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I , A fdtografia e um aprendizado de ' observagao paciente, de elabora9ao I minuciosa de diferentes estrategias de • aproximagao com o objeto, de 1 desenvolvimento de uma percepgao · seletiva, de uma vigilancia constahte e de prontidao para captar o acontecimento no momenta do acontecimento. A dupla capacidade da camara de subjetivar e 1 objetivar a realidade, a constante consciencia de que se e responsavel por 1 este processo, por uma tecnica de apreensao da realidade, de que se e sujeito deste conhecimento, e um ensinamento epistemol6gico. Ondina Fachel Leal I Este livro pode ser abordado de duas ; formas. A primeira e ler OS capftulos escritos nos quais o autor discute a · problematica e as pwspectivas de uma · Antropologia Visual. ( ... ) Achutti amplia , esta discussao para a fotografia, : analisando a impossibilidade de uma · objetividade fotografica . . A segunda forma de abordar o livro e apreciar o conjunto de lotos que forma a fotoetnografia deste estudo. As belfssimas lotos que comp6em esta parte , sao eloquentes. ( ... ) Particularmente ' interessante e a segao intitulada "lmagens dentro da lmagem" em que Achutti devolve aos fotografados a sua imagem e os fotografa mostrando-as. ( ... ) A camara escura de Achutti acima de tudo ilumina. Ela nos faz pensar. Pensar na nossa sociedade de consumo e em seus desperdfcios; pensar sabre as mulheres (e por conseguinte sabre os homens); pensar no offcio do antrop61ogo; pensar na comunicagao escrita e na comunicagao fotografica. Rubem George 0/iven - t~ PASiA:~ . I / 0 - COPIAS: _ r a ( ! lOt-;..._ R$: FOTOETNOGRAFIA Urn estudo de Antropologia Visual sobre cotidiano, lixo e trabalho Luiz Eduardo Robinson Achutti \ \ ~ 5·~ 4. ~, :~ ~3~~;?~ M~ I\ © do autor 1" edi~iio 1997 Direitos reservados desta edi;iio: Torno Editorial Ltda e Livraria Palmarinca Editores: ]oiio Carneiro e Rui Diniz Gon~alves Projeto Grtifico: Joiio Carneiro Capa: Roberto Silva Revisao: Torno Editorial Diagrama~ao: Torno Editorial Trata.mento das fotografias pam foto!itos: Willian Grillo Impress.io e ac<?bamento: Gralica Editora Pallotti Livraria Palmarinca Ltda. Rua Jeronimo Coelho, 243 Cx. Postal 102 CEP 90010-241 Porto Alegre RS Fone: (051) 22G 7744 Fax: 225 2577 Distribuidora Pa!marinca Rua Jeronimo Coelho, 28 I Fone: (051) 225 597/225 1165 Fax: (051) 225 6031 E-mail: rosa@qbnet.com.br Torno Editorial Llda. Cx. Postal 1029 Agencia Central CEP 90001-970 Porto Alegre RS Fone/Fax: (051) 227 1021 E-mail: joao@portoweb.com.br A 179f Achutti, Luiz Eduardo Robinson Fotoetnografia : urn estudo de antopologia visual sobre cotidiano, lixo e trabalho I Luiz Eduardo Robinson Achu tti -Porto Alegre. Torno Editorial; Palmarinca: 1997. 208p. 1. Antopologia Visual. 2. Imagem (fotografia) na pesquisa untropol6gica. 3. Catadoras de lixo- Vila Dique - Porto Alegre. 4. Fotoetnografia. I Titulo. CDD 572.7 Caialozac;iio na publicac;iio: Bibliotecaria Maria Lizete Gomes Mendes CRB 10/950 Sumario Prefacio .. ... ...... .... ...... ................. ......... .... ... ... .... ................. ... ... ......... ....... 5 Introdw;:iio .................. ......... .. ........ .... .............................. .. ..... .. ............. 11 I Hist6ria: Fotografia e etnografia ...... .. ............... .. ....... .. ......... .. ........ 19 I. Conex6es entre fotografia e etnografia, fotografar Ia, revelar aqui ...... 19 2. Seculo XX: Fotografia e metodo de pesquisa antropol6gica ................... 23 3. Fotojornalismo ............................................................................................ 28 4. Documentary Photography ....................................................................... 30 5. Antropologia visual: Fotoetnografia .... .. .. .... .... .. .. .. ........ ........... ...... .... ....... 36 II 0 Olhar: Diniimica e Diversidade .. : .............................. .. .. .... .... ... .. 41 1. Aprendendo a olhar .. ... ........ ........... .. : ......... ....... ... .......... ...... ...... .. ........... ... 41 2. 0 Olhar eo surgimento da imagem fotografica .... .. ................. ... ....... .... . 45 3. 0 Olhar eo surgimento da imagem virtual ................................... .......... 48 III Fotografia: Media<;:iio, Tecnica e narra<;:ao ...................... .. ........ .... 51 1. 0 presente do futuro .. .. .. .. ..... .. .. .. ........ ........... .. .............. .... .............. ...... .. .. 51 2. Estetica e mensagem ........... .. ......... ............. .. ......... .. ....... ..... ........ ...... ...... ... 59 3. Fotoetnografia: A profundidade de campo no trabalho de campo, e outras quest6es de ordem tecnica, n a perspectiva de uma narrativa etnogrifica ........... .. .......................... ...................... ... ...... .. ........ 63 3.1 A Antropologia ...................................... .. .................... .. ............... .... ..... 64 3.2 A Fotografia .. ........ .. .......................................................... .. ....... .... ........ 6 5 3.3 Texto e Fotografia - texto etnogrifico e fotoetnografia ...... .. ......... .. . 66 3.4 Tecnica e Procedimentos Fotogrificos no campo ....................... ...... 69 3.5 Camaras ... ....... ..... ....... ..... ........ ... ....... .. .... ...... ..... ...... ... .. ....... .... ........ ..... 69 3.6 Objetivas .... .. .. ......... .... ........ ..................... .... .. ........ .......... ... ................... 71 3. 7 Acessorios ......... .. ........ ..... ....... .... ......... .. .......... .... ......... .. ...... .. .. ........ .... . 7 4 3.8 Filmes ..... ..... ... ...................... ...... .. ......... ... .......... .. ......... .. ....................... 75 4. A Fotografia como narrativa etnogrifica ........... .. .............. : ..................... 76 5. Virtualidade e multimidia ......... .. ... .. .. .......... .. .. .. .......... .. ............................ 78 Notas ......... ........... ........ ... ....... ... ........ ... ....... .. ...... ...... ... ........... ................ 83 Referencias Bibliograficas ............... .................................... .................. 91 Dados sabre o autor .... .. ...... ..... ....... .. ........ ... ....... .. .......... ................. .. .. . 95 I 1 Prefacio ANIROPOLOGIA EM CAMARA ESCURA Rubem George Oliven * No final da decada de setenta, quando come<;:ava o processo de abertura democratica, eu lecionava urn semi- nario sabre industria cultural e cultura de massa no curso de Ciencias Sociais da. Universidade Federal do Rio Grande do Sui. Os alunos tinham, em geral, uma grande inquietu- de intelectual e politica, o que tornava as aulas uma ativi- dade desafiante e estimuladora. Foi nessa epoca que co- nheci Luiz Eduardo Robinson Achutti. Ele era estudante de Ciencias Sociais e se matriculara em meu seminario. No final de uma das sessoes veio falar comigo. Contou-me que era fot6grafo e que desejava unir o seu interesse pela foto- grafia com as Ciencias Sociais. Discutiu comigo a mono- grafia que faria como trabalho final do seminario e pediu- me uma bibliografia. Fiquei encantado pela sua determi- na<;:ao e pelo seu entusiasmo e consegui achar alguns livros e artigos sabre fotografia e imagem. Disse-lhe tambem que ele deveria continuar nesta linha de preocupa<;:6es que me pareciam muito promissoras. 0 resultado evidenciou -se na monografia que foi muito criativa e de grande qualidade. * Professor Titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Luiz Eduardo Robinson AclJUtti Passado urn tempo, ele me contou que estava traba- Ihando como free lancer no Coojornal, urn periodico men- sal_ alternativo daquela epoca, publicado por uma coope- rahva de jornalistas gauchos. Quando dei uma entrevista para o jornal, ele foi designado para faz~r uma fotografia minha.Fiquei impressionado como nu~ero de fotos que bateu e comentei o fato com ele. Explicou-me que queria escolher a foto que fosse mais adequada a entrevista e que para isto nao se devia economizar filme. A carreira de Achutti cresceu de modo impressionante e ele se tornou urn dos mais importantes fotografos do Rio Grande do Sui com varia exposic;:oes e premios. Sentindo necessidade de refletir mais sobre seu oficio de fotografo preocupado como social, matriculou-se no mestrado do Programa de Pos-Graduac;:ao em Antropologia Social da UFRGS onde recem tinha sido criado urn Nucleo de Antro- pologia Visual. Neste meio tempo, ele tambem foi aprovado num concurso para professor de Fotografia do Instituto de Artes da UFRGS, onde desenvolve atualmente urn criativo trabalho de ensino e pesquisa. 0 presente livro e fruto de sua dissertac;:ao de mes- trado aprovada em 1996. Ela foi orientada pela Professora On~ina ~achel Leal que foi a primeira mestre em Antropo- logia Soc1al da UFRGS. Tive o prazer de orientar sua disser- ta<;ao de mestrado, aprovada em 1983, que tratou de uma recep<;iio de uma telenovela da Globo e que foi publicada pela Editora Vozes como titulo A Leitura Social da Nove!a das Oito. 0 trabalho tinha urn capitulo inteiro so de foto- grafias de aparelhos televisores em diferentes unidades do- mesticas. A ideia era expor, atraves da imagem, gostos com base numa etnografia da casa e do lugar onde as pessoas assistiam televisao. 0 capitulo propositadamente nao tinha nenhum texto escrito, pois era fiel a ideia de Roland Bar- thes de que "no fundo, a fotografia e subversiva nao quan- 6 Fotoetnografill do assusta, perturba ou ate estigmatiza, mas quando e pen- sativEi'. Desde en tao, os trabalhos na area de Antropologia Visual foram se multiplicando no Programa de Pos-Gradu- ac;:ao em Antropologia Social da UFRGS atraves de ~isserta <;6es, de videos e de exposi<;6es/otograficas. 