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AULA 2 POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE Profª Tania Maria Santos Pires 2 INTRODUÇÃO Todas as mudanças que ocorrem na sociedade, sejam de origem social ou política, impactam diretamente na saúde dos cidadãos e na forma de produzir saúde e doença. Por esse motivo, a forma como enxergamos a vida, nossos valores e crenças pessoais e coletivas, aquilo que entendemos como certo e errado, justo ou injusto, se traduz na legislação e na formatação dos serviços públicos prestados aos cidadãos, de modo especial também na saúde das pessoas. Sendo assim, a proposta que reformou o sistema de saúde precisava ser construída segundo expectativas e necessidades da população, considerando o momento histórico, político e social do país de modo a direcionar as bases para a construção legal do SUS nas diversas fases do desenvolvimento do Brasil. Nesta etapa, vamos analisar a caminhada histórica do sistema de saúde em direção ao SUS, a influência da ideia de proteção social e as forças políticas atuantes de maneira favorável ou contrária. Veremos também como o SUS ainda está se consolidando e se ajustando às necessidades da população brasileira dando respostas surpreendentes, como na recente pandemia do coronavírus. Esse ajuste se traduz na legislação do SUS, na ampliação de sua abrangência e na interface com os programas sociais, formando o tripé da seguridade social. TEMA 1 – VAZIO ASSISTENCIAL De 1500, ano do descobrimento, até hoje se passaram quase 400 anos até que pudéssemos ter a primeira iniciativa reconhecida como uma política pública de saúde. A evolução das políticas públicas de saúde no Brasil tem um histórico recente, apenas a partir do início do século XX. Até então, os habitantes do Brasil, fossem eles de qualquer etnia, tinham que contar com os seus próprios recursos e conhecimentos ancestrais para seu socorro. De toda forma, esse período deixou um importante legado de conhecimento informal de saúde. A mistura étnica que aconteceu aqui enriqueceu as tradições de manejo de doenças e o encontro de caminhos de cura que até hoje são utilizados pela população, como os chás de ervas, massagens com unguentos preparados de plantas e outras práticas que se consolidaram na população ao longo dos anos. 3 1.1 Etapa do Brasil Colônia: caridade e pajelança A ocupação portuguesa do território dos indígenas brasileiros, sua entrada na selva derrubando matas e escravizando pessoas, causou morte e destruição, no entanto, os historiadores atestam que as causas de morte da população indígena foram maiores pelas doenças trazidas pelos brancos do que pela ação de guerra. Antes da chegada dos portugueses, os indígenas não haviam tido contato com sarampo, rubéola, caxumba e outras doenças europeias, razão pela qual não tinham imunidade contra elas. Juntamente com os portugueses vieram os padres jesuítas, com a missão de implantar o cristianismo na Colônia. Eles trouxeram o conhecimento de tratamentos aplicados na Europa e, com o passar dos anos, associaram esses conhecimentos àqueles aplicados pelos pajés nas tribos. Mesmo com sentimento de desconfiança a princípio, os padres incorporaram o conhecimento de ervas, plantas e raízes trazidos pelos indígenas e seus pajés. O cenário de doenças do período colonial foi agravado com a chegada dos navios negreiros, trazendo escravizados doentes, vírus e vetores em seus porões. Estes se propagaram rapidamente entre a população, associando-se a outras doenças que circulavam no país desde o início do período colonial. As similaridades climáticas e sociais entre os continentes africano e sul-americano tornaram endêmicas no país doenças como febre amarela e dengue, tanto quanto a malária. Os escravizados adoeciam com frequência em razão da crueldade com que eram tratados, com muita violência, pouca alimentação e poucos períodos de descanso. Trabalhavam nas lavouras, nas minas de ouro e prata, em serviços domésticos, nas tropas de bandeirantes e outras infinidades de serviços e atividades. Aplicavam suas crenças de cura, mas em alguns momentos se submetiam ao conhecimento local, compartilhando e incorporando novas práticas. Uma importante contribuição à assistência à saúde foi a implantação das Santas Casas no Brasil. O primeiro hospital brasileiro foi implantado em Santos (1543); depois, na sequência, em Salvador (1549), no Rio de Janeiro (1567), em São Paulo (1599), em João Pessoa (1602), em Belém (1619), em São Luís (1657), em Campos (1792) e em Porto alegre (1803). As Santas Casas tinham a missão da caridade e acolhiam pobres e necessitados. Destaca-se que, no Brasil colônia, mesmo a população branca estava exposta a diversas doenças e riscos. 