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A ética em psicanálise

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A ÉTICA EM PSICANÁLISE
AULA 1
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Prof. Leandro Amorim
CONVERSA INICIAL
Este estudo é uma oportunidade de aproximá-lo ao perfil desejado do egresso de um curso de graduação em psicanálise. A ética na psicanálise está alinhada não apenas à formação do analista mas também à atuação em uma sociedade que evolui em seus princípios morais. Sendo assim, é esperado que o psicanalista esteja apto para se inserir nessa sociedade, sendo parte dela, mas atuando de modo a torná-la mais ética, ou seja, contribuindo para que os valores morais que regem o comportamento das pessoas sejam postos em reflexão constante.    
Nesta abordagem, vamos refletir sobre o que é moral e o que é ética. Vamos conhecer os elementos que servem de referência para a atuação do psicanalista, apresentar as recomendações para o exercício da psicanálise feitas por Freud, bem como os compromissos assumidos pelos psicanalistas em relação à Declaração de Direitos Humanos e o alinhamento dos psicanalistas a outros acordos, estatutos, leis e princípios relacionados ao tema. Vamos ainda dar alguns exemplos considerados hoje como falta de ética e saber como são disciplinados, fiscalizados e penalizados.
O objetivo central do nosso estudo é contribuir para que você consiga definir os valores fundamentais na psicanálise, ser capaz de justificar, defender e assumir compromisso com o legado psicanalítico; situar sua formação como analisando e reconhecer seu percurso como analista. Espera-se ainda que você situe a psicanálise no contexto dos direitos humanos, nas relações étnico-racionais, nas relações de poder e nas discussões bioéticas.
Nesta abordagem, serão realizadas delimitações conceituais sobre valores morais, ética e sobre as recomendações para o exercício da psicanálise.
TEMA 1 – ÉTICA E MORAL: QUESTÕES VITAIS E TEMPORAIS
É muito comum em nosso cotidiano ouvirmos ou usarmos a expressão falta de ética, sinalizando a indignação em relação ao comportamento alheio. Se a ética era um campo de conhecimento de estudiosos e especialistas – como psicólogos, médicos e advogados –, parece que nos últimos anos essa palavra viralizou na mídia e nos noticiários, entrando no vocabulário cotidiano.
Mas será que o seu significado sempre foi o mesmo ao longo dos tempos? Será que ética é um conceito universal e atemporal? Existe algum limite para a ética? Até que ponto ela pode ir? Existe alguma diferença entre ética e moral? Em suma, todas essas indagações serão respondidas ao entendermos o que é ética. Mas é na contemporaneidade que essas indagações fortemente emergem diante da desconstrução dos valores tradicionais.
Os pensadores contemporâneos refletem e buscam respostas para os questionamentos inéditos que surgem em razão dessas mudanças. Seja na tentativa de entender uma sociedade que se organiza em relações líquidas – como definiria o filósofo e sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017) –, seja tentando construir pontes para o futuro – como apontaria o médico e bioeticista Van Rensselaer Potter (1911-2001) –, cada vez mais as discussões éticas estão empoderando pessoas e mostrando que, mesmo em meio a tantas diversidades, é possível construir uma sociedade justa, livre e respeitosa.
A ética é um processo reflexivo. É no movimento de refletir sobre tudo isso que indagamos a respeito da existência e das relações. É parar para pensar antes de agir, e considerar o que é moralmente certo para você, em que contexto se deu a internalização desses princípios, o que isso implica atualmente, quais são os outros pontos de vista considerados válidos hoje em dia ou nesse contexto específico onde se dá a relação, e, com base nessa reflexão, definir a ação. A atitude ética reflete sobre a moral. Ética é reflexão e a análise crítica sobre os valores morais.
O pensamento ético contemporâneo volta o seu olhar sobre o ser humano concreto, compreendido como a pessoa que toma as próprias decisões e protagoniza sua vida e a própria história. Esse modo de reflexão ética começou no século XIX e segue até hoje. Essa perspectiva mostra que a origem dos valores provém da sociedade concreta, e não mais de uma fundamentação exterior abstrata (religiosa) como se acreditava em outros momentos históricos, a exemplo da Idade Média.
Um dos primeiros filósofos contemporâneos a compor teoricamente essa formulação ética foi Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), que construiu uma crítica bastante incisiva ao formalismo kantiano. Para Hegel, uma reflexão ética não pode deixar de lado a história nem a relação do indivíduo com a sociedade – a qual, segundo ele, estrutura e organiza princípios éticos e morais. Em cada período histórico, a ética e a moral se manifestam por meio de códigos, leis, culturas e instituições. Por isso, Hegel vincula a ética à história e também à sociedade.
Cada período histórico tem sua ética, seus conflitos e seus dilemas, e é por perceber isso que Hegel fundamentou sua nova perspectiva ética em conexão com o indivíduo concreto.
Um outro filósofo significativo nessa reflexão foi o sociólogo e filósofo Karl Marx (1818-1883), que entende a moral como um produto da sociedade que atende à necessidade dela de regular suas relações sociais. Como essas relações se transformam ao longo do tempo, os indivíduos também são influenciados e mudam.
Faz-se notório aqui que, na medida em que o pensamento de Marx apresenta semelhanças com o pensamento hegeliano, a compreensão marxista sobre a moral é uma forma de consciência própria, de cada momento do desenvolvimento da existência social, com seus valores. Nesse aspecto, esses valores não são absolutos nem universais, portanto não valem da mesma forma para todos os indivíduos nem para todos os períodos históricos.
Um outro pensador que também vai dedicar bons anos de sua vida a refletir sobre o tema será o filólogo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), que inicialmente criticou o racionalismo ético. De acordo com Nietzsche, o racionalismo, no decorrer de toda a histórica tradição da filosofia, priorizou o pensamento apolíneo (razão) em detrimento do dionisíaco (emoção). Segundo o filósofo, apenas o equilíbrio entre essas duas forças faria com que o ser humano desenvolvesse sua força vital plenamente.
Na sequência, em uma feroz crítica aos valores do cristianismo, o autor afirma que a Igreja criou uma moral de conformados durante muito tempo. De acordo com ele, essa moral foi criada pelos fracos para controlar os fortes, de modo que a filosofia dele não tem qualquer preocupação em conciliar-se com as estruturas estabelecidas pela moral vigente – inclusive, busca despojar-se delas. Nietzsche finaliza que existe, na moral, algo que pode levar o ser humano a desenvolver ou sufocar suas forças vitais. De acordo com ele, o ser humano é estimulado ao conformismo, e não à busca por superação de suas limitações e o desenvolvimento pleno suas potencialidades.
Em sua famosa obra filosófica Genealogia da Moral (1887), Nietzsche mergulha nessa discussão. O filósofo critica a moral vigente com base no estudo da origem – por isso uma genealogia – dos princípios morais que regem o Ocidente desde os tempos de Sócrates. Nietzsche se opõe a toda a razão exclusiva e puramente lógica e científica, construindo uma crítica feroz à razão especulativa, bem como a toda a cultura ocidental e suas manifestações: religião, ciência, arte, filosofia, moral etc.
Para entendermos melhor o posicionamento do autor, devemos nos reportar à obra filosófica Genealogia da Moral, que pretende fazer uma crítica à moral tendo como ponto de partida o entendimento sobre a origem desse conceito e de como esses princípios éticos e morais foram organizados.
O filósofo e filólogo começa sua análise tomando como base o pensamento socrático e se opõe ao excesso de razão lógica, costumeiramente aplicado à moral. Por isso, ele se opõe às manifestações religiosas, morais e filosóficas que consideram apenas um único aspecto da vida humana, isto é, a razão.
Sua genealogia, portanto, pretende responder a algumas questões relacionadas às invenções dos juízos, aos conceitosde bem e mal e a quanto tais perspectivas conceituais ajudaram ou atrapalharam o desenvolvimento humano.
No que se refere à moral, que claramente podemos entender como sendo a prática da ética, nós a vemos na maioria dos contextos históricos da humanidade como pressões sociais nem sempre são claramente postas (domínio consciente). Elas são parcialmente inconscientes e fazem parte do Superego, pois elas ficam implícitas, não são postas em palavras, mas são internalizadas assim mesmo, por exemplo: usar roupas, talheres, não cometer incesto.
· O Superego (ou SuperEu) tem uma parte consciente e uma parte inconsciente. O superego é constituído dos valores morais da cultura internalizados.
Os valores morais, mesmo que não sejam escritos em forma de lei, são passados ainda que implicitamente uns para os outros na sociedade. Freud escreveu sobre isso no texto Totem e tabu.
· Totens eram os símbolos que eram sagrados e respeitados;
· Tabu era um conjunto de coisas que não podiam ser feitas.
Esse conjunto de coisas não era escrito em forma de lei, mas todos sabiam que não poderiam fazer porque não era aceito naquela sociedade. Atualmente chamaríamos de crenças, que podem não ser leis sociais escritas, mas são seguidas, respeitadas e limitam o comportamento das pessoas.
TEMA 2 – ANEL DE GIGES
Há quem não faça o que é proibido (ex.: roubar, matar) só porque tem medo de ser visto e punido. Para André Comte-Sponville (2002), isso se chama precaução. Isso porque o limite no comportamento é só pelo medo de ser punido e não decorrente de uma identificação pessoal com uma norma social. O autor nos ajuda a entender isso por meio do mito do anel de Giges.
No livro A República (Πολιτεία, ou Politeia, no original grego que foi escrita por volta de 380 a.C.), Platão conta a história do anel de Giges. Trata-se de um anel que dava a quem o usasse o poder de ficar invisível, e tudo o que fizesse não seria visto por ninguém.