0 trabalho de Achutti e pioneiro por varia razoes. Ao analisar o cotidiano numa vila popular, o autor decidiu es- tudar esta populac;:ao a partir do lixo. A vila estudada se caracteriza por ter na reciclagem de lixo uma atividade pri- mordial. Achutti ass.inala que ha uma tendencia muito for- te de rejeitar tudo o que esta ligado ao lixo. Mas a perspec- tiva dele e diferente ja que, como assinala no inicio de seu livro, "no lixo nao encontraremos mais o fim da linha ou o fim da cadeia de consumo, encontraremos o fim do des- perdido, as modernas soluc;:oes para a preservac;:ao do meio ambiente, encontraremos uma verdadeira usina de produ- <;iio de materia-prima. Deste ponto de vista, o trabalho das mulheres da Vila Dique pode ser encarado como de funda- mental importancia, situado no meio de urn longo prc:ices- so produtivo moderno". 0 lixo nos diz muitQ sobre uma sociedade. Ele nos conta o que diferentes grupos sociais consomem, mas acima de tudo aquilo que eles jogam fora. Temos aqui urn ciclo em espiral: prodw;;ao -+ consumo -+ descarte-+ coleta-+ reciclagem-+ (re)produc;:ao. A segunda razao do pioneirismo deste livro se deve ao fato de que sao mulheres os principais protagonistas de sua pesquisa. Na Vila Dique sao as mulheres que se ocu- pam do lixo coletado pelos homens. Sao elas que o classifi- cam e separam, e sao tambem elas que o reciclam. Lixo e sujeira e como tale visto como contaminante e amea<;andc a saude. Na maior parte das sociedades, cabe a mulher li- dar com a sujeira e manter as coisas limpas: a limpeza da .. casa, a lavagem das roup as e da lou<;a e a higiene das cri- at;.c;:as. As mulheres estao em geral reciclando. Elas tern urr I 7 •, I Luiz Eduardo Robinson Achutti ciclo biol6gico caracterizado pela ovulac;ao e pela secre<;ao do sangue menstrual, considerado impuro pelos homens na maior parte das sociedades. Ma e atraves de seu ciclo biol6gico que as mulheres reciclam a vida, na medida em que gestam filhos. A terceira razao pela qual este estud e pioneiro deve- se ao fato de que ele se pro poe a ser uma fotoetn 1,g:ra.fia. 0 autor se pro poe a estudar o lixo t.ttilizando o metodo chissi- co da Antropologia que e a etnografia. Mas, em vez de fa- zer uma de.'lcri9ao que utilize a palavra escrita, ele optou pelo uso da imagem fotogrMica. Sao a imagens que nos fazem pensar, nao o texto escrito. Isto faz com que o livro possa ser abordado de duas formas. A primeira e ler o capitulos escritos nos quais o autor discute a problematica e as perspectivas de uma An- tropologia Visual. Nesta parte ha uma discussao a respeito de imagem representar a realidade OLl nao passar de um simulacra dela. Esta discussao, que remonta a Arist6teles, e fundamental para a Anlropologia que se preocupa muito com a reconstruc~:ao da realidade a partir do trabalho etno- grafico. Achutti amplia esta discussao para a fotografia, ana- lisando a impossibilidade de uma objelividade fotografica. A segunda forma de abordar o livro e apreciar o con- jLmto de fotos que forma a fotoemograiia deste estudo. As belissi.mas fotos que compoem esta parte sao eloquentes. Nela vemos mulheres dignas e lindas na sua simplicidade e captamos rico detalhes que se desvendam aos poucos. Par- ticu larmente interessante e a se~ao intitulada "Imag ns d n- !To da Lmagem" em que Achutti devolve aos fotografados a sua imagem e os fotografa mostrando-as. Trata-se metafo- ricamente d presentear espelhos aos nativos. Mas em vez de espelhos de vidro, 0 que temos e llffi espelho fotografico em que os fotografados se reapropriam de sua i·magem. Isto 6 particularmente importante porqLte atualmente ha uma 8 Fotoetnografia discus sao intensa na Antropologia a respeito do retorno que os pesquisados tem de nossas pesquisas. A camara escura de Achutti acima de tudo ilumina. Ela nos faz pensar. Pensar na nossa sociedade de consumo e em seus desperdic~os; pensar sobre as mulheres (e por conseguinte sobre os homens); pensar no oficio do antro- pologo; pensar na comunicac;:iio escrita e na comunicac;:iio fotografica. 9 I I INTRODUC:AO Meu objetivo e contribuir para o desenvolvimento te6rico e pratico da antropologia visual. A antropologia, que se baseia fundamentalmente em uma tecnica des- critivo-interpretativa, faz ainda urn usa restrito de ima- gens e tecnicas visuais, embora esta abordagem sempre tenha feito parte das intenr;oes da antropologia enquan- to disciplina, desde os seus prim6rdios. Para a parte do exercicio visual, fotografei traba- lhadoras de uma vila de favela na regiiio periferica da cidade de Porto Alegre, originalmente area de deposito " do lixo da cidade, que tern seu cotidiano, suas vidas, suas estrategias de sobrevivencia e suas percepc;oes de mun- dq permeadas pelo lixo, restos e detritos da grande cida- d~. A vila fica situada junto ao entreposto de abasteci- mento de frutas e verduras central da cidade (CEASA), c q~e permite que os restos dos produtos hortigranjeirm all vendidos sejam uma das fontes de alimentac;ao desta~ pessoas. As mulheres trabalhadoras organizaram uma co- operativa de catadoras de lixo e em urn galpiio selecio- nam o lixo (que atualmente ja vern de uma coleta seleti- va feita pelo DMLU - Departamento de Limpeza Urbam da Prefeitura Municipal de Porto Alegre). I I luiz Eduardo Robinson Achutti Uma peculiaridade desta populac;:ao e que ela e composta majoritariamente de migrantes·, de origem ru- ral, da regiao das col6nias alemas do Estado, colonos sem- terra, apresentando fortemente esta caracteristica etni- ca e cultural. Apesar da precariedade das condi<;;oes de vida, a cooperativa de catadoras de lixo pode ser tomada como urn caso bern sucedido de mobilizac;:ao e organiza- c;:ao, alem de exemplar no que se refere ao aproveita- mento e transformac;:ao de lixo. A populac;:ao conseguiu tambem urn posto de saude comunitario, uma creche e uma escola primaria, que esta em construc;:ao. Abordar fotoetnograficamente trabalhadoras que vivem do lixo, junto do lixo, num lugar para o qual a sociedade maiorvira as costas, e revelar uma realidade especifica relativa a grupos populares urbanos. Existe a tendencia de rejeitar tudo o que esta relacionado com o lixo; la onde ele esta nao temos interesse de estar. A par- tir de uma perspectiva ecol6gico-preservacionista encon- tram-se as estrategias de reciclagem de material nao bi- odegradavel. Segundo esta perspectiva, no lixo nao en- contraremos mais o fim da linha ou fim da cadeia de consumo, encontrare:rrios o fim do desperdicio, as mo- dernas soluc;oes para a preservac;:ao do meio ambiente ' encontraremos uma verdadeira usina de produc;ao de materia-prima. Deste ponto de vista, o trabalho d~s mu- lheres da Vila Dique pode ser encarado como de funda- mental imporhlncia, situado no meio de urn longo pro- cesso produtivo moderno. Atraves de uma abordagem descritiva, em que a principal forma de narrar eo uso de imagens, atraves de urn exercicio de uma antropo1ogia visual utilizando a tec- nica fotografica - uma fotoetnografia - busco investigar os elementos com os quais esta popuia<;;ao constr6i os 12 Fotoetnografia trac;:os de sua identidade. Que tipo de apropriac;:ao os outros fazem do lixo produzido e rejeitado por nos. Pro- curo visualizar como se da o processo de trabalho de separac;:ao do lixo, a organizac;:ao do espa<;o d~ suas casas na construc;:ao de estrategias de reproduc;:ao social e, en- fim, procuro retratar quem sao ~stas m~lher~s. ' . A partir do uso da fotograf1a, assoc1ada as tecmcas antropo16gicas de pesquisa de campo, e tendo como ob- jeto esta popula<;;ao e sua inserc;:ao come no lixo, busco pensar e desenvolver a propria antropologia visual como uma linguagem e urn olhar, capaz de, no processo de conhecer, nos dar dados. Procuro, teoricamente, traba- lhar a questao da imagem em seu potencial descritivo e suas hist6ricas conexoes com a antropologia. Articulo minha experiencia na area de documen- tac;:ao fotografica e de fotojornalismo com minha forma- <;ao como antrop6logo. Minhas tecnicas de investigac;:ao "em campo combinam a tradi<;;ao antropol6gica de traba- lhq etnografico, com tecnicas de observac;:ao direta, e o emprego da tecnica de fotografia, conformando uma an- tropologia visual. . ' A proposta aqui e a do emprego da antropolog1a vishal enquanto urn recurso narrativo aut6nomo na fun- <;;a6 de convergir significac;:oes e informa<;oes a respeito de uma dada situac;:ao social. Em func;:ao da minha for- ma<;ao e experiencia profissional anterior como fot6grafo, e da possibilidade de potencializa-Ia na sua utiliza<;iio articulada a antropologia, procurei centrar meus esfor- c;:os no que concerne a fotografia. Sem desconsiderar a importancia da~ contribuic;:oes daqueles que se empenha- ram no campo do cinema e do video etnografico, sinto- me no dever de propor a amplia<;iio do campo da. antro- pologia visual viabilizada, nos termos do aproveitamen- 13 I I lujz Eduardo Robjnson Achuttj to do fazer fotognifico, que, apesar de ainda restrito, e talvez uma forma mais acessivel e menos custosa em ter- mos financeiros, mais proxima da reaiidade de urn tra- balho cientifico que se depara com restric,;oes orc,;amen- tarias. 