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AULA 4 POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE Profª Tania Maria Santos Pires 2 CONVERSA INICIAL Construção legal do SUS A criação do SUS aconteceu depois de uma grande articulação que envolveu diversos setores da sociedade, tais como professores universitários, sindicatos, grupos políticos, religiosos e líderes sociais. Essa articulação ficou conhecida com o nome de Movimento Pela Reforma Sanitária. O resultado dessa articulação foi a bem-sucedida Conferência Nacional de Saúde, cuja carta final foi praticamente transcrita na letra da constituição que criou o SUS, em 1988. No entanto, para se criar uma estrutura de saúde para um país gigante e heterogêneo como o Brasil, havia a necessidade da construção de um arcabouço legal consistente que conseguisse sustentar o conjunto de ações proposto pelo novo sistema de saúde. Nesta etapa, vamos estudar as principais leis que criaram o SUS, as portarias que as complementaram e outras leis que foram necessárias posteriormente para o ajuste das novas necessidades que se demonstraram no decorrer do desenvolvimento das ações. TEMA 1 – A LINHA MESTRA DO SUS: LEI N. 8.080 A Lei n. 8.080/1990 ficou conhecida como a lei orgânica da saúde, isto porque ela traça o perfil do novo sistema de saúde que estava sendo implantado. Seus principais temas correspondem a alguns conhecidos problemas e que foram alvos das demandas reformistas, como a inclusão das vigilâncias sanitárias e epidemiológicas no SUS e, sobretudo, o reconhecimento da saúde como um direito do cidadão e dever do estado. Podemos condensar os temas abordados na Lei n. 8.080 em dois grandes grupos que são os temas ligados à responsabilidade social do SUS, e os temas ligados à operacionalidade técnica do SUS. Ressalta-se que essa lei é a representação da Constituição dentro do arcabouço legal do SUS, a espinha dorsal deste, sustentando-o ideologicamente e direcionando a organização do sistema. Vamos analisar, a seguir, os destaques da Lei n. 8.080 dentro dos dois principais grupos, relacionando-os com as ações e repercussões oriundas de sua aplicação na sociedade. 3 1.1 A responsabilidade social do SUS expressa na Lei n. 8.080 Durante os anos 1980, o contexto de saúde da população brasileira poderia ser facilmente traduzido por um indicador: a mortalidade infantil. Aliás, este é um importante indicador não apenas de saúde, mas de desenvolvimento humano de uma população. No Brasil dos anos 1980, esse indicador era estimado em 80 mortes para cada 1000 nascidos vivos. Fala-se de estimativa pelo fato de os dados serem imprecisos e, sem dúvida, subestimados. Ao ler um artigo em busca de dados dos anos 1980, eu me lembrei de que nesse período, em 1980, eu estava no segundo ano do curso de medicina, em Belém do Pará, aos 18 anos de idade. Eu me deparei com o choque de iniciar o atendimento de populações muito pobres, chamadas de indigentes, ao iniciar o acompanhamento de professores que faziam voluntariado em bairros e regiões sem assistência médica. Eles diziam para os alunos angustiados como eu que a única saída para essa situação seria uma reforma no sistema de saúde e que nós deveríamos ser médicos generalistas, porque a medicina das especialidades não daria conta das necessidades da população. Em 1985, recém-formada, eu me mudei para São Paulo e fui trabalhar em hospital conveniado ao Inamps, na área metropolitana de São Paulo. Morando na maior cidade do país, eu me deparei com a cruel realidade de ver crianças morrerem na minha frente, chegando ao atendimento de emergência nos seus instantes finais, por causas tão simples de tratar hoje em dia, tais como diarreias ou broncopneumonias. (Pires, 2022) Grande parte dessas famílias eram de trabalhadores imigrantes do Nordeste, ou outras famílias pobres provenientes do interior de São Paulo, com trabalhos informais, portanto, sem direito ao sistema de saúde vigente. Algumas dessas crianças tinham seu registro de nascimento feito no momento de sua