Prévia do material em texto
SEMÂNTICA E PRAGMÁTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA INTRODUÇÃO Prezado aluno, O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! Semântica formal: diferentes abordagens Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Definir “significado” à luz da semântica formal. Explicar o princípio da composicionalidade. Categorizar os elementos da recursividade na teoria semântica. Introdução Neste capítulo, você vai dar os primeiros passos rumo à semântica formal, uma das vertentes da semântica. Como você vai ver, estudar o significado por meio da semântica formal implica compreender a maneira como ele é configurado a partir das relações lógicas entre a língua e o mundo externo ao falante. Assim, em um primeiro momento, você vai verificar como o signifi- cado é tratado pela semântica formal. Em seguida, você vai conhecer o princípio da composicionalidade. Por fim, você vai entrar em contato com os principais elementos da recursividade voltados à semântica formal. 1 A semântica formal e o estudo do significado Originada a partir dos estudos sobre lógica desenvolvidos pelo fi lósofo Richard Montague em meados do século XX, a semântica formal é uma vertente da semântica. Ela estuda o signifi cado com base na perspectiva da referenciali- dade, ou seja, a partir da noção de que as línguas estabelecem uma referência aos objetos do mundo (CANÇADO, 2005). Assim, o conceito de referencialidade é fundamental para essa vertente da semântica. A referencialidade está ligada ao “[...] fato de que as línguas naturais são utilizadas para falar sobre objetos, indivíduos, fatos, eventos, propriedades [...] descritos como externos à própria língua [...]” (MÜLLER; VIOTTI, 2016, p. 2), articulando tanto o conhecimento do falante sobre o seu idioma quanto o conhecimento que ele tem do mundo à sua volta. Para compreender melhor como funciona a referencialidade, observe a Figura 1, a seguir. Figura 1. A referencialidade. Fonte: Adaptada de Snake22/Shutterstock.com. O significado e a condição de verdade Como você viu, a referencialidade é uma característica básica da semântica formal. A partir dela, outra singularidade emerge. Tal singularidade é descrita por Müller e Viotti (2016, p. 138): Por esta razão, na Semântica Formal, o significado é entendido como uma relação entre a linguagem por um lado, e, por outro, aquilo sobre o qual a linguagem fala. Este “mundo” sobre o qual falamos quando usamos a lin- guagem pode ser tomado como o mundo real, parte dele, ou mesmo outros mundos ficcionais ou hipotéticos. Nesse contexto, para essa vertente da semântica, “[...] dar o significado de uma sentença é dizer em que condições essa sentença seria verdadeira [...]” (CANÇADO, 2005, p. 140). Assim, o significado está diretamente associado ao conceito de condição de verdade, que você vai conhecer melhor a seguir. Considere esta sentença como exemplo: Um homem pulou o muro. Agora veja o que Cançado (2005, p. 140) afirma sobre ela: “Se tentarmos explicar o significado da sentença [...], diríamos que ela significa que uma pessoa, com as qualidades normalmente atribuídas a homem (sexo masculino, Semântica formal: diferentes abordagens2 adulto...) fez um movimento para ultrapassar um obstáculo, chamado muro [...]”. Se você precisasse definir em que condições essa sentença seria aceita como verdadeira, teria a seguinte resposta: a sentença “Um homem pulou o muro” será verdadeira quando (a) existir no mundo a que se faz referência um ser com características masculinas e que seja adulto; (b) e esse ser fizer uma ação de transpor um obstáculo fruto de uma construção vertical de alvenaria. Logo, para que essa sentença tenha condições de verdade, um conjunto de circunstâncias deve ser atendido. Um homem não pode pular um muro se só houver uma mulher trocando o pneu de um carro, pois essa condição de verdade não é compatível com a sentença anterior. É por isso que a base da semântica formal, bem como a sua maneira de investigar o significado, é referencial, e não mentalista ou enunciativa. Caso não se estabeleça a referencialidade entre uma língua natural e o mundo ao qual essa língua faz referência, o significado não é estabelecido. Aliás, outra questão importante — que você não pode confundir com a anterior — é se a sentença é verdadeira ou não. Isso é completamente diferente do conceito de condição de verdade. Considere novamente o exemplo anterior. Se um homem realmente pulou, a sentença é verdadeira. Seguindo a mesma lógica, se um homem realmente não pulou, a sentença é falsa. Porém, antes de se afirmar que a sentença é verdadeira ou falsa, é imprescindível que exista um ser humano do sexo masculino, adulto, praticando a ação de transpor um muro, ou seja, a condição de verdade da sentença é essencial. A fim de arrematar isso, Cançado (2005, p. 140–141) comenta que é possível saber quais são as condições em que uma sentença é verdadeira sem saber se ela é verdadeira ou não: “[...] o que precisa ficar claro é que o significado da sentença está associado às condições de verdade da sentença, e não à sua verdade ou falsidade [...]”. 2 Princípio da composicionalidade Você já viu como a semântica formal estuda o signifi cado, principalmente por meio da perspectiva da referencialidade. Você também conheceu o conceito de condição de verdade. Agora, você vai estudar outro conceito importante para essa vertente da semântica, o princípio da composicionalidade. 3Semântica formal: diferentes abordagens Como pontua Cançado (2005), o princípio da composicionalidade afirma que o significado de uma sentença é fruto do significado dos seus itens lexicais mais a combinação sintática deles. Considere o seguinte: Se soubermos o significado das partes da sentença e soubermos as regras que explicitam como combinar essas partes, então podemos deduzir o significado da sentença, ou seja, se soubermos o significado das unidades e regras para montá-las em unidades mais complexas, então poderemos construir e inter- pretar uma infinidade de sentenças novas, assim como explicar por que certas interpretações não são possíveis (CANÇADO, 2005, p. 141). Aliás, Müller e Viotti (2016) elaboram um comentário pertinente no que diz respeito à produtividade que as línguas naturais possuem em função de tal princípio. Veja: As línguas naturais nos permitem produzir e compreender constantemente significados novos. E isto não só pela sua flexibilidade na criação de palavras novas, mas principalmente porque elas nos permitem produzir e compreender sentenças completamente novas. Isso é possível porque a partir do significado dos itens lexicais e da maneira com estes se compõem derivamos o significado das unidades complexas. Ou seja, cada parte de uma sentença contribui de uma forma sistemática para seu significado (MÜLLER; VIOTTI, 2016, p. 139). Esse comentário é bastante pertinente. Imagine que os idiomas são organis- mos humanos e que as palavras são as células, unidades menores e mais simples. Essas unidadespermitem construir unidades maiores e mais complexas. Quando você pensar no princípio da composicionalidade, relacione-o à composição, isto é, ao produto da união de partes menores. Aplicação do princípio da composicionalidade Como você viu, a semântica formal estuda o signifi cado a partir da perspectiva da referencialidade. Assim, para que o signifi cado se estabeleça, deve haver um conjunto de circunstâncias básicas, ou seja, a condição de verdade. Depois que isso estiver consolidado, o falante de uma língua pode compreender o Semântica formal: diferentes abordagens4 sentido de um enunciado por meio do princípio da composicionalidade. Tal princípio, como você já sabe, afi rma que o signifi cado de um enunciado está ligado ao signifi cado dos seus itens lexicais, bem como à maneira pela qual esses itens estão dispostos sintaticamente (CANÇADO, 2005). Considere como exemplo a sentença a seguir: (1) João abraça Maria. Na sentença (1), existem três itens lexicais: “João”, nome de uma pessoa do gênero masculino; “abraça”, ação de dar um abraço em alguém; “Maria”, nome de uma pessoa do gênero feminino. Agora considere a disposição sintática desses itens da sentença (1). Ob- serve que a sentença (S) é constituída de um sintagma nominal (SN) e de um sintagma verbal (SV). O SN é formado por um núcleo (N), no caso, “João”. Por sua vez, o SV é formado por um verbo (V), “abraça”, e um SN, “Maria”. Isso que você acabou de ler pode ser representado pela Figura 2. Figura 2. Diagrama de árvore da sentença (1). 5Semântica formal: diferentes abordagens A partir da disposição sintática da sentença, mais os significados par- ticulares de cada item lexical, tem-se a seguinte situação: para entender o significado de S, é preciso entender o significado de SN e SV. Para entender o SN, é preciso entender o significado de N. Para entender o significado de SV, é necessário entender o significado de V e de SN. Logo, conhecendo a composição dos itens lexicais e de seus respectivos significados, é possível compreender o significado total da sentença. É em virtude disso que o princípio da composicionalidade tem esse nome. Por meio da composição de unidades menores e simples, pode-se entender as unidades maiores e complexas. 3 Recursividade na semântica formal Agora você vai ver como categorizar os elementos de recursividade da se- mântica formal. Como você viu antes, o princípio da composicionalidade afi rma que “[...] o signifi cado de uma sentença não é determinado apenas pelo signifi cado de suas palavras, mas também por sua estrutura gramatical [...]” (MÜLLER; VIOTTI, 2016, p. 141). Por sua vez, Oliveira (2001, p. 143) pontua que, considerando os pressupostos da semântica formal, “Um falante, quando interpreta uma sentença qualquer, atribui referências aos nomes que utiliza, relacionando, de algum modo, a cadeia sonora a objetos no mundo [...]”. Para Oliveira (2001), dependendo do modo como o falante relaciona a língua com o mundo, sobretudo por meio de sentenças, há determinada construção de significados. É nesse contexto que os elementos recursivos de acarretamento, pressu- posição, paráfrase, contradição e ambiguidade se inserem. A seguir, você vai conhecer a definição desses elementos e ver alguns exemplos práticos, com o intuito de categorizá-los. Acarretamento O acarretamento, segundo Cançado (2005), ocorre a partir da seguinte lógica: a verdade de uma sentença consequentemente leva à verdade de outra, e, por sua vez, o conteúdo expresso na segunda está contido na primeira. A fi m de compreender melhor, observe as sentenças a seguir: (2) Carlos continua doente. (3) Carlos adoeceu na infância. Semântica formal: diferentes abordagens6 Note que, se (2) é verdadeiro, consequentemente (3) também será. Além disso, a informação de (3) está contida em (2); logo, a sentença (2) acarreta a sentença (3). Outro detalhe frisado por Cançado (2005) em relação ao acarre- tamento é relativo à assimetria. Você pode perceber isso tomando novamente como exemplo as sentenças (2) e (3). Como (2) acarreta (3), não pode haver o caminho inverso, isto é, (3) acarretando (2). Müller e Viotti (2016, p. 145) também comentam sobre o acarretamento: Acarretamento é uma relação de sentido fundamental entre sentenças e de- termina alguns de nossos padrões de inferência. Por exemplo, se (a) e (b) são verdadeiras, nós sabemos que (c) é verdadeira. Podemos dizer que (a) e (b) juntas acarretam (c) porque a situação descrita por (a) e (b) juntas é suficiente para descrever a situação em (c). Você pode ver isso no exemplo a seguir. (4) Jupará é mamífero. (5) Jupará é notívago. (6) Jupará é mamífero e notívago. Note que as sentenças (4) e (5) acarretam (6), porque as duas primeiras juntas descrevem a última. Caso isso esteja em um texto, o acarretamento pode se mostrar um aliado relevante na interpretação textual. Pressuposição A pressuposição, como afi rma Cançado (2005), é uma espécie de acarreta- mento, porém ocorre de forma mais implícita. Ou seja, a pressuposição não está totalmente explícita no material linguístico. Nesse sentido, a pressuposição implica uma afi rmação antecipada. Para entender isso melhor, veja o exemplo apresentado por Müller e Viotti (2016): (7) A Maria parou de fumar. Quando você lê essa sentença, pode fazer a afirmação antecipada de (7): (8) A Maria fumava. 7Semântica formal: diferentes abordagens Note que, antes de parar de fumar, necessariamente deve haver a ação de fumar. Logo, a sentença (8) traz uma suposição anterior à apresentada em (7), isto é, uma pressuposição. Complementando a fala das autoras, Cançado (2005, p. 33) indica que a pressuposição “[...] é derivada a partir da estrutura linguística da própria sentença; são determinadas construções, expressões linguísticas, que desencadeiam essa pressuposição [...]”. De fato, no sintagma verbal de (7), existe o verbo “parou” e também há o sintagma preposicional “de fumar”, que só poderia existir devido ao verbo “fumava” de (8). Paráfrase Segundo Cançado (2005, p. 28), “Quando temos uma relação simétrica, ou seja, a sentença (a) acarreta a sentença (b) e a sentença (b) também acarreta a sentença (a), temos a relação de paráfrase [...]”. Diferentemente do que ocorre no acarretamento, em que as sentenças são assimétricas — ou seja, uma sentença está contida na outra, fazendo com que uma acarrete a outra, e não o contrário —, na paráfrase o acarretamento é mútuo. Para entender isso com mais clareza, veja estes exemplos de acarretamento: (9) Carlos continua doente. (10) Carlos adoeceu na infância. Agora veja estes exemplos de paráfrase: (11) Governo Federal atrasa os salários dos servidores. (12) Governo Federal não paga o ordenado dos funcionários públicos na data prevista. A informação de (10) está contida em (9), sendo que (9) acarreta (10), isto é, o conteúdo expresso na segunda sentença consequentemente levou à primeira, portanto há uma relação assimétrica. No entanto, isso não ocorre em (11) e (12). Nessas duas últimas sentenças, a relação é assimétrica, sendo que o significado ocorre tanto em (11) quanto em (12). Assim, a paráfrase pode ser formada tanto por itens lexicais sinônimos como por estruturas sintáticas distintas, mas que mantenham a mesma relação entre os objetos descritos. Semântica formal: diferentes abordagens8 Em relação à paráfrase, há um dado importante. Segundo a ABNT NBR 10520:2002, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), é por meio da paráfrase que ocorre a citação indireta em textos acadêmicos. Contradição A contradição, como afi rma Cançado (2005, p. 47), ocorre quando “[...] dois fatos descritos pela sentença não podem se realizar ao mesmo tempo e nem nas mesmas circunstâncias no mundo [...]”. Veja o exemplo a seguir: (13) Esta mesa é quadrada. (14) Esta mesa é redonda. Tanto (13) quanto (14) fazem referência a um mesmo objeto no mundo. Todavia, não é possível que tal objeto tenha formatos espaciais de quadradoe redondo ao mesmo tempo. Ainda no que tange à contradição, Müller e Viotti (2016) fazem uma ressalva pertinente: recorrentemente, itens lexicais com significados opostos estão presentes em contradições, mas algumas vezes isso não quer dizer que necessariamente sejam contraditórios. Para compreender isso, veja o caso a seguir: (15) Carlos nasceu na Bahia. (16) Carlos morreu na Bahia. Embora (15) e (16) contenham itens lexicais com significados opostos, eles não envolvem contradição. Nesse caso, são “momentos extremos do processo de viver”. Isto é, como os verbos estão no pretérito, é possível uma pessoa, em um momento da vida, nascer e, em outro momento, morrer na Bahia. Ambiguidade Para Cançado (2005), a ambiguidade diz respeito a uma imprecisão de signifi ca- dos em uma sentença. Um exemplo clássico disso são as palavras homônimas, isto é, aquelas que possuem a mesma escrita, mas têm signifi cados diferentes. Veja um exemplo: 9Semântica formal: diferentes abordagens (17) Ele estava irado. Em (17), o item lexical “irado” pode tanto significar algo muito bom quanto um comportamento colérico, raivoso. Müller e Viotti (2016) pontuam que a ambiguidade também pode ocorrer por meio de uma construção sintática específica, como no exemplo a seguir: (18) Os alunos e os professores inteligentes participaram do simpósio. Essa construção sintática pode remeter a dois significados: (18a) [[Os alunos e os professores] inteligentes] participaram do simpósio. ou ainda (18b) [[Os alunos] e [os professores inteligentes]] participaram do simpósio. CANÇADO, M. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2005. MÜLLER, A. L. P.; VIOTTI, E. C. Semântica formal. In: FIORIN, J. L. (org.). Introdução à lin- guística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2016. p. 137–159. OLIVEIRA, R. P. Semântica formal: uma breve introdução. Campinas: Mercado das Letras, 2001. Leitura recomendada ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. ABNT NBR 10520:2002. Informação e documentação – Citações em documentos – Apresentação. Rio de Janeiro: ABNT, 2002. Semântica formal: diferentes abordagens10 Semântica argumentativa Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Discutir sobre a teoria da argumentação na língua (TAL). Interpretar a teoria dos blocos semânticos (TBS). Demonstrar modelos de descrição semântico-argumentativos. Introdução Neste capítulo, você vai estudar a semântica argumentativa, uma das vertentes dos estudos semânticos. Diferentemente de outras vertentes, a de viés argumentativo aborda o sentido por meio da perspectiva do convencimento entre os falantes de uma língua. Assim, ela define cate- gorias analíticas a fim de explicar como a significação ocorre. Inicialmente, você vai conhecer a TAL. Em seguida, vai ver como ela se relaciona à TBS. Por fim, você vai acompanhar um exemplo de descrição semântico-argumentativa. 1 Teoria da argumentação na língua A semântica argumentativa, também conhecida como semântica enunciativa ou da enunciação, é orientada pela perspectiva da argumentação. Ou seja, essa vertente semântica busca estudar o sentido a partir de um jogo de convenci- mento realizado pelos interlocutores por meio da língua. Como você deve saber, a semântica formal é regida pelo princípio da referencialidade, isto é, essa corrente entende que a língua representa algo no mundo. Já a semântica argumentativa é pautada pela perspectiva da argu- mentatividade. Essa perspectiva considera que um falante de uma língua não verbaliza apenas uma sentença contendo uma informação que faz referência a uma coisa da realidade, mas almeja convencer outro sujeito por meio da língua. Veja o que Cançado (2005, p. 142) afirma sobre isso: Nessa abordagem, as condições de verdade de uma sentença não são relevan- tes. A ideia que sustenta essa teoria é a de que há interesse em contar com categorias descritivas que dizem respeito mais ao possível uso na interação dos falantes/ouvintes, e menos no que diz respeito à sintaxe ou ao conteúdo objetivo da sentença. A semântica argumentativa teve início na transição entre as décadas de 1960 e 1970, com o linguista Oswald Ducrot. Embora tenham uma raiz no estruturalismo de Ferdinand de Saussure, as pesquisas de Ducrot aprofundam os princípios teóricos do pai da linguística, em especial o conceito de valor do signo linguístico. Fundamentado no conceito de valor linguístico, que afirma que um signo linguístico adquire valor a partir de outro, Ducrot almejou “[...] levantar as possibilidades que a língua oferece para o uso e as limitações que ela impõe a esses usos [...]” (CABRAL, 2013, p. 184). Ou seja, Ducrot (1989) entende que o uso está ligado aos sentidos produzidos nos enunciados dos falantes. Porém, não está em jogo qualquer sentido: há uma restrição de sentido ocasionada por elementos da própria língua que regulam orientações argumentativas. Em virtude disso, Ducrot (1989), junto com Jean- -Claude Ascombre, fundaram a semântica argumentativa, por meio da TAL. A TAL evidencia que a língua, bem como o sentido, é marcada pela argu- mentatividade. Em virtude disso, emerge outra característica: a intenciona- lidade. Veja: A intencionalidade subjacente à produção de enunciados, em situação de interlocução, orienta o sentido a ser construído, dada a situação discur- siva. Se se entende a argumentatividade como algo que está inscrito na linguagem, parte-se do princípio de que ninguém diz o que não acredita ser importante; logo, toda ação de dizer comporta a intenção, por parte do locutor, de “mostrar” a conclusão para a qual o alocutário deve se encami- nhar (COSTA, 2008, p. 25). Devido à argumentatividade e à intencionalidade, Ducrot (1989) e seus pares começaram a se interessar particularmente por estudar algumas palavras que orientam o sentido a ser construído (CABRAL, 2013). Tais palavras são os operadores argumentativos, que possuem uma dupla função “[...] de ligação e de orientação, isto é, o conector é uma palavra que articula as informações e os argumentos de um enunciado [...]” (CABRAL, 2013, p. 185). Semântica argumentativa2 A fim de tornar essa teoria mais palpável, você vai ver a seguir um exemplo clássico, o uso do operador argumentativo “mas”. No momento em que ele é usado, não há oposição de sentido entre dois enunciados, e sim restrição de sentido entre as orientações argumentativas possíveis direcionadas à conclusão. Observe: (1) Este restaurante é bom, (2) mas é caro. Em casos como esse, pode haver condução à conclusão da argumentação — ou seja, os interlocutores não vão almoçar no restaurante caro —, ou restrição à conclusão da argumentação — isto é, eles vão almoçar no restaurante caro. Observe que a inserção do operador argumentativo “mas” conduz a uma possível conclusão da argumentação e não à outra, pois o “[...] sentido do enunciado, de acordo com esse ponto de vista teórico, conduz a determinada direção [...]” (CABRAL 2013, p. 186). Segundo essa teoria, as condições argumentativas seguem a lógica do “portanto”. Em relação a isso, considere novamente o exemplo anterior: “O restaurante é bom, mas é caro. Portanto, não vamos almoçar nele”. De outra forma, Freitas (2008, p. 112) formula o seguinte: De acordo com essa posição teórica, os próprios elementos linguísticos favo- recem a argumentação e não os fatos que estes poderiam representar. Cada enunciado “argumenta”, isto é, favorece uns encadeamentos discursivos e impede outros, em função de seu significado linguístico inerente. Além disso, é interessante destacar a diferença entre sujeito empírico, locutor e enunciador proposta por Ducrot (1989). O sujeito empírico não é objeto de estudo da linguística. Já o locutor é o responsável pelo enunciado. Por sua vez, os enunciadores são origens de pontos de vista, e não pessoas. Como afirma Freitas (2008, p. 113), “Os enunciadores são argumentadores e em relação a eleso locutor assume atitudes (de concordância, de identificação, de rejeição etc.), e assim constitui sua própria argumentação [...]”. 3Semântica argumentativa 2 Teoria dos blocos semânticos Com o desenvolvimento da semântica argumentativa, outros teóricos surgiram, contribuindo para a expansão do campo. Nesse cenário, uma pesquisadora ganha destaque: Marion Carel. Na década de 1990, Carel (1995) elaborou uma teoria que aprofundou a TBS. Marion Carel é professora da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, localizada em Paris, na França. Ela possui especialização em semântica e nos estudos discursivos e enunciativos. Segundo Lunardi e Freitas (2011, p. 163), “A TBS é uma teoria que explica o sentido argumentativo dos enunciados, de modo que as palavras são descritas não a partir de um conhecimento prévio da realidade, mas sim através de suas potencialidades discursivas [...]”