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Daniele Borges Bezerra; Juliane Conceição Primon Serres | 29 
 
uma vez por todas de um aniquilamento de uma vez por todas. [...] 
Não escrevo para dizer que não direi nada, não escrevo para dizer 
que não tenho nada a dizer. [...] Escrevo porque eles deixaram em 
mim a sua marca indelével e o vestígio disso é a escrita; a 
lembrança deles está morta na escrita; a escrita é a lembrança de 
sua morte e a afirmação de minha vida (idem, p.54, grifos nossos). 
 
Na obra de Perec os trechos de “silêncio” e fabulação tomam 
o lugar da falta, presente e intermitente. A busca pela verdade é uma 
tentativa de por fim à repetição, sintoma manifesto do trauma 
(MORENO; COELHO, 2012). Como resultado da ausência, a busca 
pela verdade. Se a empreitada de quinze anos de escrita leva a crer 
que apesar dos esforços o autor não recuperou muitas informações 
acerca do seu passado, também é possível compreender que o autor 
encontrou na escrita um terreno seguro, tal como proposto pelo 
escritor Ítalo Calvino (IN AMARO; FERREIRA, 2006 p.139), e uma 
maneira de dar materialidade tanto aos sentimentos dolorosos como 
às faltas, uma forma de territorializar os afetos e de nomear 
sentimentos inescapáveis. A obra de Perec nos permite afirmar que 
arquivar o próprio passado (ARTIÈRE, 1998), quando a construção 
narrativa passa pelo reconhecimento de memórias difíceis, é uma 
maneira de dar forma ao indizível. Mesmo que estas formas não 
coincidam com os fatos, mesmo que para construir uma memória o 
narrador precise construir um mundo imaginário para onde escapar 
quando as emoções se tornarem lancinantes. 
As narrativas de vidas, que foram atravessadas pela 
hanseníase, nos permitem acessar experiências particulares que nos 
apresentam outros pontos de vista sobre a história da saúde pública. 
Além disso, as narrativas autobiográficas assumem valor de 
documento do vivido, se considerarmos que “o testemunho é uma 
espécie de declaração, de certificação [...]” (RICOEUR, 2006, p.142), 
que tem a experiência como ponto de partida e a narrativa como 
ponto de ancoragem. 
Paul Ricoeur fala da pedagogia por trás da chamada “memória 
artificial” cujo mecanismo “[...] consiste em lugares e em imagens” 
30 | Saúde e Doenças no Brasil: Perspectivas entre a História e a Literatura 
 
(RICOEUR, 2007, p.76). Os lugares são o suporte da inscrição, 
representam a marca da anterioridade e as imagens tomam forma 
de narrativa permitindo que os eventos do passado se mantenham 
acessíveis. Assim, as narrativas autobiográficas constituem-se, 
também, num tipo de pedagogia da memória. Ao propormos a 
literatura autobiográfica como uma tipologia de lugar de memória, 
podemos considera-la como um meio para “conservar a vida em 
lugar fresco” (LEJEUNE, 1997, p.111), tendo em consideração que a 
memória “se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, 
no objeto” (NORA, 1981, idem, p.9). São lugares de memória “nos 
três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional” (NORA, 
p.21), pois assumem a função de território, desempenham um valor 
simbólico, e garantem a cristalização e a transmissão das memórias. 
 
A passagem da memória à narrativa impõe-se assim: lembrar-se 
de forma privada assim como de forma pública, é declarar que ‘eu 
estava lá’. O testemunho diz: ‘eu estava lá’. E esse aspecto 
declarativo da memória vai se inscrever nos testemunhos, mas 
atestações, mas também numa narrativa pela qual eu digo aos 
outros o que eu vivi (RICOEUR, 1996, p.1, grifos nossos). 
 
As experiências difíceis que tiveram início com o adoecimento 
pela lepra, com o preconceito e com o isolamento compulsório, 
também encontram na escrita autobiográfica um refúgio, uma 
forma de territorializar as emoções, e uma forma de transmitir 
elementos selecionados do passado vivido. Como é possível 
apreender a partir das palavras de Bacurau: 
 
Quando Pedrinho chegou ao leprosário, que ficava a alguns 
quilômetros da cidade, não pode conter as lágrimas. Não que o 
lugar em si o horrorizasse. Mas é que ele, aos treze anos, nunca 
tinha se ausentado dos seus e a saudade dos folguedos de casa, com 
todo o convívio de sua família, era-lhe insuportável. [...] E ao dar-
se conta de que realmente passara a morar naquele lugar que todos 
achavam repulsivo, inclusive ele próprio, impossível lhe foi conter 
o compulsivo choro que lhe fez companhia durante toda a sua 
primeira noite de internato! [...] A realidade, entretanto era bem

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