morte, em condição de emergência social, porque não poderiam ser sepultadas sem ter esse documento para, só depois, gerar o registro do óbito. Imagine então nos grandes sertões brasileiros, fora das áreas urbanas condensadas, como acontecia a vida e morte desses pequeninos que duravam tão pouco? Até parece que a sua missão nesse mundo seria nos apontar a situação de injustiça vivida pela população sofrida a ponto de inspirar o adjetivo criado na mais famosa obra de João Cabral de Melo Neto, uma morte e uma vida “severina”. Por todos esses fatores, a morte era subestimada, sobretudo, quando se tratava de crianças. Éramos um país de gente jovem, porque nasciam muitas crianças, morriam muitas também e os adultos, na sua maioria, não chegavam a envelhecer, morrendo em torno de 50 anos. 4 Com esse contexto iníquo, a reforma do sistema de saúde teria que expressar um grande compromisso social. Teria que deixar claro na letra da lei que ter acesso à saúde era um direito do cidadão e dever do estado. Isto é o que acontece no artigo 2, parágrafos 1 e 2 do Título 1 – Disposições gerais. Nesse setor, considerado a abertura da Lei n. 8.080, há a descrição dos fatores determinantes sociais de saúde. O reconhecimento dos fatores sociais como diretamente responsáveis pela produção de saúde e doença de uma população e, sendo assim, expressos em lei, marcam uma nova maneira de se trabalhar em saúde. Dessa forma, não se poderia mais disfarçar os problemas de saúde com a simples construção ou contratação de hospitais, mas se trabalhando de forma intersetorial, interligando políticas públicas de diversos setores, como educação, emprego e renda, proteção social, abastecimento, habitação, infraestrutura. Não se pode ter saúde no meio do desamparo social e todas essas ações são dever do estado. Dentro desse mesmo sentido, estão os princípios doutrinários do SUS, os quais discutimos anteriormente. O direito ao acesso universal à saúde, à integralidade do sistema e à equidade das ações são os pilares da organização legal do sistema de saúde brasileiro. 1.2 A operacionalidade técnica do SUS A Lei n. 8.080 fornece a linha diretiva inicial para o desenvolvimento da organização operacional do SUS, descritos nos capítulos II e III que tratam dos princípios e diretrizes e da Organização, Direção e Gestão. Todos esses temas seriam posteriormente detalhados por meio de portarias complementares, como veremos mais adiante, porém, o princípio encontra-se estabelecido na lei orgânica. Os princípios operacionais visam mudar um dos maiores problemas da gestão do antigo sistema, que era a centralização no governo federal, deixando de fora das decisões os estados e municípios, portanto, a situação agora se inverte quando se determina que o primeiro princípio operacional do SUS é a descentralização da gestão, aplicando um modelo de gestão compartilhada entre os três entes federativos, cada um atuando com sua especificidade, sendo que o município avançaria cada vez mais como o principal gestor do SUS. A hierarquização e regionalização das ações de saúde são dois princípios operacionais que evoluíram bastante dentro do contexto do SUS. A 5 hierarquização das ações foi uma estratégia importante para a organização da oferta dos serviços de saúde sobretudo no início da implantação do SUS. Significava organizar as ações segundo o nível crescente de complexidade para estruturar a oferta desses serviços, de modo que se criasse um fluxo para as demandas de saúde. Para dar conta da hierarquização, os serviços deveriam ser também regionalizados. A regionalização relaciona-se à gestão das Secretarias Estaduais de Saúde, que seria mais bem delineada com a implementação da Norma Operacional Básica de 1996 (NOB 96) e da Norma Operacional de Assistência à Saúde de 2001 (NOAS 01). A seguir, há o detalhamento da forma de direção do SUS,com divisão da gestão entre as três esferas de governo e seus órgãos representativos. No âmbito da União, a gestão cabe ao Ministério da Saúde, no âmbito estadual a Secretaria