É um anel mágico, que um pastor encontra por acaso. Basta virar a pedra do anel para dentro da palma para se tornar invisível. Giges, que antes era tido como um homem honesto, não foi capaz de resistir às tentações a que esse anel o submetia: aproveitou seus poderes mágicos para entrar no palácio, seduzir a rainha, assassinar o rei, tomar o poder, exercê-lo em seu único e exclusivo benefício. (Comte-Sponville, 2002, p. 18)
O que você faria se fosse invisível é a pergunta que nos leva a refletir se somos seres morais ou apenas prudentes. “O que, mesmo invisível, você continuaria a se impor ou a se proibir, não por interesse, mas por dever, só isso é estritamente moral” (Comte-Sponville, 2002, p. 19).
Seus valores morais são tudo aquilo que foi internalizado desde fora, por tabu, leis e regras sociais, por ser parte dos costumes e do modo de vida de quem vive ali, mas que ao ser internalizado passou a ser parte indissociável de você, fazendo com que você o perpetue aos seus descendentes, e que mesmo longe dos olhares alheios você os mantém. Já o moralismo é quando você define o que o outro deve fazer com base no que é moralmente válido para você.
Moral é a lei que um indivíduo se impõe a si mesmo, um conjunto de coisas que o indivíduo considera legítimo, independente da cobrança do outro. Quando o próprio indivíduo não as cumpre ele próprio se julga. Moral é o que faz a pessoa ter resposta para a pergunta: “o que eu devo fazer?”.
O conjunto de regras e valores morais que vale para um não vale para o outro, pois essa internalização é pessoal, singular. “A moral, dizia Alain, nunca é para o vizinho: quem se preocupa com os deveres do vizinho não é moral, é moralizador”. (Comte-Sponville, 2002, p. 20). Isso quer dizer que a moral só vale para a própria pessoa. Com base em sua constituição psíquica, social, cultural, cada um internalizará um conjunto de princípios morais, se rebelará contra uns e perpetuará outros como se fossem genuinamente seus.
Podemos concluir então que a moral muda assim como muda a sociedade. O que não era moralmente aceito em uma dada geração, em uma dada sociedade, pode ser em outro momento histórico.
Em suma, a ética seria uma reflexão a respeito do ser humano e de suas conexões com ele, com o outro e com o mundo, na medida em que a moral seria a prática da ética, podendo ela (a moral) sofrer mutações de acordo com as necessidades vigentes.
TEMA 3 – ÉTICA DEONTOLÓGICA E SEUS PRINCÍPIOS: “TU DEVES”
A ética deontológica é uma teoria ética que se enfoca no dever e na obrigação moral, em lugar das consequências das ações. Baseia-se na ideia de que algumas ações são moralmente corretas ou incorretas em si mesmas, independentemente das consequências que podem ter.
A palavra deontologia é oriunda dos termos gregos déon, déontos (que significa dever) e lógos, que pode ser traduzido como discurso ou tratado. A deontologia é uma área da ética específica e adaptada ao exercício da uma determinada profissão.
Podemos observar inúmeros códigos deontológicos, sendo essa tradução e adaptação da responsabilidade dos grupos, associações ou ordens profissionais. Regra geral, os códigos deontológicos ou de ética têm por alicerce os grandes tratados universais, esforçando-se em reinterpretar o espírito ético manifestado nestas, criando adaptações e proximidade às mais diversas particularidades de cada nacionalidade, cultura e grupo profissional.
  Nesse sentido, esses códigos recomendam punições, de acordo com os princípios e procedimentos expostos, para os seus infratores. Alguns códigos não denotam funções normativas e vinculativas, oferecendo apenas uma função reguladora.
A declaração dos princípios éticos dos psicólogos da Associação dos Psicólogos Portugueses, por exemplo, é exclusivamente um instrumento consultivo. Embora os códigos pretendam oferecer uma reserva moral ou uma garantia de conformidade com os direitos humanos, estes podem, por vezes, constituir um perigo de monopolização de uma determinada área ou grupo de questões, relativas a toda a sociedade, por um conjunto de profissionais.
A ética deontológica está centrada nos princípios éticos universais e na obrigação moral de segui-los. Por isso, uma pessoa que segue a ética deontológica se preocupa mais com a intenção de suas ações e em seguir as regras morais que se estabeleceu, em vez de se preocupar com os resultados.
A ética deontológica tem sido desenvolvida por vários filósofos ao longo da história, incluindo Immanuel Kant, cuja teoria ética se centra na ideia de que as ações devem ser julgadas em função de se poderem converter em uma lei universal. Segundo Kant, uma ação é moralmente correta se puder ser aplicada a todas as situações sem contradição, e se respeitar a dignidade humana.
Em resumo, a ética deontológica se enfoca no dever, e a obrigação moral de seguir princípios éticos universais, em vez de enfocar nas consequências das ações.
TEMA 4 – A QUE ESTÁ SUBORDINADO O PSICANALISTA?
O psicanalista está subordinado a um rol de elementos que fundam a psicanálise e que são inegociáveis. O mais importante deles é o pressuposto do inconsciente. Não existirá psicanalista se ele não pactuar com esse pressuposto primordial.
Então, fica claro que na cultura há fundamentos e valores morais que são negociáveis e outros são inegociáveis!
O que é inegociável: o incesto continuará sendo proibido mesmo que se mudem os tempos. Nunca será permitido matar pai e mãe. Para a psicanálise, o elemento fundamental é o inconsciente e enquanto houver psicanálise, terá que ser assim, dentre outros fundamentos e valores morais que também são inegociáveis.
Outros fundamentos e valores morais mudam com o passar do tempo e com as mudanças no modo de vida das pessoas, ou ainda em decorrência de novos conhecimentos científicos. Mesmo assim, por se tratar de fundamentos internalizados como leis, demora muito tempo para que sejam modificados internamente. Um exemplo é o que chamamos hoje de machismo estrutural ou racismo estrutural. Por séculos os homens e os brancos foram considerados como tendo maior valor social, sobre mulheres e pretos. Isso tem mudado, mas,mesmo assim, muitos anos ainda passarão para que as pessoas consigam agir espontaneamente de maneira diferente.
No início, esses valores morais são questionados por uma atitude ética que leva à reflexão e análise crítica dos costumes. Mesmo que a pessoa entenda conscientemente e racionalmente que alguns princípios morais não fazem mais sentido, ainda assim, por terem sido culturalmente internalizados, eles podem determinar comportamentos alinhados com o padrão de conduta anterior, por vezes envergonhando a pessoa que não queria mais ser influenciada por eles. 
Da mesma forma o psicanalista precisa ser ético, ou seja, precisa estar disposto a refletir continuamente sobre o que determina e o que influencia as suas ações, suas falas, seu comportamento. Para isso, os dispositivos que temos são: fazer análise pessoal e fazer supervisão da prática clínica. Dessa maneira, minimamente estará garantido que ele reflete sobre o que faz em vez de seguir adiante feito um trator, com sua moral moralizante sobre seus pacientes.
O psicanalista também precisa se subordinar ao método psicanalítico. Isso quer dizer que ele precisa renunciar a tudo que não é psicanálise e manter-se fiel ao método psicanalítico, assumindo compromisso com o fundamento primordial da psicanálise, que é a análise das manifestações do inconsciente. Isso quer dizer que se o psicanalista em sua clínica mantiver seu foco apenas em aspectos conscientes do discurso, ele não será ético. Para tanto, precisa saber qual é o método e como se aplica na clínica, e isso pode ser resolvido por meio de leituras, aulas, grupos de discussão para esclarecer dúvidas, e outros processos de aprendizagem, dentre os quais a própria experiência de ser analisado pelo método psicanalítico.
O psicanalista também fará parte de um grupo de pessoas que presta serviços na área da saúde mental, em consultórios, clínicas, hospitais, empresas, escolas etc. Desse modo, precisará manter alinhamento com o Código de Defesa do Consumidor, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), bem como com todos os códigos e estatutos de direitos humanos tais como: Código de Direitos Humanos, Constituição Federal do Brasil, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, por exemplo, bem como seguir os princípios da atual política de saúde no Brasil: Sistema Único de Saúde – SUS.
A psicanálise atualmente é reconhecida como uma ocupação, alinhada à profissão de psicólogo. No entanto, não está subordinada à psicologia, apenas guarda relação para definição de atribuições. Assim como aparece no Código Brasileiro de Ocupações – CBO, sob o código 2515-50. A CBO é o documento que reconhece, nomeia e codifica os títulos e descreve as características das ocupações do mercado de trabalho brasileiro.
O que difere a atuação de psicanalistas e psicólogos, são basicamente duas situações:
1. A ênfase dada aos processos psíquicos: enquanto psicanalistas investigam e interpretam os processos psíquicos inconscientes, os psicólogos têm foco nas funções mentais, que são em grande parte, conscientes: sensação; percepção; atenção; memória; afetividade; sentimento; consciência; pensamento; linguagem e inteligência.
2. A autorização para uso de testes formais para diagnóstico de personalidade é uma atribuição privativa de psicólogos, bem como a emissão de documentos psicológicos decorrentes de avaliação psicológica: atestado, laudo. Nesses documentos é obrigatório informar um CID (o código da doença), ainda que seja uma hipótese diagnóstica. Como os psicanalistas não trabalham com o diagnóstico psicopatológico, eles não emitem esse tipo de documento.  Um psicanalista, portanto, não dá diagnóstico de depressão bipolar, por exemplo, pois este é um campo da psiquiatria e da psicologia que se utilizam de testes padronizados e definem o diagnóstico com base em um saber de mestre ou discurso de mestre. O psicanalista não ocupa esse lugar de saber sobre o outro, por isso não define o que a pessoa tem como doença ou transtorno mental.