0 foco de minhas observac,;oes sao as trabalhado- ras do galpao de reciclagem do lixo. Suas formas de or- ganizac,;ao, no nivel do trabalho de separac,;ao, aspectos do grupo familiar e respectivas estrategias de sobrevi- vencia. Metodoiogicamente no en tanto, como ja foi referi- do, minha enfase sera no uso da fotografia como uma narrativa imagetica capaz de preservar o dado e conver- gir para o leitor uma informac;ao cultural a respeito do grupo estudado. Proponho-me exatamente pensar e tra- balhar o potencial nanrativo-descritivo da fotografia. Este trabalho de antropologia visual e inspirado na tradic,;ao da "Documentary Photography" americana que teve marcante atuac,;ao na decada de trinta, atraves dos fot6grafosJacob Riis e Lewis Hine primeiramente; e pos- teriormente, atraves do programa fotografico da "Farm Security Administration" do governo dos Estados Unidos (Newhaii, 1983). A inspirac,;ao na fotografia documen- al americana, quero associar o aprendizado e o olhar etnografico, sendo este o ponto fundamental desenvolvi- do neste trabalho. Por tras de urn manuseio ideal da tec- nica fotografica se faz necessaria a vivencia antropo16- gica do trabalho de campo no sentido de buscar inter- pretar as realidades culturais que se nos apresentam. No primeiro capitulo organizo urn apanhado his- t6rico do fazer antropol6gico e do fazer fotografico, que surgem na mesma epoca e vao ter varios momentos de interconexao ao longo do tempo. No segundo capitulo 14 Fotoetnografi"a busco abordar as questoes do olhar, da visualidade em func;ao da diniimica social. Procuro enfatizar o fato de que o olhar esta condicionado a uma determinada epoca com suas possibilidades tecno16gicas e a uma dada cul- tura. Partindo disso, analiso como os modos de olhar ar- ticulam-se com urn social pensado de forma diniimica, e nesse sentido, analiso que mudanc;as ja estao a anunciar implicac,;oes nas novas formas do olhar. No terceiro ca- pitulo, discuto formulac,;oes pertinentes a uma estetica e linguagem fotograficas no sentido de propor uma: forma de narrativa etnografica atraves da fotografia. Neste ponto e importante salientar a caracteristica especial deste livro: urn livro com dupla entrada. Duas abbrdagens antropo16gicas distintas e complementares. D-das formas de texto urn verbal e outro imagetico. Por . ' issb duas capas. Ao virar o livro, o leitor encontrara urn tn~balho eminentemente visual. Depois de contextuali- zat a problematica e o ambiente em jogo, apresento o resultado de urn exercicio utilizando-me da fotografia, no sentido da constituic,;ao de uma narrativa etnografica, a qual busquei atraves do recurso que estou denominando de Fotoetnografia. Este livro oriundo de minha dissertac;ao de mestrado apresentada a l:Jniversidade Federal do Rio Gran~e do ~ul no Programa de P6s-Graduac,;ao em Antropolog1a Soc1al, no dia 30 de Abril de 1996. Quando contei com a orientac,;ao da Prof. Doutora Ondina Fachel Leal. A dissertac,;ao foi aprovada com conceito A por uma banca formada pelos professores, Dra. Cornelia Eckert (Ufrgs), Dr. Etienne Samain (Unicamp) e Dr. Ruben Oliven (Ufrgs). Suas sugestoes foram enriquecedoras. Gostaria de agradecer a CAPES/CNPq o apoio fi- nanceiro, atraves da balsa de dois anos que a mim foi 15 Luiz Eduardo Robinson Achutti concedida. Agradec;o tambem o apoio e acesso ao Labo- rat6rio de Antropologia Social do Programa de P6s-Gra- duac;ao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sui, tanto no sentido de busca de pes- soal tecnico especializado, quanto no de orientac;ao te6- rico-metodol6gica. 0 acompanhamento das discussoes e pesquisas do grupo de Antropologia do Corpo e da Sail- de (Nupacs - PPGAS), coordenado pela professora Ondi- na Fachel Leal, propiciou minha inserc;ao junto a popu- lac;ao estudada, urn conhecimento previo da problema- fica social desta populac;ao eo acesso continuado ao ban- co de dados com informac;oes detalhadas sobre a popu- lac;ao em estudo. Devo relacionar algumas pessoas que, direta: ou in- diretamente, influiram em minha trajet6ria ate aqui: pro- fessor Ruben George Oliven que, com seu carisma e com- petencia, conquistou-me para a antropologia. A ex-cole- ga, orientadora e amiga, Ondina Fachel Leal, que sempre soube contagiar seus amigos com uma energia positiva, solidaria. Foi ela que encorajou-me a iniciar a carreira como fot6grafo. Minha companheira Maria Cristina Be- lardinelli - a Tita - pela cumplicidade e ajuda cotidiana e pela disposiQao de enfrentar a dureza da luta nos bastido- res. Meus pais, Aloyzio e Valderes, minhas irmas, Ana Lu- cia e Lucia Helena pelo entusiasmo e apoio que sinto infi- nitos. Em especial minha mae- sempre atenta na coorde- nac;ao da retaguarda, sem a qual a vida nao seria possivel, e meu pai, que na vanguarda,abre as "janelas" para urn mundo virtual sem as quais a vida nao sera possivel. Meus amigos. Meu avo fot6grafo, Bortolo Achutti, com seu te- lesc6pio najanela do s6tao, invadimos a intimidade da lua. E do seu laborat6rio no fundo de casa, vi como se podia aprisionar a luz na forma da propria lua. 16 Fotoetnografia De forma especial, dedico este livro a meninaJul,ia, minha filha, que nasceujunto com este livro, e que, al.em de me esquentar o colo com seu choro, me faz mu~tas vezes transitar do abstrato ao concreto e repensar a VIda. 17 I HISTORIA: FOTOGRAFIA E ETNOGRAFIA I. Conexoes entre fotografia e etnografia, fotografar Iri} re'velar aqui Querer fijar reflejos fugaces no solo es una imposibilidad, tal como ya han demostrado experiencias muy serias realizadas en Alemania, sino que ese querer linda con el sacrilegio. Dios cre6 al hombre a su imagen y ninguna maquina humana pude fijar la imagen de Dios; deberia traicionar de golpe sus proprios principios eternos para permitir que un frances, en Paris, lanzara a1 mundo invenci6n tan diab61ica. (Texto publicado no ano de 1839 pelojornal alemiio Leipziger Anzeiger. cf Freund 1976:67) Nem sempre as novidades sao recebidas com entusi- asmo e otimismo. Os otimistas sao, via de regra, aqueles que estao diretamente envolvidos com as propostas inova- doras. Isso expl~ca a desmedida reaQao da Igreja Alema, conforme citaQao acima, quando da oficializaQao da inven- Qao da fotografia na Academia de Ciencias de Paris no dia 19 de agosto de 1839. 1 Guardando-se as devidas propor- Q6es, ha ainda no campo da antropologia uma resistencia em aceitar a existencia de uma antropologia visual fazendo lembrar o ceticismo da Igreja Alema que tentara fechar os olhos ante uma evidencia, o surgimento da fotografia. Mo- Luiz Eduardo Robinson Aclzutti I dernamente a aplicac;:ao da fotografia no campo da chama- da antropologia visual parece evidente. A tecnica fotogratica evoluiu bastante de suas ori- gens ate os dias de hoje. A primeira fotografia d~ qual se tern conhecimento demandou oito horas de exposic;:ao ela . ' fm tomada dajanela do quarto de Nicephore Niepce, em Le Gras, no ano de 1826. 2 No inicio do seculo passado, com a intensificac;:ao do capital industrial e a emergencia da burguesia, abriu-se 0 mercado para o retrato, nao mais o grande retrato a oleo que a aristocracia encomendava de urn pintor reconheci- do. A fotografia tornou-se a forma quimica de fixar os re- tratos que ja eram ha mais tempo esboc;:ados atraves da ca- mara escura, atraves do trabalho dos miniaturistas e da in- venc;:ao do recorte de silhuetas e do fisionotrac;:o. 3 No momenta da invenc;:ao da fotografia, comec;:ou uma evoluc;:ao no transcurso da qual a arte do retrato, sob a forma da pintura a oleo, miniatura, gravura, tal como havia-se exer- cido para satisfazer a demanda da burguesia media, foi ven- cida quase que completamente. Esta evoluc;:ao fez-se com uma rapidez tao extraordinaria que os artistas que trabalhavam nestes ultimos generos perderam quase todos, seus meios de subsistencia. Dentre eles recrutaram-se os primeiros que se dedicaram a nova-profissao (Freund, 1946:48). Ou nas palavras de Walter Benjamin: No instante em que Daguerre conseguiu fixar as imagens da ciimara obscura, neste momenta as pintores haviam sido despedidos pelo tecnico. Mas a verdadeira vitima da fotografia nao se tornou a pintura de paisagens, mas os portraits miniaturais, os retratos pintados em miniatura. As coisas evoluiram tao depressa que ja par volta de 1840 a maioria dos inumeros pintores dessas miniaturas tornaram-se fot6grafos profissionais, primeiro so como atividade lateral, mas logo de modo exclusivo (Benjamin 1991:224). zo Fotoetnografia Por volta dos anos 50 do seculo XIX, os primeiros avan- c;:os ~ecno16gicos for am propiciando urn aumento do campo de ~tuac;:ao dos adeptos da fotografia, na maioria oriundos da pintura. Nesta epoca destacaram-se OS fot6grafos Roger Fenton, conhecido por suas fotos que registraram a guerra da Crimeia, Francis Frith que deixou importantes documen- tos visuais dos restos do antigo imperio faraonico no Egito e Gustave Le Gray,, que, alem de membra da Comissao de Mo- numentos Hist6ricos da Franc;:a, ficou famoso por suas fotos de paisagens marinhas. (Blume, 1982:36) . 0 pensamento antropol6gico existe desde que ex1ste o homem com seus juizos e suas investigac;:oes: o homem, de uma maneira ou de outra, sempre pensou sobre si e sa- bre o outro. Definir-se a si sempre implicou uma definic;:ao e classificac;:ao por comparac;:ao, oposic;:ao, ou por diferenc;:a em relac;:ao ao outro. Pode-se relacionar o surgimento da antropologia, enquanto campo de saber institucional~zado, com o surgimento das teorias evolucionistas a respe1to do homem e da cultura. Na mesma epoca do surgimento da fotografia, o pensamento evolucionista e marcante em ter- mos de consolidac;:ao da emergente ciencia antropo16gica. Essa nova forma de pensar, a antropologia, surge no con- texto da ~xpansao colonialista europeia, da necessidade de compreensao de povos diferentes que passam a ser subju- gados ao povo europeu. Surge tambem co~o uma fo~n:a cientifica de justificar e legitimar as conqmstas colomms, em que os diferentes povos do planeta sao pensados como pertencentes a diferentes estagios na linha de evoluc;:ao da especie humana. Na concepc;:ao de uma evoluc;:ao humana de forma-linear, colocava-se como o ponto mais evoluido da escala, a sociedade europeia, a sociedade daquele que pensa a sociedade do outro. 0 evolucionismo caracterizou- se por uma visao etnocentrica do desenvolvimento da hu- manidade pais tinha como parametro a civilizac;:ao euro-' . I 21 Luiz Eduardo Robinson Achutti peia. Os padroes de civilidade eram encontrados no eshigio economico, tipo de religiao, forma de propriedade e orga- niza~ao familiar europeus. Estes parametros constituiam a "forma desenvolvida" de viver. Os pesquisadores de entao tinham seu interesse de estudo voltado para formas de or- ganiza~ao sociais nas quais nao encontravam estes padroes "civilizados", tendo as teorias, muitas vezes, etnocentrica- mente servindo de justificativas de praticas colonialistas. 