. Assim, nessa nova teoria, é mantida a perspectiva da argumentatividade e da intencionalidade. Porém, na TAL, [...] as relações argumentativas entre os signos se baseavam em encadeamentos por meio do conectivo portanto, simbolicamente representado por A - - - - - } C, em que A indica um fato F, representado em um enunciado-argumento que explica ou justifica uma conclusão C (DUCROT, 1989, p. 16). A grande contribuição de Carel (1995) à teoria de Ducrot é relativa ao sentido dos enunciados. Carel (1995) notou que tal sentido é formado pelo encadeamento argumentativo entre os enunciados. A TBS “[...] postula que as relações argumentativas se baseiam em encadeamentos enunciativos constituí- dos por dois segmentos, unidos por um conector, que tanto pode ser normativo (portanto) quanto transgressivo (no entanto) [...]” (COSTA, 2008, p. 44). Cada encadeamento argumentativo, segundo Costa (2008), é fundado na fórmula “X conectivo Y”, demonstrando um aspecto argumentativo distinto. O Quadro 1 sintetiza essas noções. Semântica argumentativa4 Fonte: Adpatado de Costa (2008). X conectivo Y Conectivo normativo Conectivo transgressivo Portanto No entanto Quadro 1. Encadeamento argumentativo A fim de compreender isso melhor, observe o exemplo a seguir: (3) João tem muito dinheiro e é feliz. (4) João tem saúde e é feliz. Observe que, tanto no encadeamento argumentativo (3) quanto no encade- amento argumentativo (4), a felicidade não é a mesma. Logo, cada felicidade possui um sentido específico. Isso se justifica porque cada enunciado é es- truturado e sequenciado de maneira singular, atuando impreterivelmente de maneira conjunta, nunca separada. Observe: (5) João tem muito dinheiro (portanto) é feliz. (6) João tem saúde (portanto) é feliz. Em ambos os casos, há a seguinte configuração: Enunciado X — conectivo normativo — enunciado Y Porém, você se lembra de que a TBS também considera os encadeamentos argumentativos feitos com operadores argumentativos transgressivos? Pois bem, nesse caso, pode-se expandir as possibilidades argumentativas de um enunciado. Considere o caso do encadeamento argumentativo “João tem muito dinheiro e é feliz”. Em relação a ele, pode-se definir um bloco semântico, como mostra o Quadro 2. 5Semântica argumentativa Fonte: Adaptado de Costa (2008). Conectivo normativo Conectivo transgressivo Aspecto argumentativo 1 Aspecto argumentativo 3 João tem muito dinheiro e (portanto) é feliz. X — conectivo normativo — Y João não tem muito dinheiro e (no entanto) é feliz. X negativo — conectivo transgressivo — Y Aspecto argumentativo 2 Aspecto argumentativo 4 João não tem muito dinheiro e (portanto) não é feliz. X negativo — conectivo normativo — Y negativo João tem muito dinheiro e (no entanto) não é feliz. X — conectivo transgressivo — Y negativo Quadro 2. Bloco semântico Assim, para cada encadeamento argumentativo, gera-se um aspecto argu- mentativo com uma fórmula específica, sendo que isso está inserido em um bloco semântico. Veja o que afirma Carel (1995, p. 69–70): [...] os termos do encadeamento argumentativo (X e Y) não são segmentos semanticamente independentes compreensíveis cada um em separado, mas que constituem uma “representação unitária” dos princípios, estere- ótipos ou fórmulas que convocam, isto é, se trata de blocos lexicais que adquirem sua força persuasiva a partir da explicitação de um determinado lugar comum. Além disso, Costa (2008) ressalta que o sentido é inerente às palavras, mas depende do encadeamento argumentativo existente entre os enunciados mediados pelos operadores argumentativos. Gera-se, assim, um sentido que será evocado em dada situação comunicativa. Como você viu, a TBS ampliou a TAL, uma vez que a primeira não se limita à condição argumentativa fundamentada no conectivo “portanto”. A TBS considera outros possíveis encadeamentos argumentativos, os quais são validados a partir de um contexto enunciativo específico. Semântica argumentativa6 3 Modelo de descrição semântico-argumentativo Neste tópico, você vai ver uma descrição semântico-argumentativa elaborada sobretudo a partir da TBS. Você vai verifi car como ocorre a dinâmica dos blocos semânticos a partir de um conjunto de enunciados reais. Para começar, considere este exemplo, retirado de Freitas (2008, p. 119): O processo de exploração vigente na Amazônia ocorre sem pla- nejamento nem ordenação ambiental; portanto, é insustentável. A agricultura migratória já devorou vários tipos de floresta, apesar da existência de tecnologias para o desenvolvimento sustentável da região. Infelizmente, muitas pessoas inescrupu- losas, inimigas da natureza e escravas do lucro fácil, teimam em exterminar a galinha dos ovos de ouro. Esse exemplo é um trecho de uma carta do leitor publicada em uma revista semanal. Aqui, a descrição dos enunciados será dividida em três partes. Em cada parte, você vai analisar o encadeamento argumentativo, o aspecto argu- mentativo e o bloco semântico. O processo de exploração vigente na Amazônia ocorre sem pla- nejamento nem ordenação ambiental; portanto, é insustentável. A seguir, veja como esse trecho pode ser dividido. Enunciado 1: “O processo de exploração vigente na Amazônia ocorre sem planejamento nem ordenação ambiental”. Conectivo normativo: “portanto”. Enunciado 2: “é insustentável”. Assim, o sentido desse bloco semântico é: ação predatória — portanto — insubsistente. Todavia, o trecho do exemplo não se limita à primeira parte, pois ainda existem mais duas, que você vai ver a seguir. Observe: A agricultura migratória já devorou vários tipos de floresta, apesar da existência de tecnologias para o desenvolvimento sustentável da região. 7Semântica argumentativa Veja a divisão a seguir. Enunciado 1: “A agricultura migratória já devorou vários tipos de floresta”. Conectivo transgressivo: “apesar de”. Enunciado 2: “apesar da existência de tecnologias para o desenvolvi- mento sustentável da região”. Logo, o sentido desse bloco semântico é: florestas destruídas — no entanto — tecnologias para o progresso equilibrado. Por fim, há a terceira parte: Infelizmente, muitas pessoas inescrupulosas, inimigas da natu- reza e escravas do lucro fácil, teimam em exterminar a galinha dos ovos de ouro. Novamente, veja a divisão a seguir. Enunciado 1: “Infelizmente, muitas pessoas inescrupulosas, inimigas da natureza e escravas do lucro fácil”. Conectivo transgressivo: “portanto”. Enunciado 2: “teimam em exterminar a galinha dos ovos de ouro”. Dessa forma, o sentido desse enunciado é: pessoas sem escrúpulos — portanto — destruição da Amazônia. Observe que, em cada bloco semântico, há uma unidade de sentido. Porém, como todos os blocos estão interligados e formam um sentido global, é possível criar um bloco semântico do parágrafo inteiro. Veja: Ações predatórias — portanto — insubsistentes — no entanto — tecnologias para o progresso equilibrado — portanto — des- truição da Amazônia. Em outras palavras: Ações predatórias que ocorrem na floresta são insubsistentes. Mesmo quehaja tecnologia para o progresso equilibrado, a des- truição da Amazônia ainda acontece. Semântica argumentativa8 Com base no exemplo, você pode ver como ocorre a descrição semântico- -argumentativa fundamentada na TBS. Note que o sentido do parágrafo da carta do leitor é fruto de um bloco semântico proporcionado por meio de encadeamentos e aspectos argumentativos. Esses encadeamentos e aspectos, por sua vez, são gerados por meio de articulações entre os enunciados e os conectores normativos e transgressivos, sendo que todos são interdependentes, produzindo um sentido global de sentenças complexas. CABRAL, A. L. T. Ducrot. In: OLIVEIRA, L. A. Estudos do discurso: perspectivas teóricas. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. CANÇADO, M. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. CAREL, M. Pourtant: argumentation by exception. Journal of Pragmatic, Amsterdam, v. 24, n. 1, p. 167–188, 1995. COSTA, I. A. Aspectos argumentativos e polifônicos do operador discursivo ainda. 2008. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. DUCROT, O. Argumentação e “topoi” argumentativos. In. GUIMARÃES, E. (org.). História e sentido na linguagem. Campinas: Pontes, 1989. p. 13–39. FREITAS, E. C. Blocos Semânticos: o Movimento Argumentativo na Construção do Sentido no Discurso. Revista do GEL, São José do Rio Preto, v. 5, n. 1, p. 109–128, 2008. LUNARDI, G. R.; FREITAS, E. C. Metáforas em títulos de reportagens jornalísticas: a ar- gumentação sob a perspectiva da teoria dos blocos semânticos. Revista Investigações, Recife, v. 24, n. 2, p. 157–188, 2011. 9Semântica argumentativa Semântica cognitiva Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Diferenciar semântica cognitiva de linguística cognitiva. Conceituar categorização e teoria prototípica. Relacionar a metáfora ao processo de categorização. Introdução Neste capítulo, você vai estudar a semântica cognitiva, que é uma vertente da semântica. Uma das grandes inovações trazidas por ela é considerar, dentro do seu arcabouço teórico, a cognição humana no processo de significação de uma língua. Com isso, a semântica cognitiva reforça uma abordagem mais funcionalista à língua, bem como reitera o papel do sujeito nesse processo. Em um primeiro momento, você vai conhecer a distinção entre a semântica cognitiva e a linguística cognitiva. Em seguida, vai estudar o conceito de categorização e a teoria prototípica. Por fim, você vai ver qual é a relação entre a metáfora e o processo de categorização. 1 Linguística cognitiva e semântica cognitiva Antes de conhecer a distinção entre semântica cognitiva e linguística cogni- tiva, é importante que você esteja familiarizado com a trajetória teórica do gerativismo. Essa corrente pavimentou o que viria a ser uma nova vertente da linguística e da semântica. O ponto de partida: gerativismo Com a publicação da obra Estruturas Sintáticas, por volta de 1950, Noam Chomsky revolucionou a linguística. Esse estudioso norte-americano trouxe ao seio da disciplina questões relacionadas à linguagem como um sistema autônomo (assim como outras faculdades mentais, por exemplo, a memória, o pensamento matemático, etc.), inato (depositado na mente das pessoas) e comum a todos os seres humanos. Com isso, uma abordagem mais formalista ganhou espaço na linguística, com ênfase nas “[...] características internas da língua, seus constituintes e as relações entre eles” (CORTEZ, 2011, p. 58). A partir daí, nasceram conceitos importantes, como os de gramática universal, competência e desempenho linguístico. Chomsky (1972) considerou que as línguas naturais são frutos de princípios inatos e autônomos. Para ele, a linguagem é uma característica biológica e incrustada no DNA humano. Assim, cada ser humano, por meio de inputs (informações linguísticas disponíveis no ambiente em que o falante está), estabelece as regras e normas de uma língua. Ao definir um conjunto limitado de combinações por meio dessas normas, o falante desse idioma consegue produzir infinitas frases (daí o nome “gerativismo”). Tal produção não depende do estímulo/resposta advindo do meio para determinar o comportamento, contrariando a hipótese behaviorista. Por ter uma abordagem mais universalista da língua (entendida como algo comum a todos os seres humanos), Chomsky (1972) buscou analisar sentenças idealizadas, e não sentenças contextualizadas e reais. Além disso, devido ao privilégio dado ao estudo das regras e normas internalizadas em cada falante, o autor constatou que a sintaxe é o nível gramatical mais alto de todos (em detrimento da fonética, da morfologia, da semântica, etc.). Todavia, a partir de 1980, diversos linguistas revisitaram as contribuições de Chomsky, tecendo uma série de críticas. Tais críticas, mais tarde, acabaram criando uma nova vertente da linguística, a linguística cognitiva, que por sua vez originou a semântica cognitiva. O surgimento da linguística cognitiva Em 1980, George Lakoff , Ronald Langacker e Eleanor Rosch iniciaram uma série de questionamentos ao gerativismo. Um desses questionamentos dizia respeito à noção de que a linguagem seria uma faculdade autônoma na mente humana, como se fosse independente de outras faculdades mentais, indo de encontro ao princípio da modularidade. Na verdade, a mente funciona de maneira integrada. Logo, é “[...] fundamental levar em consideração os processos de pensamento subjacentes à utilização de estruturas linguísticas e sua adequação aos contextos reais nos quais essas estruturas são construídas” (MARTELOTTA; PALOMANES, 2012, p. 179). Semântica cognitiva2 Considere ainda o seguinte: [...] a proposta cognitivista leva em conta aspectos relacionados a restrições cognitivas que incluem a captação de dados da experiência, sua compreensão e seu armazenamento na memória, assim como a capacidade de organização, acesso, conexão, utilização e transmissão adequada desses dados (MARTE- LOTTA; PALOMANES, 2012, p. 179). Dessa forma, a linguística cognitiva procurou estudar a “[...] relação siste- mática entre linguagem, pensamento e experiência” (MARTELOTTA; PALO- MANES, 2012, p. 179). No Quadro 1, a seguir, veja as principais diferenças entre o gerativismo e a linguística cognitiva. Gerativismo Linguística cognitiva Faculdade da linguagem autônoma. Faculdade da linguagem associada às outras faculdades mentais (memória, raciocínio lógico, emoções, etc.). Concepção formalista — estuda a língua em sua forma, focando os aspectos linguísticos. Concepção funcionalista — estuda a língua em uso, aliando os aspectos linguísticos e os extralinguísticos. Sintaxe como nível privilegiado, que comanda as combinações possíveis que o falante pode usar. A fonética, o léxico, a morfologia, a sintaxe e a semântica atuam juntos na comunicação humana. Estuda o falante ideal, sem intervenção de fatores externos. Estuda o falante real em conjunto com fatores externos a ele. Quadro 1. Diferenças entre o gerativismo e a linguística cognitiva Linguística cognitiva e semântica cognitiva Como você viu, a partir dos estudos de Langacker, de Rosch e, sobretudo, de Lakoff , uma nova vertente linguística foi criada: a linguística cognitiva. A linguística cognitiva “[...] interessa-se pelo conhecimento através da linguagem e procura saber como é que a linguagem contribui para o conhecimento do mundo” (SILVA, 1997, p. 3). Além disso, o falante de uma língua adquire um 3Semântica cognitiva status relevante nesse processo, pois ele “[...] não é mais visto como um mero manipulador de regras preestabelecidas, mas como um produtor de signifi cados em situações comunicativas reais nas quais interage com interlocutores reais” (MARTELOTTA; PALOMANES, 2012, p. 181). Nesse contexto, uma das dimensões em quea linguística cognitiva busca compreender a maneira pela qual a linguagem auxilia no conhecimento de mundo é a semântica, principalmente em relação ao significado. Assim, a semântica cognitiva foi constituída como um ramo da linguística cognitiva: ela tem o intuito de estudar o significado a partir da perspectiva cognitiva. Isso quer dizer que “[...] o significado de uma expressão linguística não reflete diretamente a relação entre ‘palavra’ e ‘mundo’, mas é sempre mediado por processos inerentes à cognição humana” (FERRARI, 2010, p. 151). O estudo do significado por meio da mediação da cognição humana é feito “[...] através dos nossos sentidos corporais, e a partir daí algumas extensões de sentido são estabelecidas” (MARTELOTTA; PALOMANES, 2012, p. 181). Em função disso, o contexto externo ao sujeito propicia experiências diversas, as quais são sentidas pelo corpo e, por sua vez, fornecem a base para os sistemas de significação. Você vai estudar esse fenômeno mais profundamente no tópico seguinte, que trata da categorização e da teoria prototípica. 2 O conceito de categorização e a teoria prototípica Você já sabe que a semântica cognitiva, braço da linguística cognitiva, destina-se a estudar o sentido a partir da perspectiva da cognição. Esta, por sua vez, estabe- lece que o sentido se confi gura por meio da mediação dos processos da cognição humana, sendo que a experiência do sujeito é parte integrante desse cenário. De acordo com Silva (1997, p. 6), “[...] a interpretação e a aquisição de novas experiências é feita à luz de conceitos e categorias já existentes, que, por isso mesmo, funcionam como modelos interpretativos, como paradigmas”. Ainda segundo Silva (1997, p. 6), “Uma das capacidades cognitivas fundamentais é a categorização, isto é, o processo mental de identificação, classificação e nomeação de diferentes entidades como membros de uma mesma categoria”. Semântica cognitiva4 Ou seja, para a semântica cognitiva, o conceito de categorização é re- levante, uma vez que ele pode ser considerado um dos elementos-chave do processo de significação. Para compreender melhor tal conceito, considere as definições a seguir. Peixes: animais que nascem e vivem na água. Mamíferos: animais vertebrados que têm mamas. Por meio da sua vivência, o falante, articulando os seus conhecimentos da língua, estabelece mentalmente categorias de diferentes seres do mundo. A categoria “peixes”, por exemplo, se define por um conjunto de características específicas. Da mesma forma, na categoria “mamíferos”, há uma série de singularidades. Logo, o conceito de categorização diz respeito às categorias, as quais “[...] se formam e se definem em termos de ‘condições necessárias e suficientes’ (isto é, através de propriedades individualmente necessárias e conjuntamente suficientes)”; consequentemente, “[...] os elementos de uma categoria têm o mesmo estatuto (não havendo pois graus de representatividade)” (SILVA, 1997, p. 7). Esse conceito, na verdade, não é novo. Ele já existe desde Aristóteles e foi revisitado pela filosofia da linguagem de Wittgenstein e pela antropologia cultural de Berlin e Kay (FERRARI, 2010). Contudo, o conceito de catego- rização possui limitações, como você pode ver a seguir: Se, por um defeito de nascença, surgir um tigre com apenas três patas, ele deixaria de ser tigre? E se, por acaso, algum tigre resolver incluir vegetais em sua dieta, ele deixa de ser tigre? [...] Certamente, problemas dessa natureza interferem na aceitação de uma definição de conceito que use a noção de condições suficientes e necessárias (CANÇADO, 2005, p. 94). Considere mais uma vez o exemplo mencionado anteriormente: reflita agora sobre o caso da baleia, uma vez que ele produz uma inconsistência nas categorias de mamíferos e peixes. A baleia possui características de ambos os grupos. Logo, o conceito de categorização, para a semântica cognitiva, apresenta limitações e insipientes. Devido a isso, Rosch (1978) criou a teoria prototípica, ou teoria dos pro- tótipos. De acordo com essa teoria, as categorias se comportam, na verdade, a partir da dinâmica entre núcleo e periferia. Observe a Figura 1. 5Semântica cognitiva Figura 1. As categorias a partir da teoria prototípica. Pela teoria prototípica, o elemento central carrega mais definições e ca- racterísticas da categoria do que o elemento periférico. Note que a passagem é gradual de dentro para fora e vice-versa. Além disso, um elemento pode ser a interface entre duas ou mais categorias. É o que você pode ver na Figura 2. Figura 2. Interface entre categorias prototípicas: mamíferos e peixes. Essa teoria se reflete no dia a dia da língua, principalmente no aspecto semântico. Para Cançado (2005, p. 94), “A baleia é um animal que tanto pos- sui propriedades da categoria MAMÍFERO como propriedades da categoria PEIXE. Por isso, muitos falantes são incapazes de dizer, com certeza, se a baleia é um peixe ou um mamífero”. Semântica cognitiva6 Aliás, é interessante ressaltar o que Chiavegatto (2009, p. 82) pontua acerca dos desdobramentos causados por essa tomada de posicionamento teórico: A possibilidade de que processos cognitivos e construções linguísticas façam parte de categorias prototípicas é fundamental para a análise de uma série de fenômenos em linguística cognitiva. Pode explicar, por exemplo, a polissemia, a abrangência das correspondências metafóricas e as diferentes naturezas de introdutores de espaços mentais. Dessa forma, no próximo tópico, você vai se aprofundar na teoria proto- típica, relacionando o processo de significação com um dos fenômenos mais instigantes e pesquisados pela semântica cognitiva, a metáfora. 3 O fenômeno da metáfora Como você viu, para a semântica cognitiva, o processo de signifi cação se confi gura a partir da articulação entre as diversas faculdades mentais e as experiências dos usuários de uma língua no seu agir no mundo. Por isso, essa articulação permite uma categorização dos falantes em relação ao mundo pela linguagem. Entretanto, a categorização da realidade muitas vezes esbarra em sentidos que possuem características menos palpáveis, ou seja, mais abstratos, os quais demandam processos cognitivos mais elaborados. É nesse contexto que surgem as metáforas, fenômeno semântico muito estudado pela semântica cognitiva. Como Chiavegatto (2009) expôs anteriormente, as construções linguísticas e processos cognitivos pautados na categorização, sobretudo prototípica, permitem explicar fenômenos semânticos mais plásticos e intangíveis. Veja: [...] devido à nossa experiência física de ser e de agir no mundo — de perce- ber o ambiente à nossa volta, de mover nossos corpos, — de exercitar e de experienciar forças, etc. —, formamos estruturas conceituais básicas com as quais organizamos o nosso pensamento sobre outros domínios mais abstratos (CANÇADO, 2005, p. 102). Uma forma de isso ocorrer é por meio da metáfora. De acordo com Lakoff e Johnson (2003), o processo cognitivo da metáfora realizado pelo falante almeja construir um sentido a partir da projeção de domínios, com o intuito de materializar um conceito impalpável. 7Semântica cognitiva Cançado (2005, p. 97) mostra que a metáfora se estabelece a partir da aproximação e da atribuição do domínio-fonte e do domínio-alvo: “[...] o ponto de chegada ou o conceito descrito é conhecido, geralmente, como o domínio do alvo (do inglês, target domain); [...]. Enquanto o conceito comparado, ou a analogia, é conhecida como o domínio da fonte (do inglês, source domain)”. Para exemplificar a metáfora, Lakoff e Johnson (2003) utilizam o caso clássico “argumentação é guerra” (Quadro 2). Fonte: adaptado de Lakoff e Johnson (2003). Domínio-fonte Domínio-alvo Guerra (palpável) Argumentação (abstrato) Inimigos Debatedores Confronto Discussão Quadro 2. Metáfora “argumentação é guerra” Como você pode observar, o domínio-fonte projeta sentidos (inclusive frutos de experiências reais do falante)no domínio-alvo. Isso faz com que a argu- mentação, uma abstração, adquira características oriundas do domínio-fonte. Considere o seguinte: Entre os dois domínios estabelecem-se analogias estruturais: os participantes de uma discussão correspondem aos adversários de uma guerra, o conflito de opiniões corresponde às diferentes posições dos beligerantes, levantar objeções corresponde a atacar e manter uma opinião a defender, desistir de uma opinião corresponde a render-se, etc. Tal como uma guerra, uma batalha ou uma luta, também uma discussão, um debate ou o processo de argumen- tação pode dividir-se em fases, desde as posições iniciais dos oponentes até a vitória de um deles, passando por momentos de ataque, defesa, retirada, contra-ataque (SILVA, 1997, p. 13). Semântica cognitiva8 Chiavegatto (2009, p. 89) mostra que a metáfora também influencia outros processos de significação: Com as informações que são transferidas entre os domínios, construímos novos significados com relações que se processam no contexto. [...]