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iniciao biotica-132

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e da biologia (ofertando subsídios) com
relação à valoração bioética (que é
também do médico e do biólogo, no
sentido de se utilizar o seu conhecimen-
to das “ciências da vida”, mas tam-
bém o seu pensamento de homens do-
tados de sentimentos e de razão), e o
papel do legislador, assessorado pelo
que os nossos mestres denominavam
simplesmente “Medicina Legal”, crian-
do as leis e determinando as sanções
para os que as descumprirem.
Use-se agora um outro exemplo,
que é o da discussão da ideologia que
norteou a lei antitóxicos. No momento
em que se estabelece punição para o
usuário de drogas (ou mesmo para
quem as transporte, em doses mínimas,
para uso pessoal) assume-se, implici-
tamente, uma postura paternalista da
sociedade, não permitindo que uma
pessoa se valha de suas percepções
(ainda que com risco de dependência)
na busca do “seu” prazer. Mesmo
transcendendo ao enfoque penal, a sim-
ples conotação de “doente”, aplicada
ao fármaco-dependente, que portanto
“precisa ser tratado”, pressupõe que as
pessoas não são livres para procura-
rem sua satisfação da maneira que
preferirem, ainda que não prejudiquem
de qualquer forma a dinâmica social.
Não sendo este o momento para que
nos posicionemos sobre o assunto, fica
claro que nossa legislação é
heteronômica (paternalista) e, conse-
qüentemente, não-autônomica, impon-
do punição (ou tratamento compulsó-
rio) a quem realize escolhas que fogem
ao consenso social.
Observamos, uma vez mais, que
a reflexão bioética lastreada no conhe-
cimento científico dos efeitos da dro-
ga sobre a personalidade – reflexão
essa onde se visa à definição do que é
mais importante, a autonomia da pes-
soa ou o suposto bem-estar social – é
ao mesmo tempo criminológica e, na
acepção mais abrangente do termo,
também médico-legal. Muitos outros
exemplos poderão ser aqui trazidos. A
legislação sobre transplantes de órgãos
fundamenta-se num “pensar bioético”
e, a partir do momento que se visou
uma normatização jurídica, num “pen-
sar médico-legal”. São um rim, um
segmento de fígado, a medula óssea, o
próprio sangue, bens disponíveis?
Uma pessoa pode doá-los, estando em
vida, ou até vendê-los? É a própria vida
um bem disponível (ou não), a ponto
de aceitarmos (ou não) a eutanásia
(em termos de o médico ser parceiro
do seu paciente num processo de abre-
viação da vida), ou ela pertence ao
médico, à família, ao Estado ou a Deus
(só eles poderiam retirá-la)? Essa re-
flexão é tipicamente bioética,
posicionando-se as pessoas num ou
noutro sentido segundo suas crenças
e razões.
Ponderações semelhantes ocor-
rem com relação ao cadáver, tendo
sido questionada a legislação que tor-
nou a retirada de órgãos de cadáveres
para transplantes obrigatória, a menos
que exista objeção expressa em vida
por parte da própria pessoa ou de sua
família. E os juristas necessitam deste
“pensar médico-legal”, que se
complementa com o “bioético”, ao re-
digirem as leis.
E o que se dizer da discussão éti-
co-jurídica quanto à descriminação
das cirurgias de “mudança de sexo”
de transexuais, a seu pedido, ou,
mesmo, das laqueaduras de trompa
e das vasectomias por solicitação dos
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pacientes, para controle da natalida-
de? Andaram bem, o Conselho Fede-
ral de Medicina e o Conselho Regional
de Medicina do Estado de São Paulo
(CFM e CREMESP) – embora, a nos-
so ver, de forma tímida –, ao emitirem
resoluções referentes às cirurgias de
“mudança de sexo” em transexuais e
de “esterilização (laqueaduras de trom-
pas e vasectomias) – Resolução CFM
nº 1.482/97 e parecer/consulta CRM nº
20.613/94 –, dando aso a que essas
intervenções, tendo a autonomia como
norte, possam ser realizadas.
Não há mais dúvidas, a esta altu-
ra, quanto à convergência, na sua
conceituação mais profunda, entre a
Bioética e a Medicina Legal. Não se
trata mais, apenas, do Direito Médico
sendo a contramão da Medicina Le-
gal. É a própria ideologia da Bioética
que se superpõe à da Medicina Le-
gal, considerada no seu sentido mais
amplo.
Eminentes professores de Medici-
na (e também de Medicina Legal) pre-
tenderam (e raramente conseguiram)
influir nos parâmetros de moral vigen-
te. Transcrevem-se, aqui, trechos da
tese de doutoramento de José
Leopoldo Ferreira Antunes:
“Senhores, quando se trata de
estudar a civilização, bem como qual-
quer outra condição, qualquer outro
fenômeno moral complexo ...” A.J. de
Souza Lima, 1885.
Com estas palavras, o Dr. Agosti-
nho José de Souza Lima introduzia
uma questão de método relativa à
abordagem de algum tema que inte-
ressou a classe médica durante sua
gestão como presidente da Academia
Imperial de Medicina do Rio de Ja-
neiro”.
O autor da tese, partindo da afir-
mação de Souza Lima, observa em
seguida, iniciando seu trabalho, a ten-
tativa de se dar à Medicina uma
conotação positivista, transformando-
a em “ciência da moral”.
E escreve: “Assim deslocado de
seu contexto original, assim recortado
e isolado, esse trecho de frase serve
bem como epígrafe para a introdução
de um trabalho que procurou mostrar
o pensamento médico dirigindo-se a
objetos da vida social, mais especifi-
camente aos fatos morais relacionados
ao crime, ao sexo e à morte. Um traba-
lho que se debruçou sobre um período
da história da medicina no Brasil, no
qual se produziu uma ampla e
criteriosa reflexão sobre esses temas.
Uma reflexão que se pretendeu “cien-
tífica”, isto é, submetida às confronta-
ções teóricas e verificações empíricas.
De algum modo, a citação refere esse
esforço dos médicos que fizeram da
medicina uma verdadeira ciência do
social. Mais que isso, fizeram da me-
dicina algo bem próximo daquilo que
Augusto Comte queria fazer da socio-
logia: uma ciência da moral.
Com esses predicados, o trabalho
que ora se introduz deveria interessar
especialmente aos médicos e aos so-
ciólogos; mas corre o risco de desa-
gradar tanto uns como outros. Aos pri-
meiros, porque possivelmente não re-
conhecerão a medicina legal na proje-
ção histórica delineada para a especia-
lidade. Talvez rejeitem, como excessi-
va, a amplitude dos temas e aborda-
gens; talvez reivindiquem um perfil téc-
nico mais restrito para sua atividade
profissional. Aos segundos, porque
muitos deles dificilmente aceitarão a
leitura do pensamento médico como

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