Estadual da Saúde e no âmbito municipal a Secretaria Municipal de Saúde. Naquele primeiro momento, em 1990, a Lei n. 8.080 era uma resposta àqueles que, de certo modo, apostavam na falência do SUS, principalmente pelas dificuldades que se apresentariam na gestão. Claro que somente essa lei não seria suficiente para detalhar todos os procedimentos necessários ao complexo processo administrativo do SUS, entretanto, o amadurecimento dos processos no decorrer dos anos mostrou que a Lei n. 8.080 apontava um caminho correto, sendo necessário apenas que fosse sendo ajustados de acordo com as necessidades que se apresentariam. TEMA 2 – A LEI DO CONTROLE SOCIAL: LEI N. 8.142 A Lei n. 8.142 expressa o processo de redemocratização do país. A ditadura militar com processos centralizadores, sem voz para a representação social, é substituída por um processo de gestão compartilhada, ou seja, o SUS teria que ter a participação da sociedade. Para garantir essa ação, foi editada e Lei n. 8.142, chamada de lei do controle social. No seu caput, ela dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde. São dois grandes temas relacionados à redemocratização: a participação social e a gestão de recursos para a saúde. 6 Outros temas fundamentais abordados na Lei n. 8.142 refere-se à transferência de recursos para a saúde. Para que essa transferência acontecesse, a lei determinava o atendimento de condicionantes, cuja implantação foi fundamental para a posterior habilitação dos municípios e o desenvolvimento do SUS na esfera municipal. São eles: a) Ter Conselho de Saúde atuante para estabelecer o controle social. b) Ter Fundo Municipal de Saúde que significa uma entidade jurídica para gestão específica dos recursos para saúde. c) Ter Plano Municipal de Saúde, o que significa ter atuação planejada para atuação no município com metas a serem alcançadas, embasada em dados epidemiológicos locais. d) Relatório de Gestão para implementar um sistema de controle e avaliação. e) Comissão para elaboração de política de recursos humanos para desenvolvimento de carreiras dos profissionais de saúde no caso de municípios que não tinham ainda carreiras estabelecidas para seus funcionários. 2.1 A atuação dos Conselhos de Saúde A participação da sociedade foi garantida por meio da criação das instâncias colegiadas dos Conselhos de Saúde. Cada instância seria representativa dos diversos segmentos da sociedade em graus crescentes que se iniciam nos conselhos locais de saúde, com representações dos bairros, distritos, municípios, estados e nacional. Em qualquer instância de atuação, a composição dos Conselhos obedece à seguinte designação: representantes de usuários, dos trabalhadores da saúde, do Governo e dos Prestadores de Serviços de saúde, sendo o seu Presidente eleito entre os membros do Conselho em reunião plenária. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) já era atuante no Brasil desde 1937. Era formado por técnicos e especialistas em saúde e tinha caráter consultivo, com objetivo de assessorar o Ministério de Educação e Saúde em conjunto com o Conselho Nacional de Educação. Seu papel era limitado à consultoria técnica. Os Conselhos de Saúde assumiram um importante papel dentro das políticas públicas de saúde. Sua ação não é mais apenas consultiva, mas, acima de tudo, é deliberativa e deve caminhar próximo à gestão da saúde em cada 7 esfera da administração, para deliberar em conjunto e monitorar as ações da gestão. Os representantes dos usuários devem ser pessoas da comunidade. Embora todos demonstrem boa vontade nas suas ações, na maioria das vezes, não estão adequadamente instrumentalizados para as análises técnicas necessárias. Para isso, houve necessidade de inserir-se nas legislações dos conselhos as capacitações para os conselheiros, inclusive as capacitações em informática, a legislação básica da saúde, indicadores de saúde, seus índices e relações, para que os conselheiros possam analisar os relatórios com melhor clareza. 