazer-se um adendo: mais
do que definir e delimitar a extensão da expressão artís-
tica performance — o que por si só já constituiria uma
tarefa paradoxal, na tentativa de se decupar o que busca
escapar do analítico, de sermos normativos com uma arte
que na sua essencialidade procura escapar de definições
1. SHEILA LEIRNER. "A Perda de uma Excelente Opor-
tunidade de Revelação". O Estado de S. Paulo. 07.08.1984.
e rotulações extintoras — é nossa intenção apontar, atra-
vés da observação de diversos espetáculos, a estrutura e,
mais do que isso, a ideologia que está por trás da expres-
são artística performance, e ao mesmo tempo, com essa
análise, enfocar todo um riquíssimo universo de criação
ainda parcialmente desconhecido do grande público no
Brasil.
Por sua forma livre e anárquica, a performance abriga
um sem número de artistas oriundos das mais diversas lin-
guagens, tornando-se uma espécie de "legião estrangeira
das artes"2, do mesmo modo que incorpora no seu reper-
tório manifestações artísticas das mais díspares possíveis.
Essa "babel" das artes não se origina de uma migração
de artistas que não encontram espaço nas suas linguagens,
mas, pelo contrário, se origina da busca intensa, de uma
arte integrativa, uma arte total, que escape das delimi-
tações disciplinares.
Como diz Aguillar3:
A performance utiliza uma linguagem de soma: música, dan-
ça, poesia, vídeo, teatro de vanguarda, ritual. . . Na performance
o que interessa é apresentar, formalizar o ritual. A cristalização
do gesto primordial.
A idéia de uma interdisciplina é fundamental:
. . . teatro, vídeo e filmes são empregados, mas nenhum
deles como forma única de expressão pode ser considerado per-
formance. Isso é típico do ideal pós-moderno, que erradica dis-
ciplinas categoricamente distintas4.
A idéia da interdisciplina como caminho para uma
arte total aparece na performance como uma espécie de
reversão à proposta da Gesamtkunstwerk de Wagner. Na
concepção da ópera wagneriana esse processo de uso de
várias linguagens é harmônico: a música se integra com
a dança, ambas são suportadas por um cenário, uma ilu-
minação, uma plástica que se compõe num espetáculototal. Na performance — e a "ópera de Bob Wilson" é
o melhor contra-exemplo disto — utiliza-se uma fusão de
linguagens (dança, teatro, vídeo etc.) só que não se com-
pondo de uma forma harmônica, linear. O processo de
composição das linguagens se dá por justaposição, cola-
2. AGUILLAR, em roteiro de A Noite do Apocalipse Final,
performance apresentada por Aguillar e a Banda Perfomática.
3. Op. cit.
4. SHEILA LEIRNER, uri. cit.
50
gem: na ópera Einstein on The Beach (1976)5, por exem-
plo, a música que é composta por Philip Glass não é utili-
zada como marcação para dança; apesar de elas ocorrerem
simultaneamente, a dança não coreógrafa a música. Cada
elemento cênico do espetáculo tem um valor isolado e
um valor na obra total (por exemplo: os móveis, que são
especialmente desenhados para a peça, são apresentados
isoladamente em galerias de arte), produzindo na sua in-
tegração uma leitura de maior complexidade sígnica, ao
mesmo tempo que se evita a redundância da ópera wag-
neriana.
Na arte de performance vão conviver desde "espe-
táculos" de grande espontaneidade e liberdade de exe-
cução (no sentido de não haver um final predeterminado
para o espetáculo) até "espetáculos" altamente formali-
zados e deliberados (a execução segue todo um roteiro
previamente estabelecido e devidamente ensaiado).
A seguir, analisaremos, aprioristicamente, três exem-
plos de espetáculos que apresentam diferenças radicais
entre si. Isto permitirá apontar alguns traços comuns que
dão contigüidade entre trabalhos tão diferentes enquanto
expressão.
1. New York (René Block Gallery) — Maio de 1974
A "performance"6 se inicia no Aeroporto John
Kennedy. Joseph Beuys7 chega da Alemanha e desce
5. Muitos dos conceitos e notas sobre o processo de cria-
ção de Bob Wilson vêm do curso de pós-graduação "Robert Wil-
son — Processos Criativos em Multimídia" elaborado pelo Pro-
fessor Luiz Roberto Galizia que trabalhou diretamente com Bob
Wilson e que constam de seu livro Os Processos Criativos de
Robert Wilson lançado pela Perspectiva. A descrição da peça
citada aparece em ROBERT STEARNS, Robert Wilson - From a Theatre
of Imagens, pp. 47-52.
6. Estou usando o termo entre aspas porque mais adiante
discutirei se este tipo de espetáculo pode ser classificado como
performance.