'W.eunindo e interpretando fatos de povos do mundo. com base em juizos de valo.z:; julga-se poder formular e g;nera- Jizar as leis universals do desenvolvimento da humamda- de)) (Gon<;:alves 1992:40). · . A fotografia nao havia 'sido ainda inventada e ja fa- Zia-se a analogia entre a camara escura e o globo ocular, como sendo este uma especie de pequena camara escura. Com a inven<;:ao, na mente de alguns, permanece a analo- gia olho-camara que serviria de justificativa para o reco- n~ec.iment? ~e caracteristicas de objetividade e transpa- rencia na tecmca fotografica. Esta cren<;:a na fotografia como urn olhar transparente incrementa o inicio da fotografia etnografica, nao s6 na forma da fotografia antropometrica mas tani.bem na fotografia de registro de materiais cultu~ rais. Segundo Wright, "para uma antropologia profunda- mente enraizada nas ideias positivista~ a fotografia ofere- ceu-se como uma tentadora proposic;:iio: uma objetiva vi- sualizac;:iio e coleta de fato~ facilitando uma organizac;:iio e amilise sistematica~ a servic;:o da investigac;:iio cientifica'' (W~ig~t, 1992).4 Wright afirma que, numa perspectiva positlvista, a fotografia serviu para levar os assuntos dos estudos antropo16gicos direto para o trabalho de gabinete transferindo 0 local das analises antropol6gicas desprezand~ a realidade empirica. Ele cita Malinowski como uma exce- <;:ao ocasional na forma de utilizar a fotografia da segunda metade do seculo XIX, ao principia deste seculo. 5 22 Fotoetnografi'a No mesrno sentido, Sarnain constata que a antropolo- gia e a fotografia surgem na mesma .epoca, p~r volta da rnetade do seculo passado. A fotografla, a matr1z das mo- dernas tecnicas' de reprodu<;:ao do real, serviu de instru- mentoaos viajantes empenhados em fazer o inventario das diferen<;:as do outro em rela<;:ao ao europeu. "Vtirias cultu- ras) vtirias maneiras de vive.z:; o problema central da antro- pologia foi saber Jida.z:; saber explicar as dlferenc;as cultu- ral!/~ 6 Curiosarnente, tambem Hercules Florence conside- rado urn dos inventores da fotografia no Brasil, antes mes- mo de sua inven<;:ao estava ernpenhado em inventariar a vida de outros povos. Ele foi convidado a integrar em 1825, como desenhista, a expedi<;:ao cientifica patrocinada pelo Czar Russo Alexandre I e chefiada pelo naturista Georg Heinrich Von Lansdorff, que partiu por via fluvial de Sao Paulo corn destino ao Mato Grosso e Rio Amazonas. 7 2. Seculo XX: Fotografia e metodo de pesquisa antropo16gica No principia do seculo XX, da-se o es~otamento ~~s explica96es evolucionistas e come<;:am a surg1r novos teon- cos com novos prop6sitos para explicar as diferen9as en~re as varias culturas humanas. As rupturas como evoluciO- nismo se dao principalmente nos Estados Unidos, Inglater- ra e Fran9a. 0 trabalho da antropologia deixa de ser traba- lho de gabinete. Passam a ter importancia os elementos que serao buscados na existencia con creta dos povos estuda- dos. Agora a pretensao nao est~ mais na elabora9ao de am- plos e genericos modelos explicativos generalizave.is ~ to~z humanidade, e sim o contrario, se quer buscar ex1stencm~ particulares e suas 16gicas de funcionarnento. . . Neste inicio de seculo, todos OS grandes Cientlstas SO· 23 Luiz Eduardo Robinson Achutti ciais estao empenhados na busca de alternativas te6ricas que supram as faltas deixadas pelas ideias evolucionistas. Influenciando-se mutuamente, vao compondo as bases, as posic;:oes te6ricas que originariio a especificidade das cor- rentes do pensamento antropol6gico na Inglaterra, Estados Unidos e Franc;:a. Malinowski, com sua obra Os Argonautas do Pacifico Oc1dental, inaugura urn trabalho profundamen- te baseado no levantamento de dados etnogrMicos atraves de extenso trabalho de campo. 0 antrop61ogo passa a ne- cessitar "irate la". Ja em 1914, Malinowski embarca para urn trabalho de campo de quatro anos nas ilhas Trobriand levando consigo pesado equipamento fotogrMico. Samain ( 199 5) revela em sua analise que a fotografia teria sempre sido usada com importancia no corpo dos trabalhos escri- tos por Malinowski e cada vez em maior numero. Paralelamente, tambem no principio deste seculo, surge, nos Estados Unidos, a chamada fotografia de docu- mentac;:ao, tecnica de registrar realidades, a busca de evi- dencias para documentar a realidade social. Inumeros fo- t6grafos dedicaram-se a nova tarefa, urn dos mais conhe- cidos foi Lewis Hine que se dedicou ao registro das condi- c;:oes de vida dos imigrantes e do trabalhador infantil nos EUA. 8 Educado como soci6logo nas universidades de Chicago, Columbia e Nova Iorque, comprovou que a camera era urn poderoso instrumento para a investigac;iio. (. .. ) A frase 'hist6ria em fotos' foi aplicada a sua obra, que teve sempre a mesma importancia que a obra realizada pelos escritores e niio foi apenas 'ilustrac;oes' delas. Suas revelac;oes sobre a explorac;iio infantil conduziram depois a aplicac;iio de leis sobre 0 trabalho de menores (Newhal, I 983:235). 0 proprio governo norte-americano ao criar a FSA, Farm Security Administratrion, se utilizou do trabalho de documentac;:iio fotografica para promover urn levantamento 24 Fotoetnografia das condic;:oes de vida da populac;:iio rural dos Estados Uni- dos na epoca da depressiio de 1930. Da equipe de fot6gra- fos da FSA destacaram-se Walker Evans e Dorothea Lange, entre outros. No anode 1939, passados cern anos do aparecimen- to da fotografia, os antrop6logos Margaret Meade Gregory Bateson retornam de Bali e Nova Guine, com vasto materi- al fotografico e filmografico, trabalho que viria a ser refe- rencia importante ate OS dias de hoje para aqueles que tra- tam da chamada antropologia visual. Eles realizaram urn trabalho de folego que durou dois anos proporcionando 25 mil fotografias e 6 mil metros de filme 16mm, alem de recolher depoimentos e artefatos no intuito de "retratar", registrar, a cultura do grupo estudado. 0 merito do traba- lho de Mead e Bateson niio reside nas conclus6es a que chegaram na epoca, um trabalho que gerou certa polemi- ca, critic ado pelo fa to de que teriam produzido urn traba- lho carregado de subjetividade. Conforme] acknis ( 198 7), foi urn trabalho ousado para a epoca. Niio foram os primei- ros a levar cameras para campo, mas talvez tenham sido os primeiros a utilizar os recursos visuais como principal fer- ramenta no trabalho de levantamento de dados etnografi- cos. Se foi urn trabalho carregado de subjetividade e se isto chega a ser urn problema, ii,verdade e que tecnicamen- te foi muito bern feito. 0 material que recolheram e urn material que pode servir e de fato serve como dado para analises de outros pesquisadores. Meade Bateson nos dei- xaram a ideia de que os materiais visuais, fotografias por exemplo, antes de ser.em c6pias da realidade, siio "textos", afirmac;:oes e interpretac;:oes sobre oreal. Anos mais tarde, Mead escreveu que a antropologia teria a responsabilidade de registrar, deixar gravados cos- tumes que estavam em extinc;:iio. A autora defendia a an- 25 \\ Luiz Eduardo Robinson Achutti tropologia visual e comentava o fato de a antropologia es- tar constituida como uma ciencia por demais dependente da palavra. (cf. Hockings, 1975) Contemporaneamente os antropologos e demais au- tares que tomam a etnografia como objeto de seus estudos, ao produzirem seus trabalhos, produzem tambem novos questionamentos a respeito do fazer etnografico. Vivemos urn tempo de intensa circulac;:ao de ideias devido ao alto grau de avanc;:os tecnologicos, sobretudo no campo das co- municac;:oes. As tecnicas de obtenc;:ao e exposic;:ao dos dados colhidos no "campo", campo esse que pode estar muito proximo do espac;:o ocupado pelo pesquisador, devem ser repensadas sob pena de os antrop6logos perderem a audi- c;:ao e a voz ou, como nos diz Geertz, perderem a condic;:ao de fazer o que fizeram as gerac;:oes anteriores de antrop6- logos: "aumentar o sentimento de como a vida pode decor- rer" (Geertz 1989:61). 0 autor quer repensar o papel dos que "olham" e daqueles que sao objetos do "olhar". Ele esta preocupado como papel que o antropologo devera cumprir do ponto de vista etico, pratico e cientifico. Geertz, atento a urn mun- do que se globaliza, pensa que, antes de ser o formulador de grandes teorias mundiais, o antropologo deve contri- buir para proporcionar o dialogo entre culturas. 9 Segun- do ele, o que se faz necessaria e ampfiar a possib11Jdade de um dialogo intefigente entre pessoas que dlferem conside- ravelmente entre si em interesse~ perspectivas e podel) e no en tanto estiio Jimitadas em um mundo onde/ envolvidas em interminavel conexii~ fica cada vez mais dzficil sair uma do caminho da outra7 (Geertz7 1989:63). Mais precisamente, o que se esta a questionar e a for- ma de fazer o trabalho de campo e tambem a forma de como e para quem apresenta-lo. Neste mesmo sentido, Canclini ( 1993) investiga os ele- ZG Fotoetnografia mentos que levaram a colocar em suspeic;:Ei,o as etnografias ditas realistas. Para o autor, a crise come9ou a partir da publicac;:ao do Dicirio intima de Malinowski que o revela como urn "palaeo vagabundo (expressao que Canclini toma emprestada de Geertz), que aspira ser nomeado Sir na In- glaterra ... " (1993:26). Partindo das discrepancias existen- tes entre a obra de Malinowski eo diario intima do autor, Canclini passa a perguntar ate que ponto o trabalho de cam- po nao existiria apenas para justificar urn discurso antro- pologico subjetivo. Ele assinala que via de regra uma vi- vencia ca6tica de trabalho de campo e apresentada poste- riormente como uma hist6ria coerente, bern construida que poderia se aproximar de urn texto ficcional.E que "em Iu- gar do autor mono16gico, autoritario, deve - se buscar a polifonia, a autoria dispersEi' (Canclini 1993:29). Canclini, usando como exemplo o trabalho de Barley, propoe que se refac;:am as liga96es entre o trabalho de campo e o discurso antropologico a fim de se chegar a construc;:ao de urn texto que revele a vivemcia real da obtenc;:ao dos da- dos. Ele comenta o livro El Antrop6logo Inocente sobre o pais Dow a yo na Africa, que Barley ( 19 8 9) dedicou ao seu jeep: 0 livro oferece uma minuciosa informac;;ao sobre as praticas e cerirnonias, a linguagem e as comidas, a constrw,:ao das choc;;as, os nexos entre a-chuva, a circuncisao e a fertilidade vegetal no grupo escolhido. Porem todo o tempo Barley incorpora a exposic;;ao os processos de coleta, ruptura com o sentido comum, construc;;ao do objeto e prova, incluindo as incertezas(. .. ) (Canclini 1993:30). Canclini afirma nao descartar o trabalho de campo: mas que e preciso ter em mente que os dados nao estao nc campo esperando pelo etnografo, '~iio resultado de pro- cessos social~ institucionais e discursivos de construr;iio (. .. ) ': (Canclini 1993:32). 