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iniciao biotica-106

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micos e arrojados; a previdência social
estimula a preguiça – desde os gover-
nos Thatcher, na Inglaterra, e Reagan,
nos Estados Unidos – e que, somada
ao sucesso econômico estadunidense
após aquela guerra, passa a parecer
imbatível. Contudo, o que Rosanvallon
revela com precisão é que existe, na
atualidade, uma crise do paradigma
assegurador no Estado-providência,
pois ao assumir a socialização dos ris-
cos por meio do seguro a sociedade
torna secundária a avaliação das fal-
tas pessoais e das atitudes individuais.
A seguridade instaura a idéia de uma
justiça puramente contratual (o regime
de indenizações), deixando de ser ne-
cessário o recurso à argumentação ju-
rídica ou moral para fundamentar as
políticas sociais. Assim, “o seguro so-
cial funciona como a mão invisível pro-
duzindo segurança e solidariedade
sem que intervenha a boa vontade dos
homens” (28). E tal resultado, compatí-
vel com uma sociedade política e so-
cialmente mais homogênea como
aquela do final do século XIX, é ina-
dequado à sociedade contemporâ-
nea onde, em matéria social, o con-
ceito central é muito mais o de pre-
cariedade ou de vulnerabilidade do
que o de risco.
Com efeito, a organização social
atual não mais estimula a manutenção
de um sistema de seguridade social
como reflexo da solidariedade que de-
corre do conceito de justiça, que de
acordo com Rawls apenas pode ser
estabelecido sob o véu da ignorância.
Assim, para que a virtude da justiça
opere é necessário que “as partes não
saibam como as várias alternativas
irão afetar seu caso particular e que
elas sejam obrigadas a avaliar os prin-
cípios baseadas somente em conside-
rações gerais” (29). Ora, num contex-
to de desemprego em massa e de cres-
cimento da exclusão social a possibili-
dade técnica de se identificar compor-
tamentos individuais que causam pre-
juízos aos próprios indivíduos e à so-
ciedade tende a ser empregada sem-
pre que a solidariedade esteja em dis-
cussão, rasgando o véu da ignorância,
que antes havia permitido a instaura-
ção do seguro social.
A mesma inadequação revelada
pelo mecanismo assegurador na socie-
dade atual parece caracterizar a ordem
jurídica que, para atender a demanda
de regulação de sujeitos complexos e
de setores de funcionamento autôno-
mo, sobrecarrega o legislador. De fato,
no Estado-providência contemporâneo
os problemas de sujeição à lei e de se-
gurança jurídica se agudizam. Eles são
assim descritos por Habermas: “De um
lado, as normas de prevenção defini-
das pelo legislador são apenas parci-
almente capazes de regular
normativamente e incluir no processo
democrático os programas de ação
complexos, concebidos em função de
um futuro longínquo e de prognósticos
incertos que requerem uma constante
autocorreção e são, de fato, dinâmi-
cos. De outro lado, constata-se a der-
rota dos meios de regulação impera-
tivos de prevenção clássicos, conce-
bidos mais em função dos riscos ma-
teriais que de riscos atingindo po-
tencialmente um número importante de
pessoas.” (30). Acrescente-se, ainda,
que os direitos sociais concebidos como
direito compensador de uma disfunção
passageira são inadaptados e terminam
por originar uma espiral de autodes-
truição da solidariedade.
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Contudo, apenas com a rein-
trodução da solidariedade na vida soci-
al se poderá construir um sistema de saú-
de pública justo e, portanto, conforme ao
pretendido pela bioética. Trata-se, então,
de repensar a solidariedade sabendo cla-
ramente qual a situação e quais as opor-
tunidades de cada um. Assim, conven-
cidos de que o véu da ignorância foi ir-
remediavelmente rompido, os homens
do final do século XX buscam encontrar
um caminho comum entre as preferên-
cias individuais, as escalas de valores e
os conceitos para construir a solidarie-
dade, valorizando a cidadania social. A
partir da constatação de que o seguro é
uma técnica, enquanto a solidariedade
é um valor, eles consideram que o segu-
ro pode ser um modo de produção da
solidariedade mas não evitam a conclu-
são de que o imposto deve ser parte do
financiamento do sistema de solidarie-
dade a ser instalado no Estado contem-
porâneo, lembrando que o imposto de
solidariedade será tanto melhor aceito
quanto mais esteja indexado a fatores
objetivos: solidariedade entre deficientes
e normais, jovens e velhos, empregados
e desempregados, pois se a solidarieda-
de consiste em organizar a segurança de
todos ela implica compensar as
disparidades de status. Para tanto, vem
desenvolvendo mecanismos de distribui-
ção vertical – entre classes – no interior
dos sistemas de seguridade social e,
mesmo, criando novos tipos de direito
social, compreendidos entre o direito e
o contrato, tendo por fundamento ex-
presso o princípio da solidariedade (31).
Tem-se claro que o direito pode
assegurar a coesão de sociedades com-
plexas. Entretanto, para que permita a
construção de um sistema de saúde jus-
to, conforme aos princípios da bioética
contemporânea, é indispensável que as
condições procedimentais do processo
democrático sejam protegidas. Isto é,
torna-se necessário garantir que as dis-
cussões relativas à aplicação do direito
sejam completadas por aquelas referen-
tes aos fundamentos do direito. Assim, é
indispensável a criação de um espaço
jurídico público, “suplantando a cultura
existente dos peritos e suficientemente
sensível para submeter ao debate públi-
co as decisões sobre princípios – como
o da solidariedade social – que trazem
os problemas”(32). Ainda na lição de
Habermas, a chave para a gênese de-
mocrática do direito encontra-se na
combinação e mediação recíproca en-
tre a soberania do povo juridicamente
institucionalizada e a soberania do povo
não institucionalizada. Tal equilíbrio im-
plica “a preservação de espaços públi-
cos autônomos, a extensão da partici-
pação dos cidadãos, a domesticação do
poder das media e a função mediado-
ra dos partidos políticos não estatiza-
dos” (33). Assim, por exemplo, a par-
ticipação popular na administração
deve ser considerada um procedimen-
to eficiente ex ante para legitimar as
decisões que – apreciadas conforme
seu conteúdo normativo – atuam como
atos legislativos ou judiciários.
Conclui-se que a aplicação da
bioética na saúde pública implica a cons-
trução de uma sociedade solidária que,
necessariamente, deve estar refletida no
direito de gênese democrática. Ora, ape-
nas a produção da solidariedade, agora
sob o sol do conhecimento, e a manu-
tenção do espaço jurídico público per-
mitem superar a velha oposição entre
direitos formais e reais, direitos políticos
e sociais, e mesmo a diferença entre a
idéia de democracia e a de socialismo,

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