4 1.2 Etapa do Brasil Império As primeiras iniciativas de cuidado com visão pública somente vieram com a chegada da família imperial ao Brasil. Até então, estávamos vivendo uma colonização predatória e nada havia que pudesse ser identificado sequer como um resquício de saúde pública no país. De 1808 até a independência, o Brasil foi a sede do governo português. A chegada dos nobres e sua convivência com os males que afligiam a população local motivou algumas iniciativas positivas com desdobramentos favoráveis à causa pública. Uma delas parte da necessidade de formar médicos para atendimento dos nobres. Instalaram-se, então, as primeiras escolas de medicina no país em fevereiro, na Bahia, e em novembro de 1808 no Rio de Janeiro, que repercutiu na melhor qualificação dos hospitais e do atendimento da população. Houve incentivo à formação de mais confrarias beneficentes, o que aumentou o número de hospitais pelo país, porém, os pobres continuavam sendo atendidos por curandeiros e entendidos nas artes de curar, como os boticários, bem como pelos hospitais da caridade. TEMA 2 – COMBATE ÀS GRANDES ENDEMIAS E EPIDEMIAS: SANITARISMO CAMPANHISTA O que significava adoecer no início do século XX no Brasil? O contexto social, demográfico e político do país era muito diferente do de hoje. A população brasileira era predominantemente rural e com pouca estrutura social de apoio. Além de tudo, havia a muito recente herança escravagista que ainda negava direitos às pessoas negras e menosprezava a população pobre. Não havia, até então, qualquer política pública de saúde que pudesse trazer alguma solução ou amenizar as condições gerais de saúde das pessoas. Nesse contexto, ampliaram-se os negócios de exportação do café e de outros produtos agrícolas, porém, os grandes navios tinham receio de aportar no Brasil em razão da insalubridade dos portos e das cidades brasileiras. Havia necessidade de uma ação organizada para mudar essa situação. Surge, assim, a etapa do sanitarismo campanhista. 5 2.1 Grandes epidemias e seus impactos As grandes capitais, sobretudo as portuárias, como Rio de Janeiro e Salvador, fervilhavam com uma população crescente à procura de trabalho, porém, sem qualquer estrutura social de suporte, com moradias muito precárias, sem saneamento, sem acesso à água, sem higiene e sem o conhecimento da epidemiologia que temos hoje. O impacto na economia do país, baseada na exportação de café, algodão e outros produtos de manufatura, foi a motivação principal para que fosse feito o primeiro grande investimento na saúde pública no país. Os navios não queriam mais aportar no Rio de Janeiro, nem para cargas nem para transporte de passageiros, prejudicando o país economicamente e no que se relacionava ao fluxo de viagens, temerosos da contaminação dos portos que levavam à morte passageiros e marinheiros. Nesse contexto, destaca-se o médico sanitarista Oswaldo Cruz, cuja atuação serviu de base para a implantação dos estudos sobre as epidemias e as atuações sanitárias no Brasil. Ele fundou o Instituto Soroterápico Federal, em Manguinhos, no Rio de Janeiro, em 1900, e deu andamento à campanha de saneamentoe vacinação no Rio de Janeiro, saneando os portos. No entanto, as ações de saneamento e seus métodos embasados em estratégias militares foram muito questionados por políticos, outros médicos e pela população em geral. Naquele momento, não se entendia corretamente os mecanismos de transmissão das doenças. No caso da febre amarela, achava-se que a transmissão acontecia por meio de dejetos, suor, sangue e roupas contaminadas. A transmissão via vetor mosquito não era aceita por grande parte dos