2.2 Papel do Ministério Público no controle social Um importante ator no controle social é o Ministério Público. Por meio das promotorias da saúde, o sistema de justiça está diretamente incluído no controle social. O direito sanitário passou a integrar as ações do Ministério Público formalmente a partir de 1998, quando, em reunião plenária em congresso na cidade de Palmas (TO), ficou decidido pelos procuradores de justiça que deveriam ser implantadas ações especificas para a área da saúde em cada Estado da União, criando promotorias específicas para lidar com as questões da saúde com intuito não apenas de demandas judiciais, mas para promover o acompanhamento de ações relevantes para a sociedade, sobretudo nas áreas de maior fragilidade social. Até então, as questões relacionadas à saúde ficavam dentro do conjunto de ações de direitos de cidadania, diluídas entre as demais demandas. Dentro dessa meta, a maioria das promotorias de saúde atua com objetivo de qualificar o controle social, como foco nas ações de atenção primária e na saúde mental. As ações da promotoria da saúde estão embasadas nas devidas cobranças aos gestores de saúde, monitoramento dos relatórios de gestão e apoio aos Conselhos de Saúde. Na prática, representantes da promotoria costumam participar das reuniões dos Conselhos, contribuindo com as discussões dentro da visão legal de modo a qualificar a atuação dos conselhos. Considerando o triste e vergonhoso histórico do nosso país de desvios de verbas da saúde, ao mesmo tempo que o cidadão comum fica sem assistência ou sem um insumo para o seu tratamento, por muito tempo, foi algo considerado normal, como se fizesse parte dos processos 8 públicos. Essa é uma realidade que mudou com a atuação qualificada do controle social. O Ministério Público, representando o sistema de justiça, atua integrado ao setor saúde e não poderia ser diferente desde que se reconhece que a saúde é formada por um conjunto de determinantes sociais. Sendo assim, questões específicas como a condição do idoso, da criança e do adolescente, da pessoa com doença mental, entre outras, são áreas sensíveis à proteção social, requerendo ações conjuntas de diversos setores, entre eles a saúde e a justiça. TEMA 3 – A NORMA OPERACIONAL BÁSICA DE 1996 (NOB-SUS 96) A etapa de transição do sistema de saúde do Inamps ao SUS levou pelo menos seis anos para se efetivar e, de fato, somente aconteceu quando foi editada a NOB-SUS 96. Romper com a lógica do pagamento por produção não era uma tarefa fácil porque esbarrava em diversos interesses. Por outro lado, enquanto essa situação permanecesse, também permaneceria a inequidade no repasse de recursos, agravando as diferenças entre as regiões do Brasil. As regiões Sul e Sudeste recebiam a maior parte dos recursos porque tinham maior número de prestadores de serviço e, portanto, maior quantitativo de produção, em detrimento das demais regiões. Outro fator importante era a falsa produtividade. Ainda com poucas estratégias para efetivo monitoramento naquele momento, era ainda bastante fácil a produção falseada no intuito de aumentar a captação de recursos. Além de tudo, o pagamento por doença, valorizava cada vez mais a doença, em vez da saúde. A transição caminhou lentamente pelos primeiros anos, para finalmente achar seu caminho seus anos após a Lei n. 8.080, como veremos a seguir. 3.1 O caminho a partir das Normas Operacionais de 1991 a 1993 A primeira edição da Norma Operacional Básica foi em 1991, durando sete meses. Nesse momento, o Inamps aindaera vigente e os recursos da saúde ainda continuaram sendo repassados, de acordo com a produção de serviços, com poucas mudanças do antigo sistema. Uma mudança a se destacar é o estabelecimento de igualdade de pagamento dos prestadores, sejam públicos ou privados. A duração da vigência da NOB 1991 foi relativamente curta, apenas sete meses, até que foi substituída pela NOB 92. 