. As cor- respondências efetuadas podem explicar, por exemplo, processos figurativos como as metáforas e suas extensões em figuras como analogias, comparações, personificações, hipérboles, eufemismos. A metáfora, à luz da semântica cognitiva, se constitui a partir da dinâmica dos domínios, os quais não só estruturam o pensamento humano, como também auxiliam na significação, bem como na compreensão do mundo pelo falante. Neste capítulo, você estudou os pressupostos teóricos fundamentais da semântica cognitiva. Como você viu, ela é um braço da linguística cognitiva, que surgiu a fim de questionar os princípios gerativistas. De modo ímpar, a linguística cognitiva trouxe para a semântica a cognição como elemento importante do processo de significação. Além disso, como você viu, para a semântica cognitiva, o sentido é estabelecido entre a palavra e o mundo, em um processo mediado pela cognição humana. Nesse processo, a interpretação se configura a partir de formulações de categorias que classificam e organizam a realidade. Porém, a categorização não é feita de maneira engessada e estanque. Na verdade, ela se comporta por meio de protótipos, aliando elementos com um maior conjunto de características (nucleares) a elementos com um menor conjunto de características (periféricos). Por último, você estudou a relação entre a categorização e a metáfora, que se mostra um fenômeno importante na significação. Afinal, por meio da projeção de domínios, a metáfora permite expandir e atribuir novos sentidos às mais distintas expressões linguísticas. 9Semântica cognitiva CANÇADO, M. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. Belo Horizonte: UFMG, 2005. CHIAVEGATTO, V. C. Introdução à linguística cognitiva. Matraga, v. 16, n. 24, 2009. Dis- ponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/article/view/27797. Acesso em: 16 abr. 2020. CHOMSKY, N. Syntactic structures. Paris: Mouton, 1972. CORTEZ, C. M. Formalismo x funcionalismo: abordagens excludentes? PERcursos Lin- guísticos, v. 1, n. 1, p. 57-77, 2011. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/percursos/ article/view/1188. Acesso em: 16 abr. 2020. FERRARI, L. Modelos de gramática em linguística cognitiva: princípios convergentes e perspectivas complementares. Cadernos de Letras da UFF, n. 41, p. 149-165, 2010. Dis- ponível em: http://www.cadernosdeletras.uff.br/joomla/images/stories/edicoes/41/ artigo7.pdf. Acesso em: 16 abr. 2020. LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. London: University of Chicago, 2003. MARTELOTTA, M. E.; PALOMANES, R. Linguística cognitiva. In: MARTELOTTA, M. E. (org.). Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2012. p. 176-192. ROSCH, E. Principles of categorization. In: ROSCH, E.; LLOYD, B. (ed.). Cognition and categorization. Hillsdale: Lawrence Erlbaum, 1978. p. 27-48. SILVA, A. S. da. A semântica de deixar: uma contribuição para a abordagem cognitiva em semântica lexical. 1997. Dissertação (Doutoramento) – Faculdade de Filosofia, Universidade Católica Portuguesa, Braga, 1997. Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun- cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Semântica cognitiva10 Semântica computacional e semântica cultural Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar a semântica computacional e a sua interface com as ciências linguísticas. Resumir as divisões da semântica computacional. Explicar os níveis de sentido no âmbito da semântica cultural. Introdução Neste capítulo, você vai estudar duas vertentes da semântica, a compu- tacional e a cultural. Primeiramente, você vai conhecer os pressupostos básicos da semântica computacional e ver como se configurou a relação entre a linguística e a informática. Ademais, vai conferir quais foram os impactos dessa relação na pesquisa sobre a linguagem. Depois, você vai se debruçar sobre os conceitos básicos da semân- tica cultural, uma vertente relativamente nova da área da semântica. Diferentemente das outras vertentes, ela privilegia os aspectos culturais e identitários no estudo do sentido nas línguas naturais. 1 Semântica computacional Para começar a compreender a semântica computacional, você precisa se familiarizar com a linguística computacional. Afi nal, a semântica computa- cional é uma das ramifi cações da linguística computacional. A seguir, você vai conhecer os pressupostos básicos da linguística computacional e verifi car a sua relação com a semântica computacional. Semântica e linguística computacional A linguística computacional é, como descrevem Vieira e Lima (2001, p. 1), “[...] a área de conhecimento que explora as relações entre linguística e informática, tornando possível a construção de sistemas com capacidade de reconhecer e pro- duzir informação apresentada em linguagem natural”. Othero (2006), por sua vez, destaca que o conhecimento produzido pela linguística computacional é utilizado para tentar processar (isto é, compreender e produzir) as línguas naturais e dominar o conhecimento linguístico envolvido em uma linguagem natural. A linguística computacional teve início em 1950, com Warren Weaver, matemático estadunidense. Weaver, aproximando a matemática da comunicação, iniciou o campo de conhecimento da tradução automática (machine translation) a partir da projeção de um computador voltado para a tradução, denominado memo- randum. Assim, a linguística computacional, ao aliar essas duas áreas do conhecimento, promove um tratamento computacional da linguagem, ou seja, o linguista computacional aplica os princípios computacionais, principalmente o de processamento de dados, à linguística. Para saber mais sobre a tradução automática, leia o artigo de Ronaldo T. Martins e Maria das Graças V. Nunes intitulado “Noções Gerais de Tradução Automática”. O artigo está disponível on-line e você pode encontrá-lo por meio de uma busca na internet. O processamento de dados consiste basicamente no conjunto de atividades executadas de modo planejado para coletar e ordenar dados, a fim de executar algo com determinado fim (BONIATI; PREUSS; FRANCISCATTO, 2014). A produção de texto no computador é um exemplo de processamento de dados. O programador de um software de edição de texto fornece uma série de comandos, os quais são inseridos no computador. Quando o usuário aciona o teclado e o mouse, vários dados são gerados; tais dados são coletados e transformados em texto digital. Agora, considere essa mesma lógica no âmbito da linguística computacio- nal. Ao articular os conhecimentos da computação à linguística, o linguista computacional aplica o processamento de dadosaos diversos fenômenos linguísticos, envolvendo desde o armazenamento até a interpretação. Um exemplo é o ReGra, um revisor gramatical para o português desenvolvido Semântica computacional e semântica cultural2 pelo Núcleo Interinstitucional de Linguística Computacional de São Carlos. Esse programa tem a função de verificar desvios ortográficos, utilização inadequada da crase, regência e concordância verbal e nominal, tudo de acordo com a norma padrão da língua portuguesa (RINO et al., 2002). Portanto, a linguística computacional busca explorar os conhecimentos da informática e aplicá-los à linguística, de modo que os fenômenos linguísticos sejam tratados pela computação — tanto no que diz respeito ao armazenamento e à organização quanto no que se refere à compreensão e à interpretação. Princípios da semântica computacional Como você viu, a linguística computacional é o ramo interdisciplinar que abarca tanto os conhecimentos da informática quanto os da linguística. A partir disso, ela busca sistematizar os fenômenos linguísticos, ora na perspectiva do armazenamento, ora na perspectiva da interpretação. Em síntese, a semântica computacional é o braço da linguística computa- cional cujo princípio é unir os conhecimentos da informática aos da semântica. Dessa forma, segundo Pagani (2013, p. 1), a semântica computacional possui uma: [...] tendência maior para a explicação dos fenômenos (tanto linguísticos, em relação à capacidade semântica dos falantes de alguma língua, quanto compu- tacionais, em relação à implementação desses fenômenos em computadores) ou para a sua metacompreensão (novamente, tanto linguisticamente na imple- mentação computacional de modelos linguísticos quanto computacionalmente discutindo-se a computabilidade das teorias ou dos fenômenos linguísticos). Ou seja, a semântica computacional almeja estudar os fenômenos semânti- cos com a contribuição da informática, seja para compreender tais fenômenos por meio da informática, seja para utilizar esta última com a finalidade de colher, tratar e organizar os dados que envolvam fenômenos linguísticos. Um exemplo disso pode ser observado nos programas do tipo chatterbots. Os chatterbots são programas de computador projetados para simular uma conversa (chat significa “conversa”, enquanto bot é a abreviação de “robô”). Veja o que Othero (2006, p. 348) comenta a respeito dessa ferramenta: [...] acreditamos que a próxima geração de chatterbots deva exigir dos pro- gramadores um profundo conhecimento [...] da semântica de uma língua (que tornará possível fazer com que o programa seja capaz de interpretar o significado do input linguístico dado a ele pelo usuário humano). 3Semântica computacional e semântica cultural Note que a semântica computacional vincula os conhecimentos da pró- pria semântica aos da informática. A ideia é que a partir disso seja possível estudar e pesquisar os processos de significação de maneira interdisciplinar. Ademais, embora a semântica computacional tenha como característica a interdisciplinaridade com a informática, isso não quer dizer que ela esteja longe da linguística. Na verdade, o que existe é um aprofundamento do estudo dos fatos da linguagem, mas com contribuições da informática, de modo que se possa entender os fenômenos linguísticos pela óptica dos computadores. 2 Áreas da semântica computacional A partir de agora, você vai conhecer a divisão existente na semântica compu- tacional. Pode-se dizer que essa divisão está mais ligada à maneira pela qual os conhecimentos da semântica e os da informática são aplicados e ao fi m que eles possuem. Assim, tais conhecimentos são divididos em dois grandes gru- pos: a linguística de corpus e o Processamento de Linguagem Natural (PLN). Linguística de corpus Essa área da semântica computacional está associada ao “[...] trabalho a par- tir de corpora eletrônicos que contenham amostras de linguagem natural” (OTHERO, 2006, p. 342). Ou seja, essa categoria está preocupada em coletar, armazenar e analisar dados e informações de ordem semântica. Em suma, a linguística de corpus almeja reunir um conjunto de dados referentes a fenô- menos semânticos e tratá-los para determinado fi m. Um exemplo disso são os modelos semânticos descritos por Hanis e Noller (2012). Os modelos semânticos são programas de computador capazes de classificar e relacionar as informações de um banco de dados qualquer, de modo que se possa categorizar e cruzar essas informações. Ou seja, a partir de definições e conceitos previamente programados, é possível agrupar dados similares e fazer com que eles interajam com outros. Para compreender melhor, considere o caso dos aplicativos de tráfego (HANIS; NOLLER, 2012). Em um aplicativo de tráfego inteligente, dados são fornecidos em tempo real a partir de sensores de semáforo, sensores de velocidade, relatórios meteorológicos e de acidentes, eventos do calendário (feriados, por exemplo), etc. Porém, é necessário categorizar tais dados para que eles sejam funcionais. Além disso, existem situações nas quais pode haver ambiguidade, a exemplo da palavra “veículo”. Essa palavra sozinha pode não Semântica computacional e semântica cultural4 representar a realidade, ou seja, o veículo pode ser um carro, uma caminhonete, um caminhão, uma motocicleta, etc. É nesse momento que o modelo semântico pode ser inserido. Nesse contexto: [...] um modelo semântico poderia ajudar a entender relações como as dos sensores de semáforo com as intersecções que eles monitoram, qualquer sensor de semáforo com outros sensores na mesma estrada ou a relação das estradas sobre as quais temos dados de sensor específicos com outras estradas que as cruzam e, coletiva- mente, como alimentadores para as principais rodovias. O modelo também pode gerar informações parecidas sobre linhas de ônibus ou de metrô. Pode descrever os tipos de serviço disponíveis com os locais atendidos. As relações entre as estações e endereços e linhas de serviço e rotas de carro forneceriam a base para entender as implicações sobre o tráfego rodoviário de perturbações específicas no serviço de transporte coletivo (HANIS; NOLLER, 2012, documento on-line). Portanto, a linguística de corpus se volta diretamente para os corpora de natureza semântica, com o intuito de tratar, organizar e analisar esse conjunto de dados por meio da articulação entre os saberes da semântica e da informática. PLN Outra divisão da semântica computacional diz respeito ao PLN. Como afi rma Othero (2006, p. 342), essa divisão: [...] preocupa-se diretamente com o estudo da linguagem voltado para a cons- trução de softwares, aplicativos e sistemas computacionais específicos, como tradutores automáticos, chatterbots, parsers, reconhecedores automáticos de voz, geradores automáticos de resumos, etc. Assim, esse tipo de semântica computacional está diretamente associado à interpretação das línguas, sobretudo no nível do sentido. Isso pode ser atestado por Vieira (2002, p. 20), que diz que, “[...] para o processamento da língua natural, vários subsistemas são necessários para dar conta dos diferentes aspectos da língua: sons, palavras, sentenças e discurso nos níveis estruturais, de significado e de uso”. Um caso que representa isso, inclusive já abordado aqui, é o dos chatterbots. Assim, o PLN se mostra um campo bastante fértil para a semântica computa- cional, principalmente quando atrelado à Inteligência Artificial (IA). Nesse sentido, McDonald e Yazdani (1990, p. 176) pontuam que “[...] a pesquisa em PLN pode proporcionar insights bastante úteis sobre processos e representações da linguagem na mente humana, apontando, assim, para a verdadeira IA”. 5Semântica computacional e semântica cultural 3 Semântica cultural Agora, você vai conhecer mais uma vertente da semântica, a semântica cultural. Para Ferrarezi Junior e Basso (2013, p. 1), essa vertente “[...] estuda a relação entre os sentidos atribuídos às palavras ou demais expressões de umalíngua e a cultura em que essa mesma língua está inserida”. De certa forma, a semântica cultural traz uma abordagem nova, pois atrela o aspecto do sentido à cultura da língua. Souza e Vianna (2015, p. 111) destacam que a semântica cultural atesta: [...] que as estruturas das línguas naturais não são meros agrupamentos de regras gramaticais, mas reflexos da cultura, das organizações sociais e do meio. Nesse sentido, a Semântica Cultural vê a língua como sendo mais do que uma herança passada de geração a geração, tendo em vista que ela interfere, diretamente, na forma como enxergamos e vivenciamos o mundo, uma vez que é através dela, da língua, que expressamos esse mundo. Portanto, na perspectiva da semântica cultural, uma língua não é um produto artificial e isolado socialmente. Na verdade, ela é viva e contextualizada, de modo que influencia e é influenciada pela cultura. Aqui, a cultura é entendida a partir do conceito proposto por Eagleton (2005). Para esse autor, a cultura é um conjunto de valores, costumes, crenças e práticas que configuram a forma de viver de um grupo específico. Tal conjunto é responsável por gerar conhecimento implícito, permitindo que os integrantes do grupo ressignifiquem e se apropriem de modos de agir em contextos específicos. Considerando esses pressupostos, você consegue depreender como a se- mântica cultural concebe o processo de significação das línguas humanas? Para essa corrente, as línguas possuem duas dimensões: a visão de mundo dos falantes e a dimensão linguística. Dimensão da visão de mundo do falante Para Novais e Ferrarezi Junior (2015, p. 3), a dimensão da visão de mundo do falante “[...] é construída por meio e entremeada com a construção cultural de cada comunidade (onde se inserem os signifi cados)”. Ou seja, ela é o conjunto de crenças, costumes e práticas singulares de uma região, o qual particulariza uma forma de se enxergar a realidade, de acordo com a perspectiva do falante. É nesse nível que os signifi cados estão inseridos. Semântica computacional e semântica cultural6 Dimensão linguística Já a dimensão linguística, segundo Novais e Ferrarezi Junior (2015), é a ma- nifestação da visão de mundo do falante. É na dimensão linguística que o sentido está inserido. Para a semântica cultural, existe uma distinção entre o signifi cado (nível da visão de mundo do falante) e o sentido (nível linguístico). Entretanto, para essa vertente da semântica, é mais pertinente estudar o nível linguístico: Se o significado não é objeto do estudo da Semântica, mas suas manifestações é que o são — quais sejam elas, as múltiplas formas pelas quais a língua o manifesta em seu sistema e nas funções para as quais esse sistema foi criado [...] podemos confirmar a adoção do termo “sentido”, que me parece ser, na literatura corrente, aquele que mais se aproxima da ideia que pretendo expres- sar quando falo de manifestações linguísticas do significado (FERRAREZI JUNIOR, 2010, p. 59). Com o intuito de tornar esses dois conceitos mais palpáveis, Almeida e Fossile (2016) formulam o exemplo apresentado no Quadro 1, a seguir. Esse exemplo parte do princípio de que cada região do Brasil encara a figura da mulher de maneira diferente. Afinal, cada lugar, devido às suas singularidades, possui uma visão de mundo específica. Ademais, existe também a prática dessa visão de mundo, isto é, a manifestação verbal dela por meio de uma língua. Considerando isso tudo, o Quadro 1 mostra o caso da palavra “rapariga”, indicando como ela é utilizada em cada região do Brasil. Fonte: Adaptado de Almeida e Fossile (2016). Região do Brasil Sentido Amazônia Menina virgem, donzela Região Sul Moça jovem de boa família Região Nordeste Concubina geralmente sustentada por um homem casado Região Norte e Região Centro-Oeste Prostituta Quadro 1. Dimensão da visão de mundo do falante e dimensão linguística utilizando como exemplo a palavra “rapariga” 7Semântica computacional e semântica cultural Como você pode inferir, ainda que esteja em jogo a mesma palavra, o sentido vinculado a ela (dimensão linguística) está em função de um signifi- cado (dimensão da visão de mundo) contextualizado em determinada cultura. Inclusive, alguns sentidos podem ser mais estabilizados, uma vez que podem ser mais comuns a determinadas culturas do que outros sentidos, os quais são mais singulares. Nesse viés, destacam-se as expressões idiomáticas, as quais, segundo Rocha (2012), são unidades lexicais que contêm uma linguagem metafórica e, muitas vezes, são fruto de uma comunidade específica. Aliás, elas são frequentemente estudadas por essa vertente semântica. Ao longo deste capítulo, você estudou os princípios básicos da semântica computacio- nal e cultural. Como você pôde notar, a semântica computacional reúne conhecimentos tanto da própria semântica quanto da informática, sendo dividida em linguística de corpus e PLN. Já a semântica cultural insere o fator cultural na investigação do significado, permitindo que os traços identitários sejam levados em consideração no momento da pesquisa e da análise semântica. ALMEIDA, N. R.; FOSSILE, D. K. Semântica cultural: um estudo acerca da atribuição de sentidos às palavras e expressões da língua. Raído, v. 10, n. 24, 2016. BONIATI, B. B.; PREUSS, E.; FRANCISCATTO, R. Introdução à informática. Frederico Wes- tphalen: Universidade Federal de Santa Maria, 2014. Disponível em: http://estudio01. proj.ufsm.br/cadernos/cafw/tecnico_agroindustria/introducao_informatica.pdf. Acesso em: 5 maio 2020. EAGLETON, T. A idéia de cultura. São Paulo: Unesp, 2005. FERRAREZI JUNIOR, C. Introdução à semântica de contextos e cenários: de la langue à la vie. Campinas: Mercado de Letras, 2010. FERRAREZI JUNIOR, C.; BASSO, R. Semântica, semânticas: uma introdução. São Paulo: Contexto, 2013. HANIS, T.; NOLLER, D. A função dos modelos semânticos nas operações industriais mais inteligentes. North Castle: IBM, 2012. Disponível em: https://www.ibm.com/develo- perworks/br/industry/library/ind-semanticmodels/index.html. Acesso em: 8 abr. 2020. Semântica computacional e semântica cultural8 Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun- cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. MCDONALD, C.; YAZDANI, M. Prolog programming: a tutorial introduction. Oxford: Blackwell Scientific, 1990. NOVAIS, S. L. Ó.; FERRAREZI JUNIOR, C. Estudo do falar de Paraguaçu, MG e região: expressões idiomáticas. Rev (Entre Parênteses), v. 1, n. 4, 2015. OTHERO, G. de Á. Linguística computacional: uma breve introdução. Letras de Hoje, v. 41, n. 2, p. 341-351, 2006. PAGANI, L. A. Semântica computacional. In: FERRAREZI JUNIOR, C.; BASSO, R. Semântica, semânticas: uma introdução. São Paulo: Contexto, 2013. p. 57-69. RINO, L. H. M. et al. Aspectos da construção de um revisor gramatical automático para o português. Est Linguíst, v. 31, p. 1-6, 2002. ROCHA, C. C. A formação do português brasileiro pela observação de expressões idiomáticas. Rev ContraPonto, v. 2, n. 2, p. 14-27, 2012. SOUZA, D. S.; VIANNA, A. L. T. Semântica, semânticas: uma introdução ao estudo do significado para estudantes brasileiros. Entrelinhas, v. 9, n. 1, 2015. VIEIRA, R. Linguística computacional: fazendo uso do conhecimento da língua. Entre- linhas, ano 2, n. 4, 2002. VIEIRA, R.; LIMA, V. L. S. Linguística computacional: princípios e aplicações. In: NEDEL, L. (org.). IX Escola Regional de Informática - 2001 (ERI2001). Porto Alegre: SBC- Regional Sul, 2001. v. 1, p. 27-58. Leitura recomendada MARTINS, R. T.; NUNES, M. G. Noções gerais de tradução automática. NILC - ICMC-USP, n. 68, p. 1-26, 2005. Disponível em: http://www.nilc.icmc.usp.br/nilc/download/Notas-DidaticasICMC_68.pdf. Acesso em: 5 maio 2020. 9Semântica computacional e semântica cultural SEMÂNTICA E PRAGMÁTICA Mariana Corallo Mello de Azevedo Kuhlmann Pragmática: definição e situação no campo da linguística Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Analisar as bases e interfaces da pragmática com a linguística e com a análise do discurso. Identificar os conceitos de coerência pragmática e de regras conversacionais. Descrever a corrente funcionalista na pragmática. Introdução Neste capítulo, você vai estudar a constituição teórico-metodológica da pragmática no âmbito dos estudos linguísticos. Para isso, você vai conhecer os fundamentos que sustentam a pragmática enquanto abor- dagem da linguagem humana, com vistas a ampliar a sua compreensão sobre o objeto de análise dessa área de estudos. Paralelamente, você vai ver quais são as possíveis interfaces entre pragmática, educação e análise do discurso. Em seguida, você vai se familiarizar com os princípios básicos postu- lados pela pragmática, o que inclui o conceito de coerência pragmática, que se relaciona às regras conversacionais. Por fim, você vai estudar a abordagem funcionalista da pragmática e ver as possibilidades de análise linguística pautadas por essa orientação. 