médicos, como também a estratégia criada por Oswaldo Cruz que incluía a entrada dos agentes nas casas das pessoas, independentemente de sua permissão, para sanear as casas, com poderes inclusive para prender pessoas que se opusessem ou tentassem impedir a entrada dos agentes nas casas. Essa ação foi entendida como uma invasão à privacidade das famílias, trazendo reações negativas da sociedade e dos políticos. No mesmo período, a campanha de vacinação sofreu difamação em razão da disseminação de boatos, gerando a histórica manifestação popular chamada de “Revolta da Vacina”, que ocorreu entre 10 a 16 de novembro de 1904. Essas manifestações levaram à suspensão da campanha de vacinação e abriram 6 espaço para que fosse decretado estado de sítio, com a justificativa de controlar a desordem social, mas que na verdade desejava implantar um golpe de Estado. O saldo dramático desse movimento incluiu diversos mortos, pessoas presas e outras até deportadas para o estado do Acre. Apesar de toda a oposição e até mesmo dos métodos estratégicos questionáveis, é inegável o legado de Oswaldo Cruz à saúde pública brasileira, sobretudo quanto à implementação da vacinação. Ele conseguiu sanear o porto do Rio de Janeiro, colocando novamente o Brasil na rota dos navios. No segundo surto de varíola, em 1908, a população procurou voluntariamente a vacinação. Seu trabalho na fundação – que posteriormente levaria o seu nome – foi continuado por Carlos Chagas, que foi seu aluno e parceiro de trabalho, dando andamento aos estudos sobre a malária, ampliação das ações de saneamento dos portos e outros estudos sobre endemias e epidemias. 2.2 Programa Nacional de Vacinação Os estudos de Osvaldo Cruz colocaram a vacinação como a primeira ação de saúde pública implementada em nosso país, na recém-implantada República. Mostrou-se efetiva e, no final, ganhou a confiança da população, repercutindo posteriormente na aceitação de outras campanhas que viriam no futuro, e na implementação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), em 1973, que trouxe orgulho ao Brasil. Quando falamos “Que orgulho das vacinas!”, não significa apenas uma expressão ufanista, mas trata-se do reconhecimento de uma ação tão efetiva, de alcance tão abrangente que, de certo modo, chega a ser surpreendente, dadas as condições adversas do nosso país. Mesmo com o tamanho da extensão territorial do Brasil, as grandes áreas cortadas por rios, outras áreas de íngreme sertão, populações morando em aglomerados insalubres em grandes áreas de favelas urbanas, outras isoladas nas matas, os nossos índices de vacinação geral perpassam os 75%. Essa reflexão é muito importante para traçarmos os planejamentos de saúde para o futuro, com a chegada de novas doenças, como a epidemia da Covid-19. Poucos países desenvolveram tanto sucesso em vacinação como o Brasil, lembrando que temos quase o tamanho territorial da Europa, que tem 50 países. O PNI vem sendo ampliado de acordo com o desenvolvimento de novas vacinas, atingindo crianças e adolescentes, mulheres grávidas e idosos. Ao longo 7 dos anos, conseguimos controlar epidemias de febre amarela, tuberculose, tétano, hepatite B, diarreia por rotavírus, meningite por hemophilus. Também conseguimos erradicar varíola, poliomielite, sarampo, difteria, coqueluche. Considerando um país do tamanho do nosso, com grandes desafios sociais a ainda serem enfrentados, ter um programa de saúde pública gratuita tão abrangente como o PNI é de fato motivo de orgulho e exemplo. Apesar de todo esse avanço científico e social, nos deparamos com pessoas assumindo posturas contrárias às vacinas, difamando-as e tentando influenciar outras a não se prevenirem e não permitirem a vacinação de seus filhos. De certo modo, é compreensível que as pessoas no início do século XX reagissem de forma contrária a uma tecnologia totalmente desconhecida e a uma estratégia de abordagem permeada de autoritarismo, mas atualmente, com as descobertas científicas e a divulgação de dados, que são acessíveis atualmente à maioria das pessoas, manifestações contrárias às vacinas são realmente indesculpáveis, até mesmo criminosas. Essas pessoas deveriam responder por crimes