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Guerras comerciais

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China e a Organização Mundial do Comércio
A Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1995 com o Acordo de Marraquexe, visa à regulamentação das práticas comerciais dos países-membros, além de fornecer subsídios para a negociação, dirimir conflitos e garantir estrutura de diálogo às partes interessadas. Trata-se, em certo sentido, de uma espécie de “tribunal” de caráter diplomático-jurídico que se consolidou no marco dos esforços para estimular o regime multilateral de comércio no pós-Segunda Guerra.
Organização Mundial do Comércio, OMC, em Genebra, Suíça
Ao longo dos anos, a OMC formulou uma série de medidas que visavam a sanar conflitos que, a seu turno, eram tomados como referência para criar jurisprudência e garantir alguma previsibilidade no comércio internacional. Destarte, a quantidade de contendas submetidas à apreciação da OMC no curso do tempo, mais do que indicar seu lugar estratégico para dirimir disputas, mostra o quão conflituosas podem ser as relações multilaterais que, como se deduz sem muito esforço, partem de lugares assimétricos de negociação e expõem as relações de poder que orientam os diálogos entre os países-membros.
Em 1993, o governo recrudesceu o processo de abertura comercial por meio de cortes tarifários e da redução na proporção de importações sujeitas a cotas, sinalizando maior receptividade ao ingresso de produtos estrangeiros no mercado nacional e, por um princípio de reciprocidade, expressando o desejo de ampliar o mercado consumidor global para os produtos chineses.
As negociações foram longas e marcadas por diversas tensões, mas o crescimento comercial da China era fato consolidado: as exportações começaram a circular com maior intensidade, sobretudo favorecidas por acordos bilaterais. Em certo sentido, a maioria já considerava que a acessão chinesa à OMC era um fato incontornável e que sua ausência acabava por enfraquecer a própria organização.
Em 2001, como adiantamos, o processo que se arrastou por mais de quinze anos encontrou algum termo em reunião realizada no Qatar, a conhecida Rodada de Doha. O protocolo de acesso chinês, aprovado nesse encontro, realizado em novembro, foi ratificado pelo Comitê Permanente do Congresso Nacional do Povo da China em dezembro do mesmo ano, formalizando o ingresso na OMC. Todo esse processo se deu a partir de cláusulas e acordos bastante rígidos que visavam a garantir segurança jurídica e proteção aos países-membros.
Nota-se, inclusive, que tais dispositivos que condicionaram a acessão chinesa foram em muitos pontos mais rígidos do que aqueles aplicados a outros países (PRAZERES, 2005, p. 38). Parte das exigências que recaíram de modo particular sobre a China visavam a coibir o ingresso de produtos chineses nos mercados nacionais, evitando fragilizar as indústrias domésticas que poderiam enfrentar dificuldades em concorrer com produtos similares a preços bem mais baixos.
Contudo, e a despeito das preocupações, houve “uma aceleração na taxa de crescimento econômico da China após 2001, com o boom nas exportações e com fluxos contínuos de investimento estrangeiro direto” (JENKINS, 2019, p. 15). Os sucessivos e grandes superavit permitiram que a economia chinesa acumulasse reservas cambiais ao mesmo tempo que o setor privado se tornou mais lucrativo e produtivo, fenômeno igualmente observado nas empresas estatais. O século XXI começou com a hegemonia estadunidense no comércio global terrivelmente ameaçada.
Ao longo das últimas décadas, muitos discursos que tentavam justificar o crescimento chinês foram levantados. Um deles, bastante presente em alguns setores sociais norte-americanos, sugeria que esse processo tinha se dado à custa da desatenção e letargia dos EUA.
Essa narrativa é recuperada, por exemplo, por Niall Ferguson, historiador escocês e pesquisador de Harvard, que em encontro realizado no Canadá em junho de 2011 considerou que:
O principal motivo para a vantagem da China no século XXI reside, em última instância, no declínio do mundo ocidental (...). O século XXI será da China pelo declínio de uma América obesa, dependente de dinheiro emprestado e por demais sexualizada, sem falar da deficiência da Europa.
(FERGUSON et al., 2012, p. 19)
Os autores citam, cumpre destacar, as crises financeiras de 2008 e o desajuste fiscal das contas estadunidenses, mas, para além desses fatos materiais e das supostas implicações morais, sobrepesa a noção de que o gigante asiático se ergueu não por suas capacidades políticas, mas pela falta de zelo dos estadunidenses em relação a seu lugar na economia global.