1 O espaço da pragmática nos estudos linguísticos A comunicação humana propicia um espectro de análise muito amplo, com abordagens teórico-metodológicas que enfocam diversos objetos de estudo. Para você compreender o espaço da pragmática nos estudos linguísticos, é interessante partir de um exemplo: Eu já assumi um projeto. Em princípio, o teor informacional dessa sentença é restrito. É possível depreender que o sujeito elabora uma afirmação acerca de um projeto que foi assumido. Há também um elemento temporal expresso pelo advérbio “já”, que reforça que o espaço de tempo vinculado à ação de assumir um projeto se encontra no passado. No entanto, a análise acerca da sentença é meramente descritiva. Não há indícios ou recursos que permitam investigar de modo pormenorizado o contexto da situação em que esse enunciado foi emitido. Analise agora o mesmo exemplo, mas apresentado em outro formato: Interlocutor 1: Estou procurando com urgência colaboradores para o meu projeto. Você teria disponibilidade para participar? Interlocutor 2: Eu já assumi um projeto. Interlocutor 1: Entendi. Tudo bem. Em relação ao contexto em que esse diálogo acontece, considere o seguinte: os interlocutores trabalham juntos em uma empresa; recentemente houve a atribuição de projetos na empresa, que variam em termos de responsabilidade e complexidade. Como você viu, a mesma frase do primeiro exemplo aparece posteriormente em meio a informações adicionais: há um outro interlocutor, o Interlocutor 1, que elabora uma pergunta direcionada ao Interlocutor 2. Também há in- formações que não estão diretamente expressas na interação presente nesse curto diálogo: sabe-se que ambos os interlocutores trabalham juntos em uma empresa que distribuiu diferentes projetos a seus funcionários e que tais projetos possuem níveis de complexidade diversos. A partir desses dados, é possível propor uma análise mais pormenorizada, baseada no contexto de fala e no que foi linguisticamente formulado pelos interlocutores. Pragmática: definição e situação no campo da linguística2 Você pode concluir que o Interlocutor 1 está sobrecarregado em relação ao projeto sob a sua responsabilidade, uma vez que ele emprega a expressão “com urgência”. Ao perceber que o Interlocutor 2 pode ter mais disponibilidade, talvez por ter assumido um projeto mais simples, ele pergunta se haveria a possibilidade de colaboração entre ambos. Tal solicitação não é atendida pelo Interlocutor 2, que expressa uma resposta nem explicitamente afirmativa, nem negativa — ele afirma que já assumiu outro projeto, sinalizando falta de interesse em estabelecer uma parceria de colaboração. O diálogo se encerra com o Interlocutor 1, que sinaliza a compreensão da resposta que lhe foi fornecida. Essa breve análise exemplifica o escopo dos estudos situados na pragmática: o uso da linguagem. A análise do uso da linguagem, por estar contextualizada, revela informações que podem não estar expressamente ditas nos enunciados. Segundo Fiorin (2008a, 2008b), a pragmática é o campo da linguística dedicado a estudar a relação entre a estrutura da linguagem e a sua utilização propria- mente dita. Para o autor, a pragmática é absolutamente necessária “[...] pois há palavras e frases cuja interpretação só pode ocorrer na situação concreta da fala [...]”, uma vez que “[...] comunicamos muito mais do que as palavras significam [...]” (FIORIN, 2008a, 2008b, p. 166). Ao retomar os exemplos apresentados no início desta seção, você pode perceber a pertinência das considerações tecidas por Fiorin (2008a, 2008b). O enunciado “Eu já assumi um projeto”, quando descontextualizado, é co- municativamente restrito. O teor informacional da sentença fica limitado ao significado das palavras. No entanto, quando a sentença é contextualizada, torna-se viável analisar o processo interacional em que ela foi enunciada. Ao afirmar que um outro projeto já foi assumido, o interlocutor não apenas define algo sobre a sua situação particular: ele situa o seu papel social em relação ao interlocutor. A falta de disposição para colaborar com o seu colega, expressa na afirmação sobre a sua situação de trabalho, constitui, na realidade, uma resposta indireta, porém negativa, para a pergunta feita. No campo da pragmática, há uma gama de regras e estratégias linguísticas por meio das quais as funções gerais da linguagem podem ser realizadas com o propósito de atender às intenções comunicativas dos falantes. No exemplo apresentado, o Interlocutor 2 provavelmente optou por não responder negati- vamente para evitar uma situação de conflito e manter a polidez. Sobre tais regras, Bates (1976, p. 81) afirma: A Pragmática é talvez melhor definida como sendo um conjunto de regras que regem o uso da língua no contexto. Como tal, não define um tipo distinto de estrutura linguística ou “objeto”. Pelo contrário, tudo na linguagem é 3Pragmática: definição e situação no campo da linguística pragmática, para começar. Nós escolhemos nossos sentidos para se adequar aos contextos e construir nossos sentidos para esses contextos, de tal forma que os dois são inseparáveis, da mesma maneira que a figura é definível de acordo com o fundo. Segundo essa visão, todo ato envolvido na construção de sentido é um ato pragmático. Isso significa que a pragmática situada na linguística contempla as carac- terísticas de utilização da língua, como a intencionalidade dos falantes, os papéis sociais exercidos por eles, os tipos socializados de fala e o conhecimento de mundo, aqui entendido como as referências socioculturais que os falantes possuem. Por isso, é razoável considerar que a pragmática se encontra na intersecção entre três elementos da linguagem, também compreendidos como aspectos pragmáticos da linguagem: o contexto, os usuários e o conhecimento sociocultural (Figura 1). Figura 1. Elementos da linguagem constituintes da pragmática. A relação entre usuários (falantes ou interlocutores), contexto (situação interativa) e conhecimento (referências socioculturais) constitui as condições de uso da língua. Isso significa que, nesse âmbito teórico-metodológico, os interlocutores são sujeitos intencionais que selecionam estratégias discursivas, Pragmática: definição e situação no campo da linguística4 a partir do seu repertório de referências, para expressar atos de fala que se concretizam em determinado contexto. O marco inicial da pragmática se deu por meio das contribuições dos filósofos da linguagem Austin (1990) e Grice (1982). Ainda recorrendo às considerações de Fiorin (2008a, 2008b, p. 166), é possível sintetizar tais con- tribuições e o processo de consolidaçãoda pragmática da seguinte forma: O ponto de partida da Pragmática foram os trabalhos dos filósofos da linguagem John Austin e Paul Grice. O primeiro diz que a linguagem não tem uma função descritiva, mas uma função de agir. Ao falar o homem realiza atos. Por exemplo, ao dizer Eu lhe prometo vir, o ato da promessa é realizado quando se diz Eu lhe prometo. Grice mostra que a linguagem natural comunica mais do que aquilo que se significa num enunciado, pois quando se fala, comunicam-se também conteúdos implícitos. Quando alguém diz ao outro, que está se aprontando para sair, São oito horas, ele não está fazendo uma simples constatação sobre o que marca o relógio, mas dizendo Apresse-se; Vamos chegar atrasados. Assim, a perspectiva lançada pela pragmática reconhece que, ao articular sentenças, o falante não está limitado a constatar passivamente aquilo que é informado; ele efetivamente age em determinado contexto. Quanto ao conteúdo da linguagem, a pragmática assume que há informações que são comunicadas nos processos interativos sem serem explicitamente mencionadas. Rajagopalan (2016, p. 198) também contempla essas constatações: A Pragmática é um modo peculiar de olhar para a linguagem e estudá-la. Ela encara a linguagem como ação, acima de qualquer coisa ou produzir certos vocábulos. Em verdade, nós agimos de uma forma ou de outra ao optar por falar alguma coisa para alguém. Ou, até mesmo ao optarmos por calar ao invés de falar. A fala e mesmo a ausência de fala fazem parte de um ato bem mais complexo. Ao falar, nós nos posicionamos no mundo diante das situações nas quais nos encontramos e diante das questões que surgem. E isso tem desdobramentos políticos, entre outros. Nesse ponto, percebe-se que há uma interface entre a pragmática e a análise do discurso. Para demonstrar tal interface, cabe definir, mesmo que brevemente, o que se afirma sobre a análise do discurso: Em resumo, o que a Análise do Discurso se propõe é não reduzir a função da linguagem apenas a informar, a comunicar ou a persuadir. Trabalhando com as condições de sentido, a Análise do Discurso busca pontuar o confronto político-ideológico que historicamente se materializa no discursivo (SOUZA, 2016, p. 126). 5Pragmática: definição e situação no campo da linguística Assim, a partir dessas considerações analíticas e definicionais, é possível apreender que as condições de sentido consistem em aspectos pragmáticos que veiculam processos discursivos de cunho político-ideológico. Em outras palavras, os aspectos pragmáticos são traços que podem ser resgatados no discurso de modo a evidenciar referências socioculturais que se materializam historicamente na fala por meio de convenções e estratégias linguísticas. Em termos práticos, tal interface entre pragmática e análise do discurso se concretiza no setor da educação. A partir do referencial teórico composto por essas duas áreas, é possível propor diversos encaminhamentos para investigar a materialidade da linguagem — seja na língua oral, seja na língua escrita —, bem como as suas variadas formas de significação e interpretação. Capperucci (2010, p. 60) discorre sobre essa relação no campo da educação ao reconhecer que as práticas pedagógicas no Brasil tendem a não estimular os alunos a se constituírem com leitores ativos da linguagem e dos processos de ensino e aprendizagem: Considerada a importância da linguagem, dentro da educação pretendemos ampliar a discussão sobre a necessidade de analisar os discursos implícitos e explícitos no contexto educativo com o objetivo de ascendermos linguis- ticamente na capacidade de verificarmos nas ideologias subjacentes nos documentos que regem a educação brasileira, seus reais objetivos, e assim, partindo de uma visão sem estereótipos discutirmos possibilidades de rupturas para novas direções. Assim, se a análise do discurso se propõe a recuperar os processos de cons- trução e socialização do conhecimento, a pragmática investiga os mecanismos linguísticos e os aspectos contextuais que os sustentam. Veja o que Fiorin (2008a, 2008b, p. 181) afirma sobre essa relação entre discurso e pragmática: Todos esses mecanismos produzem efeitos de sentido no discurso. Não é indiferente o narrador projetar-se no enunciado ou alhear-se a ele; simular uma concomitância dos fatos narrados com o momento da enunciação ou apresentá-los como anteriores ou posteriores a ele; presentificar o pretérito; enunciar um eu sob a forma de um ele. Alinhar ambas as áreas do setor da educação parece ser uma estratégia certeira para o processo de renovação da educação brasileira. A ideia é propor atividades e práticas pedagógicas que questionem as mensagens Pragmática: definição e situação no campo da linguística6 explícitas e implícitas implicadas nos discursos que circulam na sociedade e nos documentos escolares — documentos pedagógicos, planos de aula, avaliações, etc. 2 A noção de coerência pragmática e as regras conversacionais Fiorin (2008a, 2008b, p. 176) destaca que, no bojo da pragmática, há a ten- dência, por parte de alguns estudiosos, de assumir que os comportamentos linguísticos são determinados por regras ou princípios gerais de natureza racional: “A maneira de utilizar a linguagem na comunicação é regida por princípios gerais assentados em inferências pragmáticas [...]”. Essa orientação teórico-metodológica conduziu Grice (1982) a propor estudos dedicados a analisar tais princípios gerais. Como resultado de seus esforços de análise, Grice (1982) propôs a noção de implicatura, relacionada ao princípio da cooperação. Sinteticamente, Grice (1982) afirma que esse princípio pode ser formulado do seguinte modo: que as intervenções e contribuições do falante às interações ocorram conforme o requerido pelo objetivo ou pela direção acordados durante a troca verbal em que se está engajado. O princípio da cooperação pode ser definido como um dispositivo geral da comunicação que permite que os falantes deduzam e façam inferências, também chamadas de “implicaturas conversacionais”, preenchendo lacunas de sentido que se verificam, proposital ou inadvertidamente, em certos enun- ciados. Considere o seguinte: Segundo inúmeros estudiosos da Pragmática, ela é governada por um Princípio de Cooperação, que exige que cada enunciado tenha um objeto ou uma finalidade. Muitas vezes, os atos de fala não são manifestados explícita, mas implicitamente e, portanto, só se percebe o objeto ou o propósito de um enunciado quando se entendem esses implícitos (FIORIN, 2008b, p. 176). Esse dispositivo está fundamentado em regras conversacionais, também chamadas de “máximas conversacionais”. Essas regras são compartilhadas pelos falantes por meio de um repertório de conhecimento. Tal repertório 7Pragmática: definição e situação no campo da linguística os conduz a reconhecer e recuperar o teor motivacional e intencional que sustenta os enunciados de modo a preservar a coerência pragmática em dada situação. A coerência pragmática é um conceito central na organização da comunica- ção. Basicamente, a coerência pragmática consiste numa esquematização linear que supõe que uma resposta seja elaborada quando uma pergunta é enunciada. É por meio da coerência pragmática que os atos de fala se organizam, sendo orientados pelas regras ou máximas conversacionais de Grice (1982). A seguir, veja uma síntese das regras ou máximas conversacionais de Grice (1982). Regra da quantidade: a contribuição deve conter o tanto de informação exigida; ela não deve conter mais informações do que é exigido. Regra da qualidade: a contribuição deve ser verídica; não se deve afirmar o que se pensa que é falso e não se deve afirmar coisa de que não se tem provas. Regra da relação (da pertinência): a colaboração não deve abordar o que não é concernente ao assunto tratado (deve ser pertinente). Regra da maneira: a colaboração deve ser clara, não obscura; deve-se evitar a ambiguidade, ser breve (evitar prolixidadeinútil) e falar de maneira ordenada. Tais regras podem ser infringidas durante uma interação. É justamente nessa ocasião que as implicaturas são ativadas com vistas a preservar o encami- nhamento da conversação. No entanto, é importante ressaltar que as infrações às regras conversacionais não devem ser assumidas nem como ocorrências prejudicais à comunicação, nem como ocorrências favoráveis a ela. Durante um enunciado, o falante mobiliza estratégias com base em referên- cias socioculturais com vistas a expressar a sua intencionalidade no discurso. Logo, as infrações podem ser cometidas de modo a atender à sua orientação de expressão comunicativa. Por essa razão, as infrações às regras conversacionais devem ser entendi- das como componentes da competência comunicativa dos falantes. Elas são provocadas quando os interlocutores enquadram a situação de fala conforme as suas motivações e percepções. As infrações podem impossibilitar que o processo comunicativo ocorra, mas não necessariamente. A seguir, no Quadro 1, veja alguns enunciados que exemplificam tais infrações. Pragmática: definição e situação no campo da linguística8 Tipo de violação Descrição Exemplos Violação à regra da quantidade Nesse caso, viola-se a regra da quantidade pois uma informação evidente é verbalizada, comprome- tendo a utilidade informacional. — Você por aqui! — Não, já fui embora. Violação à regra da qualidade A regra da qualidade é infringida quando o interlocutor demonstra desdém, exagero ou ironia, deixando claro que o que é afirmado não con- diz com o que ele realmente pensa. — Este é um exce- lente carro! — É, até que serve. Violação da regra da relação (da pertinência) A regra da relação é violada quando um dos interlocutores não se engaja no tópico proposto, expressando uma informação que não é perti- nente e provocando uma interrup- ção ou mudança de tópico. —Você tem um mi- nuto para conhecer a nossa organização? — Desculpe, estou com pressa. Preciso trabalhar. Violação da regra da maneira A regra da maneira é desrespeitada quando os interlocutores optam por se manifestar de tal modo que a informação solicitada não é direta- mente respondida, envolvendo, em geral, ambiguidades, multiplicidade de sentidos e obscuridades. Aqui, a resposta dada pode consistir num empecilho para o acesso à informa- ção, ou pode revelar informações implícitas que ultrapassam o que foi indagado em princípio. — Você trabalhou por quanto tempo com ela? — O suficiente. Quadro 1. Infrações às regras conversacionais Alinhando os conceitos Os conceitos discutidos até aqui não devem ser compreendidos como exclu- dentes, e sim como complementares. Para compreender melhor, observe a Figura 2, que esquematiza as defi nições abordadas. 9Pragmática: definição e situação no campo da linguística Figura 2. O domínio da pragmática e seus elementos interacionais. A pragmática consiste num segmento da linguística cujo enfoque é o uso da linguagem que se orienta pela coerência pragmática. Isso significa que as interações se constituem de modo a serem pragmaticamente coerentes. Por exemplo, para toda pergunta, se espera que haja uma resposta comunicati- vamente compatível. A condição para que a coerência pragmática ocorra é o princípio da cooperação. Operante, o princípio da cooperação preconiza que as interações sejam regidas por um propósito, objeto ou finalidade decodificado e reconhecido pelos interlocutores sempre que eles intervêm. Como você viu na Figura 2, tal princípio da cooperação se desdobra em quatro regras ou máximas con- versacionais: a regra conversacional da quantidade, a regra conversacional da qualidade, a regra conversacional da relação e a regra conversacional da maneira. Embora tais regras estejam implicadas no princípio da cooperação, é importante considerar que nem sempre elas serão efetivamente empre- gadas. Nesse caso, ocorrem infrações, propositais ou não. É importante ressaltar que as infrações não são nem necessariamente negativas, nem necessariamente positivas. Essas eventuais violações são componentes da competência linguística do falante, que pode manipular os recursos da linguagem conforme o seu entendimento dos enunciados e a sua intencio- nalidade comunicativa. Pragmática: definição e situação no campo da linguística10 3 Funcionalismo e pragmática: um possível alinhamento teórico-metodológico A abordagem funcionalista da pragmática está vinculada ao que se entende por abordagem funcional dos estudos da linguagem. Sobre o funcionalismo e a pragmática, Halliday (1978, p. 126) argumenta: Se podemos variar nosso nível de formalidade ao falar ou escrever, ou passar livremente de um tipo de contexto para outro, usando a língua ora para planejar uma atividade organizada, ora para pronunciar uma conferência, ora para manter disciplinadas as crianças, é porque a natureza da língua é tal que tem todas essas funções integradas em sua capacidade total. O funcionalismo é uma vertente de análise das diferentes áreas da lin- guística — entre as quais figura a pragmática. Ele se orienta pelo estudo da língua em suas atribuições funcionais. A partir desse viés de análise, a função comunicativa não é apenas uma particularidade da linguagem humana; ela pressiona e molda o sistema linguístico como um todo. Veja o que Marques (2006, p. 2) pontua: A forma estrutural da língua é como é devido aos seus diferentes modos de uso, às suas diferentes funções sociais. Essas funções se referem ao fato de que quando nos comunicamos estamos inseridos em contextos diversos e variados que requerem do falante a utilização de expressões que sejam adequadas a cada situação. Sendo assim, o uso da língua de- termina a sua estrutura. O posicionamento do autor revela a pertinência de se avaliar a relação existente entre as perspectivas funcionalistas. Se o funcionalismo está de- dicado a investigar como o uso linguístico modela as estruturas formais da língua, então a pragmática, por contemplar as condições que regem os usos linguísticos, oferece um amplo respaldo teórico para que esse processo seja investigado. Complementarmente, Modesto (2006, p. 24) afirma que, a partir do con- texto situacional, o falante elege o uso linguístico a ser empregado em sua produção linguística: 11Pragmática: definição e situação no campo da linguística A partir do contexto situacional, o falante seleciona o registro a ser utilizado em sua atuação linguística. Suas escolhas no ato comunicacional estão ligadas ao papel que assume na interação verbal. A escolha depende, portanto, da intenção do falante, da forma que ele considera adequada emitir sua informação pragmática e de como ele deseja que o destinatário a receba e retorne a ele. Assim, o falante e o ouvinte, os interlocutores, compartilham um conheci- mento mútuo que, quando socializado durante uma interação, desencadeia dois processos interativos: um de expressão de intenções e outro de interpretação de intenções. Pragmaticamente, os interlocutores nesses processos recorrem a certos usos linguísticos para que sejam sustentados comunicativamente. A depender do contexto, um dos falantes pode optar por assumir uma posição mais ambígua e não responder diretamente ao que lhe foi indagado. Em outras ocasiões, o falante pode se mostrar mais cooperativo, com vistas a demonstrar maior comprometimento em atender aos questionamentos que lhe foram direcionados. Além disso, um dos falantes pode priorizar o caráter informacional, oferecendo mais informações do que de fato foi requerido. Nes- ses e em outros casos, a concretude da linguagem mobiliza usos linguísticos, que são manipulados pelas intenções e estão subordinados às motivações dos falantes engajados em uma situação interacional. Com base no esquema denominado “Top-Down”, proposto por Levelt (1989) com vistas a clarificar a relação entre funcionalismo, discurso e pragmática, é possível verificar que o processo de produção da fala parte da intençãoem direção à expressão linguística. Inicialmente, o falante decide qual vai ser o seu propósito comunicativo, por meio de informações contextuais e pragmáticas. Depois, ele seleciona a informação que melhor se adéqua para que o seu objetivo seja atingido. Tal informação é gramatical e foneticamente codificada, de modo que ocorre articulação, resultando, por fim, na expressão da intencionalidade que desencadeou todo esse processo. Ao contrário do que se supõe em outras vertentes linguísticas, os falantes não selecionam passiva e mecanicamente os usos linguísticos com base no que a situação de fala demanda. Na realidade, há uma interação de forças linguís- ticas que moldam e pressionam a função dos usos (funcionalismo) por meio de recursos da linguagem que são agenciados (pragmática), consolidando, assim, as intenções dos falantes engajados em determinada situação comunicativa. Pragmática: definição e situação no campo da linguística12 AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. BATES, E. Language and context: the acquisition of pragmatics. Massachussets: Elsevier, 1976. CAPPERUCCI, S. A. S. Uma análise discursiva do programa Brasil Alfabetizado: educação para as massas ou educação de massas? 2010. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro Universitário de Caratinga, Caratinga, 2010. FIORIN, J. L. Pragmática. In: FIORIN, J. L. Introdução à linguística I: objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2008, p. 166-186. FIORIN, J. L. Pragmática. In: FIORIN, J. L. Introdução à linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2008. p. 161-177. GRICE, H. P. Lógica e conversação. In: DASCAL, M. (org.). Fundamentos metodológicos da lingüística. Campinas: Unicamp, 1982. p. 81- 103. (Pragmática, v. 5). HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. Cohesion in English. Londres: Longman, 1978. MARQUES, W. Funcionalismo, pragmática e análise do discurso. Natal: UFRN, 2006. MODESTO, A. T. T. Abordagens funcionalistas. Revista Eletrônica de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura Letra Magna, [s. l.], ano 3, n. 4, p. 1–19, 2006 LEVELT, W. J. M. Speaking: from intention to articulation. Cambridge: MIT, 1989. RAJAGOPALAN, K. Pragmática. In: MOLLICA, M. C.; FERRAREZI, C. Sociolinguística, socio- linguísticas. São Paulo: Contexto, 2016. p. 185–195. SOUZA, T. C. C. Sociolinguística e análise do discurso: pragmática. In: MOLLICA, M. C.; FERRAREZI, C. Sociolinguística, sociolinguísticas. São Paulo: Contexto, 2016. p. 123–133. Leituras recomendadas CANÇADO, M. Atos de fala e implicaturas conversacionais. In: CANÇADO, M. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. Belo Horizonte: UFMG, 2005. MOURA, H. Significação e contexto: uma introdução a questões de semântica e prag- mática. Florianópolis: Insular, 1999. 13Pragmática: definição e situação no campo da linguística SEMÂNTICA E PRAGMÁTICA Silvia Adélia Henrique Guimarães Dêixis e modalização Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Descrever o fenômeno da dêixis. Enumerar os elementos dêiticos. Explicar o fenômeno da modalização em estruturas simples e complexas. Introdução Neste capítulo, você vai estudar o fenômeno da dêixis e o fenômeno da modalização. Ambos são muito importantes para os estudos da lingua- gem e para a produção de sentido. A dêixis é o fenômeno responsável por ativar certos elementos ex- tralinguísticos para que se possa efetivar a compreensão de algum ele- mento linguístico em determinada situação comunicativa. Por sua vez, a modalização serve para posicionar o enunciador em seu enunciado. 1 O fenômeno da dêixis “Dêixis” é uma palavra que guarda relação com a noção de apontamento. É um termo de origem grega traduzido por “apontar”, “mostrar”, “indicar”. Mesmo ao ser incorporado pelo latim, e também pelos estudos da linguagem, o termo preservou seu sentido etimológico. O fenômeno da dêixis, estudado do ponto de vista da pragmática, ocorre quando algum dado linguístico precisa se ancorar na própria situação comunicativa, tendo como ponto de origem o enunciador daquela comunicação, para ter o seu sentido adequadamente cons- truído (FIORIN, 1996; ILARI, 2001; ILARI; GERALDI, 2008; MELO, 2015). Na tradição dos estudos da pragmática, Émile Benveniste é considerado o precursor dos estudos da dêixis, tendo em vista que outros teóricos que estuda- ram esse fenômeno o fizeram a partir de áreas de conhecimento diversas. Veja: No que diz respeito aos estudos linguísticos, que é o que nos interessa de perto, praticamente toda a literatura sobre dêixis menciona Benveniste como fundamento. E se não o fazem diretamente, fazem-no mencionando autores como Lahud (1979), Levinson (1983), Fillmore (1971; 1979;1982), Lyons (1977;1982), que, por sua vez, fundamentam-se em Benveniste. A herança deixada por esses autores foi a do tratamento da dêixis primordialmente como fenômeno de ostensão e, além disso, a da classificação, já tradicional, em dêixis de pessoa, tempo e lugar, com diversos subtipos, como a dêixis social, a dêixis discursiva e a dêixis de memória (CIULLA, 2018, p. 365). Benveniste foi o teórico que, ao estudar a linguística geral, de Saussure, concluiu que a linguagem não existe fora dos sujeitos de sua produção (BEN- VENISTE, 2005). Isso deságua em outra proposição importante de Benveniste, que se relaciona à noção de subjetividade. Se os estudos clássicos da dêixis concentravam-se no aspecto “locacional”, de apontamento, Benveniste postulou algo mais “contextual”. Para o teórico, considerar o enunciador na produção da linguagem resulta em saberes sobre a constituição de subjetividade e sobre como ela interfere, de seu lado, na própria construção da linguagem. Nas palavras de Benveniste (2005, p. 288), “[...] ‘eu’ se refere ao ato de discurso individual, no qual é pronunciado e lhe designa o locutor. É um ser que não pode ser identificado, a não ser dentro do que, noutro passo, chamamos de instância do discurso, e que só tem referência atual”. Assim, para Benveniste (2005), a assunção de um “eu” está intimamente ligada à situação enunciativa. Mas há outro fator que ele salienta: o “eu” se pronuncia para um “tu”, que também se constrói subjetivamente. Logo, a Dêixis e modalização2 teoria defendida por Benveniste é a da (inter)subjetividade, que ocorre em um tempo e um espaço que também partem do posicionamento do enunciador. Inicia-se, assim, a concepção “eu–aqui–agora” de Benveniste. É nas pistas da linguagem que se reconhece essa tríade “eu–aqui–agora”. Tais pistas linguísticas necessitam de informações fora do contexto linguístico para se completarem comunicativamente. Por isso, pronomes pessoais como “eu” e “tu” são reconhecidos como elementos dêiticos, pois é “fora deles” que se encontra o referente dêitico. Isso ocorre porque os pronomes citados podem se referir a uma ou outra pessoa no discurso, a depender de quem esteja falando (portanto, para fazer uma leitura correta do ato enunciativo, você precisa saber quem é a pessoa que está falando). A seguir, veja algumas definições importantes. Elemento dêitico: elemento linguístico que materializa o fenômeno da dêixis. Referente dêitico: referente com o qual o elemento dêitico cria um elo na enun- ciação (tradicionalmente, diz-se que é para quem o elemento dêitico aponta). Enunciação: situação “do mundo real” que está construindo comunicação. Enunciador: aquele a partir de quem ocorre a enunciação. Enunciatário: aquele com quem se estabelece a comunicação, para quem se dirige a enunciação. Elemento exofórico: “exo” significa “fora”, enquanto “phora” significa “portar”, “carregar”. Assim, o elemento exofórico carrega o sentido para fora do enunciado. Esse tipo de construção centrada no enunciador ocorre, igualmente, no caso de advérbios como “aqui” e “ali”. Esses termos, a depender da localização de quem está falando, podem significar um ou outro lugar. Portanto,para referi-los adequadamente, você precisa saber para onde o enunciador está apontando — lugar esse que também pode ser simbólico. Benveniste (2005) seguiu esse 3Dêixis e modalização mesmo raciocínio para a construção dêitica do tempo, para completar o eixo “eu–aqui–agora” da subjetividade. Essa necessidade mais pragmática de dependência do ato enunciativo para se construir um sentido leva os elementos dêiticos a serem chamados também de elementos “exofóricos”, pois é fora do enunciado que eles encontram a sua referência. Contudo, observou-se que um dêitico poderia encontrar sua referência não apenas fora do texto: por vezes, a referência dêitica poderia estar no texto, ou no discurso. Assim, assume-se também o dêitico como um elemento vazio que tem seu sentido carregado em “elementos fóricos”, de acordo com a situação. Fillmore (1971) é tido como o primeiro teórico que acrescentou aos três tipos clássicos de dêixis a dêixis textual, a dêixis social e a dêixis de memória. Essas classificações são amplamente seguidas na atualidade. A dêixis textual faz referência a outro elemento dentro do próprio texto ou discurso (podendo ser chamada, por alguns teóricos, de dêixis discursiva). A dêixis social faz referência às relações existentes entre os enunciadores — se são respeitosas, impositivas, etc. Por sua vez, a dêixis de memória depende de os dois partici- pantes da enunciação terem um conhecimento partilhado, para que possam resgatar, na memória, o referente dêitico. Não se esqueça de que a base teórica que pauta a pragmática defende que linguagem é ação (AUSTIN, 1990). Assim, qualquer situação linguística a ser analisada dentro desse escopo precisa ser analisada do ponto de vista de um fazer(-se) no mundo extralinguístico, de um agir sobre o outro. Logo, o enunciador é o eixo central nos estudos da dêixis; ou seja, o enunciador é o centro de todas as coordenadas do evento enunciativo. Essa perspectiva não é diferente na teoria da modalização, que você vai estudar ainda neste capítulo. A modalização trata-se de uma teoria que estuda o modo de expressão de um enunciador em um momento de enunciação. Por isso, modalizar é colocar-se no mundo, é agir sobre ele, é posicionar-se de uma ou de outra forma, a depender dos modalizadores escolhidos para enunciar. Neste capítulo, portanto, você vai estudar os principais elementos dêiticos, bem como os elementos modalizadores. As classificações servirão como base para que você possa aplicar esses saberes de modo contextualizado. Lembre-se de que o contexto de enunciação é que lhe dará as ferramentas necessárias para explicar o fenômeno da dêixis e o fenômeno da modalização. Dêixis e modalização4 2 Elementos dêiticos Como você já viu, Benveniste foi responsável por formular as três categorias clássicas dos componentes dêiticos, a partir da pessoa na enunciação (por isso, classifi cou-os em dêixis de pessoa, de tempo e de espaço). Contudo, outros teóricos sugeriram um desdobramento dessa classifi cação. Aqui, você vai conhecer outras três categorias comumente estudadas: dêixis social, textual e de memória. Embora muitos estudiosos considerem que os elementos anafóricos e dêiticos podem se sobrepor e formar um continuum na comunicação, você não deve confundir ele- mentos dêiticos com elementos anafóricos (CAVALCANTE, 2011). Estão em jogo dois fenômenos distintos, embora os dois façam referência a determinados elementos. Enquanto a anáfora refere-se a termos e a expressões linguísticas dentro ou fora do mesmo texto (oral, escrito ou multimodal), os dêiticos estão diretamente ligados à situação de enunciação. Como pontuam Ilari e Geraldi (2008, p. 69), no português “[...] há uma grande maioria de expressões que se usam ora como anáforas, ora como dêiticas, mas os dois fenômenos são distintos em princípio; e em certos casos os dêiticos e os anafóricos distribuem-se em séries paralelas mas não intercambiáveis”. É o caso destes exemplos: “ontem”, “na véspera”, “hoje”, “naquele dia”, “amanhã”, “no dia seguinte”. Dêixis de pessoa As dêixis pessoais são aquelas que se referem aos interlocutores de determi- nada enunciação. Um termo técnico bastante utilizado nos estudos da dêixis é “origo”, que signifi ca “origem” ou “ponto de origem”. Os referentes aos quais os elementos dêiticos remetem sempre partem de uma origo, ou seja, partem do enunciador, do “eu” que dá origem ao enunciado (CAVALCANTE; CUSTÓDIO FILHO; BRITO, 2014). 5Dêixis e modalização Por isso, linguisticamente, a dêixis de pessoa é representada por pronomes de primeira e segunda pessoas do discurso (sejam eles pronomes pessoais ou possessivos), por pronomes possessivos e sufixos verbais de número e pessoa (que servirão como pista, caso o pronome pessoal não apareça no enunciado) e por vocativos. Os pronomes pessoais de primeira e de segunda pessoas funcionam como dêiticos, mas os pronomes de terceira pessoa, não. Isso ocorre porque os pronomes de terceira pessoa são assumidos como “não pessoas”, já que não participam diretamente do ato enunciativo: fala-se sobre a terceira pessoa, mas não se fala com ela. Dêixis espacial Os dêiticos espaciais são marcadores de ostensão (ato ou efeito de mostrar). Eles estão relacionados a um lugar situado na enunciação; ou seja, estão relacionados ao distanciamento e à proximidade entre o locutor e um refe- rente. A classe de palavras que geralmente cumpre essa função dêitica é a dos advérbios (Quadro 1). Classe de palavras Alguns exemplos Advérbios (com valor) de lugar Aqui, ali, cá, lá, além Locuções adverbiais (com valor) de lugar Aqui perto, lá atrás Pronomes e determinantes demonstrativos Este, esse, aquele, aquilo, o outro, o mesmo Certos verbos que indicam movimento Ir, vir, trazer, levar, partir, chegar, aproximar- -se, afastar-se, subir, entrar, sair, descer Certas preposições e locuções prepositivas Perante, ao lado de Quadro 1. Elementos efetivadores da dêixis espacial Dêixis e modalização6 O advérbio de lugar realizará uma marcação dêitica apenas se o enunciador for o ponto de origem do lugar em questão. Assim, possibilidades vagas e localização, como a demarcada pelo advérbio “onde”, não estão recobertas de valor dêitico (CAVALCANTE; CUSTÓDIO FILHO; BRITO, 2014). Agora, observe a Figura 1. Figura 1. Tirinha da personagem Mafalda. Fonte: Quino (2011, documento on-line). O pronome demonstrativo grifado no último quadrinho funciona, nesse caso, como um elemento dêitico espacial. A dêixis tem como lugar inicial o enunciador, o “eu” discursivo — Mafalda. Portanto, o demonstrativo tem por referência o mundo em que a personagem vive — a Terra. Alguns profissionais poderiam tender a classificar o pronome em análise pela teoria da anáfora. Considere ainda que essa é uma situação enunciativa com muitas nuanças, especialmente porque o enunciador está apresentando, ainda que inferencialmente, um valor negativo sobre o mundo em que vive. Por fim, existem expressões não dêiticas que podem funcionar, em deter- minados contextos, como dêiticas. Essa complexidade pode ser observada na descrição de Ilari e Geraldi (2008, p. 66-67, grifos nossos): Os demonstrativos, pronomes pessoais e tempos de verbos são os exemplos sempre lembrados de palavras dêiticas, mas a dêixis é um fenômeno bem mais comum do que o uso dessas formas; elementos dêiticos podem virtualmente compor-se com elementos não dêiticos na significação de palavras e expli- car “antonímias” que de outro modo seriam incompreensíveis. Uma dessas antonímias é entre ir e vir: as orações (3) Pedro veio de São Paulo para o Recife. e 7Dêixis e modalização (4) Pedro foi de São Paulo para o Recife. não se distinguem pela natureza da ação referida, que consiste em ambos os casos numa mesma viagem, num mesmo deslocamento geográfico, e, sim, pelo fato de que o locutor se situa, num caso, no ponto de chegada e, no outro caso, fora dele. Analogicamente, um mesmo movimento de massas populacionais será descrito,conforme o ponto de vista, como imigração ou emigração; e se jogarmos como os limites do que se deva entender por “nós” ou “nosso país”, uma mesma campanha militar de ocupação poderá ser apresentada como uma invasão ou uma defesa (a história da guerra do Paraguai é contada de outro modo... do outro lado da fronteira). Dêixis de tempo Os dêiticos temporais indicam determinado tempo, cuja demarcação ocorre no momento da enunciação. Assim como no caso dos dêiticos espaciais, nem todos os marcadores de tempo equivalem a um dêitico. Mais uma vez, a observação contextual da enunciação é que promoverá essa compreensão. Os advérbios de tempo “ontem”, “agora” e “amanhã” são exemplos clássicos da dêixis temporal. Contudo, você não pode se esquecer de que o contexto enunciativo é essencial para essa compressão. Uma expressão como “desde que saí do seu abraço” é um marcador de tempo. Dêixis social Essa categoria dêitica, de certa forma, é uma extensão da categoria “dêixis de pessoa” — ou uma especifi cidade dela. É de acordo com o contexto situacional que alguém decide como vai acionar o seu interlocutor. Essa escolha redunda na construção da relação entre ambos: uma relação de maior proximidade ou distanciamento, de maior respeito ou petulância, etc. Essas leituras, contudo, são possíveis apenas de acordo com o con- texto de interação. O mesmo pronome de tratamento “você” pode acionar sensação de intimidade entre amigos, o que é positivo, e sensação de desrespeito em relação a um médico ou uma pessoa idosa. Por outro lado, a escolha do pronome de tratamento “senhora” pode demonstrar respeito a uma pessoa mais jovem, mas também ironia. Assim, a dêixis social “[...] remete diretamente aos interlocutores, mas as formas que a codificam refletem relacionamentos em sociedade que condicionam a escolha dos Dêixis e modalização8 níveis de maior ou menor formalidade” (CAVALCANTE; CUSTÓDIO FILHO; BRITO, 2014, p. 88). O dêitico social, portanto, aponta para a relação entre pessoas ou grupos na sociedade, marcando hierarquias e papéis sociais de maior ou de menor prestígio, por exemplo (MELO, 2015). Geralmente, vocativos e pronomes de tratamento são os termos linguísticos que cumprem essa função dêitica. São exemplos de dêixis social: “mestre”, “doutor” e “tu”. Dêixis textual Diferentemente dos demais elementos dêiticos, a dêixis textual materializa-se no cotexto. Portanto, o ponto de partida desse tipo de dêixis é o próprio texto. A partir desse ponto, o “começo–meio–fi m”, o “antes–depois” e o “acima– abaixo” são os tempos e espaços a serem compreendidos. Veja: O que chamaremos de dêixis textual é sempre um processo híbrido que mis- tura uma função anafórica (ou de introdução referencial) com uma função dêitica. É dêitico porque considera o ponto de origem do locutor; é anafórico (ou introdutório) porque sempre vai estabelecer uma cadeia com outro refe- rente do texto (CAVALCANTE; CUSTÓDIO FILHO; BRITO, 2014, p. 94). São representantes de dêixis textuais expressões como “no exemplo acima”, “no parágrafo anterior”, “aqui”, “no quadro abaixo”, “no texto ao lado” e “a seguir”. Dêixis de memória Ocorre quando o coenunciador precisa dispor de um conhecimento prévio e compartilhado para acionar determinado referente apontado pelo demonstra- tivo. Em “naquele dia”, “aquele” aponta para um evento presente na memória dos interlocutores. Presume-se que ambos saibam a que dia se refere o pronome e o que aconteceu em tal dia. Veja como um exemplo de dêixis de memória aparece na letra da canção “Aquele abraço”, de Gilberto Gil (c2003-2020, documento on-line, grifos nossos). 9Dêixis e modalização O Rio de Janeiro continua lindo O Rio de Janeiro continua sendo O Rio de Janeiro, fevereiro e março Alô, alô, Realengo Aquele abraço! Alô torcida do Flamengo Aquele abraço Chacrinha continua Balançando a pança E buzinando a moça E comandando a massa E continua dando As ordens no terreiro Alô, alô, seu Chacrinha Velho guerreiro Alô, alô, Terezinha Rio de Janeiro Alô, alô, seu Chacrinha Velho palhaço Alô, alô, Terezinha Aquele abraço! Alô, moça da favela Aquele abraço! Todo mundo da Portela Aquele abraço! Todo mês de fevereiro Aquele passo! Alô, Banda de Ipanema Aquele abraço! Meu caminho pelo mundo Eu mesmo traço A Bahia já me deu Régua e compasso Quem sabe de mim sou eu Aquele abraço! Pra você que me esqueceu Rum! Dêixis e modalização10 Aquele abraço! Alô, Rio de Janeiro Aquele abraço! Todo o povo brasileiro Aquele abraço! É necessário um conhecimento de mundo para compreender a que abraço o enunciador da canção se refere. Há uma série de saberes implicados, em especial a respeito da vida do compositor Gilberto Gil. Por exemplo: conhe- cimentos sobre a ditadura militar e a forma de atuação desse músico naquele período; e conhecimentos sobre o time de futebol para o qual ele torce, para entender a carga de ironia em relação ao time do Flamengo. 3 O fenômeno da modalização De acordo com Neves (2000, p. 244), “Modalizar é expressar alguma interven- ção do falante na defi nição da validade e do valor do seu enunciado: modalizar quanto ao valor de verdade, modalizar quanto ao dever, restringir o domínio, defi nir atitude e, até, avaliar a própria formulação linguística”. A modalização serve para posicionar o enunciador em seu enunciado. Por isso, muitas vezes, a modalização é entendida como uma opinião implí- cita do enunciador. Como você já viu, para Benveniste (2005), a linguagem é construção de subjetividade. Para construir essa subjetividade, ou para mostrar uma parte conveniente dela, o enunciador apropria-se de diferentes recursos linguísticos. Assim, além de dar algum valor de fala ao enunciador, a modalização pode também isentar o falante de alguma responsabilidade ou comprometimento no ato enunciativo. Contudo, essa “isenção” é apenas aparente. Textos como os empresariais (memorando, por exemplo), os judiciais (como sentenças) e os noticiosos (como a notícia), que tradicionalmente apelam para a neutralidade, também têm marca de modalização e, de alguma forma, posicionam o enunciador. Veja o que afirma Nascimento (2013, p. 10): Por mais que a sociedade tente sistematizar, normatizar e estabelecer padrões para as interações no ambiente empresarial e oficial, a natureza dialógica e argumentativa da linguagem irá prevalecer. Assim, sempre haverá, em maior ou menor grau, marcas que denunciam as intenções e a presença do responsável pelo dito. 11Dêixis e modalização Até aqui, você viu a noção funcional dos modalizadores, que pode ser tão ampla quanto a intencionalidade do enunciador. Agora, você está convidado a se concentrar no aspecto gramatical da construção dos modalizadores (KOCH, 2011a, 2011b): certos advérbios/locuções adverbiais; adjetivos, nos casos em que eles revelem opinião ou posicionamento; verbos modais (“poder”, “ter”); verbos proposicionais (“crer”, “achar”, “ser”); construção de auxiliar + infinitivo (“ter de”, “precisar de”); estruturas subordinadas, nos casos em que os verbos constitutivos expressem modalidade (“tenho certeza de que”; “todos sabem que”; “não há dúvidas de que”); verbos performativos explícitos (“ordeno”, “suplico”, “requeiro”); modos e tempos verbais; operadores argumentativos (“pouco”, “um pouco”, “quase”, “muito”, “demais”, “mesmo”). Koch (2011a, 2011b) apontou que um mesmo recurso linguístico pode operar diversos tipos de modalização. Ademais, a intenção é a base da análise da mo- dalização. Note, por exemplo, a diferença de posicionamento do enunciador em frases como: “é preciso que eu vote com consciência”, “é provável que eu vote com consciência” e “é certo que eu vote com consciência”. Do mesmo modo, ainda segundo Koch (2011a, 2011b), o verbo “dever” pode exprimir diferentes intenções, a depender do enunciado: “todos devem ficar em casa” (obrigação), “deve chover amanhã” (possibilidade), “devo estar ficando gripado” (possibilidade). Agora que você conheceu um pouco do panoramados modalizadores, nas subseções a seguir, você vai estudar os recursos da teoria da modalização e as suas funções discursivas. Modalizadores epistêmicos A palavra “epistêmico” e seus derivados (“epistemologia”, “epistemológico”) têm sentido relacionado à noção de saber. Por isso, a modalização epistêmica está diretamente ligada ao saber, a crença e à opinião do enunciador — seja Dêixis e modalização12 no âmbito da certeza, da quase certeza ou da probabilidade (em função de uma habilidade para se fazer algo). Veja alguns advérbios e expressões adverbiais que podem emergir em cons- truções desse tipo: “realmente”, “naturalmente”, “exatamente”, “sem dúvida”, etc. Note que expressões com valor predicativo também podem funcionar como modalizadoras. É o que ocorre em: “é certo”, “estou seguro”, “ficou evidente”, “podem contrair”, etc. A seguir, veja como os modalizadores são classificados. Modalização epistêmica asseverativa: sugere que o enunciador consi- dera determinado conteúdo certo/verdadeiro. Essa modalização restringe a contra-argumentação, pois estabelece que o enunciador é detentor de determinado saber, com discurso de autoridade. Silva (2009, p. 2.278) apresenta o seguinte exemplo: “O Brasil não pode aspirar posição de grande nação sem fazer da educação uma prioridade”. Para ela, “[...] o uso da expressão ‘não pode’ implica que o locutor ‘tem certeza’ a respeito da prioridade em educação no Brasil”, o que marca o caráter asseverativo do modalizador (SILVA, 2009, p. 2.278). Modalização epistêmica quase asseverativa: sugere que o enunciador considera determinado conteúdo quase certo/quase verdadeiro. Veja estes exemplos: “talvez”, “possivelmente”, “provavelmente”, “quase”, “uma forma de”, “um tipo de”, “estatisticamente”, etc. Silva (2009, p. 2.278) explica uma ocorrência asseverativa a partir da seguinte frase: “Pode-se conceber o fenômeno da criminalidade como pirâmide, cujo vértice é ocupado pelas chefias do crime, com seus staffs de gerentes, conselheiros e lavadores de dinheiro”. Ao explicá-la, a pesquisadora diz: “[...] a par do uso de ‘pode-se’, o locutor dá a entender que sua afirmação é uma opinião pessoal, dessa forma, não evidencia neces- sariamente uma verdade, mas sim uma crença. Ele crê que ‘pode-se conceber o fenômeno da criminalidade como uma pirâmide’” (SILVA, 2009, p. 2.278). Modalização epistêmica habilitativa: sugere a capacidade de alguém para fazer algo expresso no enunciado. 