contra a humanidade. Outra situação que infelizmente não mudou relaciona-se aos maus políticos, que se utilizam do medo e da angústia das pessoas para manipulá-las de acordo com os seus interesses. Isso ocorreu no início do século XX, com relação à vacinação, e acontece ainda hoje. No entanto, é importante ressaltar que a política é essencial para que boas ações de saúde sejam implantadas ao se organizar políticas de Estado para atender às principais demandas da população, fazer a gestão dos recursos e implementar ações que salvam vidas e melhoram a qualidade de vida de todos os cidadãos. TEMA 3 – ETAPA MÉDICO-ASSISTENCIAL PRIVATISTA O Brasil, na primeira metade do século XX, passou por poucos avanços na saúde pública. Exceto as ações direcionadas às grandes endemias, pouco havia de assistência à saúde. A mortalidade materno-infantil era elevadíssima e a estimativa de vida das pessoas era de 45 a 50 anos. Não havia pré-natal, bem como ainda não havia acesso às vacinas que temos hoje. A sífilis matava recém- nascidos e deixava as mulheres frágeis, doentes e cheias de sequelas. Na verdade, até a década de 1920 e 1930, ainda não havia qualquer tipo de política pública de assistência e continuávamos dependendo da caridade 8 religiosa. A realidade começou a mudar para algumas categorias de trabalhadores que resolveram se organizar para ter assistência à saúde e aposentadoria. 3.1 Lei Eloy Chaves: marco da previdência e de assistência no país Os movimentos sociais ligados aos trabalhadores estavam em efervescência, visto que eles enfrentavam péssimas condições de trabalho. O médico carioca Raul Sá Pinto afirma, ao defender sua tese de doutoramento, sobre as condições de saúde a que era submetido o trabalhador brasileiro em 1907: “o operário, nas suas atuais condições de vida, dizemos e havemos de repetir, não morre naturalmente, é assassinado aos poucos”. Ele ainda discorreu sobre as jornadas inclementes nas fábricas, em que os trabalhadores eram explorados, havia mão de obra infantil e outras tantas injustiças sociais que depredavam a saúde das pessoas em nome do lucro. Os sindicatos faziam pressão por melhores condições de trabalho e a sua capacidade de mobilização já havia sido demonstrada quando resolveram se organizar por categorias para terem assistência à saúde e aposentadoria. Ferroviários, estivadores, metalúrgicos e diversas outras categorias resolveram investir partes de seus salários em conjunto com a contribuição dos seus patrões para terem alguma garantia. De certo modo, isso se tornou também um interesse de governo, que viu nessas iniciativas uma aglomeração de capital utilizável. Sendo assim, havia a necessidade de legitimar essas ações pela legislação. A Lei Eloy Chaves, de 1923, traz uma diretiva oficial e a contribuição do Estado a essa iniciativa. Essa lei é considerada a “mãe” da previdência social brasileira. Ela trouxe as regras oficiais de assistência e limite de idade para aposentadoria, vindo a ser um investimento conjunto de patrões e empregados. Na década de 1930, esses benefícios aumentaram em custos e tornaram-se insuficientes, o que motivou a intervenção doEstado. Além da assistência previdenciária, as caixas de aposentadorias e pensões (CAP) ainda eram provedoras de assistência médica, diminuição do custo de medicamentos, auxílio funeral e pensão para herdeiros em caso de morte. 9 3.2 Instituto de Aposentadorias e Pensões A organização dos trabalhadores conseguiu algumas vitórias importantes. Um marco dessa etapa foi a Consolidação das Leis do Trabalho, regida pela Lei 5.452, de 1.