27 ·, I Luiz Eduardo Robinson Achutti Inspirado em Geertz poder-se-ia dizer que, see ver- dade que 0 trabalho do antrop6logo e urn trabalho de in- t rpretagao de culturas a1heias, nada melhot~ para realizar este ~rabalho, do qu.e lan<;:ar mao de estrategias as mais va- riadas e criativas possiveis, no sentido de se poder chegru:; por exemplo a uma hiera:rquia dos tipos de "piscadela " de determinada sociedade. Quanto mais ricas forem as es- trategias de abordagem, mais interessante sera a forma de apresentar as interpreta<;oes. Se vivemos em urn mundo visual, no qual somos bom- bardeados por icones novos a cada dia, seas diferentes cul- turas impoem umas as outras verdadeiras "guerras" visu- ais, e se as gu err as verdadeiras pass am a ter o visual de meras brincadeiras - como "olhar" somente para as pala- vras? A antropologia tern que instaurar o treino da comu- nica<;ao visual; do contrario, esse mundo da visualidade terminara por inva,dir e ofuscar o mundo dos que estive- rem apenas entre linhas e letras. 3. Fotojornalismo 0 fotojornalismo surge imediatamente ap6s a inven- <;ao da fotografia, tendo sofrido limita<;oes iniciais devido as dificuldades de impressao das imagens. Foi na Alema- nha que o fotojornalismo tomou urn grande impulso atra- ves das revistas ilustradas. Com a ascensao de Hitler ao poder em I 933, o fotojornalismo alemao sofre uma violenta que- da como fechamento de inumeros 6rgaos de imprensa eo exilio para OS Estados Unidos de varios profissionais. 1° Foi entao nos EUA que criou-se uma das mais importantes re- vistas ilustradas, a Life, que fez escola, imp6s urn estilo e formou uma equipe de renomados fotojornalistas. Dentre os principais names da Life, pode-se destacar Eugene Smi- th e Alfred Eisenstaedt. 28 Fotoetnografia Apesar de grande popularidade, a atividade fotojor- nalistica tern pelo menos duas grande limita<;6es que a im- pedem de proporcionar ao profissional uma vivencia mais efetiva e urn mergulho mais profunda para alem da reali- dade aparente. Refiro-me as limita<;oes de tempo e limita- <;6es de ordem ideol6gicas. Os fotojornalistas trabalham com tempo muito escasso, suas fotos sao de consume diario. A grande maioria das fotografias nao resiste na memoria das pessoas por mais de vinte e quatro horas, sao registros via de regra, descarhiveis. 0 fotojornalista que pretender uma autonomia total, uma abordagem pessoal, dificilmente en- contrara onde publicar suas fotos. Ele esbarrara sempre nas inten<;oes e interesses dos donos dos jornais e revistas, ou dos seus procuradores, os edi'tpres. E recorrente no meio fotojornalistico encontrar fot6grafos que descrevem e la- mentam as fotografias que nunca irao publicar. Ja a fotografia documental e feita com mais profundi- dade que o fotojornalismo, feita com mais tempo. Ha projetos de documenta<;ao aos quais fot6grafos dedicam toda sua vida. 0 ~utor tern tempo de se aprofundar no estudo daquilo que pretende documentar. Muitas vezes o fot6grafo trabalha com a ideia de estar realizando urn documento que ajudara a con- tar a hist6ria de seu tempo. A fotografia documental tern sido divulgada na forma de livro e de exposi<;oes itinerantes. Na decada de trinta, ao mesmo tempo que os realiza- dores cinematograficos come<;avam a usar o termo docu- mental, alguns fot6grafos passaram a se auto-intitular da mesma forma. Eram pessoas que usavam este t~rmo no sen- tido de se diferenciarem, descomprometendo-se com os conteudos puramente esteticos. Ou ainda, para se diferen- ciarem de uma fotografia classificada como artistica ou de- sinteressada das questoes sociais, ao mesmo tempo que se desvinculavam tambem do fotojornalismo diario das em- presas de comunica<;ao. 29 Luiz Eduardo Robinson Achutti 4. Documentary Photography A documentac;:ao e um enfoque e nao uma tecnica; e uma afirmac;:iio e niio uma negac;:iio ... A atitude de documentar niio e o rechac;:o de elementos plasticos, que devem seguir sendo criterios essenciais em toda a obra. Somente da-se a esses elementos sen limite e sua direc;:ao. Assim, a composic;:ao se transforma numa enfase, e a precisao da linha, o foco, o filtro, a atmosfera - todos esses componentes que estao incluidos na sonhada penumbra da 'qualidade'-, sao postos a servic;:o de urn fim: falar, com tanta eloquencia quanta for possivel, daquilo que deve ser dito na linguagem das imagens. 1 1 (Stryker, in Newhal 1983:245) 0 surgimento da fotografia veio determinar uma afor- tunada possibilidade de transito e troca de imagens entre os homens. Todos a receberam como uma portadora natu- ral da realidade: 0 "lapis da natureza" para Talbot ou o "espelho com memoria" segundo Daguerre. A fotografia veio substituir o trabalho de documentac;:ao da paisagem e dos tipos humanos. Trabalho antes realizado pelos artistas que eram acompanhantes dos botanicos, biologos, fisicos, antropologos e religiosos. Eles compunham ~s expedic;:6es cientificas, tendo por oficio fazer o registro visual de tipos humanos, faunae flora, acidentes geograficos, fen6menos fisicos, etc. 0 empenho dos diferentes fotografos, assim como a importancia que OS governos atribuiram a fotografia e a pratica de "documentac;:ao"' determinaram 0 carater e a profundidade das documentac;:6es realizadas da metade do seculo passado ate nossos dias. Todo o amplo espectro fotografico pode ser entendi- do como urn trabalho de documentac;:ao da realidade nos seus mais diversos aspectos. No entanto, a Documentary Photographye o termo consagrado a urn tipo especifico de documentac;:ao amadurecido em uma determinada epoca e 30 Fotoetnografia num Iugar especifico. (Vocumentary Photography77 refe- re-se a uma fotografia que busca a documentac;:ao social, tern como seu universo de investigac;:ao os homens, suas es- pecificidades culturais, suas condic;:6es de moradia e de tra- balho suas pniticas religiosas e suas formas de lazer, numa deter:ninada epoca. Ou ainda, as perdas de trac;:os de iden- tidade ocorridos atraves do tempo como eo caso das popu- lac;:6es indigenas. Foi nos Estados Unidos que esta fotografia de cunho eminentemente social teve largo campo, assumin- do atraves de suas imagens realistas, urn cunho de dentin- cia politica. Deve-se ressaltar que os Estados Unidos se cons- tituiram num fertil terreno para o desenvolvimento da fo- tografia em geral, nao soda fotografia de documentac;:iio. Logo que o daguerre6tipo foi divulgado surgiu nos EUA cam- po para seu amplo de~envolvimento. Tambem e importan- te 0 registro de que prosperaram as iniciativas quanto a consolidac;:ao de uma fotografi'a americana de inspirac;ao pict6rica (fotografos que bus car am imitar a pintura), em decorrencia dos esforc;:os de Alfred Stieglitz via revista Ca- mera Work e Galeria 291. 12 Prosperou ainda a chamada (f;;traight photograph/',uma fotografia objetiva, "realis- ta", que se imp6s como uma estetica propria, independen- te das tradic;:6es da pintura a<;:ademica, que consagrou mun- dialmente alguns "amigos da natureza", mestres na docu- mentac;:iio das paisagens naturais, tais como Edward Wes- ton e Ansel Adams. Na origem da fotografia de documentac;:ao social, ter- mo que passara a ser usado por volta dos anos trinta, en- contra-sea figura de Jacob August Riis, urn dinamarques nascido no anode 1849 que emigrou para os Estados Uni- dos aos z 1 anos de idade. Depois de passar privac;:ao vagan- do pelas ruas de Nova Iorque, consegue emprego como jor- nalista. E, em pouco tempo, em 1877, devido a vivencia anterior, projeta -se como reporter policial do New York Tri- 31 \ ' Luiz Eduardo Robinson Aclwtti bune. Ele passa a se dedicar a denuncia das condi<;:6es de vida dos imigrantes favelados nova-iorquinos, com especi- al acento as quest6es da moradia misenivel. Riis consagrou- se como escritor que lutava por reformas sociais, ah~m de ficar igualmente conhecido como importante fot6grafo. Por volta de 1888, a pnitica fotognifica come<;:a a fi- car facilitada com a diminui<;:ao do tamanho das cameras e a inven<;:ao do filme em rolo Kodak pelo empresario George Eastman. Nesta epoca, Riis lan<;:a-se como urn detetive a do- cumentar visualmente as popula<;:6es que viviam em con- di<;:oes desumanas que estavam a exigir reformas sociais. Suas fotografias de denuncia fizeram-no famoso. No ano de 1890,Jacob Riis lan<;:a urn livro intitulado How the Other Half Live~ o qual alcan<;:a grande impacto.(Riis 1971) Roosevelt, primeiro como governador de Nova lor- que e depois como presidente dos Estados Unidos, empre- endeu reformas sociais a partir do impacto do trabalho re- alizado por Riis. Ele chegou a ser convidado a participar do governo americana. Recusou-se, alegando ser urn homem muito ocupado para entrar na politica. Foi tamanha a in- fluencia do trabalho de Riis que chega a ser considerado o precursor da utiliza<;:ao da linguagem fotografica na abor- dagem dos aspectos sociais da vida do "outro". Ele buscou, na forma de denuncia social, provocar estranhamento da middle-america, das elites e das institui<;:oes ao mostrar em texto e foto "How The Other Half Lives'. 