13Dêixis e modalização Modalizadores deônticos A palavra “deôntico” está relacionada aos deveres morais, às obrigações. Ela não pode ser confundida com a palavra “dêixis”, pois ambas têm origem, signifi cado e aplicação completamente diferentes. A partir do signifi cado de “deôntico”, você pode concluir que os modalizadores deônticos estão direta- mente relacionados às noções de obrigação e obrigatoriedade. Modalização deôntica de obrigatoriedade: relaciona-se a uma im- posição. Pode demonstrar um discurso de autoridade. Um exemplo de locução verbal que opera nessa classificação é o “ter” (“tem de fazer”). Esse tipo de modalização também pode estar voltado para ações futuras (SILVA, 2009). Modalização deôntica de proibição: como o nome antecipa, trata-se de uma modalização que proíbe algo. Esses modalizadores estabelecem uma restrição. Modalização deôntica de possibilidade: relaciona-se a uma probabili- dade que opera em dois eixos: aquilo que tem permissão para acontecer e aquilo que tem probabilidade de acontecer, mesmo que não tenha relação com a vontade. Modalização deôntica volitiva: está relacionada à vontade, ao querer, ao desejar no discurso. Modalizadores avaliativos Esses modalizadores estão relacionados a uma avaliação. São de base predi- cativa. São exemplos de advérbios observados nessa categoria: “felizmente”, “curiosamente”, “surpreendentemente”, “sinceramente”, “lamentavelmente”. Modalizadores restritivos Esses modalizadores são assim chamados pelo fato de delimitarem certo espaço ou campo de entendimento (geografi camente, biologicamente, entre outros). No Quadro 2, a seguir, veja um resumo dos modalizadores. Dêixis e modalização14 Fonte: adaptado de Nascimento (2013). Tipo de modalização Subtipos Efeito de sentido no enunciado ou enunciação Epistêmica (expressa avaliação sobre o caráter de verdade ou conhecimento) Asseverativa Apresenta o conteúdo como algo certo ou verdadeiro. Quase assertiva Apresenta o conteúdo como algo quase certo ou verdadeiro. Habilitativa Expressa a capacidade de algo ou alguém realizar o conteúdo do enunciado. Deôntica (expressa ava- liação sobre o caráter faculta- tivo, proibitivo, volitivo ou de obrigatorie- dade) De obrigatoriedade Apresenta o conteúdo como algo obrigatório e que precisa acontecer. De proibição Expressa o conteúdo como algo proibido, que não pode acontecer. De possibilidade Expressa o conteúdo como algo facultativo ou dá permissão para que algo aconteça. Volitiva Expressa um desejo ou vontade de que algo ocorra. Avaliativa (ex- pressa avalia- ção ou ponto de vista) — Expressa uma avaliação ou ponto de vista sobre o conteúdo, excetuando-se qualquer caráter deôn- tico ou epistêmico. Delimitadora — Determina os limites sobre os quais se deve consi- derar o conteúdo do enunciado. Quadro 2. Tipos e subtipos de modalizadores Neste capítulo, você viu as noções centrais de dêixis e modalização. Na primeira seção, você viu que a dêixis ultrapassa a noção de “apontar para fora do texto”. A dêixis parte de uma origo: ela é sempre construída de um “eu” para um “tu” — o “ele” não é, portanto, elemento dêitico. Além disso, você 15Dêixis e modalização viu que, por meio dos elementos dêiticos, constrói-se a (inter)subjetividade; ou seja, os elementos dêiticos dão pistas sobre quem é o enunciador e sobre como ele “constrói” o seu coenunciador. Na segunda seção, você aprofundou seus conhecimentos sobre a noção de dêixis e viu, com vários exemplos, a classificação dos elementos dêiticos: dêixis de pessoa, dêixis de tempo, dêixis de espaço, dêixis social, dêixis textual e dêixis de memória. Na terceira e última seção, você estudou a modalização. Como você viu, um enunciador, ao se posicionar frente ao seu discurso/texto, mesmo que seja indiretamente, está modalizando — e isso ajuda a construir a subjetividade do enunciador. Ainda na terceira seção, você conheceu a classificação da modalização em epistêmica, deôntica, avaliativa e deli- mitadora, verificando as formas como o enunciador pode se posicionar em seu discurso. Observe que os lexemas modais são modais em potencial. O contexto e a estrutura linguística, somados, sempre direcionarão a sua análise. Veja os exemplos a seguir. (a) Eu acho que é nos sites que os produtos são mais baratos. (b) Ele acha que é nos sites que os produtos são mais baratos. (c) Naquela época, eu achava que era nos sites que os produtos eram mais baratos. Apenas em (a) você observa um modalizador. Em (b), a estrutura complexa pode confundir a análise, mas você não está diante de um emprego modal, tendo em vista que o pronome está em terceira pessoa (não se esqueça da relação entre “eu” e “tu”). Em (c), também não há modalizador, tendo em vista o verbo no passado (NEVES, 2000). Dêixis e modalização16 AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. BENVENISTE, É. Problemas de lingüística geral I. 5. ed. São Paulo: Pontes, 2005. CAVALCANTE, M. M. Referenciação: sobre coisas ditas e não ditas. Fortaleza: UFC, 2011. CAVALCANTE, M. M.; CUSTÓDIO FILHO, V.; BRITO, M. A. P. Coerência, referenciação e ensino. São Paulo: Cortez, 2014. CIULLA, A. Sobre a definição de dêixis a partir de “A natureza dos pronomes”. Desen- redo, v. 14, n. 3, p. 364-379, 2018. Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rd/article/ view/8581. Acesso em: 14 abr. 2020. FILLMORE, C. Lectures on deixis. Berkeley: University of California, 1971. FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação:as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1996. GIL, G. Aquele abraço. Belo Horizonte: Letras, c2003-2020. Música. Disponível em: https:// www.letras.mus.br/gilberto-gil/16138. Acesso em: 15 abr. 2020. ILARI, R. Introdução à semântica: brincando com a gramática. São Paulo: Contexto, 2001. ILARI, R.; GERALDI, J. W. Semântica. 11. ed. São Paulo: Ática, 2008. KOCH, I. G. V. Argumentação e linguagem. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2011a. KOCH, I. G. V. Desvendando os segredos do texto. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2011b. MELO, I. F. Você sabe o que é dêixis? Conhecimento Prático – Língua Portuguesa, n. 22, p. 42-47, 2015. NASCIMENTO, E. P. A modalização e os gêneros formulaicos: estratégia semântico- -argumentativa. Revista de Letras, v. 1, n. 32, p. 9-19, 2013. NEVES, M. H. M. Gramática de usos do português. São Paulo: UNESP, 2000. QUINO. Mafalda. In: GAROTAS GEEKS. tirinha17. 2011. Disponível em: http://www.garotas- geeks.com/wp-content/uploads/2011/05/tirinha17-590x182.jpg. Acesso em: 15 abr. 2020. SILVA, L. R. Modalização, performatividade e discurso político: diálogos entre teorias acionais. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIN, 6., 2009, João Pessoa. Anais [...]. João Pessoa: Abralin, 2009. Disponível em: http://www.leffa.pro.br/tela4/Textos/ Textos/Anais/ABRALIN_2009/PDF/Leilane%20Ramos%20da%20Silva.pdf. Acesso em: 14 abr. 2020. 17Dêixis e modalização Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun- cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Leituras recomendadas CABRAL, A. L. T.; SANTOS, L. W. Dêixis pessoal e verbos na construção de um objeto de discurso argumentativamente orientado. Conexão Letras, v. 11, n. 15, p. 25-37, 2016. FARIAS JÚNIOR, J. F. A dêixis discursiva como referenciação meta(cognitiva) e meta(linguística) no gênero artigo de opinião. Dialogia, n. 13, p. 123-136, 2011. SANTOS, L. W.; CAVALCANTE, M. M. Referenciação: continuum anáfora-dêixis. Intersec- ções, v. 12, n. 1, p. 224-246, 2014. Dêixis e modalização18 Máximas conversacionais e implicaturas Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Ilustrar as máximas conversacionais e o princípio cooperativo. Analisar as dimensões do explícito e do implícito no ato de linguagem. Diferenciar as implicaturas convencionais das implicaturas conversacionais. Introdução Neste capítulo, você vai estudar as máximas conversacionais e a noção de implicatura, bem como suas respectivas classificações. Primeiramente, você vai conhecer as noções centrais das máximas conversacionais e do princípio da cooperação. Depois, vai se familiarizar com as dimensões do explícito e do implícito. Tais noções embasam o que você vai estudar em seguida, as implicaturas conversacionais. 1 As máximas conversacionais e o princípio da cooperação O fi lósofo inglês Herbert Paul Grice (1913–1988) foi o responsável pela formulação dos conceitos de máxima conversacional e implicatura. Esse teórico, estudioso de Saussure, ao examinar a modalidade oral da língua, observou que as informações enunciadas não se limitavam à estrutura linguística (o que ele publicou em um primeiro artigo, de 1957, denominado “Signifi cado”). Nesse artigo, o teórico distinguiu os signifi cados naturais dos não naturais (baseados nas convenções humanas) e assumiu os sujeitos como parte da enunciação. Em 1967, Grice publicou outro artigo, denominado “Lógica e Conversação”. Nele, o autor concentrou-se na implicitude, sistematizando, para isso, o princípio da cooperação e as super- máximas, máximas e submáximas conversacionais (GRICE, 1982). Nos dois artigos mencionados, o teórico afirma que, além do que é dito literalmente nos enunciados, há algo mais sendo expresso. Por meio desses artigos, especialmente, Grice (1982) questionou a concepção tradicional de linguagem como espelho da realidade e começou a difundir a sua proposição de que a comunicação abrange também o que está nas “entrelinhas” (o implicado). Grice (1982) defendeu que, para se entender o que está nas entrelinhas, é necessário um esforço de ambos os participantes da comunicação, um en- gajamento mútuo (da parte do enunciador, as pistas necessárias; da parte do enunciatário, a atenção necessária) para que aquilo que não foi expresso seja compreendido. Foi assim que o teórico chegou ao princípio que sustenta as suas teorias: o princípio da cooperação. Devido às noções que propõe, Grice filia-se à teoria pragmática. Como você sabe, é possível identificar diferentes vertentes nos estudos da pragmática. Tais vertentes são desdobradas segundo suas abordagens. Há a pragmática indicial, a teoria de performance, a pragmática conversacional, a pragmática ilocucional e a semântica da enunciação (ESPÍNDOLA, 1998). Os estudos de Grice não apenas inserem o teórico na vertente da pragmática conversa- cional como também permitem que muitos estudiosos o denominem “pai da pragmática conversacional”. Para Grice (1982), existem duas dimensões na fala humana: a dimensão do “dito” e a dimensão do “implicado”. Foi em torno dessa premissa que ele organizou suas propostas teóricas. A partir da concepção de que nem tudo o que se quer dizer é dito com todas as letras, como você vai ver, Grice concentrou-se em estudar como os interactantes chegam, então, ao não dito — ao implicado. Com essas reflexões, Grice (1982) concluiu que os sujeitos da interação se esforçam, em alguma medida, para construir enunciados que sejam interpre- tados conforme a intenção de fala. Mesmo que esse esforço para que as partes se entendam construa-se de forma inconsciente, e mesmo que não resulte de um contrato explícito que governa o ato comunicativo, Grice defendeu existir uma grande regra conversacional que possibilita a comunicação. Para essa regra funcionar, os interactantes precisam se envolver e contribuir com ela. A esse esforço cooperativo, ou seja, a esse engajamento dos interlocutores nas diferentes situações comunicativas para contribuir para a eficácia do ato de fala, Grice denominou “princípio da cooperação”. Máximas conversacionais e implicaturas2 Esse engajamento deságua na seguinte supermáxima de Grice (1982, p. 86): “Faça sua contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre, pelo propósito ou direção do intercâmbio conversacional em que você está engajado”. Como resultado do princípio da cooperação, Grice (1982) formulou a teoria das máximas conversacionais. Essa teoria ajuda a explicar o funcionamento das dimensões do dito e do implicado (especial interesse de Grice), pois consegue dimensionar, linguisticamente, o engajamento dos interlocutores no ato enunciativo. As máximas conversacionais ditam as normas e conduzem a postura co- municativa do enunciador. São elas, portanto, que contribuem para a formação de sentidos do que é enunciado e possibilitam o alcance da intencionalidade do enunciador. Afinal, para Grice (1982), o que é dito é diferente do que é assumido. Essas máximas integram o já mencionado “contrato comunicativo” — aquele acordo que não necessita ser combinado em cada evento e que faz parte naturalmente da interação humana (GRICE, 1982). De alguma forma, cada um, ao se comunicar, segue essas regras “intuitivamente”; são regras “presumidas” pelos participantes da interação. Ou seja: “Os interlocutores presumem que as pessoas, normalmente, fornecerão uma quantidade apropriada de informações, que falarão a verdade, que serão relevantes e que procurarão serem as mais claras possíveis” (LEÃO, 2013, p. 70). Seguindo a premissa do princípio da cooperação que rege a comunicação, Grice (1982) chegou às supermáximas conversacionais e as destrinchouem quatro categorias: de quantidade, de qualidade, de relação e de modo. Essas categorias, para o proponente, implicam os acordos que conduzem os indivíduos a escolher a forma como vão falar. A seguir, você vai conhecer cada uma das máximas. De acordo com o dicionário (PRIBERAM DICIONÁRIO, c2020), uma máxima pode ser definida como um dito sentencioso, um axioma ou um conceito. 3Máximas conversacionais e implicaturas Máxima da quantidade A máxima da quantidade está relacionada ao volume de informações for- necidas em um ato enunciativo. Em relação a essa máxima, Grice (1982) sugere um equilíbrio: não inserir mais informações do que o necessário à situação comunicativa, mas também não inserir menos informações do que o necessário a ela. Assim, em uma aula de sexto ano, selecionar um volume de informações de nível universitário seria inadequado, pois não contribuiria para a compreensão do estudante. Da mesma forma, ensinar esse aluno de sexto ano em linguagem infantil seria demasiado improdutivo. Máxima da qualidade A máxima da qualidade está relacionada ao conteúdo do que será falado ou escrito. Para Grice (1982), o enunciador deve selecionar aquilo que acredita ser verdadeiro e aquilo que é comprovável. Uma frase como “Você é meu mundo” não estaria seguindo essa máxima conversacional, pois expressaria uma inverdade do ponto de vista das verdades do mundo (já que funciona como linguagem fi gurada). Máxima da relação Para Grice (1982), o enunciador precisa selecionar informações relevantes para o ato enunciativo; as informações precisam ter relação com o que foi solicitado ou com o que é esperado. Considere, por exemplo, a famosa piada em que uma pessoa pergunta “Que horas são?” e a outra responde “Hora de tomar vergonha na cara e comprar seu relógio”. Na perspectiva da máxima da relação, a pessoa que responde desse modo estaria fugindo ao que lhe foi solicitado, descumprindo, portanto, a máxima da relação. Máxima do modo Grice (1982) defi niu ainda a máxima do modo. Segundo ele, para haver uma comunicação efi caz, é necessário haver clareza. Para isso, o enunciador deve evitar expressões obscuras, ambiguidades e desorganização das informações. É devido a essa premissa, por exemplo, que falas prolixas são entendidas como complicadoras da comunicação. Em um evento comunicativo de prolixidade, muitas informações selecionadas não são convenientes, já que não emprestam clareza à comunicação ou a desorganizam, impedindo que a interação seja efi caz em dado momento. Máximas conversacionais e implicaturas4 No Quadro 1, a seguir, veja um resumo das máximas conversacionais de Grice. Fonte: Ribeiro e Guimarães (2020). Quantidade Faça com que a sua contribuição seja tão informativa quanto requerido. Não faça a sua contribuição mais informativa do que é requerido. Qualidade Supermáxima: faça uma contribuição que seja verdadeira. Não diga o que você acredita ser falso. Não diga senão aquilo para que você possa fornecer evidência adequada. Relação Seja relevante. Modo Supermáxima: seja claro. Evite obscuridade de expressão. Evite ambiguidades. Seja breve (evite prolixidade desnecessária). Seja ordenado. Quadro 1. As máximas conversacionais de Grice Na próxima seção, você vai estudar a explicitude e a implicitude no ato enunciativo. Elas ocorrem basicamente por meio das quebras das máximas conversacionais. Como você vai ver, contudo, esse não é um campo de estudo exclusivo de Grice. 2 As dimensões do explícito e do implícito no ato de linguagem Em um ato comunicativo, os coenunciadores buscam constantemente com- plementar o conteúdo informativo presente na superfície textual. Isso ocorre quando essa superfície não apresenta informações sufi cientes para que o sentido do pretendido seja efetuado. Assim, o ouvinte ou leitor busca complementar esse sentido por meio do não dito, das entrelinhas, do contexto enunciativo. É o que Charaudeau (2010) formulou, em teoria complementar à de Grice, como dupla dimensão ou valor do ato de linguagem: o explícito e o implícito. Nas palavras de Charaudeau (2010, p. 24): 5Máximas conversacionais e implicaturas A finalidade do ato de linguagem (tanto para o sujeito enunciador quanto para o sujeito interpretante) não deve ser buscada apenas em sua configu- ração verbal, mas no jogo que um dado sujeito vai estabelecer entre esta e seu sentido implícito. Tal jogo depende da relação dos protagonistas entre si e da relação dos mesmos com as circunstâncias de discurso que os reúnem. Para Charaudeau (2010), pensar o ato de fala a partir desses sujeitos é importante porque o jogo de relações é variável. Isso leva a levantamentos de hipóteses que dependem do ponto de vista e do papel social dos falantes envolvidos na cena. Por essa razão, deve-se pensar no enunciado, mas também na intencionalidade do enunciador. Na teoria de Charaudeau (2001), há quatro sujeitos participantes do ato de linguagem: o eu-comunicador, o eu-enunciador, o tu-destinatário e o tu-interpretante. O eu- -comunicador e o tu-interpretante são os sujeitos do mundo real, são psicossociais. O eu-enunciador e o tu-destinatário são os participantes do ato enunciativo em si, são os eu-tu “encenados”, recortados para aquele ato enunciativo específico. Em sua obra, Grice (1982) concentra-se na diferença entre o dito e o signi- ficado. Ele defende que um enunciado explícito pode não carregar o sentido pretendido pelo enunciador. Esse sentido pode ser alcançado por meio de inferências realizadas pelo coenunciador. Por isso, Grice postula que a lin- guagem também abrange os processamentos inferenciais. Entretanto, para que esses processamentos ocorram, é necessário, como pauta comunicativa, o princípio da cooperação. Assim, se o que estiver nas linhas não for suficiente e as máximas conversacionais não forem observadas, o interactante passa às inferências, deduzindo que o enunciador tem algo coerente a dizer. Acompanhe esse raciocínio com o seguinte exemplo de Grice (1982, p. 84): Suponha que A e B estejam conversando sobre um amigo comum C que está atualmente trabalhando num banco. A pergunta para B como C está se dando em seu novo emprego, e B retruca: “Oh! Muito bem, eu acho: ele gosta de seus colegas e ainda não foi preso”. Nesse ponto, A deve procurar o que B estava implicando, o que ele estava sugerindo, ou até mesmo o que ele quis dizer ao dizer que C ainda não tinha sido preso. Máximas conversacionais e implicaturas6 Para responder à pergunta de A (“Como C está se dando em seu novo emprego?”), B seleciona uma informação que não foi requerida (“ele gosta de seus colegas e ainda não foi preso”), violando, assim, a máxima da relação (seja relevante). Contudo, nessa situação, devido ao princípio da cooperação, haverá um esforço de A para compreender o que B quis dizer com “ainda não foi preso”. Para isso, A poderá recorrer ao seu conhecimento sobre C e ao seu conheci- mento de mundo (alguém vai preso quando faz algo errado, um banco lida com dinheiro, etc.). A partir dessa relação entre o significado do dito e o significado do não dito, Grice (1982) chegou à noção de implicatura — re- sultado da quebra de alguma máxima conversacional, mas recuperável pelo princípio da cooperação. Grice defende que o termo “implicatura” é mais conveniente do que “implicação”, pois abrange o contexto situacional e os conhecimentos de mundo dos falantes. Já “implicação” abrangeria apenas os fenômenos linguísticos. Implicatura, portanto, é a inferência que pode ser extraída de um enunciado, levando a significações que estão para além do que os enunciados apresentam linguisticamente. Ilari e Geraldi (2008, p. 76) também discutem essa terminologia: O uso do termo implicatura se deve ao desejo de distinguir dois fenô- menos linguísticos: o fenômeno do acarretamento, em que se infere uma expressão com base apenas no sentido literal de outra; e o fenô- meno em que a derivação de um sentido passa obrigatoriamentepelo contexto conversacional. A quebra das máximas conversacionais como modo de realizar implicatura Ocorre quebra das máximas conversacionais quando um falante deixa de cumprir o que as máximas designam. Para Grice (1982), a quebra das máxi- mas pode ocorrer de forma involuntária — o que pode gerar mal-entendidos. Entretanto, uma quebra das máximas conversacionais também pode acontecer de maneira intencional em um ato de fala. Uma ambiguidade, por exemplo, pode ser criada para gerar um duplo sentido, para gerar humor em uma piada, 7Máximas conversacionais e implicaturas ou ainda para gerar um efeito persuasivo (em gêneros persuasivos, como a propaganda). Ainda, uma informação ocultada em um contrato pode gerar cobranças posteriores por parte de um cliente. Em outras palavras, um falante pode intencionalmente deixar de cumprir o que uma situação comunicativa requer — quantidade, qualidade, relação e modo. Assim, ele força o leitor ou ouvinte a interpretar a sua fala de outra forma a partir dessas quebras. Por outro lado, uma máxima pode ser quebrada sem que o princípio da cooperação seja infringido. Quando um enunciador deixa de cumprir uma máxima, mas fornece garantias e pistas para que o ouvinte chegue à intenção pretendida, há êxito no processo comunicativo. Isso pode ocorrer porque a língua é ferramenta criativa para toda forma de comunicação, entendemos que, quando há quebras propositais dessas máximas, o texto, automaticamente, recebe o novo sentido pretendido” (ALDROVANDI, 2015). Nesse contexto, sempre se parte do pressuposto de que a intencionalidade tem como foco os sujeitos participantes da interação. A seguir, veja algumas possibilidades de quebras intencionais das máximas conversacionais. Quebra da máxima da quantidade Ocorre quando o enunciador fornece mais ou menos informações do que a situação comunicativa exige. Considere este exemplo: — Que horas são? — São cinco horas, mesmo horário em que encontrei meu primeiro livro de gramática quando estava no primeiro ano da faculdade. Nesse caso, as informações acrescentadas não são relevantes para o primeiro enunciador, que gostaria apenas de se informar sobre a hora. Agora veja: — Preciso enviar-lhe sua encomenda pelos Correios. Onde você mora? — No Rio de Janeiro. Nesse caso, a pergunta requer o endereço completo, inclusive com Código de Endereçamento Postal (CEP). Máximas conversacionais e implicaturas8 Quebra da máxima da qualidade Ocorre em enunciados que contêm inverdades literais, tautologias, ironias, hipérboles, brincadeiras entre amigos, metáforas e outras fi guras de lingua- gem. Veja: Tô com tanta fome que comeria um boi! (Hipérbole) Mãe é mãe. (Tautologia) Acho as brincadeiras de criança um saco! (Metáfora) Adoro quando me dão susto. (Ironia) Se esses enunciados forem considerados no sentido literal, eles proferem mentiras. Você sabe o que é uma tautologia? É a repetição de uma mesma ideia com palavras diferentes, isto é, a redundância. Um exemplo é a expressão “entrar para dentro”. Quebra da máxima da relação Ocorre em enunciados em que a resposta não se adéqua ao conteúdo esperado: — Cíntia irá à festa? — Ela gosta de bichos. Nesse diálogo, a resposta sugere que Cíntia não gosta de estar com pessoas. Com isso, infere-se que a resposta à pergunta é não. Contudo, literalmente, o que se disse não teve relação com a pergunta, quebrando a máxima. Quebra da máxima do modo Ocorre quando não se é claro na conversação — quando há obscuridade, ambiguidade, prolixidade. Observe: 9Máximas conversacionais e implicaturas — Amiga, preciso falar com você sobre o que aconteceu ontem. — Falo com você depois. Tem roupa no varal. Nesse diálogo, foi utilizada uma estratégia: como há alguém por perto que não pode ouvir a conversa, a interlocutora adia o desenvolvimento da interação. Expressões como “tem boi na linha” também servem a esse propósito. Como você deve imaginar, esse tipo de estratégia só funciona perto de pessoas que não conhecem as expressões utilizadas como subterfúgios. Uma ou mais máximas podem ser quebradas em um mesmo evento comunicativo. No diálogo que você acabou de ver, “roupa no varal”, por seu sentido figurado, ou mesmo por ser uma informação inverídica, quebra, além da máxima do modo, a máxima da qualidade. Por fim, a quebra das máximas conversacionais pode estar intimamente ligada aos jogos de poder da sociedade. Ferreira (2009) constatou que, no gênero contrato jurídico, a quebra das máximas de quantidade e modo pode servir para confundir o cidadão comum e, com isso, impedir que ele acesse os seus direitos. Ferreira (2009, p. 132) explica, nas seguintes palavras, como essas quebras das máximas conversacionais podem servir também aos interesses das empresas: Os interagentes possuem perfis discursivos que podem não se encaixar. Isso porque, devido às especificidades dos textos dos contratos, que funcionam como instrumentos de legalização jurídica, eles podem se prestar muito mais à defesa dos interesses das empresas de saúde do que para informar os aspectos da negociação ao seu público-alvo, que é constituído por qualquer cidadão que esteja desejoso de adquirir um plano de saúde. 