7. Completamente avesso às instituições e à exploração das
artes, considerado louco por muitos, Joseph Beuys, artista ale-
mão, recentemente falecido, constitui-se, como lançador e exe-
cutor de idéias, numa das mais importantes referências da con-
tracultura. Antiacadêmico por natureza Beuys vai até o paro-
xismo para demonstrar suas idéias. Sua obra, de um realismo cho-
cante, tem como objetivo um profundo humanismo. Para ele, a
função da arte é revolucionar o pensamento humano, libertando
o homem de suas amarrações. A descrição dessa performance
e da obra de Beuys aparece em CAROLINE TISDALL, Joseph
Beuys.
51
do avião enrolado dos pés à cabeça em feltro (ele
comenta mais tarde que esse material representava
para ele um isolante tanto físico quanto metafórico).
Do aeroporto, Beuys é carregado numa ambulância
(ele já chega em más condições físicas por causa do
feltro) para o espaço onde irá conviver com um coio-
te selvagem por um período de sete dias.
Durante esse tempo, os dois estiveram isolados
de outras pessoas, sendo separados do público visi-
tante da galeria por uma pequena cerca de arame.
Os rituais diários de Beuys incluíam uma série de
interações com o coiote (ver foto), onde eram "apre-
sentados" objetos para o animal — feltro, uma ben-
gala, luvas, uma lanterna elétrica e o Wall Street
Journal (entregue diariamente). O jornal era rasga-
do e urinado pelo animal, numa espécie de reconhe-
cimento, à sua maneira, pela presença humana.
Essa "performance" se denominou Coyote: I Like
America and America Likes Me.
Coyote. . . — Performance de Joseph Beuys.
52
2. Paris (Centre Pompidou) — Abril de 1979
O grupo de Richard de Marcy apresenta a performace
Disparitions (Disappearances). O roteiro dessa performan-
ce é baseado no poema The Hunting of the Snark (A Ca-
çada do Turpente) de Lewis Caroll e o relato que apre-
sentamos a seguir é transcrito da descrição de Patrice
Davis8:
Sentado frontalmente em bancadas o público
observa, do andar de cima, o espaço da performance:
uma larga extensão (230m2) parcialmente inundada.
Essa superfície aquática não alude à representa-
ção mimética de um rio ou um lago, mas, pelo con-
trário, define claramente, através da região artifi-
cialmente inundada, os limites utilizáveis como es-
paços da performance.
Os objetos (barracas, carro, mesa, cadeiras, es-
crivaninhas) não são decididamente objetos náuti-
cos: a disposição geométrica dos objetos, disfarça-
damente aleatória, dá uma sensação de poder, de
hierarquia9.
A superfície aquática dá uma impressão de um
assustador vazio — o vazio da folha branca de papel
antes do ato criativo — um vazio que os performers
não tentam preencher com atividades e movimentos
preestabelecidos.
Os reflexos da água são projetados em três di-
mensões, que foram divididas, através de biombos,
em numerosas telas posicionadas em diferentes dire-
ções, com o intuito de captar as imagens e sombras
projetadas.
Esse espaço, expandido em três dimensões, ime-
diatamente sugere a metáfora de um espaço que deve
ser preenchido com impressões visuais, de um espa-
ço polimorfo a ser ocupado, e de uma partitura mu-
sical através da qual a performance irá fluir. Essa
metáfora musical é rapidamente confirmada pela
disposição espacial dos seis performers. Sob a dire-
ção do capitão, meüeur en scène (diretor) e metteur
en abyme (condensador de imagens) da história, eles
se posicionam em frente a seus respectivos instru-
8. "Performance Toward a Semiotic Analysis", The Drama
Review, p. 94.
9. Isso pode ser observado na foto de abertura deste capí-
tulo, referente à performance descrita.
53
mentos — num semicírculo, da esquerda para a di-
reita, eles são: o padeiro, em frente a uma velha
máquina de coser, o açougueiro, afiando sua faca
numa meseta, o coureiro conscientemente enchendo
a piscina de água; o capitão movendo-se de um
"músico" para outro e organizando a caçada do tur-
pente10.
O texto, especialmente quando se refere ao leit-
motiv do turpente, é dito seqüencialmente pelas per-
sonagens, e em cada caso isso é feito através de uma
composição específica de gesto, dicção e ação.
Como no poema de Lewis Carroll, o texto é
dividido em oito espasmos ("crises") que contam as
desventuras da tripulação.
Essa mesma divisão, repetida no espaço inteiro,
produz o efeito de um puzzle composto de palavras,
gestos e imagens.