º de maio de 1943. A legislação trabalhista estabeleceu limites para o horário de trabalho, descanso remunerado, férias e aposentadoria. Considerando que a saúde estava ligada à previdência social, a organização das leis trabalhistas melhorou a saúde dos trabalhadores de diversas categorias e de suas famílias, assim como incorporou recursos à previdência social. A captação de recursos, associada a pouca gente que chegava à idade de aposentadoria, considerando a curta média de vida adulta, trouxe muitos recursos à previdência, o que facilitou a utilização desse dinheiro para outros investimentos considerados de interesse nacional. Nesse momento, o governo começou a participar da contribuição financeira das CAP e assumiu o controle da gestão financeira, criando o Instituto de Aposentadorias e Pensões (IAP). O IAP ampliou os benefícios das CAPs para outras categorias profissionais, como comerciários, industriários, bancários, chegando também aos funcionários federais. Esse modelo de previdência e assistência à saúde se manteve e foi ampliado em outro formato legal em anos subsequentes. TEMA 4 – INSTITUTO NACIONAL DE ASSISTENCIA MÉDICA DA PREVIDENCIA SOCIAL (INAMPS) Em 1964, o país sofreu o golpe militar, como em toda a América Latina. A situação de saúde dos brasileiros seguia sem uma política pública de saúde abrangente, por isso as discussões concentraram-se na ampliação dos benefícios previdenciários e de assistência médica a todos os trabalhadores ligados ao sistema da CLT, e não apenas àqueles ligados aos institutos de aposentadorias e pensões. A ideia era boa na medida em que mais pessoas teriam os benefícios trabalhistas e assistência médica, mesmo que não estivessem entre os trabalhadores com maior poder de organização. No entanto, a escolha pela metodologia assistencial, segundo o modelo estadunidense, privatista, centrado na assistência curativa, mostrou-se uma má escolha. Além da escolha pelo modelo médico centrista, a maioria dos brasileiros, que passavam longe do amparo da lei não por sua escolha, mas em razão das 10 iniquidades do país, permanecia sem assistência em saúde. Nessa categorização, estavam todos os trabalhadores autônomos, os indígenas, os trabalhadores da área rural, grande parte dos trabalhadores da construção civil e outros trabalhadores pobres, com pouca qualificação e amparo social. 4.1 Assistência médica do Inamps O Inamps se baseava na lógica dos eventos agudos, mantendo a metodologia de pronto-atendimento aos segurados. Para garantir a assistência, investiu-se na rede privada, financiando a construção de hospitais em todo o país, com empréstimos a juros baixos que seriam pagos com o próprio atendimento da rede, ou seja, o financiamento era feito pelo Inamps e pago com o convênio do hospital com o próprio Inamps. Apesar de ter havido a ampliação da assistência médica e hospitalar, apenas as pessoas contribuintes da Previdência Social teriam direito à assistência. Considerando que ainda, atualmente, mais de 50% da população economicamente ativa não têm emprego formal, podemos ter uma ideia de como poucas pessoas eram usuárias do Inamps; mesmo assim, a prestação de serviço era limitada e insuficiente. Como principais críticas ao sistema, destacam-se a ausência da visão de prevenção de qualquer tipo, ações de rastreio de doenças graves, acompanhamento de condições crônicas e iniquidade na atenção, justamente porque aqueles que precisavam da assistência à saúde eram excluídos do sistema de saúde. 4.2 Fraudes do Inamps O Inamps foi um sistema permeado por inúmeras fraudes. No final da década de 1990, diversas investigações em CPI pelo Congresso e pela polícia federal revelaram um grande esquema de desvio financeiro implementado por grupos hospitalares em todo o Brasil. O modelo de prestação de serviços e de pagamentos adotado pelo Inamps sem dúvida facilitava as fraudes. O Inamps era um sistema centralizado no governo federal, com transferência de recursos no modelo de pós-pagamento por produção. As faturas em papel chegavam após dois meses da efetuação do procedimento, praticamente inviabilizando a auditoria. Além de tudo, os pagamentos eram feitos 11 por tabelas de doenças e de procedimentos diretamente aos hospitais de todo o Brasil. O esquema de fraudes revelado pela polícia federal mostrava inúmeros procedimentos falsos, que incluíram cesariana em homens, repetidas cirurgias de apendicite no mesmo paciente, consultas e internações falsas. Essas atividades ilícitas serviram de argumento importante para que o sistema de pós-pagamento fosse modificado na reforma do sistema de saúde. TEMA 5 – LUTA PELA DEMOCRACIA E PELA REFORMA DO SISTEMA DE SAÚDE A ditadura militar imposta no Brasil durou 25 anos, de 1964 a 1989. Ela representava um posicionamento ideológico exigido