3 Implicaturas convencionais e implicaturas conversacionais O fenômeno da implicatura ocorre quando o ouvinte ou leitor percebe que, na enunciação, há algo mais a ser compreendido do que o que foi dito ou escrito “com todas as letras”. Com isso, o ouvinte ou leitor empreende um esforço Máximas conversacionais e implicaturas10 maior, a partir das pistas do enunciador, para entender, “por conta própria”, a intenção do enunciado. Grice (1982) distinguiu as implicaturas em dois tipos: implicaturas convencionais e implicaturas conversacionais. Implicaturas convencionais As implicaturas convencionais são aquelas relacionadas à decodifi cação. Para entendê-las, não é preciso recorrer necessariamente ao contexto comunicativo, pois o sentido desse tipo de implicatura está vinculado ao signifi cado literal de uma palavra presente no enunciado — por isso essas implicaturas são chamadas de “convencionais”. As palavras mais usadas por Grice nos seus exemplos de implicaturas convencionais são [...] “mas” e “portanto” [...]. Ao afirmar “ele é político, mas ele é honesto”, o que se diz é que (i) ele é um político e (ii) ele é honesto, sendo a sugestão de que há algum tipo de contradição entre as proposições (i) e (ii) uma impli- catura convencional indicada pela palavra “mas” (OLIVEIRA, 2016, p. 77). Agora veja uma explicação prática de Leão (2013, p. 70) sobre as impli- caturas convencionais: [1] José é trabalhador, contudo é pobre. No exemplo [1], implica-se convencionalmente que José, sendo trabalhador, não deveria ser pobre, mas o é. O uso literal dos termos nos dá ideia exata do que está sendo dito através da conjunção contudo. Podemos perceber, portanto, que as implicaturas convencionais não dependem de contextos especiais para interpretação, e, com isso, não precisam ocorrer necessaria- mente na conversação. As implicaturas convencionais são diferentes das pressuposições (ou dos pressupostos). Para Grice, as implicaturas convencionais não se ligam às condições de verdade, como ocorre com as pressuposições (que precisam estar ligadas a uma verdade geral de uma sentença). 11Máximas conversacionais e implicaturas Implicaturas conversacionais Diferentemente do que ocorre nas implicaturas convencionais, nas implicaturas conversacionais, o sentido empreendido depende do contexto de interação. Nesse tipo de implicatura, há um preenchimento de lacuna realizado na própria interação; tal preenchimento deve ser de conhecimento de ambas as partes. Veja o que afi rma Grice (1982, p. 92): [...] a presença de uma implicatura conversacional deve poder ser deduzida, elaborada; pois ainda que possa ser intuitivamente compreendida, se a in- tuição não for substituída por um argumento, a implicatura (se presente) não contará como implicaturaconversacional; será uma implicatura convencional. Assim, se um jovem diz “Você é meu mundo” em um contexto de interação com a namorada, o contexto permite implicar que esse jovem está se decla- rando apaixonado. Agora considere outro contexto comunicativo: um homem está encarcerado e diz essa mesma frase a uma pessoa que o visita e de quem ele não gosta; nesse caso, pode-se implicar que o homem está sendo irônico. Nas palavras de Grice (1982, p. 86), as implicaturas conversacionais “[...] são essencialmente conectadas com traços gerais do discurso”. Veja: Nossos diálogos, normalmente, não consistem em uma sucessão de obser- vações desconectadas, e não seria racional se assim fossem. Fundamental- mente, eles são, pelo menos até certo ponto, esforços cooperativos, e cada participante reconhece neles, em alguma medida, um propósito comum ou um conjunto de propósitos, ou, no mínimo, uma direção mutuamente aceita (GRICE, 1982, p. 86). O teórico debruçou-se mais atentamente sobre as implicaturas conversacio- nais porque, para ele, elas ocorrem mais vezes e, além disso, os implicitados conversacionais “[...] não são parte do significado das expressões cujo uso os produz” (GRICE, 1982, p. 103). Assim, na implicatura conversacional, pode- -se observar como os enunciadores manipulam as máximas conversacionais a fim de alcançar o seu objetivo pragmático. Considere o seguinte diálogo: Alice: Espero que você tenha trazido o pão e o queijo. Bruno: Eu trouxe o pão. Agora veja a explicação de Leão (2013, p. 70): Máximas conversacionais e implicaturas12 Nessa conversa, Alice parte do princípio de que Bruno está cooperando com o diálogo e não desconhece a máxima da quantidade. Ainda assim, ele não mencionou o queijo. Se ele tivesse trazido o queijo, ele o mencionaria tam- bém, não violando, assim, a máxima da quantidade. Resulta daí que Bruno intenciona que Alice infira que o que não foi mencionado, não foi trazido. Dessa forma, Bruno transmitiu mais do que o dito através de uma implicatura conversacional. Grice (1982) dividiu as implicaturas conversacionais em dois subtipos: generalizada e particularizada. As implicaturas conversacionais generalizadas são aquelas que apresentam noções gerais, que não dependem de um contexto específico. Por estar ligado a um contexto geral de conhecimento, esse tipo de implicatura conversacional pode ser confundido com a implicatura con- vencional, o que é um equívoco. Existe uma diferença linguística básica entre as implicaturas conversacionais genera- lizadas e as convencionais: os exemplos dados para as conversacionais generalizadas são forjados por expressões, enquanto os exemplos de implicaturas convencionais estão relacionados a palavras específicas, como “mas” e “portanto”. A implicatura conversacional generalizada pode ser ilustrada com a se- guinte sentença: João casou e teve um filho. Sobre ela, D’Ávila (2017, p. 249) escreve o seguinte: A conjunção e tem uma implicatura de ordenamento que o operador lógico � não carrega, isto é, do ponto de vista lógico, essa sentença significa que, em uma dada situação do mundo, se é verdade que João casou e se é verdade que João teve um filho, então é verdade que João casou e teve um filho. No entanto, quando os falantes, no uso cotidiano da língua, proferem [essa sentença] [...], normalmente, se faz a inferência de que João casou primeiro e, depois, teve um filho. Essa inferência não faz parte da significação do operador lógico e também não parece estar relacionada ao valor de verdade da sentença — ou seja, não faz parte do dito, sendo, nesse caso, uma implicatura. 13Máximas conversacionais e implicaturas Já as implicaturas conversacionais particularizadas estão ligadas a certo contexto de interação. Considere, por exemplo, a frase “Já paguei o bolo”. Nesse caso, o sentido se completa apenas ao se saber quem é o enunciador, de que bolo se trata, etc. Ao longo deste capítulo, você viu que a pragmática abrange muitos con- ceitos que levam o profissional da linguagem a compreender a amplitude das formações linguísticas. Essas formações podem ser realizadas na superfície do enunciado ou em suas entrelinhas — no implicado. Como você verificou, a pragmática conversacional e, especificamente, o princípio cooperativo explicam as máximas conversacionais. Além disso, a implicatura resulta da quebra de uma ou mais máximas conversacionais. Por fim, você conheceu os dois tipos de implicatura propostos por Grice (1982), a convencional e a conversacional, foco de compreensão do teórico. Por meio das explicações e exemplos do capítulo, você deve ter notado o seguinte: a intencionalidade é o que rege todos os aspectos estudados. ALDROVANDI, M. A construção do humor pelo cancelamento de implicaturas. Rev PERcursos Linguísticos, v. 5, n. 11, p. 8162-8174, 2015. Disponível em: http://periodicos. ufes.br/percursos/article/view/10357. Acesso em: 24 abr. 2020. CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2010. CHARAUDEAU, P. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. In: MARI, H.; MACHADO, I. L.; MELLO, R. (org.). Análise do discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: UFMG/ NAD, 2001. p. 23-38. D’ÁVILA, A. Pressuposição e implicaturas Griceanas: considerações sobre as inferências dos verbos factivos. Estudos Linguísticos e Literários, n. 57, p. 241-261, 2017. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/estudos/article/view/24712/15718. Acesso em: 24 abr. 2020. ESPÍNDOLA, L. C. “Né”, (eu) “acho” (que) e “aí”: operadores argumentativos do texto falado. 1998. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1998. FERREIRA, H. R. M. Contratos jurídicos: leitura e enunciação em um gênero muito obs- curecido. 2009. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. GRICE, H. P. Lógica e conversação. In: DASCAL, M. (org.). Fundamentos metodológicos da lingüística: pragmática. Campinas: Unicamp, 1982. v. 4, p. 81-103. Máximas conversacionais e implicaturas14 Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun- cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. ILARI, R.; GERALDI, J. W. Semântica. 11. ed. São Paulo: Ática, 2008. LEÃO, L. B. C. Implicaturas e a violação das máximas conversacionais: uma análise do humor em tirinhas. Work Pap Linguíst, v. 13, n. 1, p. 65-79, 2013. Disponível em: https://periodicos.ufsc. br/index.php/workingpapers/article/download/1984-8420.2013v14n1p65/26354. Acesso em: 24 abr. 2020. OLIVEIRA, E. T. A. Significação não natural e implicaturas: o projeto de Herbert Paul Grice. 2016. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. PRIBERAM DICIONÁRIO. Máxima. c2020. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/ m%C3%A1xima. Acesso em: 24 abr. 2020. RIBEIRO, H.; GUIMARÃES, S. A. H. Quebra das máximas conversacionais nas tirinhas do Armandinho: uma possibilidade metodológica para o ensino expressivo da língua. Rev Linguagem em (Dis)curso, 2020. No prelo. Leituras recomendadas AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. BENVENISTE, É. Problemas de lingüística geral I. 5. ed. São Paulo: Pontes, 2005. COSTA, J. C. A teoria inferencial das implicaturas: descrição do modelo clássico de Grice. Letras de Hoje, v. 44, n. 3, p. 12-17, 2009. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ ojs/index.php/fale/article/view/5758. Acesso em: 24 abr. 2020. FARIAS, S. C. de. A violação das máximas conversacionais no gênero textual entrevista. Pro- língua, v. 1, n. 1, 2008. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/prolingua/ article/view/13383.Acesso em: 24 abr. 2020. FIORIN, J. L. (org.). Introdução à linguística. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2007. WILSON, V. Motivações pragmáticas. In: MARTELOTTA, M. E. (org.). Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2008. p. 87-110. 15Máximas conversacionais e implicaturas Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Descrever os fenômenos de construção da modalização em produ- ções textuais. Interpretar o uso dos dêiticos no texto literário. Discutir o conceito da categorização na compreensão leitora. Introdução Dêiticos, modalizadores e categorizadores: o que eles têm em comum? São elementos linguísticos utilizados na produção e na compreensão de textos. A semântica e a pragmática estudam seu uso, seu funcionamento e suas ocorrências, orientando a análise dos textos observados a partir da noção discursiva. A modalização facilita as estratégias argumentativas em textos de gêneros variados. A dêixis indica as referências pessoais, temporais e locais. A categorização se faz presente no processo de compreensão dos textos. Portanto, todos esses elementos são essenciais para a análise de textos de variados gêneros. Neste capítulo, você vai estudar os fenômenos de construção da modalização em produções textuais. Você também vai ver como ocorre o uso dos dêiticos no texto literário. Além disso, vai conhecer o conceito da categorização na compreensão leitora. 1 A construção da modalização em produções textuais Quando se concebe a linguagem como interação, se constata que seu uso refl ete as condições socio-históricas da comunidade linguística. Nesse contexto, a produção textual é vista como uma atividade intersubjetiva, caracterizada “[...] pelo triângulo (locutor, destinatário, situação de troca) e pela dialética da intenção e do reconhecimento da intenção pelo canal de fragmentos linguísticos cujo suporte é a situação de troca [...]” (PARRET, 1988, p. 102). O texto é construído pelo produtor de acordo com as suas intenções e com a imagem que ele faz de seu interlocutor. Dessa forma, a escrita é construída com base nas expectativas de resposta de quem receberá o texto. Nessa perspectiva, se percebem recursos linguísticos que marcam e guiam a interlocução. Esse é o caso dos modalizadores. Koch (2003) considera os modalizadores responsáveis pela demarcação da relação que o produtor do texto estabelece com o conteúdo do enunciado que produz e com o seu interlocutor. Assim, os modalizadores se revelam como formas de favorecer as intenções de quem produz o texto. Portanto, a modalização é uma estratégia semântico-argumentativa do falante diante de uma proposição. Com essa estratégia, ele pode julgar se a proposição é verdadeira ou não e expressar esse julgamento com uma forma escolhida. Nascimento (2013, p. 11) afirma que “[...] a modalização tem sido vista, pela maioria dos autores, como uma estratégia inerente ao enunciado, recaindo ora sobre o enunciado como um todo, ora sobre parte deste [...]”. Se a modalização é inerente ao enunciado, ela é inerente a qualquer tipo de texto? Como a modalização se constrói em produções textuais? Para Fiorin (2000), existem as modalidades de base, que surgem de proce- dimentos dedutivos, ou seja, na relação do sujeito com o objeto. Esse sujeito pode ser potencial, virtual, atualizado ou realizado. Na relação com o objeto, o sujeito pode, por exemplo, crer, querer ou dever, saber, ser ou fazer. Portanto, para compreender como a modalização ocorre nas produções textuais, é preciso primeiro conhecer os tipos existentes. Observe o Quadro 1, que resume os tipos de modalização e seus efeitos de sentido. Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática2 Fonte: Adaptado de Nascimento (2013). Tipos de modalização Subtipos Efeitos de sentido no enunciado ou enunciação Epistêmica — ex- pressa avaliação sobre o caráter de verdade ou conhecimento Asseverativa Apresenta o conteúdo como algo certo ou verdadeiro Quase asseverativa Apresenta o conteúdo como algo quase certo ou verdadeiro Habilitativa Expressa a capacidade de algo ou alguém realizar o conteúdo do enunciado Deôntica — expressa avaliação sobre o caráter facultativo, proibitivo, volitivo ou de obrigatoriedade De obrigatoriedade Apresenta o conteúdo como algo obrigatório e que precisa acontecer De proibição Expressa o conteúdo como algo proibido, que não pode acontecer De possibilidade Expressa o conteúdo como algo facultativo, ou dá permissão para que algo aconteça Volitiva Expressa um desejo ou uma von- tade de que algo ocorra Avaliativa — expressa avaliação ou ponto de vista — Expressa uma avaliação ou ponto de vista sobre o conteúdo, excetu- ando-se qualquer caráter deôntico ou epistêmico Delimitadora — Determina os limites sobre os quais se deve considerar o conteúdo do enunciado Quadro 1. Tipos de modalização e seus efeitos de sentido A modalização epistêmica refere-se ao eixo do conhecimento e da crença. Os recursos linguísticos reportam o conhecimento do produtor do texto sobre o tema tratado. Há expressões que manifestam essa necessidade epistêmica, 3Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática como: “certamente”, “com certeza”, “sem dúvidas”, “obviamente”, “é claro que”, “é óbvio que”, “sabe-se que”, etc. Além dessas expressões, é comum o uso dos verbos poder e dever juntos ou o uso de expressões como “talvez” e “provavelmente” para expressar a possibilidade epistêmica. No artigo a seguir, o jornalista e escritor espanhol Arias (2020) utiliza a modalização como ponto de partida. Para o autor, abandonar os animais de estimação em época de pandemia provavelmente revela a face mais sombria dos seres humanos. Veja: A face mais cruel do coronavírus é abandonar, sem nenhuma razão científica, os animais de estimação. Quem é capaz de abandonar suas mascotes poderia acabar abandonando também os idosos, os mais vulneráveis à epidemia [...]. Na tragédia global da pandemia do coronavírus, que amedronta e mata, existe um drama agregado. É talvez sua face mais sombria, seu rosto mais cruel, porque nos despoja da compaixão que é o coração da convivência (ARIAS, 2020, documento on-line). Note que o autor utiliza uma afirmação no título como forma de atrair os leitores, mas no corpo do texto é obrigado a revelar que seu julgamento é uma possibilidade, e não uma certeza. Para isso, ele utiliza um modalizador gramatical, um advérbio: “talvez”. Essa mudança de modalização se deve provavelmente às possíveis críticas que ele receberia: afinal, há várias faces cruéis dos seres humanos, e seus interlocutores poderiam citar outras, derru- bando seu argumento inicial. Os verbos conjugados no modo indicativo também funcionam como mo- dalizadores epistêmicos, já que expressam uma afirmação, garantindo que se constate a opinião do autor. Veja um exemplo no mesmo artigo de opinião: Os protagonistas desta nova face da epidemia, somada ao medo que aflige a todos nós, são os animais de estimação, nossos companheiros de vida, que estão sendo abandonados à própria sorte em muitos países por um temor sem fundamento médico nem científico de que também eles possam se contagiar, conforme informou a Organização Mundial da Saúde (ARIAS, 2020, documento on-line). Observe que, no final do parágrafo, os verbos estão no modo subjuntivo. A ideia é alertar que as pessoas que estão abandonando os animais de estimação não têm nenhuma certeza de que eles vão ser vítimas de contágio. O texto vai Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática4 se construindo de forma a marcar a crença do autor. No quinto parágrafo, há o uso do advérbio “justamente”, que realça as afirmações: E é justamente a companhia amorosa de nossas mascotes de estimação uma das receitas mais valiosas para grandes e pequenos (ARIAS, 2020, documento on-line). Nascimento (2013)investigou o uso de modalizadores na redação comercial e oficial. Ele constatou que a modalização epistêmica predomina nas declara- ções e memorandos, devido ao conteúdo desses textos: eles tratam de algo que é considerado certo pelos autores e, assim, comprometem o locutor responsável pelo enunciado. Aliás, o modelo padrão de declarações sugere o uso do verbo “declarar”. Consequentemente, a conjugação desse verbo na primeira pessoa do singular do modo indicativo compromete o locutor da mensagem. É comum que os memorandos e e-mails que constituem um pedido uti- lizem expressões como “certo de” e “ciente de” para convencer o leitor a se comprometer com o pedido. Veja o que Nascimento (2013, p. 13) afirma: [...] os epistêmicos asseverativos, em grande parte dos casos, ocorrem em enunciados que funcionam como argumentos para uma determinada conclusão pretendida pelo locutor. Em outras palavras, é comumente utilizado para o locutor apresentar um conhecimento (por ele considerado como verdadeiro) para seu interlocutor e, a partir desse conhecimento, convencer seu interlocutor a assumir um determinado posicionamento ou realizar uma determinada ação. A modalização deôntica tem relação com a conduta, isto é, com o que deve ser feito na opinião do falante. Essa modalização está no domínio da obrigatoriedade ou da sugestão. Há textos em que o autor utiliza o conteúdo como uma necessidade e orienta o interlocutor a realizar uma leitura incisiva sobre a realidade. Os verbos “precisar”, “poder” e “dever” funcionam como modalizadores. As redações elaboradas pelos participantes do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) são exemplos de uso desses modalizadores. Afinal, geralmente a proposta de redação solicita uma solução para a questão abordada. Veja o parágrafo de conclusão produzido por Lívia Taumaturgo no Enem de 2018 (apud CAMPOS, 2019, documento on-line): Portanto, cabe aos Estados, por meio de leis e investimentos, com um pla- nejamento adequado, estabelecer políticas públicas efetivas que auxiliem a população a “navegar”, de forma correta, na internet, mostrando às pessoas a 5Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática relevância existente em utilizar o meio virtual racionalmente, a fim de diminuir, de maneira considerável, o consumo exacerbado, que é intensificado pela manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados. Além disso, é de suma importância que as instituições educacionais promovam, por meio de campanhas de conscientização, para pais e alunos, discussões engajadas sobre a imprescindibilidade de saber usar, de maneira cautelosa, a internet, entendendo a relevância de uma “polarização digital” para a conscientização da razão comunicativa, com o intuito de utilizar o meio virtual para o desenvolvimento pleno da sociedade. Observe as palavras destacadas. Elas revelam o caráter de obrigatorie- dade atribuído a ações de autoridades e instituições. Dessa forma, o locutor se mostra isento desses deveres e responsabiliza terceiros. O uso de verbos no subjuntivo ou no imperativo contribui para a modalização deôntica, pois auxilia na orientação da instrução. Nascimento (2013, p. 15), ao analisar a modalização deôntica na redação oficial, afirma que ela: [...] se fez presente em quase todos os gêneros do universo empresarial e ofi- cial. Em grande parte dos casos, adquire um caráter instrucional, indicando ao interlocutor como deve agir. Esse caráter, na maioria das vezes, veicula concomitantemente outros sentidos. Além dessa função instrucional, os modalizadores deônticos são utilizados para veicular obrigatoriedade, ordem, proibição, permissão e pedido ou solicitação. Já a modalização avaliativa ocorre quando o locutor deseja comparar, analisar e avaliar algo que será expresso no seu texto, independentemente de questões epistêmicas ou deônticas. Portanto, o produtor do texto se compro- mete com o conteúdo, que se mostra pessoal. Nesses casos, a modalização se revela como uma estratégia argumentativa que tenta convencer o interlocutor a realizar determinadas ações. Veja um exemplo: Com o maior número de infectados por coronavírus (Covid-19) na América Latina, o Brasil é um dos últimos a anunciar fechamento de suas fronteiras, e ainda assim, de modo parcial [...]