Os psicanalistas podem emitir declaração de comparecimento, dar recibos, fazer relatos de atendimentos (de acordo com a LGPD), emitir relatório e pareceres, pois esses são documentos que não são resultantes de avaliação diagnóstica de personalidade. Portanto, o psicanalista pode emitir documentos que descrevam uma condição de saúde, mas não pode diagnosticar uma doença ou transtorno mental com base no CID – Código Internacional de Doenças. Ainda assim, a emissão de relatórios ou parecer deve se dar tão somente para atender aos interesses e direitos do paciente, com o conhecimento deste.
TEMA 5 – PSICANÁLISE COMO UMA NOVA ÉTICA E AS RECOMENDAÇÕES AO MÉDICO QUE PRATICA A PSICANÁLISE
A psicanálise é, antes de tudo, uma ética. Esta frase quer dizer que a psicanálise e o psicanalista estarão sempre em processo de reflexão. Nunca será um posicionamento moral, em que se dará a imposição de um valor moral ao paciente, pois sempre haverá a consideração de que a história de vida dele é diferente da sua.
Vou contar um exemplo aqui que é verdadeiro, aconteceu comigo na primeira semana de trabalho, no primeiro emprego depois da minha formatura: fui visitar, junto com minha supervisora, a enfermaria de um hospital onde estavam internados bebês menores de 1 (um) ano de idade. Os bebês, em sua maioria estavam acompanhados de suas mães. No caminho para a enfermaria eu já disse à minha supervisora que eu imaginava que lá o trabalho seria realizado com as mães, pois “os bebês não falam”.
E ela me disse, enquanto subíamos as escadas: “falam sim”. Deixei o assunto para depois, mas continuei com foco mais nas mães do que nos bebês. Ao final da visita de observação, voltamos à sala de reuniões e a supervisora me perguntou o que tinha me chamado mais a atenção. Eu disse que vi um bebê tentando alcançar o mamilo de sua mãe com muita dificuldade, pois o bebê era muito novinho e a mãe dormia com a cabeça encostada na janela, em uma posição que tornava muito difícil para o bebê continuar mamando.
Continuei meu julgamento dizendo que a mãe precisava estar mais atenta ao bebê, considerando algo perto da negligência. A supervisora me perguntou como eu faria se estive naquela situação e eu me imaginei sendo completamente diferente. E ela me respondeu: “sim, vocês são diferentes, a história de vida dela é diferente da sua, a noite que ela passou foi diferente da sua, o trabalho que ela tem é diferente do seu, os recursos que ela tem são diferentes dos seus, o momento em que ela foi mãe é diferente do seu”.
Naquele momento, aprendi na pele o que é moral, o que é ética, o que é constituição do sujeito etc. Sim, ela me deu uma lição de ética, para que eu não fosse moralizadora na minha atuação profissional. Pela atitude ética, somos capazes de refletir sobre a moral de uma cultura, ter clareza sobre o que a sociedade em geral espera de uma mãe, de um pai, de um psicanalista, de um governante (por exemplo), e refletir sobre isso, sobre esses valores morais e sobre os recursos de cada um para desempenhá-los e sobre a justificativa de continuarem sendo perpetuados. Uma questão ética que se impõe atualmente: toda mulher precisa ser mãe? Refletindo e ampliando nosso ponto de vista sobre isso (que é o valor moral de um momento histórico), teremos uma atitude ética.
Em 1912 Freud escreveu o texto Recomendações ao médico que pratica Psicanálise, em que fez as seguintes orientações sobre a técnica psicanalítica:
· Atenção flutuante: enquanto estiver ouvindo o paciente, o analista deve se deixar levar pelo que o paciente diz, sem se preocupar em pensar o que vai dizer depois, sem se preocupar em entender, em lembrar de teoria, em interpretar, mas sim em ouvir com atenção plena. Depois do fim da sessão é que o analista vai retomar o caso, estudar e relacionar com a teoria;
· Não tomar notas: nosso cérebro não consegue focar em duas coisas ao mesmo tempo, de modo que se anotar durante a sessão vai implicar retirar a atenção do discurso do paciente. Em algumas situações pode ser anotada uma data, um nome de medicação, mas nada alémdisso;
· Publicações: pode ser publicado o caso do paciente, mas deve ser feito apenas depois de encerrado o caso. O interesse na pesquisa poderia ser um conflito de interesse ou um viés no tratamento;
· Neutralidade: o psicanalista deve deixar de lado todos os seus afetos na relação com o paciente;
· Análise pessoal: o analista precisa se conhecer e saber de seus conflitos e defesas para estar habilitado a ouvir os do paciente. O risco de ter um analista sem processo de análise pessoal é de que o analista não consiga ouvir aquilo que ele próprio não elaborou em si;
· Evitar a postura pedagógica: dar conselhos, julgar, orientar e ensinar é, para a psicanálise, uma postura moralista superegoica. A prática do aconselhamento não se aplica na psicanálise;
· Intelectualização: evitar oferecer leituras sobre psicanálise para o paciente. Ler sobre o que sente irá reforçar o mecanismo de defesa de intelectualização e isolamento do afeto e isto é uma resistência.
Essas recomendações foram escritas em 1912. Transpondo para o contexto atual, a primeira coisa que chama a atenção é que a recomendação foi feita para médicos, e hoje sabemos que não são apenas os médicos que exercem a psicanálise.
Podemos ainda refletir sobre a interferência que a tecnologia e as mídias digitais podem ter na relação entre psicanalista e paciente. Uma das situações é ambos se seguirem nas redes sociais e assim comprometer a relação transferencial. O psicanalista pode deixar de dar atenção à realidade psíquica do paciente por conhecer os fatos. Esse é o mesmo prejuízo que se tem ao atender pessoas muito próximas: o psicanalista sabe sobre a realidade dos fatos, quando na verdade o que deve interessar é a realidade psíquica, que nessa situação não faz mais sentido relatar.
O paciente já chega à sessão dizendo: “Então, você viu né?!” E ainda que o psicanalista peça que para que ele conte mesmo assim, o paciente saberá que não adianta mentir porque o psicanalista visualizou o post. E assim se perde grande parte do material de análise.
NA PRÁTICA
A ética na prática refere-se à aplicação dos princípios éticos e morais no comportamento e nas ações cotidianas de uma pessoa ou grupo. A ética é um ramo da filosofia que lida com questões de certo e errado, bem e mal, e busca determinar como devemos agir em diferentes situações.
Na prática, a ética envolve tomar decisões e agir de acordo com valores morais e princípios éticos. Isso inclui considerar o impacto de nossas ações nos outros, respeitar os direitos e a dignidade das pessoas, evitar prejudicar os outros e promover o bem-estar geral.
Por exemplo, na área profissional, a ética na prática pode envolver tratar os colegas de trabalho com respeito, cumprir compromissos e prazos, não enganar os clientes, evitar conflitos de interesse e agir com integridade em todas as situações.
A ética na prática também está presente em decisões pessoais, como agir com honestidade, ajudar os necessitados, respeitar a diversidade e fazer escolhas que beneficiem a sociedade como um todo.
No entanto, é importante ressaltar que a ética pode variar de acordo com diferentes culturas, contextos e sistemas de crenças. Portanto, é essencial considerar a perspectiva cultural e social ao aplicar princípios éticos na prática.
FINALIZANDO
A ética em psicanálise é um tema complexo e de grande importância para a prática clínica. A psicanálise é uma abordagem terapêutica que se preocupa em compreender a subjetividade e a complexidade dos indivíduos, buscando ajudá-los a lidar com seus conflitos internos e desenvolver uma relação mais saudável consigo mesmos e com os outros.
A ética em psicanálise envolve a responsabilidade do psicanalista em relação ao paciente, à sua prática profissional e à sociedade em geral. Isso inclui a proteção da confidencialidade do paciente, a manutenção de uma relação terapêutica baseada no respeito e na empatia, o compromisso com a formação contínua e a atualização profissional, a transparência e a honestidade na relação com o paciente, a consideração dos aspectos culturais e sociais que influencia o paciente, entre outros.
Além disso, a ética em psicanálise também envolve uma reflexão crítica sobre os valores e crenças que influenciam a prática clínica e a relação entre o psicanalista e o paciente. Isso implica uma postura de abertura e questionamento constantes, de modo a evitar a reprodução de preconceitos e estereótipos que possam interferir no processo terapêutico.
Por fim, a ética em psicanálise também se relaciona com a responsabilidade social do psicanalista. Isso significa que ele deve considerar as questões políticas, sociais e fatais que mataram o paciente e a sociedade em geral, buscando contribuir para a construção de um mundo mais justo e igualitário.
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REFERÊNCIAS
AMARANTE, P. (org.). Loucos pela vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.
COMTE-SPONVILLE, A. Apresentação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
DIAS, E. O. O cuidado como cura e como ética. Winnicott e-prints, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 21-39, 2010. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid="S1679-432X2010000200002"&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 16 jun.  2021.
JONAS, H. Princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto/EdiPucRio, 2006.
______. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio da responsabilidade. São Paulo: Paulus, 2013.
ZIMERMAN, D. E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica. Porto Alegre: Artmed, 1999.