3. São Paulo (VII Bienal de Artes de São Paulo)
— Outubro de 1983
As performances que descrevemos a seguir11 foram
realizadas pelos integrantes do Grupo Fluxus especialmen-
te convidados para VII Bienal. Elas se desenvolveram no
andar térreo do edifício da Bienal, no que se denominou
"espaços-fluxus", espaço esse não delimitado por luz ou
qualquer outro tipo de marcação. Segue-se o relato do
acontecido.
Num determinado instante, iniciam-se simultanea-
mente duas performances: Ben Vautier senta-se ao
piano e fica dedilhando continuamente a mesma nota;
a seu lado, Walter Marchetti senta-se numa cadeira
e começa a juntar latas de alimento espalhadas a seus
pés: à medida que suas mãos vão se enchendo de
latas, estas começam a "escorregar" e ele recomeça
a tarefa de pegar as latas. O "trabalho" realizado
num gesto contínuo (como um Sísifo), somado à ex-
pressão do artista e ao som seco das latas caindo no
chão, produz uma sensação de angústia. Nesse ins-
tante Wolf Vostell inicia a sua performance provo-
10. Na versão brasileira do poema de Carroll o neologismo
snark (snake + shark) foi muito bem traduzido por Álvaro Antu-
nes para turpente (Tubarão 4- Serpente).Em A Caça ao Tur-
pente, Ed. Interior.
11. Estive presente nesse evento.
54
cando o deslocamento do público para um espaço
vizinho. A sua performance consiste em atirar lâm-
padas num anteparo de vidro (foto).
O ruído e a sensação de explosão produzem alí-
vio e prazer na platéia, talvez pelo contraponto da
performance anterior. O conjunto das performances
apresentadas pelos Fluxus não dura mais que dez
minutos.
Performance de Wolf Vostell.
A partir desses três exemplos, podemos tentar estabe-
lecer alguns traços de contigüidade que permitam caracte-
rizar todos esses "espetáculos" como performance. Antes
disso, seria interessante discutirmos, a nível de referên-
cia, duas definições de performance:
• • • teatro total, desafiando qualquer classificação porque inclui
todas as artes, ou. . . uma arte ao vivo que é justamente o opos-
to da Gesamlkunstwerk. . ,12.
12. SALLY BANES, "Performance Anxiety", The Village
Voice, 30.12.81, p. 27. Sally Banes é crítica de dança. In XERXES
MEHTA, Versions of Performance Art, p. 192.
55
uma forma antiteatral na qual convivem ilusão com tempo real.
personagem com pessoa, marcação c o m espontaneidade, o enge-
nhoso com o banal. A idéia vale mais que a execução. . . É uma
espécie de interarte... 13.
A nosso ver, essas definições são complementares e
reforçam idéias apresentadas na Introdução deste traba-
lho. Pode-se considerar a performance como uma forma
de teatro por esta ser, antes de tudo, uma expressão cê-
nica e dramática — por mais plástico ou não-intencional
que seja o modo pelo qual a performance é constituída,
sempre algo estará sendo apresentado, ao vivo, para um
determinado público, com alguma "coisa" significando
(no sentido de signos); mesmo que essa "coisa" seja um
objeto ou um animal, como o coiote de Beuys. Essa "coi-
sa" significando e alterando dinamicamente seus signifi-
cados comporia o texto, que juntamente com o atuante
("a coisa") e o público, constituiria a relação triádica for-
mulada como definidora de teatro.
Nesse sentido é fácil ver que a performance está
muito mais próxima do teatro do que das artes plásticas,
que é uma arte estática — é claro que é muito diferente
observar uma figura humana interagindo com um coiote
do que observar um quadro ou uma escultura14.
Da mesma forma, quando a performance pende para
um discurso visual — não-verbal — composto a partir
do movimento dos atuantes, é a intenção dramática que
vai aproximá-la mais do teatro do que da dança. Disap-
pearances é um bom exemplo disto, ficando caracterizada
esta "teatralidade" tanto pela linguagem utilizada pelos
performers (gesto, entonação, ação etc.) quanto pela com-
posição da mise en scène.
Por outro lado, pode se considerar a performance uma
linguagem antiteatral, na medida em que procura esca-
13. BONNIE MARRANCA, "The Politics of Performance",
Performing Arts Journal, 16, p. 62. Bonnie Marranca tem vários
ensaios sobre a arte de performance. Idem.
14. Essa comparação não é totalmente precisa, na medida
em que um quadro ou uma escultura também poderiam funcionar
como instalação no contexto de uma performance. Na verdade,
o que distancia a performance das artes plásticas e a aproxima
do teatro é o contexto com que esses signos são introduzidos, con-
texto este que está ligado ao que se constitui na "linguagem
teatral", que é composto de uma série de características como a
dinamicidade, a tridimensionalidade, a atemporalidade etc.