Poderíamos recordar também que, por muito tempo, investiu-se na narrativa de que o crescimento chinês se deu à custa da hiperexploração de sua mão de obra, produzindo assim artigos manufaturados em condições de trabalho hostis e impraticáveis, ressoando uma narrativa anticomunista que contrastava a alegada liberdade do trabalhador ocidental com a submissão e tirania a que estavam expostos os trabalhadores asiáticos.
Os números, contudo, desafiam esse discurso. Entre as reformas de Xiaoping e o ano de 2012, a renda da população chinesa saiu de um patamar baixo para uma média alta segundo as diretrizes de análise propostas pelo Banco Mundial. A população que vive abaixo da linha de pobreza saiu de 88% em 1981 para 6,5% em 2012, o que significa, em números totais, que mais de 500 milhões de chineses sentiram os efeitos práticos do crescimento econômico.
Não menos importante, esse cenário também é tributário das altas taxas de investimento público praticadas pelo país, que atingiram 40% do produto interno bruto (PIB) na década de 2000.
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Comentário
Ainda que diversos países asiáticos, incluindo a China, tenham abrigado empresas offshore que buscavam reduzir os custos com mão de obra e encargos trabalhistas, esse cenário não apenas passou por mudanças significativas, mas se viu diante de uma curiosa inversão: enquanto a Europa e os Estados Unidos conviviam com o aumento da informalidade, os trabalhadores e trabalhadoras chinesas viram sua renda média aumentar pari passu aos direitos e garantias fundamentais.
Nenhum fenômeno social, sobretudo com essa complexidade, pode ser compreendido a partir de explicações monocausais; no outro extremo, os analistas também precisam reconhecer as dificuldades de identificar todas as variáveis envolvidas nesse processo.
No entanto, um aspecto que merece destaque e que se desdobra com enorme importância é o investimento para a expansão das empresas chinesas para o exterior.
Sobretudo a partir do Banco de Desenvolvimento da China e do Exim Bank, houve um aporte expressivo de recursos que permitiam que companhias chinesas se movimentassem para além das fronteiras nacionais, principalmente no continente africano, mas também na América Latina e no Caribe.
China trabalha para fortalecer o eixo sul do comércio mundial.
As relações diplomáticas, políticas e comerciais entre a China e essas regiões são bem mais antigas, como se deduz, mas ganharam novas roupagens no início deste século. O governo e o empresariado chineses identificaram o potencial de crescimento econômico desses territórios e reconheceram que poderiam desempenhar papel ativo nesse processo.
Ao longo dos anos, a China foi se consolidando como o mais importante parceiro comercial de boa parte dos países latinos e africanos, além de negociar cláusulas de cooperação internacional que visavam não apenas a assegurar mercados consumidores para os produtos chineses, mas também a garantir obras de infraestrutura e transferência de tecnologia para essas regiões, tendo, como principal contrapartida, a garantia de acesso às matérias-primas necessárias para abastecer suas indústrias com preço e quantidade adequadas para a enorme demanda.
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Comentário
Essas iniciativas consolidam uma dinâmica comercial que se concentra no eixo sul-sul e que produziu enorme impacto na economia, o que por razões óbvias acendeu o alerta do norte global, sobretudo Estados Unidos e Europa, que viviam e vivem períodos bem menos prósperos do quea China.
Cumpre ainda recordar, com Hurrell (2006) e McGrew (2011), que, apesar de todas as mudanças no mundo pós-Segunda Guerra, as principais instituições de governança global tendem a refletir uma ordem mundial concentrada nas expectativas de valores e representações ocidentais, o que promove uma disjunção entre a distribuição real do poder econômico e sua efetiva presença nesses espaços regulatórios.
Recorde-se, igualmente, que a China precisou se adequar às diretrizes da OMC para garantir sua entrada, o que não significa que, uma vez assegurada a acessão, essas mesmas diretrizes não se tornaram objeto de disputa e preocupação.
De um lado, há uma potência asiática que caminha a passos largos em direção à hegemonia no marco do comércio internacional a partir dos esforços de cooperação sul-sul.
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Do outro, potências do norte global, com taxas de crescimento bem inferiores a seu concorrente asiático, buscam manter a posição de destaque e assegurar os privilégios econômicos adquiridos nas últimas décadas.
Guerras comerciais entre EUA e China
As relações comerciais são, por excelência, competitivas e conflitivas. A OMC é, como vimos, uma instituição de governança global que busca normatizar algumas práticas segundo princípios que intentam disciplinar as relações multilaterais.
No entanto, ainda que os fundamentos liberais possam ser eventualmente acolhidos sem maiores interditos pelos países-membros, é certo que nem todos abraçam essas e outras diretrizes sem contestação, sobretudo porque esses valores, como vimos, são tributários de relações de poder que enfatizam uma visão fortemente ocidentalizada.