A ÉTICA EM PSICANÁLISE
AULA 2
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Prof. Leandro Amorim
CONVERSA INICIAL
Este estudo é uma oportunidade para aproximar você do perfil desejado no egresso de um curso de graduação em psicanálise. A ética na psicanálise está alinhada não apenas à formação do analista, mas também à atuação em uma sociedade que evolui em seus princípios morais e, assim, é esperado que o psicanalista esteja apto para se inserir nessa sociedade, sendo parte dela, mas atuando de modo a torná-la mais ética, ou seja, contribuindo para que os valores morais que regem o comportamento das pessoas sejam postos em reflexão constante.    
Nesta etapa, vamos refletir sobre o que é bioética e todas as suas conexões vinculadas a tecnologia, início e fim de vida. Vamos conhecer elementos que irão compor a reflexão bioética e suas conexões com o exercício da psicanálise iniciada por Freud. Iremos entender a estrutura do conceito de bioética que referencia e auxilia os processos de tomada de decisão, assim como teremos ainda alguns exemplos que irão deixar clara a aplicabilidade da reflexão bioética e sua ligação com a psicanálise.
O objetivo central deste estudo é contribuir para que você consiga definir os valores fundamentais na psicanálise, ser capaz de justificar, defender e assumir compromisso com o legado psicanalítico, situar sua formação como analisando e reconhecer seu percurso como analista. Espera-se ainda que você situe a psicanálise no contexto bioético e nas relações vinculadas a tecnologia, início e fim de vida.
Nesta abordagem, entenderemos a estrutura da bioética e todas as suas conexões, delimitações conceituais e recomendações quanto ao exercício da psicanálise.
TEMA 1 – INTRODUÇÃO GERAL À BIOÉTICA
A bioética é uma área da ética que se debruça sobre a pesquisa de suas relações com a vida. Tais relações são compreendidas de forma global, naquelas estruturadas em sociedade pelo ser humano com seu semelhante, com os animais e com todo o entorno.
O termo bioética vai se popularizar na década de 1970 com Van Rensselaer Potter (1911-2001), um importante pesquisador oncológico e bioquímico. Oriundos do grego antigo, os prefixos zoe e bios significam “vida”. A diferença entre os prefixos é que o primeiro faz referência à vida política e o segundo, à vida biológica. Bios deu origem à palavra biologia, por exemplo. E ainda há ethos, que pode conter diversos significados, como “casa”, “toca”, “costume” e “sabedoria usual”.A conexão das duas palavras de raiz grega forma o termo bioética, que corresponde a uma sabedoria prática ou a uma possibilidade de fundamentação científica, dos costumes e dos hábitos no que se refere à vida. Nessa perspectiva, quando temos questões ou problemas éticos relacionados à vida de animais humanos e/ou animais não humanos, estamos diante de um problema bioético.
A relação entre ética e bioética é complementar. A ética está inserida na reflexão bioética e, conforme vimos no início deste material, a ética nos convida a uma reflexão a respeito das relações entre os seres humanos de forma profunda e temporal. A bioética é uma visão ampliada, racional e humanizada com relação às mais diversas formas de manifestação da vida no planeta, propondo uma reflexão que constitua uma postura consciente, solidária, saudável e responsável do ser humano em relação ao seu entorno.
Tom L. Beauchamp e James F. Childress são reconhecidos como importantes pesquisadores no campo da bioética e são conhecidos por sua contribuição significativa ao desenvolvimento de princípios éticos biomédicos. São autores de uma obra fundamental intitulada Princípios de ética biomédica, amplamente considerada um marco na bioética. A obra foi publicada pela primeira vez em 1979 e passou por várias edições e revisões desde então.
O livro estabelece quatro princípios fundamentais amplamente aceitos como guias éticos para tomada de decisões no campo da medicina e da pesquisa biomédica: não maleficência, beneficência, autonomia e justiça. Nesse texto os autores especificam e focam os procedimentos médicos. Falam ainda sobre a utilização de seres humanos em pesquisas científicas e sobre a relação paciente e médico ou enfermeiro (atualmente, outros autores abarcam todos os atores envolvidos em uma determinada situação: familiares, pacientes, equipe médica, juristas etc.). No entanto, tais princípios são sinalizados na obra como partes fundamentais da discussão bioética.
1. Princípio da não maleficência. Esse princípio defende o não prejuízo a pacientes e/ou cobaias humanas e não humanas de testes. Existem exceções, quando, por exemplo, um tratamento pode desencadear algum tipo de prejuízo, mas proporcionar um benefício maior e desejável.
2. Princípio da beneficência. Esse princípio bioético vai ter sua raiz na corrente filosófica chamada utilitarismo, que defende que uma ação ética é aquela que proporciona o maior benefício ao maior número de pessoas, além de minimizar o dano. Nessa perspectiva, para Beauchamp e Childress uma relação bioética não pode ser diferente, pois profissionais de saúde e pesquisadores que utilizem vidas em suas pesquisas já atuam de forma utilitarista.
3. Princípio da autonomia. Todo ser humano busca sua autonomia. Entendendo essa busca, os bioeticistas Beauchamp e Childress resgataram essa ideia de autonomia no pensamento do filósofo iluminista alemão Immanuel Kant. Os autores entendem que o paciente deve ser autônomo e decidir se aceita ou não os tratamentos e procedimentos médicos propostos.
4. Princípio da justiça. Recorrendo ao filósofo estadunidense contemporâneo John Rawls (vale lembrar que Raws também resgata alguns conceitos kantianos em seu entendimento e conceituação sobre justiça), Beauchamp e Childress colocam a justiça como princípio válido e insubstituível para qualquer ação ética na manipulação da vida, pois buscar uma ação justa é fundamental para qualquer tratamento de saúde.
A bioética está envolvida, por exemplo, em casos ligados ao meio ambiente, aborto, ortotanásia, mistanásia, distanásia, eutanásia, eugenia, criogenia, educação, inteligência artificial, transumanismo e direitos dos animais. Grande parte desses termos emerge no vocabulário popular na década de 1990 e se mantém até os dias atuais. Essas questões são muito recentes e a ética ou a moral no formato tradicional não dariam conta de discuti-las, criando a demanda por um olhar mais global para essas novas necessidades.
No ano de 1971, Van Rensselaer Potter publicou a obra Bioética: ponte para o futuro, que se tornaria um clássico do campo de estudo. A obra surgiu em meio a uma grande necessidade de dar atenção a algo além dos muros e das estruturas dos laboratórios, isto é, a tudo aquilo que pode colocar em risco nossa sobrevivência e o futuro da humanidade, embutindo em nós um princípio de responsabilidade, abandonando o viés antropocêntrico e seguindo rumo a uma bioética global que cuida do planeta e de todos os seus habitantes.
Outro nome bastante significativo é o de Peter Singer (1946-), que, em 1979, publicou o livro Ética prática, em que aborda todos os assuntos importantes para a bioética. Nessa obra o autor distingue os conceitos de consciência e senciência.
Singer começa pelo óbvio, propondo que consciência é o que nós, seres humanos racionais, temos. O ser humano tem consciência de si, do outro, da vida, do entorno e de suas ações. A pessoa não apenas sente instintivamente as coisas, mas é capaz de tomar decisões que afetam a própria vida e a vida alheia.
Segundo o autor, a senciência corresponde à sensação, pois o ser humano consegue perceber o perigo e sabe quando sente dor ou fome, mas não tem consciência do que são aquelas sensações nem de suas causas. À medida que o ser humano toma uma ação consciente, ele sempre deve levar em conta a senciência ao refletir sobre as consequências dessa ação e se ela gerará sofrimento ou não. Peter Singer foi um entusiasta na defesa do direito dos animais, publicando vários artigos e diversas outras obras discorrendo sobre questões de bioética.
Assim, a bioética estrutura-se como um campo de estudo e reflexão que busca promover o diálogo entre diferentes perspectivas e abordagens, a fim de garantir o respeito à dignidade humana e a promoção do bem-estar dos indivíduos e da sociedade como um todo.
TEMA 2 – BIOÉTICA, TECNOLOGIA E O PRINCÍPIO DA VIDA
O mistério, o segredo e a curiosidade quanto ao fim da vida que suscitam questionamentos nas pessoas também surgem em relação ao início dela. A especulação oriunda da curiosidade científica se debruça sobre tal questão, tentando entender os mecanismos que endossam tal princípio.
Se as religiões elaboraram suas próprias teses a esse respeito, absolvendo e condenando tudo aquilo que olhasse diferente para o que já havia sido estabelecido, a ciência e o avanço tecnológico buscam reflexões com bases elaboradas pela bioética, salvaguardando culturas, temporalidade, autonomia, protagonismo e respeito às mais diversas formas de entender esse início.
Ao mesmo tempo o entendimento do princípio da vida era facilmente aceito e entendido de maneira muito simples. A partir do momento em que a intervenção científica passa a fazer parte do processo início da vida, essa discussão passa também a ser uma questão bioética.
A medicina aprendeu a intervir eficazmente no processo do nascer (e do morrer). Os conflitos sobre o nascer são de interesse público e dividem opiniões. Se o processo do nascimento permanecesse no âmbito natural, sendo modulado, mas não radicalmente modificado, por artifícios instrumentais, não haveria nenhuma preocupação ética nesse aspecto. Conforme sabemos, os acontecimentos se deram de outro modo e, diferentemente da forma concebida, o ser humano sempre interferiu na reprodução de sua própria espécie.
