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Leicy Francisca da Silva; Ordália Cristina Gonçalves Araújo | 123 terras goianas com vistas à propagação do discurso e da prática protestante. As obras foram escritas basicamente na língua inglesa para o público protestante anglo-saxônico, seja na Europa ou nos Estados Unidos; algumas ainda não possuem tradução em português, as demais foram traduzidas anos e até décadas depois de terem sido publicadas nos países de origem dos missionários.1 Imbuídas de um ideal salvacionista e civilizacional que taxonomiza, hierarquiza e prescreve valor perspectivado pelas lentes europeias, a literatura protestante acompanha a tônica da escrita memorialística dos viajantes que passaram por Goiás no decorrer do século XIX, uma escrita na qual “as distâncias, as péssimas condições das estradas, a indolência dos habitantes contribuíram para atestar o seu atraso” (MAGALHÃES, 2014, p. 57). Sob o viés da decadência, o território goiano foi narrado nas crônicas dos viajantes – naturalistas e missionários europeus, cariocas ou paulistas (TEIXEIRA, 2013; GOMES FILHO, 2015) – que percorreram a região do início ao fim do século XIX. Reproduzida nos relatórios dos Governadores de Província do período pós- mineratório, a concepção sedimentada de decadência foi substituída pela ideia de atraso na Primeira República, algo que repercutiu fortemente na historiografia regional de Luis Palacin, Maria Augusta de Sant’Anna Moraes e Dalísia Doles. Por volta de 1970, tal concepção historiográfica passou por um processo de revisão em seus pressupostos ao relativizar o contexto de “decadência” e “estagnação” econômica em pesquisas desenvolvidas por historiadores como Paulo Bertran, Eurípedes Funes, Tarcísio Rodrigues Botelho e Nars Fayad Chaul cujo resultado foi a abertura para novos objetos e abordagens sobre a história regional do século XIX e períodos subsequentes (MAGALHÃES, 2014, p. 57-61). 1 São elas: de William Azel Cook, Through the wildernesses of Brazil by horse, canoe and float; de Frederick Charles Glass, Aventuras com a Bíblia no Brasil, de Archie Macintyre, Descendo o rio Araguaia; de James Fanstone, Missionary adventure in Brazil: the amazing story of the Anapolis Hospital, with reminiscences by its founder Dr. James Fanstone; de Rettie BuchanWilding (Sorrindo em lágrimas). 124 | Saúde e Doenças no Brasil: Perspectivas entre a História e a Literatura Analisar a literatura protestante, nesse contexto, perfaz um percurso analítico alinhado com a postura revisionista da historiografia goiana. Assim é que a história da saúde e das doenças (MAGALHÃES, 2014; CARVALHO, 2015; SILVA, 2016) compreende uma importante área de estudo na historiografia goiana em interface com outros vieses analíticos, qual seja a análise da literatura protestante para além dos dados de conquista religiosa. Significa elaborar uma abordagem crítica da relação história e literatura desde um aporte documental comumente percebido apenas como fonte para o estudo dos protestantismos (ARAÚJO, 2016). Elucidar o enfoque dado à saúde e à doença na literatura protestante produzida na Primeira República contribui para a historiografia no que se refere ao campo da história da saúde e das doenças e da medicina no estado de Goiás; embora tal literatura não tenha se ocupado primordialmente com as doenças dos goianos.2 Isso porque analisar a maneira como os missionários abordam o assunto permite questionar se eles dispunham de algum recurso terapêutico para sanar as doenças e como a formação missionária dava-lhes condições para lidar com a carência médica na região? E se havia, nesse momento, um projeto destas instituições missionárias para atuação no setor sanitário? A hipótese que dirige nossa escrita é a de que podemos perceber pela documentação dois momentos distintos das ações desse grupo religioso em Goiás no período estudado. O primeiro caracterizado por ações de reconhecimento da região e de conquista ampla, sem uma conformação dentro de instituições específicas, tanto no setor da 2 No geral, trata-se de uma literatura confessional e apologética com objetivos múltiplos: relatar as atividades realizadas pelos missionários em Goiás, uma espécie de prestação de contas pelo trabalho realizado; possibilitar o conhecimento, ainda que por suas lentes eurocentradas, do ambiente goiano com todos os seus elementos (clima, hidrografia, geografia, fauna, flora), das pessoas e seus hábitos cotidianos, especialmente as práticas religiosas de cunho católico; mostrar a necessidade de expansão do protestantismo nessas regiões, consideradas atrasadas nos aspectos sociais, econômicos, culturais e religiosos; e, em decorrência disso, sensibilizar igrejas e agências missionárias protestantes para se responsabilizar pelo sustento e manutenção financeira de instituições filantrópicas no estado de Goiás.
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