no pós-guerra, momento histórico no qual todas as nações do mundo deveriam escolher entre as duas superpotências, Estados Unidos ou União Soviética. A América Latina era um alvo cobiçado pelos dois polos. Após a Revolução Cubana, o foco militar expandiu-se de modo que todos os países latinos sofressem golpes militares, com o argumento de frear o avanço do comunismo; no entanto, os regimes militares utilizaram-se de repressão, tortura, exílio, perseguição e cerceamento da liberdade. Os dois polos utilizavam-se dos mesmos métodos violentos para consolidar suas formações. Era a chamada “Guerra Fria”. As duas linhas ideológicas direcionavam a organização de serviços de saúde aos cidadãos. A ideologia liberal estadunidense entendia a saúde como um produto que poderia ser comprado dos prestadores de serviço, e a ideologia socialista entendia a saúde como dever do Estado; porém, seus países não conseguiam suporte financeiro para investimento adequado em saúde porque seus recursos eram direcionados para o poderio bélico militar. No cotidiano dos cidadãos, fosse na América Latina pobre e dominada pelos generais ou na Ucrânia, Polônia ou no Cazaquistão, de domínio soviético, as pessoas não tinham acesso verdadeiro à saúde. Enquanto os poderosos marcavam as suas posições, a população tanto dos países sul-americanos como de outros países pobres permanecia no analfabetismo, na miséria e com alta mortalidade. No Brasil, 70% da população não tinha assistência formal de saúde, assim como todos os outros países latinos. 12 Em 1978, a Organização Mundial da Saúde realizou a primeira Conferência Internacional de Saúde com o objetivo de fazer uma reflexão com vistas para a mudança de visão dos líderes mundiais sobre a questão da saúde dos povos. Ela foi considerada um marco internacional e referencial para a implantação de novas ações de saúde no mundo. 5.1 Movimento pela reforma sanitária Na final da década de 1970, ocasião da realização da Conferência de Alma- Ata, os movimentos populares estavam mobilizados discutindo as questões de saúde no Brasil. As insatisfações eram crescentes, apesar de reprimidas pelo regime militar. Grupos formados por professores universitários dos cursos de saúde reuniam-se para discutir as propostas de reforma e fazer levantamentos científicos. Entre eles, podemos destacar a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). Ambas as instituições são de caráter científico e de pesquisa, porém, não estavam alienadas do processo político, até mesmo porquea luta pela reforma sanitária era também uma luta pela democracia. As iniquidades na assistência eram patentes, como também os desvios de verbas da saúde. No entanto, havia pouca investigação nesse sentido. A polícia federal somente envolveu-se nas investigações de fraudes do Inamps, já no “apagar das luzes” do regime militar. A centralização de recursos no governo federal era outro fator de insatisfação de estados e municípios que dispunham de poucos recursos para dar conta daqueles que necessitavam de assistência e estavam fora da previdência social. O movimento pela reforma sanitária foi liderado por sanitaristas, médicos e demais profissionais da saúde e políticos de oposição, como o deputado Sérgio Arouca, apoiados por sociólogos e educadores de peso nacional como Paulo Freire e Betinho. Contava também com forte apoio da sociedade, igrejas e sindicatos. As comunidades eclesiais de base exerceram importante papel nessa mobilização, a qual se integrava totalmente nos movimentos que se manifestavam contra a ditadura militar. O pensamento do educador Paulo Freire, com a sua proposta de educação libertadora, tornou-se a base para as ações de promoção de saúde que se consolidariam como uma das principais ações do SUS. 13 A ação de cidadania contra a fome e a miséria no país, sob a liderança de Betinho, o famoso irmão do Henfil, sensibilizou todos os segmentos sociais para o problema da miséria no país e lançou a frase/slogan: “quem tem fome, tem pressa”. Além da fome do corpo físico, havia também a fome pela cidadania, por novos rumos no desenvolvimento do país e, para isso, havia mesmo muita pressa. 