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213 micos e arrojados; a previdência social estimula a preguiça – desde os gover- nos Thatcher, na Inglaterra, e Reagan, nos Estados Unidos – e que, somada ao sucesso econômico estadunidense após aquela guerra, passa a parecer imbatível. Contudo, o que Rosanvallon revela com precisão é que existe, na atualidade, uma crise do paradigma assegurador no Estado-providência, pois ao assumir a socialização dos ris- cos por meio do seguro a sociedade torna secundária a avaliação das fal- tas pessoais e das atitudes individuais. A seguridade instaura a idéia de uma justiça puramente contratual (o regime de indenizações), deixando de ser ne- cessário o recurso à argumentação ju- rídica ou moral para fundamentar as políticas sociais. Assim, “o seguro so- cial funciona como a mão invisível pro- duzindo segurança e solidariedade sem que intervenha a boa vontade dos homens” (28). E tal resultado, compatí- vel com uma sociedade política e so- cialmente mais homogênea como aquela do final do século XIX, é ina- dequado à sociedade contemporâ- nea onde, em matéria social, o con- ceito central é muito mais o de pre- cariedade ou de vulnerabilidade do que o de risco. Com efeito, a organização social atual não mais estimula a manutenção de um sistema de seguridade social como reflexo da solidariedade que de- corre do conceito de justiça, que de acordo com Rawls apenas pode ser estabelecido sob o véu da ignorância. Assim, para que a virtude da justiça opere é necessário que “as partes não saibam como as várias alternativas irão afetar seu caso particular e que elas sejam obrigadas a avaliar os prin- cípios baseadas somente em conside- rações gerais” (29). Ora, num contex- to de desemprego em massa e de cres- cimento da exclusão social a possibili- dade técnica de se identificar compor- tamentos individuais que causam pre- juízos aos próprios indivíduos e à so- ciedade tende a ser empregada sem- pre que a solidariedade esteja em dis- cussão, rasgando o véu da ignorância, que antes havia permitido a instaura- ção do seguro social. A mesma inadequação revelada pelo mecanismo assegurador na socie- dade atual parece caracterizar a ordem jurídica que, para atender a demanda de regulação de sujeitos complexos e de setores de funcionamento autôno- mo, sobrecarrega o legislador. De fato, no Estado-providência contemporâneo os problemas de sujeição à lei e de se- gurança jurídica se agudizam. Eles são assim descritos por Habermas: “De um lado, as normas de prevenção defini- das pelo legislador são apenas parci- almente capazes de regular normativamente e incluir no processo democrático os programas de ação complexos, concebidos em função de um futuro longínquo e de prognósticos incertos que requerem uma constante autocorreção e são, de fato, dinâmi- cos. De outro lado, constata-se a der- rota dos meios de regulação impera- tivos de prevenção clássicos, conce- bidos mais em função dos riscos ma- teriais que de riscos atingindo po- tencialmente um número importante de pessoas.” (30). Acrescente-se, ainda, que os direitos sociais concebidos como direito compensador de uma disfunção passageira são inadaptados e terminam por originar uma espiral de autodes- truição da solidariedade. 214 Contudo, apenas com a rein- trodução da solidariedade na vida soci- al se poderá construir um sistema de saú- de pública justo e, portanto, conforme ao pretendido pela bioética. Trata-se, então, de repensar a solidariedade sabendo cla- ramente qual a situação e quais as opor- tunidades de cada um. Assim, conven- cidos de que o véu da ignorância foi ir- remediavelmente rompido, os homens do final do século XX buscam encontrar um caminho comum entre as preferên- cias individuais, as escalas de valores e os conceitos para construir a solidarie- dade, valorizando a cidadania social. A partir da constatação de que o seguro é uma técnica, enquanto a solidariedade é um valor, eles consideram que o segu- ro pode ser um modo de produção da solidariedade mas não evitam a conclu- são de que o imposto deve ser parte do financiamento do sistema de solidarie- dade a ser instalado no Estado contem- porâneo, lembrando que o imposto de solidariedade será tanto melhor aceito quanto mais esteja indexado a fatores objetivos: solidariedade entre deficientes e normais, jovens e velhos, empregados e desempregados, pois se a solidarieda- de consiste em organizar a segurança de todos ela implica compensar as disparidades de status. Para tanto, vem desenvolvendo mecanismos de distribui- ção vertical – entre classes – no interior dos sistemas de seguridade social e, mesmo, criando novos tipos de direito social, compreendidos entre o direito e o contrato, tendo por fundamento ex- presso o princípio da solidariedade (31). Tem-se claro que o direito pode assegurar a coesão de sociedades com- plexas. Entretanto, para que permita a construção de um sistema de saúde jus- to, conforme aos princípios da bioética contemporânea, é indispensável que as condições procedimentais do processo democrático sejam protegidas. Isto é, torna-se necessário garantir que as dis- cussões relativas à aplicação do direito sejam completadas por aquelas referen- tes aos fundamentos do direito. Assim, é indispensável a criação de um espaço jurídico público, “suplantando a cultura existente dos peritos e suficientemente sensível para submeter ao debate públi- co as decisões sobre princípios – como o da solidariedade social – que trazem os problemas”(32). Ainda na lição de Habermas, a chave para a gênese de- mocrática do direito encontra-se na combinação e mediação recíproca en- tre a soberania do povo juridicamente institucionalizada e a soberania do povo não institucionalizada. Tal equilíbrio im- plica “a preservação de espaços públi- cos autônomos, a extensão da partici- pação dos cidadãos, a domesticação do poder das media e a função mediado- ra dos partidos políticos não estatiza- dos” (33). Assim, por exemplo, a par- ticipação popular na administração deve ser considerada um procedimen- to eficiente ex ante para legitimar as decisões que – apreciadas conforme seu conteúdo normativo – atuam como atos legislativos ou judiciários. Conclui-se que a aplicação da bioética na saúde pública implica a cons- trução de uma sociedade solidária que, necessariamente, deve estar refletida no direito de gênese democrática. Ora, ape- nas a produção da solidariedade, agora sob o sol do conhecimento, e a manu- tenção do espaço jurídico público per- mitem superar a velha oposição entre direitos formais e reais, direitos políticos e sociais, e mesmo a diferença entre a idéia de democracia e a de socialismo,
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