9 A NOB-SUS 1992 trouxe a parametrização para que os Estados e Municípios pudessem atender aos requisitos determinados na Lei n. 8.142 e algumas mudanças no modelo de distribuição de autorizações para internação. Um ponto importante dessa etapa foi a implementação do Sistema de Informação do SUS (SIA-SUS), que permitiu melhor controle de pagamentos do atendimento ambulatorial. A NOB-SUS 93 menciona o repasse de recursos, mas, segundo os analistas, não define os mecanismos pelos quais acontecerão. Regulamenta as esferas de gestão com as comissões intergestores tripartite e bipartite, porém, ainda mantém o sistema de pagamento por produção. Um destaque significativo é que essa NOB é assinada pelo Ministério da Saúde e não mais pelo Inamps, sinalizando que a transição do sistema, finalmente, chegava ao fim. O SUS precisava avançar definitivamente na descentralização. Até o ano de 1993, os avanços ainda seriam tímidos, considerando a necessidade do desenvolvimento da autonomia dos municípios. Em 1996, as mudanças na estrutura legal se expressam de forma mais clara na NOB-SUS 1996. 3.2 Rompendo com a antiga lógica: NOB-SUS 1996 Entre a NOB 93 a NOB 96, três anos se passaram. Nesse período, uma etapa estrutural avançou no campo da assistência, que foi a implantação do Programa Saúde da Família (PSF). O PSF significava a ampliação da assistência na atenção básica ou, como era conhecida internacionalmente, atenção primária à saúde. Para desenvolverem a atenção básica, os municípios precisariam de habilitação e recursos. As NOB anteriores conseguiram avançar nos cadastros dos municípios, porém, sem mudanças importantes na liberação de recursos. A NOB-SUS 1996 abre as portas para a mudança. Segundo as conclusões de estudiosos do tema, seus principais destaques são na área de repasse de recursos e financiamento das ações que incentivam a ampliação da oferta de serviços pelos estados e municípios descritos a seguir (Souza, 2002): a) Rompe com a lógica do repasse por produção, implantando o repasse per capita na atenção básica com a criação do Piso de Atenção Básica. b) Cria incentivos específicos para áreas estratégicas e aumenta a transferência de recursos fundo a fundo. c) Investimentos na rede de serviços com financiamento do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, para as regiões Norte, 10 Nordeste e Centro Oeste como objetivo de reduzir as desigualdades regionais. A concretização da descentralização da gestão e dos recursos em saúde trouxe como resultados a melhoria da assistência, isso se mostrou pelo estímulo para a implantação e expansão do Programa Saúde da Família e do Programa de Agentes Comunitários de Saúde. O novo modelo de distribuição de recursos aumentou consideravelmente o número de municípios que se qualificaram em algum dos modelos de gestão proposto pela NOB-SUS 96, chegando a 99% dos municípios. Finalmente, o SUS havia começado de verdade a acontecer. TEMA 4 – A NORMA OPERACIONAL DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE DE 2001 A NOAS 01 marca a entrada do século XXI com avanços importantes para o SUS. Nesse momento, encontramos os gestores mais amadurecidos e a assistência em ampliação na maioria dos municípios, contudo, apesar das mudanças na transferência de recursos, isso não garantiria o atendimento integral das populações. Uma contextualização sobre os municípios brasileiros se faz necessária nesse momento. A Constituição Federal de 1988 permitiu a criação de novos municípios com populações muito pequenas e poucas possiblidades de recursos. Dados do IBGE informam que a maioria dos municípios brasileiros tem menos do que 20.000 habitantes. Como prover assistência à saúde de forma integral, nos níveis de média e alta complexidade com recursos exclusivamente municipais? A NOAS 01 vem em resposta a esse problema. A Norma Operacional de Assistência à Saúde de 2001 (NOAS 01/2001) amplia as responsabilidades dos municípios na Atenção Básica; define o processo de regionalização da assistência; cria mecanismos para o fortalecimento da capacidade de gestão do Sistema Único de Saúde e procede à atualização dos critérios de habilitação de estados e municípios. (Brasil, 2001) 