5.2 Oitava Conferência Nacional de Saúde Nesse clima, instaurou-se uma grande mobilização de pessoas para discutir a saúde no país e formatar uma proposta que seria levada à VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e que se tornaria a base para a reforma constitucional que modificou o sistema de saúde, criando o SUS em 1988. A proposta estava pautada em ter políticas de saúde democráticas, de acesso universal, com gestão descentralizada e mais próxima dos cidadãos, embasada na justiça social. Apesar de ser um movimento com forte conotação política de esquerda e de oposição ideológica ao regime militar vigente no país, o movimento sanitarista tinha um viés científico importante, que serve de base cientifica ao movimento. Nesse aspecto, duas teses, ambas de 1975, puxam o debate para firmá-lo cientificamente, dando início à teoria social da medicina: “o dilema preventivista”, de Sérgio Arouca, e “Medicina e Sociedade”, de Cecília Donnagelo. Essas discussões trouxeram questionamentos sobre a responsabilidade do Estado em relação às situações que determinam socialmente as doenças. O contexto que se demonstrava era muito mais abrangente do que o controle das endemias e o desenvolvimento de vacinas. A saúde não poderia permanecer entendida exclusivamente dentro dos princípios da microbiologia. Entre os marcos considerados como ganhos para o movimento sanitarista está o engajamento da Escola Nacional de Saúde Pública da fundação Oswaldo Cruz. A fundação elaborou projetos nos quais eram aplicados os princípios que desejava-se aplicar no SUS. Foram criados projetos-pilotos com o funcionamento de clínicas da família em diversos projetos de pesquisas em saúde comunitária que estavam em andamento. A proposta de Atenção Primária, defendida pela OMS, já estava acontecendo no Brasil em diversos projetos científicos. O movimento conseguiu simpatia e participação até mesmo das entidades representativas dos médicos, como a Associação Médica Brasileira e os 14 Conselhos Regionais de Medicina, que passaram a considerar a medicina comunitária como especialidade médica a partir da década de 1970. A articulação política ganhou força e conseguiu aprovar um documento levado ao Legislativo pelo deputado Sérgio Arouca, denominado “Saúde e Democracia”. A principal ideia defendida era retirar a assistência médica da Previdência Social e criar um sistema de saúde que considerasse os determinantes sociais e os direitos de cidadania relacionados à saúde das pessoas. A única maneira de discutir e aprovar essas propostas dentro da legislação vigente era fazê-lo por intermédio das conferências de Saúde. Cabe lembrar que as conferências de Saúde eram realizadas no Brasil desde 1941, porém, a participação popular não era estimulada. A Oitava Conferência trouxe esse marco importante pela grande mobilização popular que a embasou, na crescente discussão nos municípios, os quais constituíram seus delegados e representantes. Havia mais de 4.000 pessoas presentes nas reuniões da Oitava Conferência Nacional de Saúde, sendo que 50% eram representantes da população. O maior sucesso da reforma sanitária foi o levantamento do debate pelas questões de saúde. Nesse sentido, entende-se que o movimento deve continuar sempre, considerando-se que esse tema necessita de permanente rediscussão. Na prática, na metade da década de 1980, o movimento pela reforma sanitária conseguiu aprovar na Oitava Conferência o texto que criou o Sistema Único de Saúde, que foi integralmente reproduzido na elaboração da Constituição de 1988. Ficou também a ideia de que as diretrizes para a saúde da população devem ser discutidas e aprovadas pelos Conselhos de Saúde, que deveriam a partir de então assumir o seu papel. O papel dos Conselhos de Saúde seria consolidado com a Lei 8.142, após a regulamentação do SUS. NA PRÁTICA Em janeiro de 1917, Mariazinha se casou na cidade do Crato, no Ceará. Seu marido era peão de uma fazenda e ela era costureira. Quase um ano depois, nascia sua primeira filha, depois de um longo trabalho de parto, sendo ajudada por uma parteira. A criança sobreviveu, porém, teve crises convulsivas a partir dos dois anos de idade e, aos 20 anos, faleceu em consequência de uma das 15 