13 Influenciado pela importancia do trabalho de Jacob Riis, passa a dedicar-se a fotografia aquele que viria a ser urn dos mais destacados fot6grafos documentaristas soci- ais, Lewis Hine. Soci6logo formado pela Universidade de Chicago, vai para Nova Iorque em 1901 lecionar na School of the Ethical Cultural Society Hine, que tinha sua atenc;ao volt ada para as causas sociais, abandona a tarefa de ensi- nar para dedicar-se em tempo integral a fotografia. Enquan- 32 Fotoetnogrnfia to seus contemporaneos, membros da "Photo-Secession" 1\ lutam para abrir espac;o no meio artistico, Lewis Hine utili- za-se do que chamava fotografia social com o prop6sito de documentar as condi<;:oes de vid~ das classes trabalhadoras americanas. Hine trabalhava na dire<;:ao de inventariar os problemas sociais dos trabalhadores da sociedade de seu pais. Suas primeiras fotos datam do ano de 1903, quando ele fotografa imigrantes da Ellis Island. Fotografou tambem as populac;oes faveladas de Washington para o semanario reformista The Survey. Po rem seu trabalho mais importan- te e mais conhecido foi a documentac;ao que realizou sobre os trabalhadores infantis nas diversas industrias por todo o pais. Em 1906, e convidado a participar da equipe de fot6- grafos da National Child Labor Committee. Empenhou-se no registro das evidencias do descumprimento das leis tra- balhistas nos Estados Unidos, principalmente aquelas que diziam respeito ao trabalho infantil. Em 1920, Hine buscou retratar o lado positivo do trabalho adulto destacando a habilidade e a coragem do trabz~Jhador americana de ent.iio. Em 1932, lan<;:a urn livro chamado Men at work - Photographic Studies of Modern Men and Machines, 15 onde da divulga<;:ao a documenta<;:ao que fez da constru<;:ao do mais alto edificio do mundo na epoca, o Empire State Building. Seu trabalho era de qualidade superior ao trabalho realizado por Riis. Hine nao se limitava a fazer denuncias, suas fotografias revelam urn evoluido dominio da tecnica fotografica posta a servi<;:o de uma objetividade absoluta no intento de registrar minuciosamente o ambiente e as con- di<;:6es de trabalho de seus fotografados. Ele utilizava a fo- tografia como parte de urn processo educacional e de urn ·projeto socio16gico maior. Fazia urn trabalho de pesquisa e obs~rva<;:ao participante; muitas vezes, suas fotografias ser- viafn de pretexto para entrevistar, registrar depoimentos 33 l r \ · ._ ( '" '' \ \ ( ~I Luiz Eduardo Robinson Aclwtti dos seus fotografados. Encarava com importancia esses de- poimentos individuais que ia recolhendo em meio ao fazer fotogritfico. Seu metoda de trabalho acabou por influenci- ar o estilo de urn dos maiores esforQos de documentaQao socialja realizados, o trabalho fotogritfico empreendido pela FSA, Farm Security Administration do Departamento de Agricultura do governo dos Estados Unidos. Modernamente Hine ocupa urn Iugar importante na historia da fotografi a.' Suas imagens do mundo dos trabalhadores, que trazem o passado d.e uma maneira espantosa, sao bern sucedidas na conjuga~;ao harmoniosa entre ~ ten~enci~ estetica e o objetivo ·social. Elas demonstram que 1sso e poss1vel quando a emo~iio, a percep~iio e a opiniiio, transformam- se em uma express iio plastica persuasiva (Rosenblum 1992: lntrodu~;ao). Em fun<;ao da grande depressao, o presidente Frank- lin D. Roosevelt incorporou, no ano de 19 3 5, a Resettle- ment Administration como parte de sua politica de New Dea~ que era urn projeto reformista que visava minorar os problemas das populaQ6es que viviam no meio rural do Estados Unidos, atraves de emprestimos subsidiados a pe- quenos proprietarios, da organiza<;ao de aldeias rurais e do auxilio aos trabalhadores imigrantes. Em 1937, a RA passa para o Departamento de Agricultura transformando-se na FSA- "Farm Security Administration". 0 sub-secretario de agricultura do governo america- no, Rexford Tugwell, decidiu fazer uma pesquisa ilustrada sobre as areas rurais do pais e para isso convidou Roy Stryker para dirigir o projeto. Inicialmente Stryker formou urn gru- po de cinco fotografos, tVthur Rothstein- quimico gradua- do em Columbia e iniciante na fotografia cientifica, Carl My- dans - reportcr-fotogritfico que ja havia trabalhado para a RA; Walker Evans - que viria ser urn dos maiores artistas da hist6ria da fotografia, Ben Shan - que era pin tore ilustrador ' 34 Fotoetno/p:aiia e Dorothea Lange - uma documentarista californiana. Ao longo dos anos, outros fot6grafos viriamjuntar-se ao nucleo inicial dos documentaristas da FSA, entre elesJohn Collier Jr, atualmente conhecido como urn dos principais representan- tes da antropologia visual americana (Jeffrey: 1989). No to- tal participaram onze fotografos que, ao longo de sete anos, produziram atraves de 270 mil fotog:rafias urn documento "em plano geral do meio rural americana feito d~ilOWL abordage:ns e estilos individuais. No an"'Oaer942, os recur- sosaai'SA foram incorporados ao Office of War Informati- on e o acervo fotogritfico doado a Biblioteca do Congresso em Washington. Depois da Segunda Guerra, a "Documen- tary Photography" perde fon;:a enquanto movimento, mas seus principios passam a influenciar o fotojornalismo (Newhall: 1983) e certamente a pratica da antropologia vi- sual nos Estados Unidos ate os dias de hoje. Uma recente iniciativa de fomento da fotografia de documentaQao foi a criaQao da The Mother jones Interna- tional Fund For Documentary Photography, uma funda<;ao nao governamental criada tambem nos Estados Unidos, no ano de 1991. Esta funda<;ao foi criada com o objetivo de financiar projetos de documenta<;ao fotogritfica, atraves da colaboraQao financeirade fotografos e institui<;6es. Cria- ram urn fundo em dolar que e dividido como premia<;ao entre os cinco melhores projetos fotograficos do ano em ambito mundial. Urn dos organizadores e mantenedores da Mother jo- ne,s e o fotografo Sebastiao Salgado, brasileiro, ha varios anbs radicado em Paris, socio da Agencia Magnum. 16 Sal- gado e hoje uma das maiores unanimidades mundiais na fotbgrafia de documentaQao. Ha tres anos lanQou o livro, Workers - an archaeology of the industrial age~ 17 que e rdultado da documenta<;ao que fez nos ultimos anos, uma especie de "testamento da habilidade humana de sobrevi- 35 \ ' Lujz Eduardo Robmson AchuttJ" ver 1 ' a condi<;:oes desumanas de trabalho. 18 Como ele mes- mo diz, no folheto de sua exposi<;:ao no Royal Festival Hall Ga!Jeries em Londresem dezembro de 1994: 0 mundo esta mudando em todo o lugar, entrando na nova revolw;ao pas-industrial. A classe trabalhadora tradicional foi tao importante na minha forma<;:iio e de minha gera<;: ii.o que este hvro e exposi<;:ao sao uma homenagem a eles, bern como urn retrato do trabalho que realizam - urn meio mecanico de trabalho que esta rapidamente sendo superado. Eu constantemente estou tentando provocar o debate, a discussii.o, sabre as classes trabalhadoras, e especialmente sabre esses trabalhadores dos paises do hemisferio sul. 19 Sessenta e tres anos separam aquelas que talvez se- jam as principais obras de fotografia de documenta<;:ao, obras que tomaram o formato de livros que de certa forma abrem e fecham o seculo XX no que concerne a fotografia sabre trabalho e classes trabalhadoras. Urn deles - Men at work - feito por urn soci6logo, Hine, preocupado com os aspectos positivos de um capitalismo industrial crescente· ' outro- Workers, de Sebastiao Salgado, urn economista que se coloca como urn arque61ogo preocupado como registro dos tipos de trabalho em extin<;:ao nesta virada de milenio. Salgado foi buscar o trabalhador que ficou "fossilizado" sem atingir sequer o padrao dos trabalhadores registrados vi- sualmente por Hine. 5. Antropologia visual: Fotoetnografia Nii.o existem fotografias qw.~ niio sejam portadoras de urn conteudo humano e consequentemente, que nii.o sejam antropol6gicas a sua maneira. Toda a fotografia e urn olhar sabre o mundo, levado pela intencionalidade de uma pessoa, que destma sua mensagem visivel a urn outro olhar, procurando dar significa<;:iio a este mundo (Samain, I 993:7) . 36 Fotoetnografla Uma sintese possivel do que vern sendo tratado ate aqui, isto e, a tecnica fotografica e o seu potencial de regis- fro socio-cultural, e a antropologia visual. Urn born traba- lho de documenta<;:ao fotografica contem em si caracteris- ticas do born fotojornalismo, no que tange a agilidade e do- minio da tecnica visando a comunica<;:ao visual. Urn traba- lho de documenta<;:ao fotografica pressup6e o conhecimento do universo a ser investigado e demanda o respeito pelas determinantes culturais do "outro" Para viabilizar urn tra- balho de antropologia visual com a utiliza<;:ao da fotogra- fia, e necessaria que o antrop61ogo domine a espeeificida- de da linguagem fotografica e que o fot6grafo tenha o subs- trata do olhar do antrop6logo, com suas interroga<;:6es e formas especificas de olhar o outro. 