4.1 O processo de regionalização da saúde A implantação do modelo de regionalização estrutura o papel das Secretarias Estaduais de Saúde no apoio aos seus municípios. Consiste na divisão dos municípios em macrorregiões, que devem funcionar como referências para os serviços de média e alta complexidade. Para qualificar melhor os encaminhamentos e destravar o fluxo, cabe às regionais implantar serviços de 11 regulação com possibilidade de priorização, desta forma, o paciente com maior necessidade de atenção não ficará esperando numa fila única, atrás de outros demandas eletivas. A regulação deve colocar o paciente certo no lugar certo, ou seja, com acesso à tecnologia necessária para o bom andamento do seu caso. Citando a prática como exemplo, um médico de atenção primária entende que o paciente precisa ser avaliado pelo cardiologista devido a uma hipertensão de difícil controle, mas sem sintomas de insuficiência cardíaca ou de isquemia. Pode-se pedir a avaliação do cardiologista para um paciente que vai fazer cirurgia de catarata, mas sem alto risco, como também pode-se pedir a avaliação para um paciente com sintomas de isquemia cardíaca. Quando há um sistema de regulação funcionante, o regulador vai destinar vaga para o paciente de mais alto risco num lugar onde este possa ter acesso aos exames de alta complexidade, como ecocardiograma, ecodoppler, cateterismo e não apenas na consulta ambulatorial com o cardiologista. Isto significa ganho de qualidade na atenção, evitando desperdício de tempo, o trânsito desnecessário do paciente com pouca resolubilidade, permitindo um fluxo com equidade. As regionais de saúde organizam os serviços de média e alta complexidade pelos agendamentos de consultas, vagas de internamentos, tratamentos complexos, como os serviços de cancerologia, além da estrutura de urgência e emergência com o SAMU e UPAS. Essa estrutura precisa se organizar com os municípios de referência chamados de municípios sede, que possam ofertar a totalidade dos serviços pactuados. O estado também fica responsável por intermediar os consórcios municipais de serviços e garantir os repasses de recursos de acordo com as pactuações do plano de gestão. 4.2 Coordenação e ampliação da atenção básica nos pequenos municípios Os municípios são responsáveis por implantar e ampliar sua atenção básica, porém as Secretarias Estaduais da Saúde têm um relevante papel na expansão e qualificação da atenção básica em seu território, que se iniciam no plano regional de saúde, com estabelecimento de metas de atenção, provimento de dados epidemiológicos que embasam o planejamento, criação de protocolos de atenção, suporte e coordenação dos fluxos de média e alta complexidade mediante a regionalização. 12 Os grandes municípios são considerados autônomos na gestão do SUS, assim reconhecidos com a denominação de “gestão plena” do SUS. Isso significa liberdade para gestão financeira, com repasses direto do governo federal e planejamento de ações de saúde em todos os níveis de complexidade e pontos da rede de atenção. Além de atender sua própria população, são referência para os pequenos municípios, de acordo com o fluxo estabelecido nas regionais de saúde. TEMA 5 – O PACTO PELA SAÚDE (2006) O desenvolvimentodas políticas públicas de saúde é um processo que vem sendo construído ao longo do tempo e modificando-se de acordo com as diferentes necessidades que vão se apresentando. Nesse sentido, a revisão proposta pelo pacto pela saúde (2006) torna-se um marco para a organização de prioridades e estratégias de ação, de modo a garantir o desenvolvimento das políticas públicas de saúde em todo território nacional, sobretudo no que se refere à gestão. O Ministério da Saúde publicou a portaria 399, de 22 de fevereiro de 2006, que manifesta o pacto pela saúde. O Pacto pela Saúde é um conjunto de reformas institucionais do SUS pactuado entre as três esferas de gestão (União, Estados e Municípios) com o objetivo de promover inovações nos processos e instrumentos de gestão, visando