. A medida chega atrasada em relação aos demais países do continente, e ainda com um certo tom ideológico. Mas está em linha com a tendência global e dos países vizinhos que, em alerta com a rápida proliferação do coronavírus na América Latina, começaram a restringir circulação nas fronteiras (OLIVEIRA, 2020, documento on-line). Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática6 O trecho foi retirado de uma notícia intitulada “Com atraso, Brasil começa a fechar fronteira parcialmente pela Venezuela”. As premissas dos textos jor- nalísticos incluem a imparcialidade e a impessoalidade, porém, como mostra o exemplo, é possível que o locutor revele sua opinião enquanto divulga um acontecimento. As construções “com atraso” e “a medida chega atrasada” explicitam o posicionamento do autor. A modalização delimitadora, nas palavras de Nascimento (2013, p. 17), “[...] é aquela que estabelece os limites dentro dos quais se deve considerar o conteúdo do enunciado e, por essa razão, identifica graus de tensão ou de negociação na interlocução [...]”. Nos textos que utilizam essa modali- zação, é comum o uso de expressões como: “exclusivamente”, “apenas”, “somente”, “quase”, “um tipo de”, “uma espécie de”, “geograficamente” e “biologicamente”. Em diferentes gêneros textuais, encontram-se modalizadores que revelam as finalidades de comunicação e auxiliam os produtores de texto a atingir os seus objetivos. Portanto, as marcas de argumentatividade constroem diferentes textos a partir das relações semânticas e pragmáticas no uso da linguagem. 2 O uso dos dêiticos no texto literário A dêixis é um fenômeno linguístico de referenciação: na prática da lin- guagem, alguns elementos indicam e apontam pessoas, objetos, eventos e outros elementos aos quais os interlocutores se referem no momento da comunicação. A perspectiva sociodiscursiva da linguagem amplia as pos- sibilidades de estudo de dêixis, pois as estratégias de referenciação são vistas como parte de um processo sociocognitivo-discursivo. Fiorin (2003, p. 162) explica a existência da dêixis: Todo enunciado é realizado numa situação definida pelos participantes da comunicação (eu/tu), pelo momento da enunciação (agora) e pelo lugar em que o enunciado é produzido (aqui). As referências a essa situação constituem a dêixis e os elementos linguísticos que servem para situar o enunciado são os dêiticos. 7Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática Portanto, os dêiticos são construídos no discurso: a cada enunciação, há uma construção de referência. Assim, o contexto é fundamental para a estrutura lin- guística. E como esse contexto se define nos textos literários? Afinal, a literatura se mostra distante da pragmática, já que a comunicação não revela uma utilidade imediata. Contudo, ao produzir sua obra, o escritor pressupõe a cooperação do leitor, pois os textos literários revelam uma intencionalidade estética. Nessa inten- cionalidade, pressupõe-se a cooperação do leitor: sem ela, a literatura perde seu valor. Nesse sentido, cabe a análise do uso de dêixis também no campo literário. No texto literário, o leitor assume a intenção do autor de referir; logo, se cria: [...] nesse discurso, uma “ilusão referencial”, mais ainda do que no discurso comum: instaura-se entre enunciador e leitor um pacto de que o escritor está se referindo, não ao mundo real, mas à sua própria interpretação do mundo real, ou ao seu próprio mundo criado, ou a ambos. Dessa forma, o discurso literário não requer apenas uma forma distinta de ser escrito, mas requer também uma forma distinta de ser lido (PINHEIRO, 2018, p. 65). No texto literário, os dêiticos apresentam ao leitorum mundo real. Isto é, o mundo ficcional, imaginado, recebe características pragmáticas. Em 1967, Bühler reconheceu a importância dos dêiticos para a linguagem e os classificou em diferentes campos. No campo imaginário, localizou a relação dos dêiticos com a literatura, denominando a referenciação desses casos de am phantasma. Hamburger (1986, p. 91) amplia esses estudos e acredita que: [...] as palavras designativas na ficção transferem-se do campo mostrativo ao campo simbólico da linguagem — sem serem prejudicadas pelo fato de con- servarem ali a impressão gramatical de palavra designativa [...]. Os advérbios dêiticos temporais ou espaciais [hoje, ontem, amanhã/aqui, lá], perdem na ficção a sua função dêitica existencial, e se transformam em símbolos, nos quais o ponto de vista espacial se apaga, restando noções. A análise do discurso contribuiu para a percepção de que os dêiticos estão presentes na literatura, pois considera que essa referenciação exerce também a função discursiva. Nas palavras de Maingueneau (1997, p. 42), “[...] uma formação discursiva não enuncia a partir de um sujeito, de uma conjuntura histórica e de um espaço objetivamente determináveis do exterior, mas por atribuir-se a cena que sua enunciação ao mesmo tempo produz e pressupõe para se legitimar [...]”. Dessa forma, no texto literário, a situação de enunciação é criada, faz parte do mundo da história construída pelo escritor. Isso significa que o espaço, o tempo e os enunciadores fazem parte da cenografia, são criações que servem de Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática8 referência para a compreensão do texto. Contudo, essas construções/invenções são mais do que pano de fundo: muitas vezes, são o foco da intencionalidade discursiva. A seguir, você vai observar alguns textos literários para analisar como os dêiticos funcionam nesse contexto. O conto “Casa tomada”, de Julio Cortázar, conta a história de dois irmãos que vivem em uma casa que é tomada por desconhecidos. À medida que a invasão ocorre, os irmãos se obrigam a desfrutar de um espaço cada vez menor dessa casa. Leia o início do conto: Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas anti- gas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância (CORTÁZAR, 2005, documento on-line). Note que a primeira menção à palavra “casa” surge como referência ao local em que os personagens gostavam de estar. Mas, à medida que o texto avança, essa casa deixa de ser simplesmente um espaço para se tornar um personagem. Observe: Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a co- zinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada ideia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais (CORTÁZAR, 2005, documento on-line). Veja que as palavras destacadas também são dêiticos, mas são pessoais, ou seja, remetem às pessoas do discurso, aquelas que participam do ato da comunicação. Contudo, a casa não é um interlocutor; portanto, há uma inversão: 9Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática os personagens deixam de ser os responsáveis pelos atos e pelas ações e cedem espaço para a casa, que chega a ser tratada por meio de dêiticos pessoais. O uso da palavra “casa” e do dêitico de lugar, “ali”, demonstram que o papel da casa ainda oscila nesse ponto do texto. Entretanto, à medida que a história avança, se evidencia a força dessa casa como personagem, pois as supostas pessoas que a invadiram não aparecem, e os ruídos não se evidenciam como provocados por um ser humano. Assim, infere-se que o próprio ambiente contribuiu para a expulsão dos irmãos, de modo que eles pudessem viver sem a interferência da casa e de todas as lembranças e recomendações que ela suscitava. Veja um dos trechos finais: — Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele (CORTÁZAR, 2005, documento on-line). Note que o verbo “tomar” conjugado na terceira pessoa do plural indica um sujeito indeterminado: não se sabe quem tomou a casa. Dessa forma, as referências se tornam imprecisas e questionáveis, dificultando que o leitor estabeleça conexões. Agora considere o poema “O bicho”, de Manuel Bandeira. No primeiro verso, ele apresenta um dêitico de tempo: Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos (BANDEIRA, 1947 apud SALGUEIRO, 2016, documento on-line). O advérbio “ontem” é comumente usado como referência a um tempo passado determinado, ou seja, as ações que ocorrem no ontem não se repetem. Contudo, no poema de Bandeira (1947 apud SALGUEIRO, 2016), o advérbio revela simplesmente o fato recente: a cada leitura, em épocas distintas, o leitor se identificará com as palavras do poeta. Afinal, no Brasil, a cena de alguém buscando comida no lixo é comum e tem se tornado banal. A referência a esse bicho é feita com a conjugação na terceira pessoa, como se nota nas estrofes seguintes: Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática10 Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato (BANDEIRA, 1947 apud SALGUEIRO, 2016, documento on-line). A revelação da identidade desse bicho ocorre apenas no último verso: O bicho, meu Deus, era um homem (BANDEIRA, 1947 apud SALGUEIRO, 2016, documento on-line). Note que o uso do vocativo “meu Deus” nesse caso não tem função re- ferencial. O vocativo, nesse poema, não funciona como dêitico pessoal. A referência extrapola os limites do texto. Ao evocar Deus, o poeta, mais do que chamar ou se dirigir diretamente a alguém, pretende revelar seu espanto e sua indignação com a cena. O vocativo é um grito de denúncia, não exatamente para Deus, e sim para todos os leitores do poema. No texto literário, os dêiticos funcionam de forma menos tradicional, isto é, não são aplicados apenas como referência direta de pessoa, tempo ou lugar. O comparti- lhamento de conhecimentos entre autor e leitor é essencial para que a assunção de diferentes funções discursivas se evidencie na análise do texto literário. 3 A categorização na compreensão leitora Quando se analisa a dimensão discursiva da linguagem, se constata que os aspectos cognitivos e interacionais estão presentes nesse processo de uso da língua. A referência é uma estratégia utilizada nas interlocuções conforme o discurso se desenvolve. Nesse sentido, cabe analisar como ocorrem as ati- vidades cognitivas e interativas que os falantes praticam ao se referirem ao mundo nas situações de interação. A categorização está ligada ao processo referencial, já que, na “percepção do mundo”, os falantes fazem distinções e classificações de cada elemento 11Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática que percebem. Dessaforma, a categorização é considerada um procedimento cognitivo que ocorre na interação. Esse processo se associa às experiências particulares do falante, aos seus conhecimentos de mundo, às suas bagagens culturais e ideológicas. Portanto, as marcas históricas influenciam a construção da referência. Isso significa que o sentido das coisas, das ideias, não está predefinido: é, de certo modo, instável. Veja o que Ciulla (2014, p. 248) afirma: Durante a interação, as categorias discursivas e cognitivas evoluem e se mo- dificam; as escolhas lexicais são adaptadas e reconstruídas de acordo com o que está sendo negociado e com as intenções dos interlocutores. Assim, nesse campo movediço que é a referenciação, os efeitos de objetividade e realidade que criam a ilusão de estabilidade não são dados, mas são frutos dos processos de negociação entre os falantes e podem ser modificados a cada nova interação. Assim, na compreensão leitora, a categorização funciona no nível do texto e do discurso, isto é, na consideração dos aspectos pragmáticos, cognitivos e interacionais. O leitor, ao buscar referências durante a leitura, forma esquemas e elabora procedimentos metonímicos de acordo com a mutação da catego- rização. Afinal, como a estrutura das coisas está sujeita a modificações, é preciso formular ideias e características para categorizar um objeto visto pela primeira vez. Esse mesmo processo ocorre durante a leitura: a categorização é feita com base no conhecimento prévio do leitor e na sua fundamentação social e cultural. A anáfora pode ser uma categorização própria do texto que auxilia o leitor a compreender as relações entre diferentes palavras e expressões utilizadas pelo autor. Mas as experiências de outras percepções e interações também favorecerão a categorização do objeto, da palavra. Como afirma Ciulla (2014, p. 255): [...] a categorização é um fenômeno intimamente ligado à referenciação: todo ato de referir implica, também, categorizar, pois ao escolher uma expressão, entre todas as opções que julgar adequadas, incluindo-se aí as invenções, adaptações e transformações, o falante privilegia alguns aspectos e algumas semelhanças de família em detrimento de outros, de acordo com as discrimi- nações (ou abstrações ou generalizações, etc.) que a palavra escolhida pode comportar naquela situação de uso. Nesse sentido, se se assume que o conhecimento linguístico advém também de experiências do falante, pode-se pressupor que a linguística cognitiva é capaz de contribuir para a compreensão do fenômeno da categorização. Observe a Figura 1, a seguir. Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática12 Figura 1. Charge sobre o Enem. Fonte: César (2019, documento on-line). Para que o leitor compreenda a mensagem da charge e perceba o tom cômico, precisa ter duas informações: nas redes sociais, circularam vídeos de um cantor e compositor amador que produziu a música “Caneta azul, azul caneta”; na folha de respostas do Enem, o candidato deve assinalar suas respostas com caneta preta. Nesse caso, portanto, o conhecimento linguístico depende das experiências do leitor. Contudo, em textos maiores, com predominância da linguagem verbal, o leitor se vê obrigado a recorrer à categorização. Veja o texto a seguir, de Veríssimo (2001, p. 23): A família toda ria de dona Morgadinha e dizia que ela estava sempre esperando a visita do Marajá de Jaipur. Dona Morgadinha não podia ver uma coisa fora do lugar, uma ponta de poeira em seus móveis ou uma mancha em seus vidros e cristais. Gemia baixinho quando alguém esquecia um sapato no corredor, uma toalha no quarto ou — ai, ai, ai — uma almofada torta no sofá da sala. Baixinha, resoluta, percorria a casa com uma flanela na mão, o olho vivo contra qualquer incursão do pó, da cinza, do inimigo nos seus domínios. No primeiro parágrafo da crônica, já surge a expressão “Marajá de Jaipur”. Se o leitor recorrer às informações da realidade externa ao texto, constatará que esse marajá existe e vive na Índia. Entretanto, se não tiver posse dessa 13Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática informação, certamente o leitor categorizará o marajá como uma pessoa que tem muito dinheiro e vive no meio do luxo e do conforto. Na crônica, as palavras iniciais sugerem que esse marajá existe apenas no campo das ideias dos personagens. Contudo, uma situação inesperada altera o rumo da história: Certa manhã bateram à porta. Dona Morgadinha, que comandava a faxina diária da casa com severidade militar, fez sinal para as empregadas de que ela mesma iria abrir. Na porta estava um homem moreno, de terno, gravata — e turbante! Dona Morgadinha, que uma vez brigara com o carteiro porque a sua calça estava sem friso, olhou o homem de alto a baixo e não encontrou o que dizer. — Dona Morgadinha? — Sim. — Meu amo manda o seu cartão e pede permissão para vir visitá-la às cinco. Dona Morgadinha olhou o cartão que o homem lhe entregara. Ali estava, com todas as letras douradas, “Marajá de Jaipur”. Não conseguiu falar. Fez que sim com a cabeça, desconcertada. O homem fez uma mesura e desapareceu antes que dona Morgadinha recuperasse a fala (VERÍSSIMO, 2001, p. 24). Nesse ponto da narrativa, o leitor se vê impelido a categorizar o marajá como personagem, porém com ressalvas: o homem que apareceu na porta de Morgadinha era realmente o tal marajá? O final da crônica revela o que havia por trás da visita: Depois de duas semanas de visitas constantes do Marajá e do mais ab- soluto descaso de dona Morgadinha pela higiene da família e da casa, o marido resolveu que já era demais. Procurou o seu amigo Turcão, que era árabe e tinha cara de hindu e que ele contratara para se fingir de Marajá e fazer uma brincadeira com a mulher, e disse que era hora de acabar com a brincadeira (VERÍSSIMO, 2001, p. 26). Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática14 Como se vê, uma nova categorização surge para o marajá: ele é Turcão, um amigo do marido de Morgadinha, que aceita o desafio de se fazer passar pelo marajá. Essas reviravoltas demonstram como a ficção aproveita as es- tereotipações de categorias e a categorização para envolver o leitor e atrair a sua atenção até o fim do texto. As reportagens são exemplos de textos que utilizam a voz de especialistas para ratificar algumas ideias e legitimar a informação. Cada trecho que expõe o nome do entrevistado e apresenta a sua especialidade é enquadrado pelo leitor na categoria “informação verdadeira e confiável”. Veja trechos de uma reportagem publicada no jornal El País: Assim como o coronavírus e a economia são globais, o mesmo acontece com o comportamento humano. Na Espanha, um dos produtos que primeiro desapareceu das prateleiras dos supermercados foi o papel higiênico. Quando o Governo suspendeu as aulas nas escolas na semana passada, imediatamente as redes sociais se encheram de imagens de clientes lotando compulsivamente os carrinhos [...]. Entre os motivos alegados por David Coral, presidente da agência BBDO, está o fator psi- cológico, pois ser um produto higiênico dá uma sensação de segurança [...]. O professor de marketing da ESIC, Paco Lorente, também fala sobre comportamento, esclarecendo que todo esse fenômeno está relacionado à psicologia aplicada ao marketing [...]. Também o diretor acadêmico do Master in Market Research and Consumer Behavior da IE Business School, Jaime Veiga, justifica a situação falando de comportamentos irracionais gerados pelo estresse e pelo medo (ÁLVAREZ, 2020, documento on-line). Portanto, a categorização relaciona-se diretamente com o contexto e com a situação de comunicação. Fiorin (2003, p. 71) afirma: “A mesma realidade, a partir de experiências culturais diversas, é categorizada diferentemente. Nenhum ser do mundo pertence a uma determinada categoria, os homens é que criam as categorias e põem nelas os seres [...]”. Em síntese, a categorização é um processo de referência que aliaaspectos cognitivos e discursivos. Dessa forma, as categorias não são estanques, ou seja, podem ser imprevisíveis e mudar com facilidade, pois estão envolvidas com o contexto e com as intenções do falante. Além disso, o conhecimento de mundo do receptor interfere na categorização. 15Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática ÁLVAREZ, P. Por que o papel higiênico está se esgotando no mundo com o coronavírus. El País, [s. l.], 18 mar. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/cincodias/2020-03-19/ por-que-o-papel-higienico-esta-se-esgotando-no-mundo-com-o-coronavirus.html. Acesso em: 13 abr. 2020. ARIAS, J. A face mais cruel do coronavírus é abandonar, sem nenhuma razão cientí- fica, os animais de estimação. El País, [s. l.], 17 mar. 2020. Disponível em: https://brasil. elpais.com/opiniao/2020-03-17/a-face-mais-cruel-do-coronavirus-e-abandonar-sem- -nenhuma-razao-cientifica-os-animais-de-estimacao.html. Acesso em: 13 abr. 2020. CAMPOS, L. V. Confira redações nota mil do Enem 2018. 2019. Disponível em: https://vesti- bular.brasilescola.uol.com.br/enem/conheca-as-redacoes-nota-mil-enem-2018/345063. html. Acesso em: 13 abr. 2020. CÉSAR, M. Charge Ao menos no ENEM… 2019. Disponível em: https://www.midiamax. com.br/politica/charge/2019/charge-ao-menos-no-enem. Acesso em: 13 abr. 2020. CIULLA, A. Categorização e referência: uma abordagem discursiva. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 56, n. 2, p. 247–258, 2014. CORTÁZAR, J. Casa tomada. In: RAMAL, A. (org.). Contos latino-americanos eternos. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005. Disponível em: http://www.releituras.com/jcortazar_casa. asp. Acesso em: 13 abr. 2020. FIORIN, J. L. Modalização: da língua ao discurso. Alfa, São Paulo, v. 44, p. 171–192, 2000. FIORIN, J. L. Pragmática. In: FIORIN, J. L. Introdução à linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003. HAMBURGER, K. A lógica da criação literária. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986. KOCH, I. G. V. Desvendado os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2003. MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. Campinas: Pontes, 1997. NASCIMENTO, E. P. A modalização e os gêneros formulaicos: estratégia semântico- -argumentativa. Revista de Letras, Fortaleza, v. 1, n. 32, p. 9–19, 2013. OLIVEIRA, R. Com atraso, Brasil começa a fechar fronteira parcialmente pela Venezuela. El País, [s. l.], 18 mar. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-18/ com-atraso-brasil-comeca-a-fechar-fronteira-parcialmente-pela-venezuela.html. Acesso em: 18 abr. 2020. PARRET, H. Enunciação e pragmática. Campinas: UNICAMP, 1988. PINHEIRO, J. D. O. C. E agora José, que dêitico é esse? Linguagem em Foco, Fortaleza, v. 10, n. 1, p. 63–70, 2018. Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática16 SALGUEIRO, W. O bicho, de Manuel Bandeira: há muitos bichos na poesia de Manuel Bandeira. [2016]. Disponível em: http://rascunho.com.br/o-bicho-de-manuel-bandeira/. Acesso em: 13 abr. 2020. VERÍSSIMO, L. F. O marajá. In: VERÍSSIMO, L. F. Comédias para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun- cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. 17Análise de textos de diferentes gêneros: semântica e pragmática