Soma-se a isso o fato de que, por força das mesmas relações de poder, o aceite às regras do jogo não se confunde com a efetiva assunção de seus méritos:
Em cenários competitivos, mesmo os defensores da lógica liberalizante podem ser contrariados se os resultados não corresponderem às expectativas previstas pelas próprias regras que se esforçaram para definir.
As relações comerciais entre Estados Unidos e China não se tornaram conflituosas a partir de 2001. Em 1974, por exemplo, os estadunidenses aprovaram a emenda Jackson-Vanik, uma lei comercial que impunha uma série de restrições, suscetíveis a revisões anuais, ao antigo bloco soviético e demais países que não praticavam uma economia de mercado segundo as expectativas dos Estados Unidos, como a China.
China e EUA: relações comerciais marcadas por conlitos.
A própria acessão chinesa à OMC foi duramente criticada (e combatida) pelos estadunidenses ao longo dos anos, pelo menos até o governo Bill Clinton, quando a recusa se tornou impraticável e as expectativas que se abriam com o amplo mercado consumidor chinês aos produtos estadunidenses e europeus pareciam mais atraentes do que a desconfiança tradicional. Para a China, a acessão foi decisiva. O comércio de mercadorias passou de US$ 516 bilhões em 2001 para US$ 4,1 trilhões em 2017.
A contrapartida esperada, contudo, frustrou os principais representantes do norte global: ainda que as tarifas aduaneiras chinesas tenham passado por uma queda evidente, saindo de uma média de 32,2% em 1992 para 4,8% entre 2003 e 2017, os ganhos financeiros dos países da União Europeia e dos Estados Unidos ficaram aquém do esperado.
Clientes fazem fila fora do banco Northern Rock para retirar suas economias em função da crise do subprime
Além disso, em 24 de julho de 2007, o índice Dow Jones sofreu forte queda e teve início a chamada crise do subprime, que afetou duramente a economia estadunidense, ainda que seus efeitos tenham sido globais.
O alerta dos economistas já tinha sido dado havia algum tempo. Em abril de 2007, a New Century Financial Corporation, o segundo maior credor de hipotecas do tipo subprime dos Estados Unidos, decretou falência. A expectativa era que a oferta de crédito estimulasse a produção industrial e o setor de serviços, aquecendo a economia.
A realidade, porém, mostrou-se bem mais hostil: o endividamento não apenas afetou o mercado de crédito, mas sobretudo o consumo no mercado interno. Os mercados mundiais acompanharam o impacto sofrido pela economia a estadunidense: no Brasil, por exemplo, o índice B3 (Bovespa) registrou queda de 3,86% naquele mesmo dia 24 de julho, a maior em cinco meses.
Apesar de inúmeras intervenções do Federal Reserve (FED), o Banco Central dos Estados Unidos, a crise se agravou ao longo de 2008.
Vamos entender a ordem dos fatos:
Em Wall Street parecia tudo normal, mas dentro dos escritórios essa normalidade era de uma enorme tensão. Em março daquele ano, o quinto maior banco de investimentos estadunidense, o Bear Stearns, estava muito próximo da falência. Contrariando as disposições liberais, o FED ofereceu uma linha de crédito de US$ 30 bilhões ao JP Morgan Chase para a aquisição do Bear Stearns.
Distrito financeiro de Wall Street
Em julho, duas instituições privadas que administravam mais de US$ 5 trilhões em ativos receberam aporte do Estado de aproximadamente 200 bilhões de dólares. Como a resposta não foi a aguardada, as duas empresas foram, na prática, estatizadas. São elas:
Fannie Mae, com sede em Washington DC.
Freddie Mac, com sede em McLean, Virgínia.
Também em setembro, o quarto maior banco de investimentos, o Lehman Brothers, anunciou prejuízos bilionários e entrou com pedido de falência. As medidas intervencionistas, que contrariavam frontalmente o ideário liberal, persistiram.
O Tesouro americano se apressou em socorrer o mercado financeiro e destinou US$ 700 bilhões para a compra de ativos imobiliários dos bancos visando à recuperação do mercado de crédito.
Apesar dos efeitos positivos dessas intervenções a médio prazo, que interessavam ao mercado, o efeito ao longo desses anos foi de cerca de 8 milhões de estadunidenses perderem seus empregos e suas casas.
Dez anos após a crise, consolidava-se o cenário de desvantagem da economia estadunidense em relação à chinesa. Em 2017, o deficit na balança comercial de bens foi na ordem de US$ 861 bilhões, e o deficit bilateral com a China representou algo próximo a 42% do total, atingindo a marca de US$ 363 bilhões. Mais do que isso, nenhum diagnóstico minimamente sério era capaz de prever a contenção do avanço chinês e a correspondente perda de protagonismo norte-americano no cenário global.