20 Como possibilidade de crescimento intelectual daque- le que venha a realizar a documenta<;:ao fotografica de rea- lidades s6cio-culturais, estao os pressupostos te6ricos e as maneiras de olhar consagrados pela antropologia. A possi- bilidade de se fazer a sintese da tradi<;:iio e empenho carac- teristicos da Documentary Photography, como approach .. da antropologia, nos leva ao que verdadeiramente consti- tui, a chamada antropologia visuai.Z 1 No sentido proposto por Cardoso ( 1988), o olhar antropol6gico e como o olhar de [urn viajante: 0 olhar que niio descansa sobre a paisagem continua de urn espa<;:o inteiramente articulado, mas se enreda nos intersticios de extensoes descontinuas, desconcertadas pelo estranhamento (Cardoso 1988:349). Samain, ao fazer urn balan<;:o das possibilidades para que a "antropologia consiga tornar-se visual" (a luz do que vern discutindo com alguns antrop6logos do Departamen- to de Multimei9s da Universidade Estadual de Campinas- Unicamp), afirma que depois de se responder o que se pro- 37 Luiz Eduardo Robinson Achutti l cura de especifico ou singular no trabalho com as imagens, deve-se saber aliar duas qualidades; ('a quaildade signica) estetica e poetica da imagem fotognifi'cd' com a qualidade "conteudistica))especifica do trabalho antropol6gico. Dois niveis de abordagem da realidade que venham a contribuir com suas especialidades como uma forma de melhor saber ver e saber dizer para melhor "fazer pensar atraves de ima- gens'. A conjugac;ao de abordagens diferentes por que "te- mos que reconhecer que nunca diremos com imagens o que procuramos mostrfll; e 1lustrar atraves de palavras)~ (Samain, 1993:08). Tanto o trabalho de fazer etnografia, quanta ode fa- zer documentac;ao, nos termos aqui propostos, sao traba- lhos que exigem empenho, metodo e criatividade a fim de registrar, retratar, relatar a cultura do "outro" para o gru- po onde nos inserimos. Encontraremos a sintese na forma da antropologia visual, quando, como diria Loyola (1987:53), a antropologia informaro olhardofot6grafo e tl fotografia. iluminar o olhar do antrop6Jogo. As tecnicas visuais aplicadas ao trabalho antropol6- gico e, aqui mais especificamente a fotografia, tiveram des- de o inicio aplicabilidade no sentido de auxiliar na coleta dos dados, facilitar a entrada no campo, promover. o de- sencadeamento de dialogos, e ilustrar urn texto dissertati- vo.22 Proponho que se busque a importancia da lingua- gem fotografica no espectro do trabalho antropol6gico, no que essa linguagem tern a somar, a narrar, de uma forma especial, urn dado especial: a cultura. A construc;ao de nar- rativas atraves da imagem fotografica vern, ao ser articula- da com o texto verbal e a legitimidade que este alcanc;ou, contribuir no sentido de enriquecer e agregar, alem de ou- tras formas narrativas como a literatura ou a poesia, com- plexidade aos esforc;os de interpretac,;:ao de universos soci- 38 Fotoetnografia ais cada vez mais densos e complexos, onde imagens por sua vez tornam-se cada vez mais urn elemento da propria sociabilidade. Parece significativa a ideia dos colegas do Nucleo de Antropologia Visual da UFRGS, quando afirmam que a an- tropologia visual nao se trata de uma disciplina indepen- dente, mas "sim da mesma e velha antropologia de sempre, porem apresentada sobre esse outro continente que e a co- municac;ao audiovisual. Nao e uma Antropologia da Ima- gem, mas uma antropologia em imagens" (Rodolpho et. al., 1995:169). Uma antropolgia em imagens podera ser feita mediante o dominio das tecnicas de construc,;:ao de urn vi- de~ etnografico, de urn filme etnografico ou de urn traba- lho fotoetnografico. Futuramente estaremos fazendo a "ve- lha" e tradicional antropologia tambem atraves de uma lin- "guagem multimidia. , Meu empenho converge para a constrw;ao disto que estbu propondo nom ear de fotoetnografia, a partir do tra- ba}ho com a imagem fixa, a imagem fotografica. Nao abor- do !aqui as outras duas possibilidades importantes de tra- ba,ho com imagens em movimento como eo caso do cine- ma e do video. 39 II 0 OLHAR: DINAMICA E DIVERSIDADE 1. Aprendendo a olhar Diego niio conhecia o mar. 0 pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sui. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcan~aram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na £rente de seus olhos. E foi tanta a imensidiio do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu £alar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: -Me ajuda a olhar. E. Galeano (Livro dos Abra~os,1991.) Seres ocidentais ditos modernos, a maioria de n6s te- mos como a primeira imagem de nossas vidas urn quarto de hospital de cabeQa para baixo, povoado por pessoas com olhares complacentes, todos tambem de cabe9a para bai- xo.z3 ~ Depois que desistem de nos segurar pelas pernas, co- meQamos uma ardua tarefa de adaptaQiio. Nosso corpo len- tamente tern que aprender uma serie de atividades, as mais elementares, para as quais nao nascemos preparados. Ao contrario dos animais, contamos muito pouco com meca- ' ' Luiz Eduardo Robinson Achutti nismos instintivos para sobrevivermos. Nossa unica forma de sobrevivencia viabiliza-se mediante o convivio social atraves do qual, aprendendo a cultura de nosso grupo, aprendemos a pensar, a usar nosso corpo, a escutar, a sen- tir cheiros, a tatear, a olhar e classificar e identificar estas experiencias a partir de urn repert6rio compartilhado com nosso grupo. Enfim, aprendemos a simbolizar e decodifi- car simbolos estabelecidos. E essa capacidade de simboli- zac;ao e de comunicac;ao de significados que opera a dife- renciac;ao homem-natureza: 0 homem s6 e homem na medida em que esta entre outros homens e revestido dos simbolos representativos de sua razao de ser. Nus e irroveis, tanto o grande sacerdote como o vazabunclo nii.o passam de simples cadaveres de mamiferos superiores num tempo e num espar;:o destituido de significar;:iio, pois deixaram de ser o suporte de urn sistema simbolicamente humano. (Leroi-Gourhan: 1983) Interessa-me discutir aqui algumas assertivas a res- peito da constrw;:iio da nossa capacidade de olhar que, por sua vez, esta diretamente relacionada com os atos de sim- bolizac;iio na perspectiva da criac;ao e leitura de imagens. 0 olhar e aprendido, e treinado de forma articulada com ou- tros olhares. 0 olhar niio e individual, ele e determinado social e conjunturalmente. E em func;ao do tipo de olhar de uma dada epoca que SiiO deterrninados OS tipos de imagens e de que forma as pessoas se relacionam com elas. Platao, procurando pensar a realidade, tratou do as- sun to abordando de forma aleg6rica a situar;ao dos homens comuns que deveriam ser libertados pela filosofia. Na sua alegoria, ele fala de homens que estariam acorrentados, des- de o nascimento, no fundo de uma caverna, de olhos dire- cio_nados para a parede oposta a entrada, sem a possibili- dade de se voltarem e olhar para tras. Por toda a largura da 42 Fotoetnografia entrada da caverna existiria urn muro, da altura de urn ho- mem e, depois do muro, uma grande fogueira. Entre o muro e a fogueira passariam outros hornens carregando imagens) estatuas 7 figuras de animais) utensilios etc. A luz da foguei- ra projetaria na parede do fundo da caverna as sombras das formas que estivessem acima da altura do muro. Os acorrentados ouviriam ecos das palavras que seriam pro- nunciadas pelos passantes. As imagens sombreadas e os ecos seriam para os prisioneiros a verdadeira realidade. Qual- .. quer possibilidade de virem a olhar para trit.s os deixaria at6nitos com a nova realidade: os objetos dos quais s6 co- nhbciam as sombras. Mas, se tivessem a possibilidade de olliar dos homens vivos no lado de fora da caverna, ficari- ard fascinados ao saberem que as sombras que viam eram ap¢nas sombras de figuras, sombras de c6pias da vida real. os:que estivessern todo o tempo acorrentados zombariam daqueles que lhes viessem contar aquilo que viarn niio era a legitima realidade. Se alguem tentasse liberta-los para o verdadeiro mundo, poderia par em ameac;a as suas vidas. A dinamica da vida por vezes nos coloca na situar;ao de acorrentados que puderam dar uma olhada para a en- trada da caverna. Como cientistas, os antrop6logos estao permanentemente a questionar quais imagens dao forma as sombras e quem cria e carrega essas irnagens, ou seja, o que esta por tras da aparencia imediata.24 0 oficio da an- tropologia e procurar entrar em "cavernas alheias" e la buscar, nas forrnas aparentemente evidentes do ~omporta mento do "outro", as razoes profundas determmantes da diferenc;a. E atraves do dominio de diferentes c6digos sim- b61icos que o antrop6logo poderit. melhor conhecer e inter- pretar o seu proprio, a fim de prosseguir na tarefa de com- preender como urn dado grupo social, numa dada epoca, ve e simboliza o mundo. S6 consegue estranhar o outro aquele que primeiro sabe de si. 43 \ : Luiz Eduardo Robinson Achutti Como a voz e a musica, e contrariamente ao texto a . ' 1magem nos trabalha o corpo. 0 olhar apalpa ou acaricia devora . . ' ou msmua-se, toea de leve ou penetra. ( ... ) Ver e abreviar. Interromper a 16gica linear das palavras, escapar dos corredores do sintatico e abarcar, de uma s6 vez, toda a sua vida anterior. ( ... ) Divina pechincha ter t_l possibilidade de justapor sem hierarquizar, sem saltar linhas nem voltar paginas (Debray, 1994:112). Neste trabalho intitulado "Vidas e Morte de Imagem", Debray procura articular uma ampla reflexao que ele defi- ne como auma hist6ria do olhar no ocide11te)~ Para poder pensar nosso tempo, que diz ser o tempo da visualidade ele . ' ' va1 encontrar tres momentos na historia do visivel que cor- responderiam a tres idades do olhar. o olhar magico, o olhar estetico e o olhar economico. Do mesmo modo que urn Livro de Horas do seculo Xlll ' enorme, raro e pesado, nao se Iia como urn Iivro de bolso no seculo XX, assim tambem urn retabulo em uma igreja g6tica exigia urn olhar diferente daquele que ve urn cartaz de cinema. (Debray, I 994:43) 0 au tor filia-se a ideia da imagem como o duplo como simulacra, imitac;ao ou representac;ao do real. Ele ~os diz que as primeiras imagens teriam surgido cumprindo di- versas func;oes ritualisticas como a de reverenciar o morto. Urn duplo daquele que se vai. Esta primeira fase, segundo Debray, a fase do olhar magico tern o idolo como tipo de imagem. Os homens desta fase inicial atribuiam poderes as imagens, delas faziam-se aliados como unica forma de en- contrar forc;as para enfrentar urn mundo ainda desconhe- cido. Quando os avanc;os tecnicos e cientificos conferem ao homem a possibilidade de maior apreensao do mundo, passamos para a fase do olhar estetico correspondente a imagem como arte. "A arte chega a imagem quando a rna- 44 Fotoetnografia gia se retira". (Debray, 1994:34) 25 Esta fase intermediaria teria surgido no seculo XV com o aparecimento de cole- c;oes particulares dos humanistas e terminado no seculo XIX com a criac;ao do museu publico. ·· A terceira idade, o olhar economico, tern como tipo de ~magem o que o autor chama de visual, (tomec;a logo que adquirimos poder suficiente sobre o espac;o, o tempo e OS corpos para deixar de temer sua transcendencia" (19,94:37). A invenc;ao da fotografia inaugura uma longa transic;ao das artes plasticas para as artes visuais. 