É importante lembrar também que, como estamos tratando
de uma conceituação topológica. estamos nos utilizando aqui de
exemplos extremos.
56
par de toda uma vertente teatral (e que é a mais aceita
enquanto teatro) que se apoia numa dramaturgia, num
tempo-espaço ilusionista e numa forma de atuação em que
prepondera a interpretação (na medida em que se cami-
nha em cima da personagem)15.
Não obstante ser importante perceber por qual lin-
guagem passa mais próximo a linguagem híbrida da per-
formance, este tipo de distinção torna-se difícil e inopor-
tuna em alguns casos, tanto pela já mencionada busca
de integração das artes quanto pela característica "dioni-
síaca" (no sentido de se escapar do rótulo e da forma
caracterizante) da performance. Um diretor como Bob Wil-
son, por exemplo, funde propositadamente as linguagens
da dança e do teatro, sendo muito difícil dizer até onde
vai uma e onde começa a outra.
A performance se estrutura, portanto, numa lingua-
gem "cênico-teatral" e é apresentada na forma de um
mixed-media onde a tonicidade maior pode dar-se em
uma linguagem ou outra, dependendo da origem do artis-
ta (mais plástica no Fluxus, mais teatral em Disappea-
rances).
Feitas essas distinções, podemos apresentar alguns tra-
ços que caracterizam a linguagem performance e que são
comuns aos três espetáculos:
A performance não se estrutura numa forma aristo-
télica (com começo, meio, fim, linha narrativa etc), ao
contrário do teatro tradicional. O apoio se dá em cima
de uma collage como estrutura e num discurso da mise
en scène.
Em Disappearances temos um exemplo desse "discur-
so da mise en scène": os atores compõem caracteres que
são carregadores de signos. Esses signos podem ser me-
tamorfoseados durante a peça. O açougueiro e o cozi-
nheiro, num determinado momento, se transformam em
porcos e tomam contato com a água. A superfície inun-
dada funciona como um hipersigno. Não existe lineari-
dade temática e sim um leitmotiv que justifica o enca-
deamento da ações. O leitmotiv no caso é a caçada ao
turpente, e o espetáculo se suporta com base em um dis-
curso visual:
separado, solto do espaço e da continuidade lógica da ação, o
discurso visual finalmente cria uma corrente que cativa a aten-
15. No Cap. 3 voltamos com mais detalhe a essa questão.
57
ção porque está separado do discurso lingüístico e conectado com
a estrutura da fantasia e da imaginação 16.
Na performance existe uma ambigüidade entre a fi-
gura do artista perjormer e de uma personagem que ele
represente17.
Na performance de Joseph Beuys quem está lá é o
próprio artista e não alguma personagem. É importante
distinguir, no entanto, que à medida que Beuys metafori-
camente está representando (simbolizando) algo com suas
ações, quem está lá é um "Beuys ritual" e não o "Beuys
do dia-a-dia".
Para se compreender melhor esta questão, é interes-
sante ter como referência a Teoria de Papéis. Os papéis
que estão presentes não ficam apenas a nível da dicoto-
mia ator-personagem. O que existe é uma multifragmen-
tação, isto é, existem vários níveis de "máscaras".
O performer, enquanto atua, se polariza entre os pa-
péis de ator e a "máscara" da personagem. A questão
é que o papel do ator também é uma máscara. E é impor-
tante clarificar-se essa noção; quando um performer está
em cena, ele está compondo algo, ele está trabalhando
sobre sua "máscara ritual" que é diferente de sua pes-
soa do dia-a-dia. Nesse sentido, não é lícito falar que o
performer é aquele que "faz a si mesmo" em detrimen-
to do representar a personagem. De fato, existe uma rup-
tura com a representação, como demonstramos no capí-
tulo seguinte, mas este "fazer a si mesmo" poderia ser
melhor conceituado por representar algo (a nível de sim-
bolizar) em cima de si mesmo. Os americanos denomi-
nam esta auto-representação de self as context18.
É lógico que o que Beuys faz na sua performance
é diferente do seu fazer cotidiano. Não existe esse natu-
ralismo na performance (aliás, o Naturalismo, enquanto
movimento estético, é uma das tendências que sofre maio-
res ataques por parte dos praticantes de performance).
Esse processo de atuação seria semelhante ao dos ín-
dios que se "pintam" para ir à guerra ou às cerimônias
religiosas.
16. PATRICE DAVIS, Op. cil.
17. No Capítulo 3 tratamos com detalhe esta questão.
18. RICHARD SCHECHNER, "Post Modem Performance
Two Views", Performings

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