Várias escrituras sagradas estabelecem princípios em diversas instâncias sobre esse tema, seja delegando tal acontecimento ao transcendente, seja algumas vezes “julgando” toda e qualquer concepção que se coloque de forma diferente. A função biológica, como a reprodução assistida, tem sido objeto de preceitos, leis e políticas públicas ao longo da história da medicina. O juramento de Hipócrates, um dos documentos éticos mais antigos da medicina ocidental, proíbe explicitamente o aborto provocado. Esses preceitos e normas continuaram a evoluir até os dias atuais, à medida que permaneceram questões e dilemas éticos relacionados à fecundação assistida e à reprodução artificial.
A reprodução assistida e a tecnologia desenvolvida têm levantadouma série de desafios éticos e questões complexas. Alguns dos dilemas éticos incluem o uso de técnicas como a fertilização in vitro, a seleção genética pré-implantação, a doação de gametas, a gestação de substituição (barriga de aluguel) e a criopreservação de embriões. Essas questões envolvem considerações sobre a autonomia reprodutiva, a justiça na distribuição de recursos, os direitos dos doadores e dos receptores, bem como o status moral e legal dos embriões.
Os bioeticistas debatem o início da vida com princípios e teorias incompatíveis entre si e cada qual está profundamente convencido das visões a respeito da legitimidade de intervir artificialmente no processo de gestação.
O filósofo contemporâneo Hans Jonas vai pensar o princípio da vida de forma conectada e global como um constante movimento, um infinito processo de transformações que abarca os aspectos biológicos e existenciais. Nesse sentido, ele tenta unificar a concepção de vida que a própria história separou, desde os pré-socráticos.
A vida não pode ser definida com base em fragmentos ontológicos que, na história clássica, davam ao homem um status de superioridade e aos demais seres, de inferioridade, pois, de acordo com Hans Jonas, a separação feita pelo racionalismo cartesiano forneceu a carta magna metafísica para um quadro puramente mecanicista e quantitativo do mundo natural, com seu corolário do método matemático na física (Jonas, 2006, p. 95).
A vida, em um sentido amplo, é constituída por um organismo vivo, “é individualidade autocentrada, existindo para si e em oposição a todo o resto do mundo, com um limite essencial entre o dentro e o fora – apesar da troca efetiva, ou mesmo baseada nela” (Jonas, 2006, p. 101).
A reflexão em torno da vida não deve ser fragmentada, pois exige uma amplitude e, ao mesmo tempo, uma conexão com o todo. A vida é um movimento contínuo de forças contrárias e a morte faz parte desse processo, à medida que ela nada mais é do que um fluxo, ficando a cargo da preocupação a morte que não abarca a naturalidade, como vemos em casos de erro, manipulações, falha técnica etc. Só entendendo a vida é que entenderemos a morte.
TEMA 3 – BIOÉTICA E A INTERFERÊNCIA DA TECNOLOGIA
A bioética é de fato um campo interdisciplinar que explora as questões éticas relacionadas à vida e à saúde, abrangendo temas como pesquisa médica, intervenções médicas, cuidados de saúde, biotecnologia, genética, reprodução assistida, eutanásia, entre outros. Ela busca examinar as implicações éticas, morais e sociais dessas áreas, levando em consideração princípios como autonomia, beneficência, não maleficência e justiça.
A tecnologia, por sua vez, é um conjunto de conhecimentos, técnicas, instrumentos e processos aplicados para criar, desenvolver e aprimorar produtos, serviços e a vida em sentido mais amplo. Ela envolve a aplicação do conhecimento científico para resolver problemas, melhorar a eficiência, facilitar tarefas, aumentar a capacidade humana e melhorar a qualidade de vida.
A relação entre a bioética e a tecnologia é muito relevante, pois o avanço tecnológico na área da saúde e da vida tem levantado diversas questões éticas. Por exemplo, a utilização de técnicas de reprodução assistida suscita questões sobre a concepção e a manipulação de embriões. A engenharia genética traz considerações éticas sobre a modificação de genes humanos e a possibilidade de criar seres humanos geneticamente modificados. O uso de inteligência artificial em diagnósticos médicos e tomadas de decisão acarreta preocupações sobre a privacidade dos dados e o viés algorítmico.
Portanto, a bioética desempenha um papel importante na avaliação dos impactos éticos da tecnologia no campo da saúde e da vida, buscando orientar a tomada de decisões e garantir que os avanços tecnológicos sejam realizados de maneira ética e responsável.
A relação entre bioética e tecnologia é complexa e está em constante evolução. Por um lado, a tecnologia pode trazer muitos benefícios para a saúde e o bem-estar das pessoas, como aprimorar diagnósticos, tratamentos e procedimentos médicos, além de melhorar a qualidade de vida. Por outro lado, a tecnologia também pode apresentar riscos e desafios éticos, como a privacidade e a segurança de dados, a manipulação genética, o uso de inteligência artificial em decisões médicas, entre outros.
Assim, a bioética desempenha um papel fundamental na avaliação e regulação da tecnologia não só em saúde, mas em vários outros aspectos e dimensões da vida, como meio ambiente, educacional, visando garantir que ela seja utilizada de forma ética e responsável, respeitando a dignidade, a autonomia e a privacidade das pessoas. Isso inclui a análise crítica de questões como a proteção dos dados dos pacientes, a equidade no acesso à tecnologia, a responsabilidade dos profissionais de saúde e empresas em relação ao uso da tecnologia e muitas outras questões éticas relacionadas à tecnologia na área da saúde.
Entende-se as tecnologias como ferramentas criadas pelo ser humano que, de certa forma, recriam o próprio ser humano e ressignificam conceitos e movimentos, os quais, de alguma maneira, já estavam “definidos” e “claros”. Vida e morte são alguns desses conceitos que a tecnologia[1], no decorrer da história, ressignificou.
No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, surgiram vários movimentos em defesa dos direitos dos pacientes e de um cuidado mais humanizado, em oposição ao crescimento do poder médico e da medicalização. Esses movimentos buscaram trazer à tona questões éticas e sociais relacionadas ao sistema de saúde e ao tratamento dos pacientes.
Um dos movimentos mais significativos foi o movimento dos direitos do paciente, que emergiu nos Estados Unidos e se espalhou para outros países. Esse movimento defendia que os pacientes tinham o direito de ser informados sobre seu diagnóstico, tratamento e prognóstico e de participar ativamente nas decisões relacionadas à sua saúde. Ele enfatizou a importância da autonomia do paciente, seu direito a privacidade e confidencialidade e a necessidade de consentimento informado.
Além disso, houve um aumento da conscientização sobre a importância de um cuidado mais humanizado e centrado no paciente. Isso envolveu uma mudança na forma como os profissionais de saúde interagem com os pacientes, levando em consideração suas necessidades emocionais, sociais e psicológicas, além das questões médicas. O movimento defendeu a importância da empatia, do respeito à dignidade do paciente e da valorização de sua perspectiva e experiência.
Esses movimentos também influenciaram a área da bioética, que começou a se desenvolver nesse período. A bioética passou a enfatizar a importância dos valores e direitos dos pacientes, bem como a consideração dos aspectos éticos e sociais nas decisões médicas.
No geral, esses movimentos desempenharam um papel importante na mudança de paradigma no campo da saúde, buscando equilibrar o poder médico e tecnológico com os direitos e as necessidades dos pacientes, promovendo um cuidado mais humano e centrado no paciente.
Ocorreram reivindicações que abarcaram desde o direito de “morrer com dignidade” até a regulamentação da eutanásia. Nesse mesmo cenário, expande-se de forma crescente um discurso que propunha novas ações em relação à morte oriunda de doenças crônicas terminais e que transformaria significativamente a relação entre paciente e equipe médica. Essa nova relação estabeleceu um novo modelo que foi chamado de morte contemporânea, neomoderna ou pós-moderna.
Por outro lado, ainda há a cultura de manter a vida a qualquer custo, resultado de um estranhamento a respeito do entendimento e da aceitação da morte como parte do ciclo da vida.
O primeiro ponto a ser pensado seria o significado da tecnologia dentro desse aparato histórico, pois o que se percebe é que a tecnologia não é um conceito fechado, mas que sofreu uma alteração semântica nos mais diversos contextos históricos, ficando vulnerável a estes.
Quando, por exemplo, vemos as teorias entendidas como “naturais” organizando ambientes,profissionalizando pessoas e partindo das mais diversas possibilidades de recursos, não são estas também recursos tecnológicos? No que se refere ao processo de terminalidade, é importante afirmar que atualmente seria impossível uma coexistência médica ante uma “naturalidade” proposta, pois, mesmo diante de diversas tentativas, como vemos nesse recente recorte histórico, são apenas suposições diante de alguns modelos e até mesmo a implantação dos cuidados paliativos surge graças a todo o avanço tecnológico proposto por pesquisas medicamentosas, formação dos profissionais para possibilitar uma melhor qualidade de vida etc.
A própria literatura clínica contemporânea aponta para diversos caminhos no processo de terminalidade, construindo discursos alimentados histórica e culturalmente com uma multiplicidade de significados que possibilitam as buscas sociais referentes a vida, morte, saúde, doença e assistência médica (Seymour, 1999, p. 692).
O que há em termos de entendimento e aplicabilidade é uma confiança central em intervenções da tecnologia consideradas “leves” durante esses dois extremos da vida – nascimento e morte–, com o objetivo de diminuir a dor e o sofrimento.
Contudo, a visão contemporânea da morte estabelece uma estrutura que abarca múltiplos aspectos, vislumbrando uma totalidade, pois estão inseridos em um mundo fragmentado, no qual vários processos são entendidos de maneira fracionada.