A eleição de Donald Trump em 2016 não pode ser dissociada dessa crise.
Lema patiotista “America First, noticiado no grande jornal internacional de jornalismo, Financial Times.
O lema que o político conservador empunhou durante seu governo, “America First”, designa uma visão tradicional a respeito da política externa estadunidense, marcada pelo patriotismo, nacionalismo econômico, unilateralismo e pela rejeição de propostas internacionalistas.
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Saiba mais
Esse slogan foi associado a outro, “Make America Great Again”, igualmente sugestivo diante de tal cenário.
O principal alvo da política de Trump, que de alguma forma inaugurou a recente guerra comercial com a China, foram as regras tarifárias.
As tarifas e impostos são mecanismos fundamentais para os países regularem o comércio exterior. Tarifas mais baixas tendem a estimular o ingresso de produtos estrangeiros, que podem chegar ao consumidor final com preços bem atrativos.
Para que tais produtos não concorram diretamente com os equivalentes das indústrias domésticas, aumentam-se os impostos de importação. Vale reforçar que esse foi, historicamente, o principal ponto crítico que postergou o acesso da China à OMC.
É bem verdade que muitos alertavam também para os riscos de dumping, prática que ocorre quando uma empresa reduz artificialmente os preços de seus produtos para afetar a concorrência. No entanto, o ponto nevrálgico de todo o debate que mencionamos anteriormente foram as regras tarifárias chinesas.
Os bilhões que o Estado investiu para conter a crise do subprime, vale insistir, ajudaram a superar questões como:
Os graves desequilíbrios macroeconômicos
A perda de competitividade
O desemprego
No entanto, e a despeito da recuperação, a posição dos EstadosUnidos seguiu desvantajosa em relação à China, e Trump não se furtou de revisar as políticas liberais que o país defendia historicamente para o comércio multilateral.
As primeiras medidas unilaterais foram precedidas por um período de profundo tensionamento político.
O procurador-geral dos EUA, Matthew Whitaker, acusou a companhia Huawei de cometer fraudes.
Recorde-se, por exemplo, as especulações francamente alardeadas de que o governo chinês se utilizava de telefones para espionagem. O Departamento de Justiça acusou a companhia Huawei Device Co Ltd de cometer fraudes eletrônicas que, na prática, não foram comprovadas.
Não menos importante, Trump associou à China a responsabilidade pelo supracitado deficit de US$ 800 bilhões. Expressou sua indignação contra as alegadas “práticas desleais” dos chineses, acusando-os igualmente de:
· Guerra cambial (desvalorizar a moeda para favorecer as exportações);
· Dumping;
· Reduzir salários para diminuir os gastos com mão de obra;
· Oferecer juros subsidiados para desenvolvimento do parque industrial;
· Incentivos gerais para exportações, empreender restrições aduaneiras e muitos outros fatores.
Tudo isso precedeu a assinatura de um regulamento, no dia 8 de março de 2018. O documento impunha um adicional de 25% ad valorem do imposto sobre as importações de aço e de 10% sobre alumínio a todos os países. Nesse caso particular, o argumento era de ordem estratégica e de segurança nacional, já que os preços desses produtos impactariam diretamente na indústria militar. Essa decisão repercutiu globalmente.
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Exemplo
As siderúrgicas brasileiras acumularam perdas de US$ 1,91 bilhão em valor de mercado após a queda de suas ações na bolsa de valores.
Um mês depois, em abril, Trump apresentou uma lista de produtos oriundos da China que seriam sobretaxados em valores que, somados, atingiam a marca dos US$ 50 bilhões. A China prontamente reagiu à decisão e notificou a OMC, também sobretaxando produtos dos Estados Unidos, com destaque para a tarifa de 25% sobre a soja exportada por seu concorrente.
Segundo Joshua Brustein:
Ainda que tais medidas tenham colaborado para a diminuição do deficit estadunidense, a China garantiu superavit expressivos graças aos investimentos em tecnologia e inovação científica, o que ampliou a exportação de produtos com alto valor agregado e garantiu maior competitividade nos circuitos globais de bens, serviços e capitais.
(BRUSTEIN, 2019, p. 38-42)
Em dezembro de 2019, os dois gigantes do comércio internacional anunciaram um acordo que arrefeceria essas tensões comerciais antes que entrassem em vigor novos acordos tarifários de significativa repercussão na economia global. Novos acordos bilaterais foram firmados, compromissos de diminuição de impostos aduaneiros foram definidos. As tensões permanecem, mas há sinalizações de ambas as partes de seguir trabalhando em conjunto para reduzir os entraves e conflitos.
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