convulsões. Depois desse parto, Mariazinha teve mais nove partos, porém oito dos seus bebês morreram até 15 dias de vida. Mariazinha tinha muita fé e por isso rezava e fazia muitas promessas pedindo a Deus a graça de ter mais um filho. Um dia quando estava no seu nono pós-parto, após o falecimento de mais um anjinho, um médico entrou na sua humilde casinha. Ele estava realizando um ato de caridade, porque na verdade foi enviado da capital Fortaleza para atender a Sra. Adelaide, proprietária da fazenda. Dona Adelaide era uma mulher bondosa e estava muito tocada com a história da Mariazinha e, por isso, pediu ao doutor que fizesse a caridade de atender aquela pobre mulher, porque após esse último parto Mariazinha estava muito mal, quase à morte. O doutor entrou na casinha humilde de uma única peça e atendeu Mariazinha. Detectou no exame físico os sintomas de sífilis e aplicou-lhe uma miraculosa injeção. Depois desse dia, ela melhorou, sentiu-se bem de fato e do modo corajoso se separou do marido que a havia contaminado. Casou-se novamente e pode ter sua outra filha, saudável e feliz, a quem chamou de Adelaide. Hoje, dona Adelaide tem 85 anos e, sob muitos aspectos, é uma sobrevivente. Sempre devolveu muito à vida e à sociedade a oportunidade de viver, tudo porque em algum momento sua mãe teve acesso à assistência à saúde. Como seria a história de Mariazinha hoje? A luta pelo SUS almeja esse acesso a todos os brasileiros, não por caridade, mas por direito à cidadania. FINALIZANDO Analisamos o desenvolvimento das políticas públicas de saúde no Brasil. Vimos que, no início do Brasil Colônia, as condições de saúde da população eram tão precárias que milhares de indígenas morreram em razão do contato com doenças trazidas pelos portugueses. Os recursos de saúde eram apenas a caridade religiosa e o conhecimento ancestral dos pajés e curandeiros. Na Velha República, a vacinação da população foi um marco importantíssimo, estabelecendoo período conhecido como “Sanitarismo Campanhista”, porém, com uma metodologia militarizada, que provocou nas pessoas uma forte reação contrária, conhecida como a “Revolta da Vacina”. Apesar de tudo isso, há que se valorizar esse período porque graças a essas iniciativas houve um desenvolvimento tecnológico no campo de vacinas e 16 nos estudos epidemiológicos, que deixou seus reflexos positivos na saúde pública brasileira até hoje. Estudamos a organização dos trabalhadores para conseguir assistência médica e benefícios sociais, criando as CAPs, a Lei Eloy Chaves, e iniciando uma fase conhecida como Médico Assistencial Privatista. Na década de 1960, no regime militar, vieram as mudanças que tentaram ampliar a assistência com a criação do Inamps. Vimos também que esses benefícios só atingiam a classe trabalhadora formal, com carteira assinada, deixando a maioria dos brasileiros sem direito aos serviços de saúde. Em razão dessa situação, houve um movimento de protesto e discussão que ficou conhecido como o “Movimento da Reforma Sanitária”, que culminou na Oitava Conferência Nacional de Saúde, cuja proposta final embasou a criação do SUS na Constituição de 1988. 17 REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Saúde. Fundação Osvaldo Cruz. Biblioteca Virtual Sérgio Arouca. Oitava Conferência. Disponível em: <http://bvsarouca.cict.fiocruz.br/ sanitarista06p.htm>. Acesso em: 29 maio 2022a. _____. Ministério da Saúde. Fundação Osvaldo Cruz. Biblioteca Virtual Sérgio Arouca. Reforma Sanitária. Disponível em: <http://bvsarouca.cict.fiocruz.br/ sanitarista06p.htm>. Acesso em: 29 maio 2022b. _____. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Declaração de Alma- Ata. In: CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE, 8. Anais... 1978. SAMPAIO, G. dos R. Decrépitos, anêmicos, tuberculosos: africanos na Santa Casa de Misericórdia da Bahia (1867-1872). Almanack, n. 22, p. 207-249, 2019. PIRES T. A Reforma Sanitária e a criação do SUS. In: A residência médica em medicina de família e comunidade: um compromisso com a consolidação do SUS. Dissertação (Mestrado em Saúde e Gestão do trabalho) – Setor de Ciências da Saúde, Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, 2006.