alcançar maior eficiência e qualidade das respostas do Sistema Único de Saúde. Ao mesmo tempo, o Pacto pela Saúde redefine as responsabilidades de cada gestor em função das necessidades de saúde da população e na busca da equidade social. (Brasil, 2006) O pacto pela saúde surge da necessidade de os municípios discutirem o formato de repasse de recursos da união e definir as responsabilidades financeiras de cada nível de gestão, contudo, o seu principal objetivo era a consolidação do SUS, estabelecendo as ações prioritárias e as formas de financiamento de cada uma delas. Três blocos foram formatados dentro deste acordo: O pacto em defesa do SUS, o pacto pela vida e o pacto de gestão. 5.1 O pacto pela vida É constituído por um conjunto de compromissos sanitários, expressos em objetivos e metas, derivados da análise da situação de saúde da população e das prioridades definidas pelos governos federal, estaduais e municipais. O pacto 13 pela vida deverá ser permanente e revisado a cada ano devido às mudanças na condição sanitária de cada população (Brasil, 2006). As principais ações de saúde pactuadas foram: saúde do idoso, saúde do trabalhador, saúde mental, fortalecimento da capacidade resposta do sistema de saúde às pessoas com deficiência, atenção integral às pessoas em situação ou risco de violência, saúde do homem, fortalecer a capacidade de resposta às doenças emergentes e as endemias (dengue, hanseníase, tuberculose, malária), promoção de saúde e fortalecimento da APS. A adesão dos municípios ao pacto aconteceu mediante assinatura de contrato, em que os gestores se comprometem com as metas a serem alcançadas e alimentar o SISPACTO, com os dados resultantes das ações. As ações e programas pactuados traduzem-se em melhoria na qualidade de vida das pessoas e foram selecionadas após os levantamentos das principais necessidades de saúde dos brasileiros. 5.2 O pacto em defesa do SUS e o pacto de gestão O pacto em defesa do SUS reafirma o compromisso do Estado com o provimento das ações de saúde e o direito do cidadão de ter acesso a todos os serviços de saúde dos quais necessitar. Como estratégia para alcançar essa meta, acentuou-se a pressão para a aprovação da emenda constitucional número 29, pelo congresso nacional, que mudaria a forma de provimento para o setor saúde. O pacto pela gestão traz as definições dos investimentos financeiros de cada nível de gestão, mediante acordos entre a federação, estados e municípios, sobre os percentuais de investimentos e quais seriam suas responsabilidades nas diversas ações de saúde. A inclusão dos estados e municípios aconteceria por meio de adesão voluntária do município ou do estado, mediante assinatura do termo de compromisso de gestão. A tão sonhada aprovação pelo congresso nacional da emenda constitucional número 29, promulgada em setembro de 2000, somente aconteceu em setembro de 2011 e tornou-se um importante instrumento legal de gestão. Essa lei determina que os municípios deverão aplicar 15% de suas receitas no setor da saúde, os estados 12% e o governo federal deve aplicar o valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido do percentual relativo à variação do Produto Interno Bruto (PIB). 14 Apesar de tudo, a aprovação da lei trouxe avanços no aporte de recursos para a saúde porque delimitou os gastos da saúde apenas com as despesas especificas do setor. Na formatação anterior, os recursos da saúde poderiam ser usados em investimentos de outros setores, que, apesar de serem igualmente importantes para a sociedade e com interface com a saúde, limitavam os investimentos específicos pelo desvio das verbas para outros setores. Exemplo desse desvio era o investimento do dinheiro da saúde em esgoto, na merenda escolar, na alimentação de presidiários. Apesar de importantes, esses setores têm orçamentos próprios e deveriam demandar recursos de suas pastas correspondentes. Os principais destaques do pacto de gestão são a definição financeira das responsabilidades, o monitoramento das ações implementadas e