Se, por um lado, temos o uso da tecnologia no intuito de propiciar uma vida e uma morte naturais, fazendo uso de remédios e diminuindo o sofrimento e a dor, por outro percebe-se ainda o uso da técnica apenas para um prolongamento de uma subvida sem qualidade e brio.
Nos séculos anteriores, a humanidade também tinha ciclos tecnológicos, mas as mudanças ocorriam de forma mais lenta. O ser humano conseguia acompanhar essas mudanças. Hoje, tal ciclo tecnológico é muito mais veloz em suas mudanças e nos muda cotidianamente, potencializando a dificuldade que a humanidade tem de acompanhá-lo, tornando-a obsoleta em seu próprio tempo.
Esse avanço e desenvolvimento da tecnologia, que ocorrem de forma tão veloz, ao mesmo tempo que abarcam muita novidade instituem à humanidade poder ou, pelo menos, a sensação de poder. Hoje, a tecnologia intensificou-se em tudo, pois vida e morte, pensamento e sentimento, ação e padecimento, ambiente e coisas, desejos e destinos, presente e futuro (Jonas, 2006, p. 25) passaram a depender dela, que dá acesso a um poder que vislumbra apenas o tempo presente, deixando de lado as consequências dessas ações no médio e longo prazos.
Esse processo de transformação é percebido na expansão do corpo físico e social e nas capacidades cognitivas e psíquicas. Nossa presença, como podemos ver, por exemplo, nas mais diversas redes sociais – que não são nossas réplicas, mas sim uma continuação do nosso ser –, prolifera-se a cada minuto, muitas vezes com inteligência e corpos independentes dos nossos.
O avanço da tecnologia tem impactado profundamente o ritmo da vida e as expectativas das pessoas em relação ao mundo. A velocidade das comunicações, a facilidade de acesso à informação e a rapidez das interações têm influenciado nossas percepções e exigências em relação ao cuidado com a vida e à abordagem da morte.
Nesse contexto, a bioética desempenha um papel importante ao reconhecer a urgência dessas discussões e oferecer orientações para a reflexão sobre questões relacionadas à vida e à morte. Ela fornece um conjunto de princípios éticos que podem ser aplicados na tomada de decisões e na abordagem de dilemas éticos nesse campo.
A beneficência, por exemplo, diz respeito à obrigação de agir em benefício dos outros, buscando o bem-estar e a melhoria da qualidade de vida. Na área da saúde, isso implica oferecer cuidados que promovam o bem-estar e a saúde dos pacientes.
A autonomia refere-se ao direito dos indivíduos de tomar decisões informadas e livremente consentidas sobre sua própria saúde e tratamento. Isso implica respeitar as escolhas e preferências dos pacientes, envolvê-los nas decisões relacionadas ao seu cuidado e garantir que sejam devidamente informados sobre as opções disponíveis.
A dignidade é um princípio que enfatiza o valor intrínseco de cada pessoa, independentemente de sua condição de saúde ou estágio de vida. A abordagem bioética busca preservar a dignidade dos indivíduos, respeitando sua autonomia, privacidade, integridade física e emocional.
A vulnerabilidade é um aspecto importante a ser considerado na discussão bioética, especialmente quando se trata de questões de vida e morte. Reconhecer e mitigar a vulnerabilidade dos indivíduos em situações de saúde delicadas é fundamental para garantir que sejam tratados com respeito, cuidado e consideração.
Esses princípios éticos, entre outros, fornecem um arcabouço para orientar a reflexão e a ação ética no campo da bioética, ajudando a equilibrar o avanço tecnológico com o respeito pelos valores humanos fundamentais e a promoção do cuidado humano e compassivo com a vida e a morte.
Dada sua ambivalência, a tecnologia é o melhor e o pior dos acontecimentos da humanidade. Melhor porque dá poder e possibilidades, muda paradigmas, possibilitando a construção daquilo que era impensável no passado; e pior porque causa pressão, muda regras que já conhecemos, fazendo com que alcancemos toda essa evolução.
Contemporaneamente, mesmo com o amparo de toda a tecnologia vigente, ainda há dificuldade em equilibrar o uso desse aparato e determinar onde a tecnologia se faz necessária e onde não se faz.
Em meio a esse moinho de questões, emerge a inteligência artificial, que pode ressignificar a vida e a morte, e o transumanismo, que tenta transformar a condição humana, independentemente de qual seja sua condição, por intermédio do desenvolvimento tecnológico, com a promessa – incentivada pela biotecnologia – de melhorar o ser humano (denotando a ideia de uma necessidade de ajuste), readequando-o a condições novas e, em alguns casos, ainda nem pensadas, o que endossa as promessas do aperfeiçoamento que almejam transformar o humano em um pós-humano por meio da tecnologia (Oliveira, 2018, p. 863).
A discussão contemporânea sobre vida e morte na perspectiva bioética é de fato crucial e envolve questões complexas. A bioética busca abordar esses temas fundamentais de maneira ética e responsável, considerando os progressos científicos, as perspectivas culturais, os direitos individuais e os valores sociais.
TEMA 4 – BIOÉTICA, TECNOLOGIA E O FIM DA VIDA
Vida e morte são movimentos complementares na existência humana. É muito comum – e também há alguns tabus – mensurar o nascimento ou surgimento de uma nova vida. Contudo, atualmente ainda há um grande bloqueio quando o assunto é a terminalidade da vida.
É verdade que, de maneira geral, a sociedade muitas vezes evita falar e compreender a morte de forma aberta e franca. A morte é um tema complexo e pode despertar medo, ansiedade e desconforto nas pessoas. A educação e o entendimento da morte variam amplamente de acordo com a cultura, as tradições religiosas, as crenças filosóficas e as experiências individuais.
Embora as religiões e a filosofia ofereçam explicações e interpretações sobre a morte, nem todos têm acesso ou aderem a essas tradições. Além disso, mesmo nas tradições religiosas, as interpretações e a compreensão da morte podem diferir significativamente.
A falta de educação e compreensão da morte pode dificultar as discussões abertas sobre o assunto, o que pode levar a um distanciamento emocional e à dificuldade de lidar com questões relacionadas à morte. Isso pode resultar em dificuldades na prestação de cuidados paliativos adequados, na tomada de decisões no final da vida e até mesmo na elaboração de um testamento vital.
No entanto, é importante destacar que, nas últimas décadas, tem havido um aumento da conscientização sobre a importância de discutir a morte de maneira mais aberta e inclusiva. O movimento dos cuidados paliativos, por exemplo, busca melhorar a qualidade de vida dos pacientes que enfrentamdoenças graves, incluindo discussões sobre a morte e o fim da vida. Também surgiram iniciativas de educação e sensibilização sobre a morte, como os “cafés da morte” e as “doulas da morte”, que visam proporcionar espaços seguros para discutir e refletir sobre a morte.
À medida que a sociedade evolui, há um reconhecimento crescente da importância de abordar a morte de maneira mais aberta e integrada, fornecendo educação e apoio adequados para ajudar as pessoas a lidar com a morte e a tomar decisões informadas relacionadas a ela.
Essa capacidade transformou o processo de terminalidade, ressignificando o entendimento do que é a morte por meio das mais diversas formas de uso de ferramentas e dispositivos artificiais para manter o negócio da vida (Jonas, 2006, p. 27). Desse modo, os mais variados aspectos da existência humana acabaram dando novos sentidos e outros rumos àquilo que, muitas vezes, a natureza não podia suprir, tornando-se, não raro, parte necessária do cotidiano. Para dar suporte à discussão sobre o quanto a técnica alterou a compreensão da morte na contemporaneidade, considera-se importante debruçar-se sobre os aspectos históricos da literatura clínica, filosófica e bioética, atualizando e aprofundando a reflexão em torno da temática.
Nesse sentido, a morte pode ser analisada sob três aspectos: como um processo, “quando algo começa a morrer e termina quando o processo de morte acaba” (Luper, 2010, p. 56); como resultado de um processo; como finalização, o que sofreu diversas transformações historicamente.
Tais transformações transitam sobre uma discussão paradigmática clínica sobre a morte que necessariamente impulsiona a uma constante redefinição conceitual de morte. A perspectiva a respeito da morte, quando deparada com o paradigma clínico, poderia historicamente ser finalizada na discussão que conclui a vida ao término das batidas do coração e dos pulmões, início desse processo de morte. Contudo, tal reflexão ficaria extremamente limitada, se entendermos que a própria técnica acabou ressignificando esse processo de terminalidade da vida.
Em meio a essa breve reflexão, faz-se importante a diferenciação entre morte cerebral e morte encefálica, detalhando que o primeiro termo se relaciona com a parada da parte superior ou inferior do cérebro, enquanto o segundo abarca a parada do cérebro na totalidade, de maneira irreversível.
Esse imbricamento entre as visões histórica e clínica a respeito do processo de terminalidade da vida destaca várias implicações ético-morais, materializadas em dilemas que, mais uma vez, se debruçam sobre o tema da redefinição da morte e que serão drasticamente alteradas a partir da década de 1960, mapeando assim contextos, conflitos e interesses históricos sobre essa questão.
O abandono do critério cardiorrespiratório para um critério de morte encefálica passa a estar vinculado ao avanço da técnica, polemizando ainda mais os discursos dos argumentos ontológicos e aquilo que defende a literatura e a prática clínica, principalmente no que se refere à existência.