0 apare- cirri.ento do video marca a consolidac;ao da era das imagens como visualidades, sendo a fase da computac;ao o seu coro- amento. Alijada de todo o referente (pelo menos, em principia), a imagem auto-referente dos computadores permite visitar urn predio que ~inda nao esta construido, andar em urn carro que s6 existe no papel, pilotar urn aviao falso em uma verdadeira cabine, por exemplo, para repetir no solo uma missao de bombardeamento. Eis o visual. Enfim, tal como em si thesmo. (Debray, 1994:277) 2. 0 Olhar eo surgimento da imagem fotografica 0 seculo XIX caracteriza-se pelas grandes transfor- mac;oes tecnologicas. Em Paris, 1839, e publicamente di- vulgada a invenc;ao da fotografia. Adorada e odiada, consi- derada arte por uns e mera tecnica por outros, a fotografia viria determinar mudanc;as nos habitos e na maneira das pessoas olharem o mundo e a si proprias. Ela veio influen- ciar as mais diversas areas do conhecimento eo comporta- mento humano. Como surgimento da fotografia, urn tipo especial de imagem veio a ser democratizada: o retrato. Ele era ate en- 45 ·• \ Luiz Eduardo RobinsonAchutti tao privilegio da aristocracia e dos burgueses mais ricos que podiam pagar pinturas a oleo. 0 daguerreotipo - re- trato em original unico feito como uma joia em placa de cobre - e logo depois o1 negativo e a possibilidade de co pia em papel vieram viabilizar a massificac;ao do habito de possuir a propria imagem. 0 retrato fotografico surge na epoca em que se acen- tua o processo de individualiza<;ao, sobretudo na Europa. Passam a existir novos tipos de preocupa<;oes como corpo e vestimentas como forma de se produzir a imagem ideal que se quer perpetuar. (Corbin, 1992) A nova tecnica, que so fora amea<;a aos pintores me- diocres, ao contrario deter posto em risco a pintura, como pensavam alguns, veio em auxilio desta, ensinando novos angulos para o olhar do pintor. Urn born exemplo eo caso do tipo de visao propiciada pelas lentes grande angulares. Os estudos do movimento dos animais e dos humanos fei- ' tos pelo fot6grafo Eadweard James Muybridge, com sua in- ven<;ao de fotografias em sequencia, tambem logo d~sper taram 0 interesse dos pintores naturalistas da epoca (Stelzer: 1981). 26 A fotografia, alem disso, democratizou a possibilida- de de se conhecer os classicos das artes plasticas. As gran- des telas, antes reservadas aos que tinham o privilegio de freqiientar museus, puderam chegar ate maos menos po- derosas atraves de reprodu<;oes em posters, livros, jornais ou revistas. Atualmente existe o costume de estampar ca- misetas com os mais variados motivos, desde reprodu<;oes de pinturas classicas ate fotografias, formando uma espe- cie de imagem ambulante, uma forma de empunhar ou vestir bandeiras, dizeres, mensagens, enfim, signos. Interessado na eficacia simbolica das imagens, De- bray diz que uma fotografia de urn ancestral colocada na sala de uma casa impoe uma necessidade de reverencia 46 Fotoetnografia mqito grande, como sea pessoa ainda existisse. A imagem pa~sa de fato a preencher o lugar daquele que se foi. Para u~a imagem alcan<;ar eficacia simb61ica, nao basta que seja vis~a, ela tern que ser interpretada por urn sujeito que com- paftilhe dos codigos simb6licos carregados pela imagem. 27 A atenc;:ao dos antrop6logos tem-se fixado mais sobre o psicanalista ou ao mago do que sobre os pintores, os cartazistas ou os cineastas. ( ... ) Nenhuma representa<;ao visual e eficaz nela e por si mesma, o principia de eficacia nao deve ser procurado no olho humano, simples captador de raios luminosos, mas no cerebro que esta por detras. 0 olhar nao e a retina. (Debray, 1994:110).· 28 Ate a inven<;ao da televisao, mais precisamente sua transmissao via satelite, na ausencia da coisa em si, era atra- ves da fotografia que se podia olhar o outro, sua cultura, suas virtudes e suas guerras. Nos Estados Unidos, a foto- grafia ¥tilizada como tecnica de documentac;ao social re- volucionou 0 jornalismo, levou a modifica<;ao de leis, a ado- <;ao de novas politicas governamentais e despertou o inte- resse de alguns poucos antrop61ogos. 29 A fotografia, que s6 ingenuamente pode ser entendi- da como urn meio puramente tecnico de se fazer registros visuais, instaurou uma outra forma de olhar, o olhar foto- grafico e sua especificidade. As fotografias de cunho social, por exemplo, implicam a alteridade. 0 interesse fotografi- co esta voltado para o outro que e "distante" de n6s, esteja ele longe ou perto. 0 olhar fotografico e uma das formas do olhar etnografico; assim como o antrop6logo, o fotogra- fo busca uma especie de revelat;aoda vida do outro- apro- veitando uma metafora de Ondina Fachel Leal. Ela soube bern responder aos ingenuos, que acreditam ser a fotogra- fia uma c6pia da realidade, dizendo que uma fotografili e uma realidade revelada: 47 \. ', \ Luiz Eduardo Robinson Achutti Fotografar e aprender urn olhar sobre o outro, este olhar e reificado em uma imagem, imagem esta que tenha o ,POder de captar olhares de outros outros. Que seria do fotogi:'afo se nao contemplassem suas imagens? Fotografando, soinos urn olhar que busca olhares. 0 olhar capaz de seduzir outro olhar e sempre perturbador (Leal: 1993). 3. 0 Olhar eo surgimento da imagem virtual Estamos vivendo urn periodo de novas e rapidas trans- forma<;oes na capacidade tecnica de criar, manipular e transmitir imagens. 0 advento da computa<;ao grafica esta nos colocando diante de mais urn processo de reeduca<;:ao do olhar. As imagens passam a ser produto da colagem de outras imagens, compondo especies de textos visuais que obedecem mais a subjetividade da autoria, do que a objeti- vidade concernente a realidade. Tambem as experiencias com imagens virtuais nos colocam na situac;ao de iniciantes de uma nova era da vi- sualidade. Em urn shopping de Porto Alegre tive a oportu- nidade de observar uma situac;ao exemplar de reeduca<;ao do olhar. Uma loja que vende posters organizava uma ex- posi<;ao que aglutinou urn grande numero de pessoas. o apelo da exposi<;ao era para a venda de posters em terceira dimensao. Junto aos posters, placas com as instru<;oes por escrito: "Fique a mais ou menos I metro do poster, procure olhar concentradamente para a superficie do vidro da mol- dura, relaxe e espere". De fato nao foi facil. Tentei algumas vezes ate conseguir. Os posters, feitos por computador com imagens pontilhadas, apresentam figuras razoavelmente de- sinteressantes. Depois de urn minuto ou dois, partes do pos- ter adquirem profundidade a ponto de nao mais interessar a imagem da superficie plana, mas sim a virtual figura que surge como urn grande volume "saltando" em meio ao pos- 48 l Fotoetnografia ter. ~ 0 Lembro que foi muito curioso nesta experiencia ob- servar a afli9ao das crian<;as no colo dos pais e o empenho quase desesperado destes na tentativa de ensinar aquilo que nem bern haviam aprendido. Retomando as tres idades do olhar propostas por De- bray ( 1994), poderiamos aprofundar a reflexao sobre a ter- ceira idade, cara,cterizada pelo olhar econ6mico e que cor- responde a imagem como visualidade. Para Debray esta e uma fase da banaliza<;ao das imagens. Nao temos mais ima- gens artisticas, s6 visualidades. Urn grande show audiovi- sual no universo da multimidia, do CD-ROM. Ele chega a sugerir que em determinadas situa<;:oes, se pode olhar me- Ihor fechando os olhos. 31 Para finalizar, no sentido de olhar urn pouco essas experiencias atuais, gostaria de propor uma imagem que nao e aleg6rica, mas observavel empiricamente. Dentre OS modernos jogos informatizados que sao oferecidos ao pu- blico como lazer, existem os jogos de intera<;ao com ima- gens virtuais. 32 A pessoa, ap6s passar no caixa para fazer seu pagamento, entra numa "arena" eletr6nica, equipa-se com 6culos especiais, recebe uma poderosa arma e passa a travar uma guerra virtual. Quem por ventura venha ob- servar de fora essa cena achara muito estranho uma pes- soa, que esta s6, agir como se estivesse acompanhada e ain- da mais sendo amea<;ada. Na alegoria de Platao, a rela<;:ao era com sombras; aqui a intera<;ao se da com invisibilida- des. No tempo dos povos pre-hist6ricos, 1dade do olhar m:igico, o mundo estava superpovoado por seres sobrena- turais, temidos e adorados. Na idade do olhar estetic0; os homens apreciavam a arte e eram guiados por poucos deu- ses. Logo vieram alguns intelectuais que anunciaram a morte de Deus. S6s, entramos na 1dade do olhar econ6mico bus- cando repovoar nosso mundo/ r:;riando seres virtuais que 49 \I Luiz Eduardo Robinson Achutti nos venham fazer companhia. Contemporaneamente, a missao da antropologia eli- dar com urn emaranhado de entidades sobrenaturais com ' o jogo de disputas esteticas e com as afirmac;:oes de crenc;:as virtuais. No sentido proposto por Geertz (1989), trata-se de dar conta das teias de significados, visando possibilitar o dia1ogo entre as culturas. 50 III FOTOGRAFIA: MEDIA~AO, TECNICA E NARRA~Ao 1. 0 presente do futuro 0 fotografo Laslo Moholy-Nagy escreveu certa vez que "os analfabetos
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