as auditorias. Ordenar ações e atividades, monitorar as ações de saúde, estabelecer metas que permitam avaliação contínua através dos indicadores de saúde (Brasil 2006). NA PRÁTICA Marina tem 37 anos, é operadora de telemarketing, casada, tem três filhos, é moradora do município de Balsa Nova – PR. Procurou atendimento na US da sua residência devido quadro de sangramento uterino anormal há três meses. Informa que desde então suas menstruações têm sido longas e de grande volume. Após ter feito uma ultrassonografia transvaginal, recebeu a confirmação diagnostica de miomas subserosos em útero. Marina precisa de cirurgia, mas está preocupada porque sabe que o seu município não tem hospital de grande porte em condições de fazer a sua cirurgia. Alguns meses depois, Marina recebeu o chamado de consulta para o Hospital do Rocio, na cidade de Campo Largo, que fica a poucos quilômetros da sua cidade. Trata-se de um hospital de grande porte privado, contratualizado pelo SUS e que atende a Segunda Regional de Saúde do Paraná. Ambos os municípios de Campo Largo e Balsa Nova pertencem a essa região de saúde e Campo Largo é a referência mais próxima de Balsa Nova. Marina ficou contente em saber que seria operada nesse hospital porque ele tem os recursos necessários para a resolução do seu problema. A essa ação de gestão denomina- se regionalização. 15 FINALIZANDO A estruturação legal do SUS foi fundamental para a construção e consolidação do sistema. A clareza da lei traz segurança ao cidadão e permite a evolução de cada etapa de acordo com o amadurecimento do processo. A lei orgânica da saúde, espinha dorsal do SUS, a Lei n. 8.080, trouxe o delineamento do sistema, destacando os princípios e diretrizes do SUS, as principais ações, de acordo com o compromisso social do SUS e com a operacionalidade técnica do sistema. Quase ao mesmo tempo, a Lei n. 8.142 formatava a participação da sociedade por meio do controle social, com a atuação imprescindível dos Conselhos de Saúde. A caminhada do SUS prosseguiu em diversas etapas, passando pela fase de transição ainda na década de 1990, com as NOBs 91,92 e 93, até chegar à etapa de diferenciação do antigo sistema com a NOB-SUS 96. Essa portaria trouxe a nova forma de pagamento no modelo per capita e não mais por produção. A NOAS 2001 organizou a assistência e estruturou novos modelos de habilitação entre os municípios e estados. Em 2006, o pacto pela saúde traz os três grandes eixos de ações permanentes: a defesa do SUS, estruturação da gestão e propostas permanentes de cuidado. A cada ano, a análise das condições de saúde da população sinaliza quais os temas mais importantes para serem destacados naquele ano. 16 REFERÊNCIAS BRASIL. Lei n. 8080, de 19 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>. Acesso em: 26 maio 2022. BRASIL. Decreto n. 7508, de 28 de junho de 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7508.htm>.Acesso em: 26 maio 2022. BRASIL. Lei 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez 1990. BRASIL. NOB-SUS n. 96. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 nov. 1996. FIGUEIREDO, J. O. et al. Gastos público e privado com saúde no Brasil e países selecionados. Saúde em Debate, v. 42, n. spe2, pp. 37-47, 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0103-11042018S203>. Acesso em: 26 maio 2022. SOUZA, R. R. Construindo o SUS: a lógica do financiamento e o processo de divisão de responsabilidades entre as esferas de governo. Dissertação de Mestrado Universidade Estadual do Rio de janeiro, Instituto de Medicina Social – 2002. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/monografia_construindo_sus.pdf>. Acesso em: 26 maio 2022. SZWARCWALD, L.; CASTILHO, A. Estimativas da mortalidade infantil no Brasil, década de oitenta: proposta de procedimento metodológico. Revista de Saúde Pública, v. 29, n. 6, pp. 451-462, 1995. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0034-89101995000600006>. Acesso em: 26 maio 2022.
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