O primeiro argumento busca defender que a pessoa deixa de existir quando a conectividade que a sustenta e a conecta com seu entorno deixa de ser contínua, cessando assim o “funcionamento” dessa pessoa. Nesse sentido, essa desconexão efetiva a morte, alimentando com isso alguns debates bioéticos entre o posicionamento da literatura clínica e a própria filosofia.
TEMA 5 – BIOÉTICA E A PSICANÁLISE
A relação entre bioética e psicanálise é complexa e pode ser analisada de diferentes perspectivas. Em geral, a bioética preocupa-se com as questões éticas relacionadas à vida e à saúde, enquanto a psicanálise busca compreender a complexidade do ser humano de uma perspectiva psicológica.
Uma das principais áreas de interseção entre a bioética e a psicanálise é a saúde mental. A psicanálise é uma abordagem terapêutica que visa ajudar as pessoas a lidar com problemas emocionais e psicológicos, enquanto a bioética busca garantir que o tratamento e o cuidado com a saúde mental sejam realizados de forma ética e responsável.
Por exemplo, a psicanálise pode ser utilizada para ajudar pacientes a tomar decisões sobre tratamentos médicos e a bioética pode garantir que essas decisões sejam tomadas de forma autônoma e com o máximo de informações possíveis sobre as opções de tratamento disponíveis.
Outra área de interseção entre a bioética e a psicanálise é a questão da privacidade dos pacientes. A psicanálise envolve frequentemente a revelação de informações pessoais e emocionais sensíveis e a bioética tem o papel de garantir que essas informações sejam tratadas de forma confidencial e respeitando o direito do paciente à privacidade.
Em resumo, a bioética e a psicanálise compartilham preocupações comuns relacionadas à saúde e ao bem-estar das pessoas. Ambas abordam questões éticas relacionadas à vida e à saúde e trabalham para garantir que as decisões relacionadas à saúde sejam tomadas de forma ética e responsável, respeitando os direitos e a dignidade das pessoas.
A maior reflexão que fazemos hoje gira em torno de por que a bioética é a "fragilidade" ” do “avanço” científico e do cenário político. Questões que envolvem temas como aborto, eutanásia, clonagem denotam a falta de diálogo entre o pensamento científico, a política e a religião.
A filósofa contemporânea Hannah Arendt sinalizava para a sacralização da vida como uma espécie de herança do cristianismo. Pode ser que, talvez tenhamos que buscar, ainda nessa herança, os fundamentos da forma da relação sujeito-objeto estabelecidos pela biopolítica e que a bioética vem tentar regular.
O psicanalista Lacan diferencia religião, ciência e psicanálise com base na forma como cada indivíduo se relaciona com a realidade, conferindo a sua peculiaridade de análise um reconhecimento de que há um sujeito em comum sobre o qual a psicanálise opera: o mesmo sujeito que a ciência exclui (Lacan,1988).
Na modernidade, houve uma clivagem entre o conhecimento baseado na razão e na evidência empírica, representado pela ciência, e o conhecimento baseado na fé e na crença religiosa. A ciência, com seu método baseado na observação, experimentação e análise racional, passou a ser vista como uma fonte privilegiada de verdade e conhecimento.
Com o avanço da ciência, muitos aspectos da vida e do mundo que anteriormente eram explicados pela religião foram reinterpretados sob uma perspectiva científica. Isso levou a uma reconfiguração do papel da religião na sociedade, com muitos aspectos religiosos sendo reinterpretados e reinventados no discurso científico.
A figura do Soberano, na idade medieval, era duplicada por Deus. Naquele contexto, o Soberano possuía o "poder de vida e morte" sobre seus súditos, ou seja, tinha o poder absoluto de decidir sobre a vida e a morte das pessoas. Essa figura soberana era o referente último para a valoração da existência, ou seja, era a autoridade máxima que definia o valor e o significado da vida das pessoas.
Na modernidade, esse lugar do Soberano foi sendo reinterpretado e ocupado de diferentes maneiras. A ciência, como mencionado anteriormente, emergiu como uma fonte de conhecimento e verdade que passou a desafiar a autoridade e o poder absoluto do Soberano. Novos referenciais e critérios de valoração da existência foram surgindo e a religião também foi influenciada por esse discurso científico.
Cumpre, pois, reconhecer no discurso da ciência moderna a manutenção de uma referência religiosa à verdade. Lacan pontua essa articulação entre ciência e religião já no ato inaugural de Descartes: “Deve-se apreender no ego que Descartes acentua […] o ponto em que ele fica sendo o que se apresenta como sendo: dependente do deus da religião” (Lacan, 1998a, p. 879).
É, pois, no discurso da ciência que Deus (os fundamentos da verdade) é posto como Nome-do-pai no Real (Lacan, 1998b). Da mesma maneira, o apelo a uma ética que limite o avanço das biociências, mas igualmente confirme sua hegemonia, só pode formá-la neste lugar: mais teologia do que deontologia. Surge então a “vida nuae crua” como elemento político fundamental, afirmação e confirmação de um poder soberano burocrático exercido pelas tecnociências da vida.
Percebe-se, assim, o quão impressionante pode ser a redução do que literalmente seria o “lugar da vida pública/política” (bios-ethos) a um conjunto de prescrições a serem seguidas de forma burocrática (o pai no Real) e universal (um corpo sem sujeito).
Diminuir a “psique humana a um simples objeto de ‘articulação tecnológica’”, conforme as palavras de Lacan (1999), é uma consequência da manipulação biogenética. Repetir o termo, o sujeito e o desejo a descrições biomédicas e prescrições bioéticas pode ser ainda bem pior.
NA PRÁTICA
A relação entre bioética e psicanálise pode ser aplicada de várias maneiras na vida prática, considerando os aspectos éticos envolvidos no cuidado da saúde mental e emocional das pessoas. Aqui estão algumas possibilidades.
Consentimento informado. A psicanálise envolve uma relação terapêutica íntima e confidencial entre o psicanalista e o paciente. É importante que o paciente seja adequadamente informado sobre os objetivos, os métodos e os possíveis riscos da psicanálise para que possa tomar uma decisão informada antes de iniciar o tratamento.
Confidencialidade. A confidencialidade é um aspecto central na prática da psicanálise. Os psicanalistas são obrigados a manter a privacidade e o sigilo das informações compartilhadas pelos pacientes durante as sessões. A bioética enfatiza a importância da privacidade e da confidencialidade dos dados médicos e psicológicos, garantindo que as informações pessoais sejam protegidas.
Autonomia e respeito pela dignidade. A psicanálise busca promover a autonomia e a liberdade do indivíduo, permitindo que o paciente explore seus sentimentos, pensamentos e desejos de maneira autêntica. A bioética destaca a importância do respeito pela autonomia e pela dignidade do indivíduo em todas as áreas da saúde, incluindo a saúde mental.
Tomada de decisão compartilhada. A psicanálise pode oferecer uma abordagem colaborativa na tomada de decisões relacionadas ao tratamento, permitindo que o paciente participe ativamente na definição de metas terapêuticas e no planejamento do processo de tratamento. A bioética incentiva a tomada de decisão compartilhada, garantindo que as preferências e os valores do paciente sejam considerados na elaboração do plano terapêutico.
Consideração da subjetividade e das diferenças individuais. A psicanálise reconhece a importância da subjetividade e das diferenças individuais na compreensão e no tratamento dos problemas emocionais. A bioética enfatiza a necessidade de considerar a diversidade cultural, os contextos sociais e as perspectivas individuais na prática de cuidados de saúde. Na relação entre bioética e psicanálise, é importante reconhecer e respeitar a singularidade de cada indivíduo e a influência dos contextos sociais e culturais em seu processo terapêutico.
Esses são apenas alguns exemplos de como a relação entre a bioética e a psicanálise pode ser aplicada na prática. É importante destacar que a interseção entre esses campos pode variar de acordo com as abordagens teóricas e práticas específicas de cada profissional e situação clínica.
FINALIZANDO
Inovar, inventar, criar! Desde a descoberta do fogo, o ser humano tem a necessidade de estabelecer novos desafios, reformular paradigmas e, a cada momento, superá-los. No mundo dos negócios, da educação, da moda ou da saúde, o ser humano está sempre em busca de criar algo que ainda não foi criado e de sua própria superação.
Os avanços tecnológicos ajudam não só na criação de novos conceitos, como também permitem que os atuais modelos e conceitos sejam repensados. Aquilo que em um primeiro momento parece ficção científica pode vir a se tornar realidade. Algumas revoluções sempre trazem inovações e tais inovações criam possibilidades, disponibilizando técnicas e tecnologias para o homem contemporâneo.
A velocidade com a qual tudo isso ocorre aumenta ainda mais quando consideramos as famosas tecnologias emergentes, as grandes responsáveis por relevantes modificações no ser humano e em seu entorno. Essas tecnologias que surgem são aquelas que, hipoteticamente, podem alterar o ambiente humano, ressignificando conceitos já existentes e consolidando outros. Possuem aplicações práticas, com um potencial de rápido crescimento e popularidade, gerando impactos sociais que ainda não foram amplamente explorados.
Os diversos avanços da tecnologia são tão rápidos e constantes que possibilitam a concretização de desejos e sonhos. Essa grande revolução tecnológica, que tira, em alguns momentos e fases, o norte da humanidade, emerge como consequência dos principais domínios técnico-científicos. Todas essas possibilidades e mudanças surgem em todas as áreas e aspectos da vida, inclusive na morte.
REFERÊNCIAS
ELIADE, M. Aspects du mythe. Paris: Gallimard, 1963.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
FREUD, S. (1920). Más allá del principio del placer. 2. ed. In: Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1973.
GOLDIM, J. R. Princípios éticos. 6 jan. 2023. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/bioetica/princip.htm>. Acesso em: 3 jul. 2023.
JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto/EdiPucRio, 2006.
JUNGES, J. R. Metodologia da análise ética de casos clínicos. Revista Bioética, v. 11, n. 1, p. 33-42, 2003.
KANT, I. (1786/1974). Fundamentação da metafísica dos costumes. 2. ed. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. v. XXV.
LACAN, J. O seminário: livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
_______. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998a.
_______. A ciência e a verdade. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998b.
_______. O seminário: livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
LUPER, S. A filosofia da morte. Tradução de Cecília Bonamine. São Paulo: Madras, 2010. 
OLIVEIRA, J. R. Negação e poder: do desafio do niilismo ao perigo da tecnologia. Educs, 2018. 
SEYMOUR, J. E. Revisiting medicalisation and ‘natural’ death. Social Science & Medicine, v. 49, p. 691-704, 1999. 
SGANZERLA, A. Natureza e responsabilidade: Hans Jonas e a biologização do ser moral. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2012.
[1] Embora não se tenha consenso, a tecnologia na atualidade é caracterizada, pela maioria dos teóricos, como o modo de agir e de fazer coisas baseado na eficiência e na informação científica. É nisso justamente que ela se diferencia da técnica, posto que esta representa apenas modos tradicionais de ação que organizam e acompanham a vida humana desde os tempos mais remotos (produzir fogo, fabricar pão [...]) (Sganzerla, 2012, p. 20).
A ÉTICA EM PSICANÁLISE
AULA 3
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Prof. Leandro Amorim
CONVERSA INICIAL
Este estudo é uma oportunidade para aproximar você do perfil desejado do egresso de um curso de graduação em psicanálise. A ética na psicanálise está alinhada não apenas à formação do analista, mas também à atuação em uma sociedade que evolui em seus princípios morais. Sendo assim, espera-se que o psicanalista esteja apto para se inserir nessa sociedade, sendo parte dela, mas atuando de modo a torná-la mais ética, ou seja, contribuindo para que os valores morais que regem o comportamento das pessoas sejam postos em reflexão constante.
Nesta etapa, vamos refletir sobre o que é moral e o que ética. Vamos conhecer os elementos que servem de referência para a atuação do psicanalista, apresentar as recomendações para o exercício da Psicanálise feitas por Freud, bem como os compromissos assumidos pelos psicanalistas em relação à “Declaração de Direitos Humanos”, considerando o alinhamento dos psicanalistas a outros acordos, estatutos, leis e princípios relacionados ao tema. Vamos ainda dar alguns exemplosdo que seria hoje “falta de ética”, para entender como os profissionais são disciplinados, fiscalizados e penalizados.
O objetivo central deste estudo é contribuir para que você consiga definir os valores fundamentais da psicanálise, sendo capazes de justificar, defender e assumir compromissos com o legado psicanalítico. Ainda, é importante situar a sua formação como analisando e reconhecer o seu percurso como analista. Espera-se ainda que você situe a psicanálise no contexto dos direitos humanos, o que abarca relações étnico-racionais, relações de poder e discussões bioéticas.
Nesta etapa, vamos estabelecer delimitações conceituais sobre os direitos humanos e a sua relação com o psicanalista e a psicanálise.
TEMA 1 – DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS: CONTEXTO HISTÓRICO
O contexto histórico não se desvencilha da história do surgimento da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Na época duas grandes guerras mundiais, especificamente a Segunda Guerra, observamos vários movimentos militares, em especial entre 1939 e 1945, que envolveram toda a Europa, além de países de vários continentes que foram condicionados, em maior ou menor grau, a apoias algum dos lados.
Por volta de abril de 1945, mesmo sem ter sido anunciado um “cessar fogo”, gestores de 50 nações se organizaram e se reuniram em São Francisco, nos EUA, para articular a formação de um “corpo” internacional, com a missão de propagar e promover a paz e evitar futuras guerras.
As intenções desse comitê de delegados foram expressas no preâmbulo da carta proposta: “Nós os povos das Nações Unidas estamos determinados a salvar as gerações futuras do flagelo da guerra, que por duas vezes na nossa vida trouxe incalculável sofrimento à Humanidade”. Esse texto, exposto em uma carta oriunda da ONU, passou a vigorar em 24 de outubro de 1945.
Em meados de 1948, presidida por Eleanor Roosevelt, viúva do presidente Franklin Roosevelt, uma comissão composta por representantes de diferentes origens e culturas de todos os cantos do mundo, representado os Direitos Humanos da ONU, rascunhou um documento que viria a se tornar aquilo que hoje chamamos de Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A instituição da declaração se deu em uma Assembleia geral da ONU, em Paris, no dia 10 de dezembro de 1948, por meio da Resolução n. 217 (III). A ideia era estabelecer uma norma comum a ser conquistada por todas as nações e povos. Fica estabelecido, pela primeira vez na história, uma proteção universal aos direitos humanos.
Vale lembrar que o pano de fundo do processo de constituição da declaração Universal dos Direitos Humanos foi um dos maiores conflitos bélicos da história recente da humanidade, ao longo do qual algumas nações violaram propositalmente regras desses direitos humanos. Estamos nos referindo não apenas ao nazismo, mas também a EUA e Japão, com diferentes proporções.
 Os nazistas, por exemplo, comandados por Hitler, movimentaram grandes complexos de extermínio humano, por meio da aplicação de princípios científicos para uma contínua “eficiência e melhoria” da “produção” humana.
Sob a doutrina racista do III Reich, cerca de 7,5 milhões de pessoas perderam a dignidade e a vida em campos de concentração, especialmente preparados para matar em escala industrial. Para os nazistas, aqueles que não possuíam sangue ariano não deveriam ser tratados como seres humanos. A política anti-semita do nazismo visou especialmente os judeus, mas não poupou também ciganos, negros, homossexuais, comunistas e doentes mentais. Estima-se que entre 5,1 e 6 milhões de judeus tenham sido mortos durante a Segunda Guerra, o que representava na época cerca de 60% da população judaica na Europa. Foram assassinados ainda entre 220 mil e 500 mil ciganos. O Tribunal de Nuremberg estimou em aproximadamente 275 mil alemães considerados doentes incuráveis que foram executados, mas há estudos que indicam um número menor, cerca de 170 mil. (Guimarães, 2023)
Para além das motivações históricas, a elaboração da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, foi uma resposta ao desprezo e ao desrespeito pelos direitos humanos, em práticas ultrajantes e bárbaras contra a consciência da humanidade.
No processo de discussão e elaboração da declaração, foi idealizado o início de um mundo melhor, em que as pessoas tivessem liberdade de expressão e crença, ou seja, liberdade de viverem seguros e longe do medo e da necessidade. Essa sociedade ideal ainda é sonhada, mesmo depois de décadas.
Muitos avanços ocorreram e ainda ocorrem, contudo ainda hoje existem “campos de concentração” que violam os direitos humanos, financiados por ações ditas democráticas. Em suma, se todo o cenário histórico fomentou o nascimento da Declaração Universal, como uma espécie de ruptura e ao mesmo tempo avanço no tocante à dignidade e ao respeito das pessoas humana, ainda hoje temos várias situações de violação desses mesmos direitos. A humanidade ainda precisa avançar na construção de uma humanidade mais “humanizada”, ideal amplamente ansiado pelos signatários desse tão importante documento.
TEMA 2 – IMPORTÂNCIA DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL
Com um pouco mais de 70 anos, em 10 de dezembro de 1948, A ONU, em Paris, estruturava aquele rascunho que se transformou na DUDH (Declaração Universal dos Direitos Humanos). Como vimos, esse documento foi uma resposta emergencial às atrocidades vividas durante a 2ª Guerra Mundial. A partir desse momento histórico, várias nações se responsabilizaram, em um esforço conjunto, para exterminar toda e qualquer forma de abuso e desrespeito aos direitos humanos, o que levou à estruturação de uma norma comum que deveria ser cumprida por todos os envolvidos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é o documento mais traduzido do mundo, com versões em mais de 500 idiomas. Esse documento inspirou a elaboração de constituições de vários estados democráticos, razão pela qual tem relevância jurídica, política e histórica.
A importância do documento na sociedade atual se justifica porque ele se configura um pacto internacional que projeta muitos avanços concretos. Os mais de 70 anos da DUDH devem ser celebrados a fim de que os valores e os propósitos contidos no documento sejam verdadeiramente contemplados na atuação de governos no mundo todo.
Em suma, a DUDH busca um objetivo comum a ser alcançado por todas as comunidades e nações. A ideia central é fazer com que cada indivíduo e cada órgão social se esforce para priorizar a autonomia, a liberdade e o acesso a condições básicas de vida.
A educação deve promover o respeito à execução desses direitos e liberdades, pela adoção de medidas progressivas, particulares e comunitárias, em escala nacional e internacional. É preciso ainda garantir a sua implantação e o seu reconhecimento, observando os direitos universalmente, e de forma efetiva, para os povos dos Estados-membros, assim como para aqueles que compõem as comunidades de territórios sob a sua jurisdição.
A DUDH é um documento que regula a relação entre governantes e pessoas. Contudo, ainda há um itinerário longo e bastante tortuoso para garantir a aplicação dos direitos contidos na carta magna da humanidade.
Vejamos o preâmbulo da declaração:
Declaração Universal dos Direitos Humanos
Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948.
Preâmbulo
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que mulheres e homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum,
Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião

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